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COISAS DA VIDA

Iole Cavini Martorano

1
Memórias

2
Saber Viver

Não sei ... Se a vida é curta


Ou longa demais pra nós,
Mas sei que nada do que vivemos
Tem sentido, se não tocamos o coração das pessoas.

Muitas vezes basta ser,


Colo que acolhe,
Braço que envolve,
Palavra que conforta,
Silêncio que respeita,
Alegria que contagia,
Lágrima que corre,
Olhar que acaricia,
Desejo que sacia,
Amor que promove.

E isso não é coisa do outro mundo,


É o que dá sentido à vida,
É o que faz com que ela
Não seja nem curta,
Nem longa demais,
Mas que seja intensa,
Verdadeira, pura... Enquanto durar.

Cora Coralina

3
Machado – MG , 1927

4
Miguel e Catharina, um casal de jovens, se conheceram.

Ele vindo de Poços de Caldas, marcineiro, bonito. Ela morava em

Machado, ambos vindos da Itália. Eles se apaixonaram. Na

mesma cidade, porém, havia um viúvo que gostava dela e sempre

a perseguia. O viúvo tinha três filhos jovens. Certo dia, eles

estavam juntos namorando, quando o viúvo passou por eles.

Inesperadamente, cuspiu na cara de Miguel, dando-lhe um tapa

em seguida. Temeroso pelas consequências, fugiu em disparada a

cavalo.

Passado alguns dias, o casal resolveu sair da cidade.

Para isso, conseguiram um registro de nascimento com nomes

diferentes. Ela passou a se chamar Laura Zamboni, e ele, Carlos

Zamboni. O plano que tinham era de se mudarem para um local

bem distante. Antes da partida, o marcineiro, sempre perseguido

pelo viúvo, acabou reagindo, dando-lhe um tiro. O viúvo veio a

falecer em seguida.

Diante da ameaça de vingança dos filhos do falecido

viúvo, o casal foi para um local bem distante, chegando no Rio

Grande do Sul, na cidade de Passo Fundo. Indo, a seguir, para

Santa Maria. Ali permanecendo por cerca de dois anos.

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Miguel Cavini

Catharina Tellini

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Ponta- Grossa – Paraná, 1929

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Eles não tiveram filhos. Resolveram então adotar uma

criança. Por acaso, o casal soube que uma senhora de cor havia

assumido a criação de uma menina. Ela era pobre e vivia em um

barraco, ao lado do trilho do trem. A menina era fruto de um

relacionamento casual entre um árabe e uma polonesa, que

trabalhava como doméstica na casa dos pais deste jovem. A

família árabe demitiu a empregada quando soube que ela estava

grávida. Ela teve que ir morar com seus pais. Seu pai, ao ser

informado de que ela estava grávida, reagiu brutalmente

colocando a filha para fora de casa. Sem trabalho, abandonada

pela própria família e pelo pai da criança – a família árabe só

aceitava casamento com mulher árabe -, a jovem polonesa, então

com 18 anos, foi viver com uma amiga.

Um pouco depois, a jovem polonesa conheceu um viúvo

também vindo da Polônia, que já tinha dois filhos pequenos. Essa

nova relação culminou com um casamento. Em seguida, eu nasci.

O marido de minha mãe exigiu que ela me doasse, ele não

aceitava criar uma criança que não fosse de seu sangue. Assim

sendo, minha nova mãe passou a ser a senhora de cor.

Como já disse, ela era muito pobre e o pouco que ganhava

como faxineira mal dava para o seu próprio sustento. Com a

minha chegada, a sua situação tornou-se ainda mais difícil,

sendo obrigada a se ausentar do trabalho por alguns dias para

cuidar de mim. Naquele tempo, não havia a adoção tal como se

entende hoje. Filhos e filhas que não eram assumidos por suas

próprias famílias, eram simplesmente entregues às pessoas que se

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ofereciam para cuidar deles. Como todo recém-nascido, eu

chorava, fosse por fome, dor ou qualquer outro motivo. Minha

primeira mãe adotiva, quando se deu conta de que não tinha as

mínimas condições de sustentar uma criança, pensou em me

colocar ao lado do trilho do trem para que alguém

eventualmente me encontrasse e tomasse alguma providência.

Quando o casal de Machado soube que ela estava

decidida a fazer isso, foi até o seu barraco e lhe disse que ficaria

com a menina. Não apenas a levaram, como a registraram no

cartório de Ponta-Grossa como sendo sua filha legítima, Iole

Zamboni, nascida em 23 de março de 1930.

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10
Marcenaria e carpintaria de Miguel Cavini
Infância

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Posso dizer que tive uma infância comum. Minhas

melhores amigas eram as filhas do prefeito, a Ligia e a Lia , e nós

estudávamos juntas no Colégio das Freiras. Muitas vezes, depois

do colégio, eu ficava brincando na casa delas. Minha mãe não

gostava quando eu chegava tarde em casa. Talvez ela tivesse a

preocupação de que as demais famílias viessem a saber que eu era

filha adotiva.

Certo dia, após um desendimento com minha mãe, a

vizinha se voltou a mim para falar:

“- Por que você a chama de mãe, sendo que ela não é a

sua mãe ?”

Essa pergunta não provocou reação alguma em mim, pois

era bem criada e tinha tudo o que uma criança gostaria de ter

com seus pais. Eu não via, e nem entendia, uma possível diferença

entre filhos adotivos e filhos não adotivos. Para mim, todos eram

iguais. Ademais, tive um pai maravilhoso ! Minha mãe, talvez por

causa da enxaqueca e da miopia, era um pouco nervosa.

Quando tinha 8 ou 9 anos, perguntei a eles se não eram

meus verdadeiros pais. Minha mãe respondeu que eles não eram

meus pais. Ela disse que eu tinha sido adotada, já que a senhora

que me mantinha, não tinha a menor condição de me criar.

Lembro-me ainda de uma senhora que esteve na frente de

nossa casa. Ela queria falar com minha mãe, dizendo desejar me

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conhecer. Minha mãe, irritada com a sua presença, mandou que

eu entrasse. E, em voz alta, mandou ela ir embora, afirmando

que quando a menina precisou de ajuda, ela não tinha se

manifestado e nem permitiu que o seu outro filho a visse. Foi a

única coisa da discussão que consegui escutar e que ficou na

minha memória.

Ainda nessa época, minha mãe também me disse que se

eu fosse um menino, a família árabe de meu pai teria aceitado

me criar.

Desse período, ainda me lembro da inauguração do Cine

-Teatro de Ponta-Grossa, quando se apresentou uma companhia

de ópera italiana. Meu pai foi falar com o responsável do teatro

para saber se podiam me levar; não era comum naquela época a

presença de crianças em óperas. Eles conseguiram a autorização

com a condição de que eu não criasse problemas durante toda a

apresentação. Assim, pela primeira vez, fui assistir uma ópera, no

caso era de Giuseppe Verdi – La Traviata ou Rigoletto.

Meu pai, nascido na Itália, escutava a rádio italiana e

assinava o Fanfulla, jornal da colônia italiana, me

incentivando no aprendizado desse idioma. Um dia me disse que

a segunda guerra mundial havia começado. O que não me

causou nenhum impressão, eu não havia sequer completado 10

anos de vida, e me interessava mais em brincar com as bonecas,

com o balanço que havia no quintal ou na oficina de

carpintaria de meu pai, no fundo de nossa casa.

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Aos poucos fui percebendo a influência que a guerra

começou a exercer sobre minha família. Tal como todos os demais

italianos, meu pai ganhou a alcunha de “quinta-coluna”. Mas

isso não ficou apenas como um adjetivo pejorativo, trouxe também

outras consequências sobre toda a comunidade italiana.

Corriam rumores de que todos os membros dessa comunidade

perderiam os seus bens. Nesse ambiente, meu pai decidiu vender

suas casas, a madeira e a oficina, pois não tinha conta em banco

e guardava o dinheiro em casa, talvez porque usava outro nome.

Um dia ele me chamou para mostrar onde guardava seu

dinheiro. Conversando comigo, me informou sobre as ameaças

que existiam contra os estrangeiros. Acrescentando:

- “Caso venha a acontecer algo comigo, não se preocupe,

você estará segura”.

Em seguida, me levou até o sotão de nossa casa, onde

estavam guardadas algumas latas de aveia Quacker – as poucas

existentes na época. Dentro delas estava todo dinheiro obtido com

a venda das casas, da oficina e da madeira. Com 11 ou 12 anos

de idade, embora não dissesse nada, fiquei impressionada e

bastante preocupada, imaginando o que poderia acontecer de

pior. É por isso também que posso dizer que ele era um verdadeiro

pai: estando preocupando com a sua própria situação, transferia

a responsabilidade para mim. E não para minha minha mãe,

como já disse, que tinha problemas de saúde.

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Um pouco depois, meu pai conseguiu vender a última casa

que tinha em Ponta-Grossa, e nós nos mudamos para São Paulo,

capital.

Iole aos 6 anos.

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Casa de Miguel Cavini e Catharina Tellini

Vizinhos, recém casados, em foto comemorativa.


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A família Cavini.

