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“Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer.

Por motivos que aqui não


importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça.”
Pertencer (Clarice Lispector)

Bianca Borgianni

Existe um planeta chamado Terra, dentro tem um continente chamado América do Sul, dentro tem um país
chamado Brasil e dentro dele uma cidade chamada São Paulo; dentro da cidade tem um bairro chamado
Pompeia e, dentro, tem uma ladeira de paralelepípedos. Dentro da ladeira tem um monte de casinhas
coloridas coladas umas nas outras, tem um monte de árvores inclinadas e três prédios. Um dos prédios é tão
baixinho que deve ser muito antigo, do tempo em que não se construíam prédios imensos em São Paulo
porque não teria gente suficiente pra morar neles; outro é muito novo e tem aquele jeito meio pós-moderno
sem-graça de misturar tijolo com vidro na varanda; o último é um predinho meio novo, meio velho, meio
discreto, bem no fim da ladeira. Não é alto nem baixo, não é feio nem bonito, não bate muito sol e nem por
isso se torna hostil. As varandas são de grade verde, algumas têm muitas plantas, mas nunca tem gente
nenhuma. Dentro do prédio tem meu vizinho de baixo, que senta num banquinho pra fumar e o cheiro de
cigarro sobe todo para o meu apartamento - em cima do apartamento dele tem o meu. Dentro do meu tem
alguns cubos coloridos repletos de livros e lugares pra ler; no mais tem cozinha e banheiro, tudo amarelinho,
meio apertadinho, mas bem que dá pra viver.
O lugar onde vivemos é bem pequeno dentro mundo, mas o mundo que ele cria é enorme dentro da gente.
Fazer essa pequena descrição do apartamento onde moro há dez anos me suscitou uma série de lembranças,
um emaranhado de sensações cruas e imagens poucos nítidas de uma vida bastante vivida e pouco notada.
Após este momento de imersão, esse choque subjetivo com a realidade concreta, a primeira pergunta que
vem à mente é a seguinte: “Mas e daí? Minha vida, minha casa, meu quarteirão... a quem isso poderia
interessar?”.
O questionamento sobre o porquê de escrever é fundamental no processo de criação literária, embora seja
constantemente ignorado por conta da estrutura tradicional das aulas de redação, que pressupõem que o
aluno está sempre disposto a escrever e que essa é apenas mais uma de suas atividades obrigatórias. Quando
esse processo adquire uma finalidade em si (ou seja, quando o aluno escreve somente porque precisa
entregar), a escrita perde o poder de interferir na relação sujeito/mundo e assume predominantemente uma
função burocrática externa a ele, que em nada se relaciona com a sua subjetividade.

Respondendo à pergunta feita acima, pode-se dizer que a primeira pessoa a quem a expressão literária da
vida pode interessar é ao próprio autor. O mundo interior de cada pessoa é um complexo redemoinho
histórico, social e particular que se realiza em tempo presente; quando alguma situação exige que nos
distanciemos da nossa própria vida e a transformemos em matéria de elaboração estética, a nossa
experiência inevitavelmente se submete a intensos processos de significação e ressignificação. A vivência
parte do plano concreto, onde estamos sujeitos à vida, para o plano da criação, onde somos os sujeitos da
vida.

O trecho da Clarice Lispector citado no início deste texto é parte de uma crônica chamada
“Pertencer”. Considerando que o sujeito se realiza na linguagem, essa ideia de pertencimento está
intimamente relacionada ao processo de escrita, pois ao escrever, ele adquire o poder de realizar a sua
subjetividade não-palpável no mundo das palavras. Ainda que para muitos alunos ele apareça como um
recurso intimidador, o mundo das palavras é a mediação da realidade comum a todas as pessoas, e conseguir
reverter a própria experiência em matéria narrável significa dar um passo muito grande na constituição da
própria identidade perante o mundo.

O tema da Olimpíada de Língua Portuguesa é “O lugar onde vivo”, e recentemente chegamos à conclusão de
que o sujeito oculto desta oração precisa sair das entrelinhas e assumir o papel principal. É claro que isso
não significa que os alunos devam escrever em primeira pessoa histórias sobre si mesmos. O protagonismo
ao qual nos referimos está na noção de autoria, que precisa estar cada vez mais livre dos modelos literários e
cada vez mais vinculada à experiência dos alunos. Escrever sobre o lugar onde vivemos é escrever sobre nós
mesmos e escrever sobre os nossos avós é também buscar entender a nossa própria história.

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