17
São Paulo, capital – Anos 40

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Chegando em São Paulo, moramos por alguns dias na casa

da irmã de meu pai, na Lapa, a Tia Elvira. Ela tinha uma

família grande, com seis filhos que viviam em uma casa grande.

Logo em seguida, meu pai comprou uma casa no Ipiranga, perto

do Museu, onde passamos a morar.

Ali não frequentei nenhuma escola pois não podia

comprovar que havia estudado até a quarta-série em Ponta

Grossa, onde estudei em colégio particular com meu outro nome.

Aos domingos pela manhã, frequentava a escola domenical da

Igreja Presbiteriana Independente. À tarde, passeava pelo Museu

do Ipiranga e seus jardins com vizinhos de nossa rua. À noite,

participava no culto da Igreja, cantando no seu coral. A mulher

do pastor Evaldo, a senhora Claudina, dizia que eu levava jeito

para a música e que se disporia a me ensinar piano sem cobrar

nada. Mas para isso eu teria que ir duas vezes por semana às

2Ohs. na sua casa, que se localizava a quatro quarteirões de

nossa casa, o que foi proibido por minha mãe que dizia ser

perigoso eu andar sózinha a noite pelo bairro.

Meu pai começou a trabalhar na montagem de móveis

como autônomo para pessoas ricas, e ganhava muito bem. Mas

minha mãe não gostava da cidade, ali ela não tinha amigas ou

conhecidas. Ela queria ir para Pinhal, onde morava sua irmã

numa casa com os filhos. Além de ter outro irmão morando em

Poços de Caldas. Diante da insistência de minha mãe, meu pai,

passado cerca de um ano após nossa chegada, acabou

comprando uma outra casa, também grande, em Pinhal.

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Em São Paulo, meus pais regularizaram os seus

documentos, voltando a usar os seus verdadeiros nomes:

Catharina Tellini e Miguel Cavini. Eu cheguei com o nome de Iole

Zamboni, e quando fui para Pinhal passei a me chamar de Iole

Cavini, com registro de nascimento tirado em Poços de Caldas

pelo irmão de meu pai, Cesare Cavini, que tinha amigos que

trabalhavam no Cartório local.

Miguel Cavini, Iole e Elvirinha no


Museu do Ipiranga, anos 40.

20
Encontros da Igreja Presbiteriana, anos 40. 21
Encontro da Igreja Presbiteriana, anos 40.

A família de Tia Elvira, irmã de Miguel Cavini

22
Espírito Santo do Pinhal – 1944

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Ocorre que meu pai não gostou de Pinhal, alegando ser

uma cidade muito pequena sem possibilidades de trabalho. Assim,

a minha primeira estadia em Pinhal acabou sendo curta, de

apenas alguns meses. Lembro-me que ia até a casa da irmã de

minha mãe , a tia Fortunata, casada com o tropeiro José Pinto.

Eles tinham seis filhos ( Anunciata, Amadeu, Diva, Valdomiro,

Valdemar, Valdir e Valter ). Esse era o motivo da minha ida até

lá. Eu preferia passar o tempo com mais gente para não me

aborrecer ficando sózinha. Minhã mãe, além da mania de

enxaqueca, deitando-se várias vezes ao dia e proibindo qualquer

tipo de barulho , costumava dormir após o almoço e eu não tinha

o que fazer naquela casa grande.

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São Paulo – 1945

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Dessa vez, ficamos dois anos em São Paulo. Meu pai, com

o passar dos anos, já demonstrava sinais de certo cansaço. Além

disso, ele não tinha mais necessidade de continuar trabalhando

porque a sua situação financeira era boa, com o que havia

conseguido com a venda de suas propriedades em Ponta-Grossa.

Dois anos depois, estávamos de volta a Pinhal – em primeiro

lugar, por causa de minha mãe, e , em segundo, porque agora

meu pai achava que descansaria melhor morando em uma

cidade pequena como Pinhal. Com a venda da antiga casa do

Ipiranga e mais algum dinheiro, meu pai comprou uma casa

ainda maior, 14 cômodos para 3 pessoas em um terreno de 700

metros no centro da cidade. A outra casa que tinhamos em

Pinhal, minha mãe havia passado para o nome de sua irmã

Fortunata, já que eles não tinham casa própria.

Vista de Pinhal, anos 30 --40.

A família Cavini, anos 40, em frente ao Museu do Ipiranga. 26


Juventude em Pinhal - 1947

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Com 17 anos, já podia sair com minhas amigas sem a

presença de meus pais. Como até hoje muitos fazem por lá,

passeavamos pelo jardim central da cidade em frente da

Catedral, mas somente até às 21 :00 Hs.

Mais tarde, meu pai descobriu que era diabético e teria

que fazer, todos os dias, a injeção de insulina. Para isso, ele ia

até a farmácia, onde quem geralmente a aplicava era um moço.

Com ele, meu pai passava um bom tempo conversando, visto que

ele ainda não tinha muitos amigos na cidade. Essa farmácia era

conhecida na cidade como sendo a dos Martoranos, na qual

trabalhavam três irmãos: Lenita, Vitório e Nicola. Era esse quem,

por vezes, oferecia uma garrafa de vinho, um livro ou um jornal

ao meu pai. Meu pai apreciava o seu trabalho, considerando-o

muito atencioso. Certa vez, o Nicola disse ao meu pai que caso ele

não pudesse ir tomar a injeção na farmácia, ele poderia aplicá-

la em casa.

Em 1951, começamos a namorar. Nós nos encontrávamos

na praça, duas vezes por semana, dávamos algumas voltas por

alí, ou sentávamos em algum banco do jardim. Depois, ele me

acompanhava até a nossa casa. Num desses passeios, ele disse que

pensava em nosso casamento. Acrescentando que já havia falado

sobre isso com os seus pais e que poderia ir falar com os meus; ou

seja, ir até nossa casa pedir a minha mão em casamento.

Combinamos então uma data para a visita aos meus pais. Como

meu pai já o conhecia e o tinha como amigo, concordou que os

pais do Nicola viessem até nossa casa para conversar.

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O senhor Francesco Martorano era uma pessoa bastante

séria, disse logo no início da conversa que eu deveria pensar bem,

pois seu filho “não era boa peça” e que talvez fosse me dar

trabalho… De cara, gostei muito da minha futura sogra, Adele

Martorano, por achá-la um pouco tímida e simpática.

Foto da carteira da identidade.

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Francesco Magaldi Martorano, na Itália.

Francesco Martorano e Adele Martorano., em Pinhal.


30
Casamento

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No final do mesmo ano, o senhor Francesco faleceu

subitamente, e sua falta abalou bastante a minha futura sogra.

Ela teve que se acostumar com uma nova situação, inteiramente

inesperada: assumir toda a responsabilidade pela casa e pelos

filhos, incluindo até mesmo as coisas mais simples como comprar

comida, roupa, etc., que antes eram feitas pelo seu marido. Ela

mesmo, raramente saía de casa. Nessas condições, o Nicola propôs

que nos casássemos logo: como estavam de luto, não haveria

necessidade de festa e eu poderia ajudar a sua mãe, inclusive

fazendo companhia a ela. Como já disse, o Nicola, o Vitório e a

Lenita trabalhavam na farmácia; a Fúlvia, a Gilda e a Bruna

lecionavam e pouco ficavam em casa; o Francisco e o Mário

estudavam. E o Felício já era casado e morava em Andradas,

onde tinha uma farmácia. Além da Domingas Antônia, a tia

Mimi, que também já estava casada e morava em São João da

Boa Vista. Ele, como não se dava bem com os padres da Catedral,

encontrou um padre italiano recém-chegado em Pinhal que

realizou a cerimônia de nosso casamento na Igreja São Benedito,

em 10 de fevereiro de 1952.

Após o casamento, passamos uma semana em lua-de-mel

no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte. Voltando a Pinhal, fomos

morar no sobrado de sua família em uma esquina da rua

Marques do Herval, onde abaixo funcionava a farmácia. No

começo, eu estranhei um pouco, estava acostumada só com meus

pais, ou seja, três pessoas em casa. Alí passei a conviver com oito

pessoas: minhas cunhadas Lenita, Fúlvia, Gilda e Bruna; os

cunhados Francisco e Mário; a tia Rita, irmã de meu sogro; e

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minha sogra, Adele. Me dei tão bem com a minha sogra que

passei a chamá-la de mãe. Aos poucos, diminuiu o número de

moradores no sobrado: a Fúlvia foi lecionar em Promissão, a

Bruna foi para Jacutinga e o Francisco foi estudar odontologia

em outra cidade. Como eu gostava de cozinhar e também de

aprender costumes diferentes, considerando que tudo era

novidade para mim, fui assumindo algumas tarefas do dia-a-

dia no sobrado: compra de mantimentos, ajuda na farmácia, etc.

Gostava também de conversar com a minha sogra. O Vitório,

embora trabalhasse na farmácia, não morava no sobrado; já era

casado com dona Nenê, vivendo bem próximo dalí. Como a casa

de meus pais era bastante próxima, era comum eu ir até lá

conversar com eles.

Igreja matriz, de Pinhal.

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Farmácia Martorano.

A família de Francesco Martorano, em Pinhal.


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Nicola Izidoro Martorano, foto de formatura.

Alunos formando em Pinhal. 35


Iole Cavini, vestida de noiva, 1952. 36
Foto de casamento, 1952.

Lua de mel no Rio de Janeiro.


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Iole Cavini Martorano, em lua de mel no Rio de Janeiro, 1952.

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Nossa primeira filha

39
Na farmácia, havia um velho de cor que passava horas e

horas conversando no banco da farmácia. No dia em que soube

do nascimento de nossa primeira filha, a Gina, em 15 de

novembro de 1952, ele disse:

- “Oh, oh! Pera aí… - levando as mãos e passou a contar

os dedos -, …fevereiro, março, abril, maio, junho, julho, agosto,

setembro, outubro, novembro… Ah, tá certo. Tá no tempo!”

A nossa primeira filha foi motivo de alegria para todos

no sobrado. Para mim em particular, o nascimento da Gina

representou a realização de um antigo desejo meu , sempre gostei

muito de crianças. E o Nicola se alegrou muito, porque ele

também gostava de crianças e ficava contente quando as suas

sobrinhas passavam pelo sobrado.

Como naquele período era permitido manipular vários

medicamentos na farmácia sem autorização especial, o Nicola ia

sempre a São Paulo comprar os sais necessários para a sua

elaboração. Além disso, não havia distribuidoras de

medicamento para o norte do Paraná. O Nicola e o Vitório

resolveram então comprar um caminhão para vender remédios

nessa região, que estava em expansão e crescimento, com muita

gente indo para lá com a intenção de trabalhar na terra que era

barata e boa ( a terra roxa ). Esse caminhão tinha gavetas e

prateleiras e um corredor no meio, ou seja, ele era próprio para a

venda de remédios. Como nenhum deles sabia dirigir, um

motorista foi contratado. Passaram a viajar uma vez ao mês,

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ficando de dez a quinze dias no norte do Paraná, em cidades

como Londrina, Paranavaí, Bandeirantes, Campo Mourão, etc.

Em 5 de janeiro de 1954, nasceu nossa segunda filha,

batizada como Beatriz. Tal como da primeira vez, a sua chegada

foi também motivo de alegria para todos no sobrado e, em

especial, para mim e para o Nicola. Ao contrário da Gina, a

Beatriz chorava mais e não aceitava que qualquer um a

carregasse.

O Vitório e o Nicola continuam viajando para o Paraná.

Numa dessas viagens houve um acidente com o caminhão perto

de Bandeirantes, que provocou a morte de meu cunhado Vitório.

Sem ele, as viagens se encerraram, pois sempre que um viajava o

outro ficava responsável pela farmácia. A sua morte causou

consternação em todos nós. Além de ser querido, de deixar a

esposa e cinco filhos, o Vitório ainda era jovem – não chegara a

completar os trinta anos de vida. Além disso, foi o primeiro filho

que minha sogra perdia. Durante algum tempo, o ambiente ficou

bastante triste no sobrado.

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Lenita e Rodolfo, 1952, padrinhos de batismo de Gina 42
Gina em frente do sobrado dos Martoranos. 43
As crianças, início dos anos 60.
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As crianças, início dos anos 60. 45
Getúlio Vargas

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Como morávamos numa cidade pequena, não me lembro

de nada que tivesse ocorrido em Pinhal por causa da morte de

Getulio Vargas, ocorrida em agosto de 1954. Naquele tempo, no

sobrado, ouvíamos as notícias pelo rádio e não recebiamos

nenhum jornal. Parece que em Pinhal havia o jornal feito pelo

senhor Laurindo Marques, professor do Cardeal Leme.

O ano de 1955 assinala a chegada da nossa terceira

filha, a Fábia, nascida no dia 23 de março. Tal como as duas

anteriores, o seu parto foi normal e se deu na maternidade da

Santa Casa de Pinhal. Desde pequena, a Fábia foi tranquila e

sossegada. No sobrado, viviamos dona Adele, eu, Nicola, o Mário e

as três crianças. A parte de cima do sobrado estava dividida

entre o nosso quarto, o de minha sogra, o do Mário, além de dois

quartos que ficavam à disposição de quem chegasse. Em nosso

quarto, além da cama de casal, havia um berço, uma cama de

solteiro, uma cômoda e um guarda-roupa. Mas a Gina e a Beatriz

já desciam a escada para brincar na farmácia que também era

espaçosa. Como ainda não frequentavam a escola, e na época

não havia jardim de infância, elas passavam quase todo o dia

brincando pelo sobrado. Como eu já tinha três filhos, a tia

Ritinha, irmã de meu sogro, apesar de todos os seus problemas

mentais, gostava das crianças e me ajudava a cuidar delas.

Apesar da advertência de meu sogro sobre o Nicola,

indicando que ele, como foi dito acima, “não era boa peça”, a

nossa vida de casal no sobrado não apresentava nenhum

problema. Nós não discutíamos nem na presença dos demais, nem

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quando estávamos sózinhos em nosso quarto. Ainda que parece

estranho aos olhos de hoje, na época muitos casais dividiam seus

próprios quartos com os seus filhos, especialmente entre famílias

de origem italiana, que formavam na prática a única

comunidade de estrangeiros em Pinhal; pois além deles, havia

apenas alguns poucos árabes. Depois de fechar a farmácia às

20hs, quase sempre o Nicola ia jogar baralho num salão ligado à

padaria dos Florezi. Ali ele ficava até as 22hs, quando voltava

para o sobrado. Aos sábados, ele saia com amigos, como o Rubens

Balzachi, para se divertir nos bailes na periferia da cidade, em

locais conhecidos pelo nome de “risca-faca”: um salão

normalmente de terra, uma vitrola e o bar. Esses bailes, eram

frequentados em sua grande maioria pela população humilde da

cidade: trabalhadores, empregadas, etc. Os clubes mais

conhecidos eram o GPEA, o Comercial e o Bangu, realizando o seu

baile uma vez por mês para os seus associados, que poderiam ser

agrupados, grosso modo, respectivamente da seguinte forma: o

primeiro mais para a classe média; o segundo para o povo em

geral e o terceiro para a comunidade negra.

Como não tínhamos nenhum filho, contínuavamos com o

sonho de tê-lo. Tentativa vai, tentativa vem… no ano de 1957, em

8 de fevereiro, nascia mais uma filha: a Duília. Isso não

significou, de maneira alguma, qualquer tipo de contrariedade

para nós. A nova filha, a exemplo das demais, foi mais um motivo

de alegria para todos nós no sobrado. Com a chegada dela,

tendo quatro meninas, não podia ajudar mais na farmácia e

resolvemos nos mudar para o sobrado em frente, que estava vago e

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também pertencia à família Martorano. Além disso, a minha

sogra, com mais de 60 anos, poderia descansar; qualquer criança

sempre dá trabalho. Entre elas, a mais sorridente era a Gina, que

era muita receptiva perante qualquer pessoa, mesmo que fosse

desconhecida. A Beatriz já era diferente: se alguém brincasse com

ela, geralmente se emburrava, olhava feio para a pessoa e

entrava para dentro do sobrado. A Fábia, como disse, era

bastante tranquila: no quadrado de madeira, antes chamado de

chiqueirinho, havia brinquedos , onde ela brincava sózinha e

dormia ali mesmo quando se cansava. A Duília, desde pequena,

deu sinais de ser bastante quieta e observadora.

Sempre quando voltava de alguma viagem de São Paulo,

o Nicola apresentava alguma idéia nova de negócios, sempre de

grandes dimensões. Uma de suas características era sempre

pensar grande. Como se sabe, a capital era uma terra propícia

para isso. No retorno de uma de suas viagens, ele, entusiasmado,

disse que queria montar uma distribuidora de medicamentos alí.

Disse ainda que já havia visto um lugar apropriado para isso.

A distribuidora em São Paulo foi aberta na rua Paula

Souza, 87, segundo andar. Um local de atacadistas. O prédio era

de Vicente Martorano, parente dele, e a sua esposa se chamava

Linda Martorano, que crismou a Duília. No mesmo andar, em um

quarto em frente, morava Nicolino, primo de meu marido, que

tinha mais três irmãs vivendo em Pinhal. A filha de Nicolino se

chama Carmela e foi criada por suas tias, Catarina, Lucrécia e

Lola, porque ele ficou viúvo.

49
São Paulo, 1958

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Com a montagem da distribuidora, voltei a morar em

São Paulo com 28 anos, agora acompanhada de meu marido e

de nossas quatro filhas. Todas eram pequenas e ainda não

frequentavam a escola. Nossa residência ficava bem próxima ao

depósito, rua Senador Queiroz na esquina com a 25 de março.

Também era um sobrado, e tinhamos que sempre subir ou baixar

32 degraus. Tinha três quartos, sala, cozinha e banheiro. O

quarto maior era ocupado por mim e pelo Nicola; o outro pelas

crianças; e o terceiro passou a ser ocupado por uma amiga,

professora de Pinhal, e sua filha – dona Eliza e Terezinha. Ela foi

viver em São Paulo na busca por um emprego melhor. Elas

moraram por cerca de três meses em nossa residência. Depois que

a filha conseguiu um bom local para lecionar, se mudaram.

Como elas me ajudavam no serviço da casa, com a sua saída,

voltei a Pinhal para tentar encontrar uma empregada que

quisesse trabalhar e viver em São Paulo. Foi assim que conheci a

Ana, que já tinha um irmão em São Paulo. Como de costume,

todos os sábados, após o almoço, ela ia para lá, na casa de seu

irmão, voltando na segunda-feira pela manhã.

O comércio com os remédios foi difícil no começo. O

Nicola, apesar de haver trabalhado em farmácia, não tinha a

prática de negociar no atacado. Assim, às vezes comprava algo

que não vendia, ou então, com a intenção de obter prêmios ou

descontos maiores dos laboratórios, adquiria uma quantidade

maior do que a capacidade ou possibilidade de venda. Na

tentativa de melhorar as vendas, o Nicola contratou um gerente,

o senhor Pacheco. Todos os dias, às 8 horas da manhã, não era

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dificil notar a sua chegada no trabalho: sentia-se de repente um

cheiro de perfume bastante acentuado, e sempre o mesmo,

Margarate Duncan. Ali trabalhavam também uma jovem de cor,

responsável pela entrada e saída de mercadorias; dois jovens que

separavam e empacotavam os medicamentos para a entrega;

além do contador, que trabalhava meio-período, e era de origem

japonesa, o senhor Onda. Mas como os problemas não eram

resolvidos, após a saída dos empregados, eu e o Nicola

acabávamos discutindo sempre sobre o que era comprado e a sua

quantidade.

Por essa época, eu já estava grávida pela quinta vez.

Tentei tomar um dos primeiros anticoncepcionais que

apareceram no mercado, o que acabou provocando uma

hemorragia de 15 dias. Na distribuidora a situação estava pior:

as fármácias pediam mas o produto não era encontrado, o que

provocou a queda no movimento. Além disso, ficava no estoque

muitos remédios que não tinham saída. Sob essa pressão, o Nicola

começou a beber mais do que já bebia, pois se dera conta que a

situação só se agravava e não apresentava uma boa alternativa.

As dívidas aumentavam e o crédito diminuia. Uma tarde, ele

saiu e demorou muito para voltar. Quanto voltou já era quase

noite. Eu estava somando as dívidas e falei em dispensar o

gerente, que tinha um bom salário. Não iria fazer falta, já

tínhamos o contador e a secretária no escritório. Ele não

respondeu, ao que parece por notar que deveria decidir

rapidamente e talvez também por ter reconhecido o seu erro. Um

pouco depois falou :

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- “ Espero um pouco que vamos juntos para casa.”, indo a

seguir ao banheiro.

Eu comecei a apagar as luzes. Logo a seguir, escutei um

tiro. Abri a porta do depósito para ver o que era. O Nicolino

também havia escutado o tiro. Saímos para o corredor ao mesmo

tempo, ele foi ao banheiro, forçou a porta para poder entrar e viu

o Nicola caído. Para mim, ao vê-lo caído com o revolver ao lado,

foi um tremendo susto, do qual, até hoje, não gosto de lembrar. O

Nicolino pediu que eu ficasse quieta enquanto ele fosse buscar

socorro. Eu fiquei parada, sem ação. Pouco depois o Nicolino

voltou com alguns amigos, levando o Nicola para um carro que

foi até o Hospital das Clínicas. Na saída, disse para mim fechar o

depósito e ir esperar em casa; ele resolveria tudo e na volta me

informaria.

Muito assustada, consegui chegar até em casa. Por sorte,

as meninas já estavam dormindo. A Ana foi informada do que

havia acontecido e procurou me tranqulizar. Lá pelas 23hs., veio

o Nicolino me dar notícias. Ele me disse que a bala não havia

atingido o coração, raspando a costela. O Nicola estava fora de

perigo, mas ficaria 3 dias no hospital. Ele explicou que o Nicola

ao examinar a arma, com a intenção de vendê-la, tinha

provocado um disparo acidental contra si mesmo. Na manhã

seguinte, o Nicolino disse que voltaria ao hospital para saber da

saúde do Nicola e se informar sobre a possibilidade de visitas.

53
Na manhã seguinte, após ter ido ao hospital, o Nicolino

me informou que já haviam tirado a bala e que tudo estava bem.

Fui até lá e entrei pela porta por onde entravam funcionários e

enfermeiros, sem peguntar nada a ninguém e como se eu mesma

trabalhasse alí. Fiz o que o Nicolino me havia aconselhado.

Entrando no quarto, notei que o Nicola estava acordado e

consciente, mas falou pouco. Eu também falei pouco e fiquei

quieta um tempo, ainda estava intranquila. Após o terceiro dia,

ele voltou para casa.

Depois o Nicola tomou uma decisão: disse que iria até

Belo Horizonte para falar com o seu primo, o psiquiatra Hélio

Pellegrino, pedindo orientação para se tratar do desgaste

psicológico. Ele estava muito chateado, além de abatido. Ele sabia

também que eu estava no final da quinta gravidez. O Hélio, por

telefone, me perguntou como eu estava levando a vida. Respondi

dizendo que ia levando a vida dentro do possível. Ele me

informou que o Nicola necessitaria de um tratamento mais

prolongado, e o que ele estava fazendo era apenas um

atendimento emergencial pois o correto seria o Nicola ser

acompanhado por um especialista em São Paulo. Ainda que eu

estivesse, de certo modo, acostumada com os hábitos de meu

marido, especialmente a boêmia e o consumo de álcool, e até

mesmo de algumas drogas, nunca havia pensado que se tratasse

de um caso que necessitava de um cuidado especial. Fiquei ainda

mais preocupada, e como estava próximo de um novo parto, pedi

que minha sogra ficasse em nossa casa para ajudar no que fosse

necessário. Pouco depois ele foi para Belo Horizonte.

54
55
O Neto

56
Num sábado pela tarde, como de costume, a Ana queria

ir para a casa de seu irmão. Como eu não me sentia bem, pedi

que ela ficasse mas que nada comentasse com a minha sogra,

evitando lhe causar preocupação. Desconfiei que estava chegando

a hora do parto. As meninas já estavam dormindo quando eu

comecei a arrumar a minha roupa e a do nenê para qualquer

eventualidade. Lá pelas 22hs, do dia 23 de março de 1958, disse a

minha sogra que ela teria que me acompanhar até a

maternidade. Ela ficou muito assustada, até porque não estava

acostumada a viver em São Paulo. Para Ana disse que ela

dormisse com as crianças e que minha sogra voltaria na manhã

seguinte. Deixei com ela a chave do depósito para quem a viesse

buscar. Ato contínuo, fomos para a rua procurar um táxi, o que

demorou alguns minutos. Ao motorista pedi que nos levassem até

a Maternidade do Brás, a mais próxima dali. Chegando lá,

enquanto minha sogra foi aguardar em um quarto, fui

encaminhada diretamente para a sala de parto, que já havia se

iniciado. Nela esperavam três médicos e uma parteira. O

nascimento foi muito rápido. Eu pude ver que era um menino:

primeiro porque, como todos os meus outros partos, esse também

foi natural e sem anestesia; e segundo porque meu novo filho

urinou logo ao nascer diretamente no rosto da parteira. Todos

então começaram a rir. Quando isso ocorreu já era a

madrugada do dia 24 de março e eu havia recebido meu

primeiro filho. Logo a seguir, fui levada para onde estava minha

sogra. Ela chorou de alegria porque era o seu primeiro neto. Disse

que se meu sogro estivesse vivo também ficaria muito contente e

que todos aguardavam a chegada do primeiro neto na família

57
que se chamaria: Franscico Magaldi Martorano Neto. Na manhã,

ela voltou para a casa de onde informaria toda a família,

inclusive o Nicola que estava em Belo Horizonte.

O Franscico embora tivesse nascido em São Paulo, acabou

sendo registrado como se tivesse nascido em Pinhal, tal como os

demais. Isso foi feito por telefone.

Logo depois do almoço, a Vó Lina, como era chamada,

voltou à maternidade para saber como estávamos. Disse que em

casa estava tudo bem e que aguardavam a minha volta. Eu lhe

disse que logo no terceiro dia estaria em casa e que ela não se

preocupasse novamente em ir à maternidade.

Na manhã do terceiro dia, pedi que a enfermeira

chamasse um táxi após o banho do nenê. Ela virou-se para dizer:

“- Mas a senhora não pode sair hoje. Só amanhã.”

Eu respondi, afirmando que tinha mais quatro filhas e

não poderia esperar mais. No mesmo dia, por volta das 10hs., eu

chegava em casa com o meu novo filho nos braços. Quando a

minha sogra me viu, se assustou e disse:

“- Você está louca? Subir essa escadaria assim lhe fará

mal.”

58
A Ana desceu para pegar a sacola de roupas e o nenê. As

meninas se alegraram com a minha chegada e a do novo filho.

Eu logo fui me deitar.

No outro dia, eu pedi ao contador e à secretária que me

informassem sobre a situação dos negócios na distribuidora.

Francisco Magaldi Martorano Neto, na Primeira Comunhão.

59
Instituto Bela Vista

60
Alguns dias depois, o Nicola voltou de Belo Horizonte. Ele

estava muito contente com o nascimento de um homem não só

na nossa família, como na família Martorano. Tal como os

demais, ele fez uma festa de tamanha alegria. Ele me prometeu

que iria procurar tratamento em São Paulo. De fato, ele ficou

uma semana internado no Instituto Bela-Vista, mas depois

resolveu sair. O médico que o acampanhou era um suíço, Dr.

Sandler, me pediu que fosse até a sua casa com as meninas. Era

um domingo quando fui até lá. Ele me disse que o Nicola

necessitaria de mais tempo para se tratar e que não seguia as

suas orientações. Pediu que eu tivesse calma e se houvesse

alguma discussão , algum tipo de problema, que não

descarregasse sobre as crianças. Ainda me aconselhou que

quando estivesse muito tensa, me trancasse no banheiro e

gritasse, sapateasse bastante até aliviar a tensão. Eu dei risada e

lhe disse:

“- Mas se eu fizer isso, os vizinhos vão pensar que eu estou

louca.”

A seguir, ele me mostrou a sala de sua casa onde não

havia nenhum tipo de enfeite, toalha de decoração, etc. Era só

madeira. Havia deixado assim para que as suas crianças

tivessem liberdade. E acrescentou:

“- Quando almoçamos, às vezes meus filhos brigam

entre si. Acabam até jogando comida um na cara do outro.

Depois que a onda de irritação passa é que eu converso com eles.”

61
Essa visita dominical me ajudou a ver as coisas sob um ângulo
diferente e novo que me foi muito útil durante toda minha vida.

Diante das dificuldades econômicas, o Nicola resolveu fe-


char o deposito e voltar para Pinhal.

Nicola e funcionários

62
Pinhal, 1960-61

63
Ele arrumou uma casa onde havia um ponto comercial

na rua Barão de Mota Paes, ao lado do Esporte Clube Comercial.

Ele trouxe de São Paulo um pouco de medicamentos. A Lenita e o

Felício ajudaram com outros medicamentos. Foi montada assim

a farmácia Nicofarma, que tinha a propaganda: “Nicofarma:

pequena por fora, mas grande por dentro .” A Gina e a Beatriz

começaram a escola, no caso, o Grupo Escolar Almeida Verqueiro.

A Fábia e a Duília, menores, foram para o Jardim da Infância de

Dona Zoraide. O Chico, com poucos meses, ficava em casa. Era

uma casa pequena, com dois quartos, cozinha, sala e banheiro,

que ficava no espaçoso quintal, onde as crianças podiam brincar

à vontade. Em Pinhal, eu estava mais tranquila. Minha cunhada

Bruna morava em frente, onde seu marido Álvaro tinha uma loja

de calçados.

Eu tinha então três amigas na vizinhança: Dona

Filomena, Gilda e Olinda. Às vezes, elas me ajudavam com as

crianças, sobretudo quando tinha que ficar na farmácia. Nela,

tínhamos um empregado muito bom, o José Pasqüini. Meus pais

continuavam morando na grande casa da Rua Quinze de

Novembro, mas pela idade avançada pouco saíam. Normalmente,

eu ia até lá sózinha ou acampanhada das crianças. Eles tinham

uma empregada que fazia todo o serviço de casa, exceto

cozinhar. Seu nome era Rodolfina. Na hora do almoço, ela vinha

buscar as marmitas pois eu fazia a comida para eles também.

Assim, a nossa vida parecia estar mais ou menos organizada.

64
Mas essa impressão durou pouco. O Nicola queria

melhorar de vida pois os filhos estavam crescendo, e eu já estava

novamente grávida. No dia 11 de maio de 1960, nascia a

Cláudia, nossa sexta criança. Como de costume, esse novo

nascimento foi bastante festejado por nós e também por toda a

família. Em relação ao cuidado com os filhos, eu nunca vi isso

como um trabalho obrigatório ou desgastante. Para mim, sempre

foi motivo de alegria. Desse modo, uma coisa era o trabalho na

farmácia e outra, bem diferente, a relação com os filhos. Com a

chegada de mais uma filha, arrumei uma empregada que me

ajudava muito.

Domingo na cachoeira.

65
Caminhão na estrada

66
Naturalmente, isso significava aumento das despesas. O

que fez com que o Nicola pensasse em novos negócios para cubrir

as despesas em crescimento. A opção recaiu para o transporte e

negócio de madeiras do Paraná para São Paulo. Essa atividade

estava proporcionando boa renda na época. Seria necessário um

caminhão em condições e um bom motorista para fazer o

transporte da nova mercadoria. Além de não saber dirigir, o

Nicola costumava beber, o que tornava impossível o trabalho em

uma distância tão grande. Ao final, ele acabou comprando um

caminhão usado, um velho FNM.

Após alguns dias, o Nicola fez a primeira viagem junto

com o motorista. Ele levou alguns produtos farmacêuticos para

custear as despesas da viagem. Ele acabou não trazendo muito

madeira na volta pois queria sondar o mercado.

Passados cerca de vinte dias, o Nicola repetiu várias vezes a

mesma viagem sempre trazendo madeira nova, já que havia

conseguido vender a carga anterior. Na realidade, as viagens

davam mais despesa do que lucro. Em uma das viagens, ele

acabou ficando por mais de 30 dias, o que gerava despesa de

hospedagem, alimentação, etc., tanto dele, como do motorista. De

repente, apareceu na farmácia um outro caminhoneiro trazendo

notícias dele, além de um bilhete escrito por ele pedindo 200 mil-

réis. Dinheiro que deveria ser entregue ao portador que lhe havia

emprestado para conserto do FNM. O Nicola dizia ainda que logo

estaria de volta. Como eu tinha esse dinheiro para pagar

duplicatas da farmácia, entreguei-o ao caminhoneiro. Pouco

67
tempo depois, o Nicola voltou e, apesar das dificuldades,

conseguiu vender o FNM e comprar um Chevrolet novo.

Além disso, ele conseguiu realizar várias novas viagens

até o Paraná. Desse modo, a situação parecia mais estável. Em

uma delas, ele acabou não indo e pediu que o motorista fosse

sozinho, já que estava acostumado com o trajeto. O motorista

levou todas as encomendas marcadas. Além de demorar mais do

que o previsto, quando voltou, não trouxe nada. O Nicola soube

ainda que ele havia feito carreto para outras pessoas. Com isso, o

motorista foi demitido e, em pouco, um outro foi contratado. Só

que as despesas do caminhão sempre eram cobertas pela receita

da farmácia.

68
Os gêmeos

69
Para variar, eu estava novamente grávida, esperava o

sétimo nascimento. Na manhã do dia 26 de outubro de 1961,

comecei a sentir as cólicas do parto. Pedi ao Nicola que me

levasse à Maternidade de Pinhal. A parteira, uma freira, como

era de costume, fez os exames tão logo eu dei entrada e disse que

estava tudo bem. Constatou que o parto iria demorar um pouco.

Logo a seguir, o Dr. Abrão, amigo da família, entrou no quarto. A

irmã concluiu:

“- Está tudo bem, mas parece que ouvi dois corações

batendo.”

O Dr. Abrão riu e disse :

“- Você passou a ser vidente?.”

Por volta das 14hs, eu disse à irmã que gostaria de ir

embora. Ela respondeu dizendo que eu não poderia ir devido à

dilatação provocada pelo início do parto. Ela foi até buscar uma

toalha para que eu pudesse bordar, ajudando a passar o tempo.

Cerca das 19hs, as auxiliares da Maternidade perguntaram à

irmã se poderiam ir ao cinema; não havia mais ninguém para

dar à luz a não ser eu. A Irmã consentiu, acompanhada apenas

de uma auxiliar e liberando as outras três. As cólicas começaram

em torno das 20hs. Ela fez o exame e disse que eu iria para a sala

de parto.

70
Lá, sem que demorasse muito, nasceu um primeiro

menino. Isso foi rápido. Enquanto ela limpava o bêbe e cortava o

cordão umbilical, senti uma contração e uma cólica bastante

forte. Disse a ela que não aguentava de dor. Ela veio me

examinar e ficou assustada:

“ - Há um outro nenê. Segure. Não faça força.”

Eu respondi :

“- Como? Não tem jeito! ”

Ela pediu para a auxiliar que fosse correndo até a outra

sala de operação, para buscar uma pinça. Ela foi correndo. Nesse

momento, o Nicola, que chegou na Maternidade depois da janta,

abriu a porta e perguntou o que havia acontecido. Ela informou

que eram dois nenês e que saisse e fechasse a porta. Alguns

minutos depois, o segundo nenê nascia. Ele estava com o cordão

umbilical enrolado no pescoço e tinha as mãos um pouco escuras.

A auxiliar, que já estava de volta, entregou a pinça para a Irmã.

Depois de cortar o cordão, ela virou o bebê de cabeça para baixo e

deu um tapa na bunda para que chorasse. O risco do cordão

enrolado no pescoço era de provocar uma asfixia. Depois do susto,

e com a volta das outras atendentes, foi uma festa. A Irmã

informou também que era o dia de seu aniversário e que era o

melhor presente que podia receber. Normalmente, no caso de

gêmeos, a maternidade colocava um médico à disposição para

qualquer necessidade ou imprevisto. Ou seja, ela também se

71
assustara. O primeiro, que nasceu com três quilos, foi batizado de

Luciano, e o segundo, com três quilos e duzentas gramas, de

Juliano. O Nicola também ficou muito contente, ligando a seguir

para a sua mãe e para as irmãs. Como já eram 22hs., quase

nenhuma delas acreditou na novidade. Pensaram que ele estava

brincando ou que havia bebido.

Na manhã seguinte, bem cedo, minha sogra veio me

visitar e chorou de emoção ao ver os gêmeos, pois lembrou-se de

seu marido que queria muito ter tido gêmeos. As minhas

cunhadas começaram a levar roupas e fraldas ; eu mesma não

imaginava que teria dois filhos de uma vez. Eu estava bem

contente com o fato de que eles estavam em boa saúde e com o

peso normal de qualquer recém-nascido. O doutor Abrão, ao

chegar no quarto onde estava, me perguntou onde havia

escondido um deles pois eu não estava tão gorda.

No quarto dia, voltei para casa. As meninas estavam

alegres pois tinham mais dois irmãos para tomarem conta e

brincarem. Tudo era festa. As vizinhas também vinham sempre e

estavam dispostas a ajudar em qualquer coisa. Passando alguns

dias, notei que a Cláudia, que tinha apenas um ano e meio,

começou a se comportar de maneira diferente. Talvez o motivo foi

porque a tirei do berço grande, feito pelo meu pai quando a Gina

nasceu, onde coloquei os novos recém-chegados. Ela passou a

dormir no outro quarto com as meninas. Mas ela chorava

bastante e eu comecei a pensar que era por ciúmes. Para tentar

resolver o problema, eu encostei o berço no lado esquerdo de

72
minha cama e, à noite, dava a mão para ela. Caso a retirasse,

ela chorava. Para que eu pudesse dormir um pouco, eu colocava

um dos nenês de bruços em cima de mim e o outro do lado

direito. Dessa maneira, eu conseguia dormir um pouco. Durante

o dia, as meninas, que já eram maiores, ajudavam a olhar os

menores. Chegavam até a trocar as fraldas, sómente a Beatriz é

quem não gostava de fazer isso. Se fosse necessário trocar fralda,

ela colocava um prendedor de roupa no nariz. Mas a Claudia

continuava inquieta. Para evitar algum problema, eu coloquei

um trinco na porta do quarto para que ela não entrasse. Ela

parecia gostar de pinicar os irmãos menores.

Pouco tempo depois, enquanto a Fabia trocava a fralda

de um dos gêmeos, a Cláudia subitamente o puxou, derrubando-

o da cama. Correndo, fui até o médico para que o examinasse.

Por sorte, não havia acontecido nada. Diante disso, fui com ela

numa consulta com o Dr. João Neves, para entender sobre como

lidar com esse novo imprevisto. Ele me disse que aquilo era

normal, acrescentando:

- “Enquanto os dois recebem presentes, ela fica sem nada.

E mais ainda, ela sente a sua falta enquanto mãe. Sobrando um

tempo, brinque com ela.”

Ele me receitou um remédio para a Cláudia, Vitoviti,

dizendo que também ajudaria.

73
Em resumo, os 3 primeiros meses após o nascimento dos

gêmeos foram difíceis. Eu dormia pouco e comia quando podia.

Não tinha mais horário para nada.

Um dia soube que uma família queria vender um

carrinho para dois bebês. Fui vê-lo, e como estava em boas

condições, acabei comprando-o. Com o carrinho, as meninas

passeavam pela tarde em frente da farmácia. Numa dessas tardes,

a Fabia estava sentada na porta da farmácia, segurando o

carrinho. Perto dali havia uma praça. Ao certo, não sei o que

aconteceu. Mas o fato é que surgiu um cavalo em disparada e

ninguém conseguia segurá-lo. Quando ele estava perto do

carrinho, o cavalo saltou por cima dele, mas o cabresto quase

ficou enroscado. Até hoje, a única explicação que encontro para o

fato de não ter havido um desastre é a crença que eu tenho em

Deus, em quem sempre acreditei e continuo acreditando.

As crianças brincando num sítio.

74
Os filhos após o nascimento dos gêmeos.

75
Rua 15 de Novembro, 156

76
A casa onde viviamos na época era de cimento na sala e

na cozinha, e só nos dois quartos havia assoalho. Havia muita

roupa para lavar e passar, e também nisso me ajudava bastante a

boa empregada que tinha. Era normal ter fraldas penduradas na

cerca, para lavar e passar em um único dia. Com tudo isso, eu

não achava minha vida ruim: eu me sentia feliz com as crianças.

Por falta de tempo, eu já não podia ajudar mais na farmácia. No

primeiro aniversário dos gêmeos, embora eu não quisesse, a

vizinhança, junto com a minha cunhada Bruna, organizou

uma festa no quintal de casa

O tempo passa mas certas coisas não mudam muito. Não

por acaso, eu estava novamente grávida. Era o nono filho que

nasceu no dia 7 de setembro de 1963, dia da proclamação da

independência do Brasil. Ele foi batizado com o nome do pai:

Nicola Isidoro Martorano Filho. Como sempre, a sua chegada foi

comemorada por todos e eu também fiquei contente. Mas,

interiormente, prometi a mim mesmo que ele seria o último. A

primeira filha, a Gina, chegou no dia da proclamação da

República, e o último, que nasceu chorando bastante, no dia da

Independência.

Com a família já grande, ao todo eram 11 pessoas, a casa

ficou pequena. Precisávamos de mais espaço. Além disso, meus pais

sempre quiseram que eu me mudasse para a casa maior da rua XV

de Novembro, 156. Apesar de não ter outra opção, eu ficava

preocupada com o barulho que os filhos poderiam causar,

gerando problemas para meus pais. Mas como o quintal era

77
grande e as maiores já passavam meio período na escola, o

problema era atenuado. Meu pai gostava de ver a turma de netos

e, por vezes, se distraía com eles. A minha mãe quando ia

descansar pedia menos barulho, ou então que fossem brincar no

quintal. Paulatinamente, as coisas pareciam que estavam se

acomodando.

Nicola Izidoro Martorano Filho.

Os três caçulas.

78
As crianças brincando na Rua XV. 79
80
81
Um novo empreendimento

82
O Nicola tomou a decisão de abrir outra farmácia, bem

no centro da cidade, na Rua Direita, com o nome de Farmácia

Brasil, que ficou no meu nome. A Nicofarma, na rua Barão de

Motta Paes, não se encontrava em boa situação. Com a compra

dos caminhões que não deu certo, ela foi bastante prejudicada e ,

ao final, foi fechada. Ele procurou outras alternativas de renda,

mas sem resultado. Da minha parte, passando o dia todo na

farmácia, além de boa parte da noite pois fechávamos as 22hs.,

precisei arrumar outra empregada. Além da Neide, veio a Cida

que dividiam o serviço entre si. Eu cuidando da farmácia e as

empregadas da casa, sobrava muito tempo para o Nicola que,

cada vez mais, envolvia-se com bebida, motivando maiores

atritos entre nós. Costumeiramente, ele chegava bem tarde,

despertando as crianças sob o pretexto de fazer discurso para elas,

especialmente a Gina, a Beatriz, a Fábia que sentavam na mesa

quase dormindo. Quando ele dormia, sentado na cadeira, elas

iam para as suas camas retomar o sono. Numa dessas noites, ele

perguntou pelo jantar. Já passava das 22:30 Hs. Eu que estava

deitada, me levantei e fui até a cozinha. Em seguida, disse:

“ – A comida está na panela. “

Ele se serviu e foi sentar. Como sempre, falando alto e

exigindo minha atenção. Cansada e querendo voltar para a

cama, não respondi. Alterado, ele disse que eu fazia pouco caso e

lançou o prato sobre a minha cabeça. Foi como um disco-voador

que atingiu a minha testa, provocando corte e sangramento. O

Nicola ao ver o sangue escorrendo pela minha face se assustou

83
muito. Como o sangue não parava, eu queria ir sozinha até o

posto de saúde que era na quadra seguinte. O Nicola insistiu, e

acabamos indo juntos.

Lá chegando, fui atendida pelo Dr. Alfredo que

perguntou o que havia acontecido. Falei que havia batido com a

cabeça em uma gaveta. Ele pediu que eu me sentasse para poder

fazer a anestesia e dar o ponto. Afirmei que seria melhor dar o

ponto logo, senão a anestesia provocaria dor. Ele deu os pontos e

pediu que eu voltasse em dois dias. Eu expliquei que poderia

sozinha retirar os pontos e que só voltaria caso inflamasse.

No caminho para casa, voltamos em silêncio. Não era a

primeira vez que discutíamos, nem que a discussão terminava

com alguma forma de agressão. Na verdade, minha preocupação

não era a nossa relação, mas as crianças, meus pais e o trabalho.

O Nicola oscilava entre períodos melhores e piores. Se ele tivesse

dado continuidade ao seu tratamento, a sua história e a nossa

poderia ter sido diferente. No dia seguinte, como de costume, me

levantei cedo e fui para a farmácia trabalhar.

Menos de um anos após esse acontecimento, meu pai

faleceu por conta da diabete. Há tempos que ele não se levantava

da cama e exigia cuidados especiais. No momento de sua morte,

eu e o Nicola estávamos juntos dele. Para mim, foi uma grande

perda, eu gostava muito dele e ele me ensinou muitas coisas, era

um verdadeiro pai. Minha mãe, um pouco depois, em razão de

uma queda, precisou ser operada para colocar um pino no joelho.

84
Ela poderia andar, desde que amparada, mas ela não queria.

Cerca de oito meses mais tarde, ela também faleceu. Para mim,

ela foi descansar junto com ele.

Aniversário na Rua XV.

85
A farmácia

86
Naquela tempo, eu passava quase todos os dias na

farmácia: das 8hs até as 22hs, inclusive aos sábados. Além disso,

uma vez por mês havia o plantão de domingo. Isso me impedia de

ter maior participação em atividades sociais e culturais. Quando

tinha o domingo livre, ficava em casa com os filhos e lia

romances. Sempre que podia, comparecia a algum aniversário da

família.

A situação econômica da farmácia era suficiente para a

manutenção dos gastos com a casa e com os filhos. Dos

cormerciantes vizinhos, me lembro do senhor Nello Signorini,

proprietário de uma loja de calçados; do senhor Jabour e sua loja

de tecidos e variedades. Na Lojas Brasileiras, tinha amizade com

os dois proprietários, os irmãos Brando. Na outra quadra, havia

a farmácia do Walter Vuolo, com quem tínhamos relações

comerciais. Na farmácia, havia mais movimento pela manhã.

Pela tarde, apenas após as 16hs. E a noite, um pouco mais. Neste

período, alguns conhecidos se reuniam, sentados nos bancos da

farmácia, como o Senhor Nagib, que gostava de conversar com o

Chico sobre literatura em geral ; citava livros de autores clássicos,

entre os quais « Germinal », de Emile Zola. E depois que abriu a

Faculdade de Agronomia, passaram a se encontrar ali também

alguns estudantes, pois a rua Direita era movimentada.

Todos os meus filhos em idade escolar estudavam, fosse no

Cardeal Leme, fosse no Almeida Vergueiro. Mais tarde, o Francisco

pediu para ser transferido para o Colégio Agrícola. Um dia, ele

disse que gostaria de viajar para os Estados Unidos. Concordando

87
com a idéia, fui atrás de informações sobre uma possível viagem.

A vontade havia, mas faltava o dinheiro. Na ocasião, eu tinha

um colar de pérolas, um anel de brilhante, um relógio de bolso

com a corrente de ouro que havia sido de meu pai, além de

outros 3 relógios menores que o Nicola havia combrado do João

Tomé, que negociava as mais diferentes mercadorias. Vendi tudo

para conseguir o dinheiro para a viagem. Tendo conseguido a

estadia em uma família americana, do estado de Illinois,

através do serviço de intercâmbio estudantil, AFS – American

Field Service. Pagando nós a passagem, ele acabou viajando

para ficar um ano. Pouco depois de sua ida, chegou a jovem

americana Pamela Jean Robinson, vinda do estado de Vermont,

para fazer o seu intercâmbio no Brasil. Ela gostou do Brasil e da

nova família, chegando a voltar duas vezes a passeio, após

terminado o período do intercâmbio.

Já tendo passado dos 18 anos, a Gina disse que queria ir

viver e trabalhar em Campinas, cidade que na época atravessava

um período de bom desenvolvimento. Indo para lá, ela foi morar

em uma república de moças. A Beatriz, nessa época, já estava

namorando o José Niero Filho. Certo dia, apareceu em casa uma

freira perguntando pelo meu nome. Eu quis saber do que se

tratava, e acabei sendo informada de que a Beatriz havia

escrito ao seu convento com a intenção de tornar-se freira. O

projeto não foi adiante porque ela e o Niero fizeram as pazes, se

casando mais adiante. A Fábia namorava um jovem de Cuiaba,

o Josmar, conhecido como Cuiabano, um apelido que ganhou na

Faculdade de Agronomia. Depois de sua formatura e de seu

88
casamento, eles se mudaram para Cuiabá, e depois para Cáceres.

A Gina, com a ida para Campinas, terminou o namoro com o

Lelei, outro estudante vindo de Poços de Caldas.

A Duilia, quando ainda não tinha 18 anos, apareceu

com a idéia de ir morar num asilo. Brincando com as irmãs,

saiu de casa e foi até a esquina do Rubens, nosso amigo

tintureiro. Voltando da farmácia, encontrei ela sentada no

degrau da tinturaria, toda arrumada para ir embora, levando

consigo uma trouxinha de roupas. Em seguida, convenci ela que

o melhor era voltar pra casa.

Um dia, a Duília conversou com o Nicola, dizendo que ele

passava o dia dormindo, falando sobre espiritismo e outras

coisas que não acrescentavam nada. E sugeriu:

“- Por que o senhor não arruma um trabalho para

ajudar em casa?”

Diante disso, ele resolveu ir para São Paulo, onde ficou

uma semana e acabou encontrando um trabalho numa

farmácia de um bairro periférico. Com isso, ele passava a

semana em São Paulo. Às vezes, vinha no final de semana; às

vezes, não. Com ele morando em São Paulo, eu na farmácia e as

duas empregadas ajudando, o ambiente ficou mais tranquilo e

todos os filhos podiam estudar. Como a família estava dividida,

eu resolvi ir para Campinas também. Acabei vendendo a

farmácia para o meu funcionário, Carlos. Vendi a casona, onde

89
morávamos, para a família do dentista Waldir Peres, nossos

velhos conhecidos. Lembro aqui que quando a minha mãe

faleceu, ela havia feito um testamento deixando a casa em meu

nome.

Antes da mudança, o Dr. Calu pediu que eu fosse até o

seu escritório. Lá leu o meu testamento e perguntou o que eu

queria fazer. Eu pedi a ele que passasse a casa no nome dos nove

filhos e eu seria a usufrutuária. Quando eu vendi a casa em

Pinhal, o oficial de justiça foi ver a casa que eu compraria em

Campinas. Após o seu aval, acabei vendendo a casona e

comprando a de Campinas, na Rua Waldemar Cesar da Silveira,

262.

Rua Waldemar César da Silveira, 262, Campinas.

90
91
Campinas, 1977

92
O começo em Campinas foi um pouco difícil. Eu não

conhecia ninguém. A Gina trabalhava na Sears e a Duília em

uma indústria de produtos químicos. O Luciano foi trabalhar em

uma Auto-Escola e o Juliano em uma loja de artigos para carros.

Os dois, além do Nicola, estudaram no Colégio Carlos Gomes. O

Francisco foi morar em São Paulo, morando um tempo com seu

pai, e depois com sua tia Fulvia, até que passou no vestibular da

Usp para o curso de Comunicações. Para cobrir os gastos da

família, já que o meu marido não podia contribuir com as

despesas, eu comecei a trabalhar com roupa. Confeccionava

peças de roupas feminina para vender em São Paulo, em uma

loja da Rua Barão de Itapetininga, cujos proprietários eram o

Nelson e a Everalda, de quem me tornei amiga.

Minha cunhada Bruna, que morava perto de casa,

minha filha Gina e eu decidimos juntas montar uma confecção,

a Sindhu, na cidade de Valinhos, onde passaram a trabalhar

três funcionárias. A empresa ia regular, como todas no início.

Aos poucos, os negócios foram crescendo e contratamos um

viajante para oferecer nossos produtos em outras cidades. Ele

vendia bem e parecia ser honesto. No entanto, logo deu um

grande desfalque, exatamente no final de um ano que havia

vendido muito bem. Com mil desculpas, ele acabou não

prestando contas do que vendera. Esse foi o natal mais difícil que

passei, acabei ficando sem um tostão. O que sobrou foi para

pagar as funcionárias, incluindo o décimo-terceiro. A Gina

resolveu sair da sociedade e começou a trabalhar na IBM.

93
Depois, acabei vendendo a firma para um rapaz que se

interessou por ela.

A Duília passou a estudar em Limeira na Unicamp, no

curso de Engenharia de Solos, e foi morar em uma república. O

Luciano e o Juliano prestaram vestibular na Unicamp, e

passaram a estudar respectivamente Ciências Sociais e Economia.

O Nicola iniciou o curso de Filosofia na Usp. A Cláudia prestou

vestibular para biologia e não passou; a partir daí , deixou os

estudos.

Festa de aniversário dos netos

94
Natal na Rua Waldemar.

95
O retorno a Campo Mourão

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Entre uma viagem e outra que fazia ao Paraná, o Nicola

teve a idéia de perguntar para a Dona Catharina, como ele

costumava chamar minha mãe adotiva, o nome do meu pai

biológico. Ela informou que era Chicre Kfuri; provavelmente

deveria morar na cidade de Campo Mourão, a caminho de Foz

do Iguassu.

O Nicola prosseguiu então numa próxima viagem,

chegando finalmente em Campo Mourão, e perguntou se alguém

sabia do paradeiro do Sr. Chicre Kfuri. Como a cidade era

pequena, não foi difícil localizá-lo. Dirigiu-se até a sua casa;

bateu à porta, quando foi atendido por uma de suas filhas, que

disse que ele deveria voltar mais tarde. Com isso, o Nicola

regressou para encontrá-lo. Ao vê-lo, disse que tinha um assunto

importante para tratar, mas gostaria de falar com mais

privacidade, propondo um encontro num bar.

O Nicola tinha levado algumas fotos minhas e dos filhos.

No diálogo que transcorreu, ele revelou que sabia que o SR. Kfuri

tinha tido uma filha antes do seu casamento. E que ele era o

marido desta filha desconhecida. Surpreendido com a história

incomum, o Sr. Kfuri regressou a casa para contar a sua família

que tinha localizado a sua filha.

Passados aproximadamente quatro meses após esta

descoberta, o Fuad, um de seus filhos, e agora também meu

irmão, tinha acabado de se casar com a professora Zezé, e.

estavam em viagem de lua-de-mel em Poços de Caldas. Eis que

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resolveram passar por Pinhal. Ele tinha o meu endereço e queria

me conhecer. No final da tarde, ele decidiu fazer uma surpresa.

Foi uma visita rápida, tinham pouco tempo, pois estavam com a

viagem marcada. Ele era então o primeiro dos irmãos de minha

nova família com quem eu me encontrava.

Tempos após, quando eu já residia em Campinas, a

minha cunhada Zezé voltou a estabelecer contato. Como ela

havia ficado com meu novo telefone, no dia das mães, quando

toda a família estava reunida em Campo Mourão, ela me ligou.

Foi assim que acabei falando com todos os outros irmãos. Ao

final, perguntei se meu pai estava presente. Eles responderam que

sim. Em seguida, pedi para falar com ele. Ele muito emocionado

se dirigiu ao telefone e começou a chorar subitamente. Ao ver o

constrangimento gerado, a Zezé interrompeu a ligação, dizendo

que tornaria a ligar em outro momento.

No dia seguinte, ela voltou a telefonar, contando que ele

tinha ficado muito comovido, a ponto de serem obrigados a

chamar um médico. Frente a isto, decidimos então ficar quietas.

Passados vários meses, ela tornou a ligar novamente para dizer

que toda a família queria finalmente me conhecer. Sugeriu que

eu fosse até lá, caso contrário, eles iriam até Campinas.

Comecei a ficar preocupada, não conhecia ninguém,

nem sabia se iria ser bem recebida. Conversando com a Zezé,

disse:

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- “Não sei como vou ser recebida. Se vou sofrer alguma r

ejeição da parte dos irmãos. Passado todo este tempo, já

me habituei a viver sem conhecê-los”.

Sempre tive vontade de ter uma família grande, mas

não queria de forma alguma causar algum tipo de problema,

principalmente para Dona Esmeralda, a esposa de meu pai. No

entanto, a vontade de conhecê-los foi maior, fazendo com que os

meus temores se dissipassem.

Certo dia, falando com a Gina, perguntei se ela não

gostaria de me acompanhar até lá. Ela ficou muito

entusiasmada, fazendo com que marcássemos uma data para

esta viagem. O ônibus saia à noite de Campinas, chegando às

seis e trinta em Campo Mourão.

E foi o que fizemos. Ao chegarmos na rodoviária, como

eu conhecia o Fuad, não foi difícil reconhecê-los. Eles estavam

me esperando juntos, ao todo um grupo de aproximadamente

dez pessoas. Foi uma recepção muito calorosa, todos os irmãos e

sobrinhos me aguardavam de braços abertos. Já mais aliviada,

minha única preocupação era com relação à esposa de meu pai.

Da rodoviária fui diretamente para a casa da família,

quando fui apresentada para Dona Esmeralda, uma pessoa

maravilhosa, que me abraçou e me disse:

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“Peço que você me chame de mãe!”

Em seguida, colocou uma corrente de ouro no meu

pescoço, que até hoje levo comigo. Durante todo o dia, foi uma

festa, com familiares e conhecidos visitando a “nova“ filha do

Sr.Kfuri. A princípio, fiquei receosa, mas este sentimento logo

desapareceu frente a generosa acolhida de todos.

Para mim pessoalmente foi muito importante, é como se

descobrisse um elo perdido. Desde este momento, voltei já várias

vezes para Campo Mourão, me sentindo totalmente integrada

àquela que é parte da minha verdadeira família.

Às vezes, penso no meu canto e fico um pouco triste: eles

já estão descansando e eu pude aproveitar pouco tempo perto ao

lado de um casal tão simpático e receptivo. Que Deus permita que

descansem em paz!

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A família de Cricre Kfouri, anos 40.

101
A família Kfouri, anos 90.

102
103
No meio do caminho

104
Naquele período inicial de Campinas, fiz de tudo um

pouco para manter a casa e meus filhos: tricot, crochê, perfume e

shampoo – os dois últimos eram enviados para Cuiabá. Mas logo

a pessoa de lá, que comercializava os produtos, começou a criar

problemas para pagar. Desisti da perfumaria e continuei

confeccionando roupa. A roupa era vendida em São Paulo: na

segunda-feira para o Wilson na Rua Augusta; na quinta para o

Gu, um japônes, e para a Everalda, na Rua Barão de

Itapetininga. Eu tinha 3 costureiras que iam buscar o tecido em

minha casa, costuravam na sua e depois de 3 dias, voltavam

com as peças prontas. Aos sábados e domingos, eu tingia as

roupas e as manchava, conforme a moda da época. Fui uma

época muito boa nos meus negócios, quando consegui ganhar

bem. A clientela era boa, o pagamento na hora e eu mesmo fazia

os acertos. Em Campinas havia uma representante chamada

Margô, que vendia bem, levando até mesmo a roupa molhada.

Com o passar do tempo, a família foi crescendo. Meu

primeiro neto foi o Marcelo, depois o Juliano e a seguir, a

Luciana, filhos de Beatriz e Niero. A Fábia teve um casal de

filhos: José Nicola e Iole Maria, que foi a minha primeira neta a

se casar e que me deu uma bisneta, a Júlia. A Duília foi viver e

trabalhar em Limeira, onde casou-se com o Benito, tendo três

filhos: Ramón, Maísa e Natália. A Gina teve duas filhas: Marina e

Taís, e foi morar nos Estados Unidos. A Cláudia casou-se com o

Rogério, tendo duas filhas : Iris e Diana. O Nicola casou-se com

a Claudia Haidar, a primeira nora minha, e tiveram um filho: o

Lucas. Só fui ter a segunda nora bem depois, em novembro de

105
2008, quando o Luciano se casou com a Maria, de

nacionalidade espanhola que trabalha na Alemanha.

Minha aposentadoria se deu em 1992, ano em em que o

Nicola subitamente faleceu. A causa foi um efizema pulmonar

em razão do grande consumo de tabaco ao longo de toda a sua

vida; boa parte consumindo cigarros sem filtro. Hoje, lembrando

de nossa vida de casal, posso dizer que, mesmo frente aos

problemas que ele teve que enfrentar, nunca deixou de trabalhar

e de se preocupar com a família.

No momento desse relato, estou prestes a completar

oitenta anos de vida. Posso afirmar tranquilamente que valeu a

pena ter vivido. A pessoa deve ter fé e nunca perder a esperança:

eu confiei em Deus, e quando as coisas pareciam impossíveis,

pedia ajuda a ele. Eu sempre conversei com ele, em silêncio, à

noite ou pela manhã. O que parecia insolúvel, apresentava-se

como passível de solução. Quando isso acontecia, eu lhe

agradecia. Nós não apenas podemos pensar em Deus nos

momentos de dificuldade, mas também lebrarmo-nos de

agradecê-lo pelas coisas boas que nos oferece.

No meio do caminho, aparecem muitas pedras. Mas elas

não me desviaram, nem me desanimaram. Eu sempre seguia

adiante, e para isso o trabalho foi muito importante para mim,

além, è claro, da minha família. Muitas pessoas queridas que

pude conhecer já se foram, mas eu sempre lhes agradeço por

terem me ajudado. Por exemplo, na prática, acabei tendo quatro

106
mães: a biológica, Tereza que não conheci; a segunda, de

criação, a Catarina; a terceira, a minha sogra Adele; e a quarta

e última, a esposa de meu pai bilógico, dona Esmeralda.

Sobre a dona Esmeralda, me lembro da minha primeira

visita em sua casa na cidade de Campo Mourão. Ela disse que

sabia da minha existência e que tinha certeza de que um dia

iria me conhecer. Depois, ela pediu que a chamasse de mãe e a

considerasse assim. O que de fato ocorreu pois tivemos uma ótima

relação, envolvendo todas as minhas irmãs e irmãos de seu

casamento com meu pai, Chicre Kfouri.

Depois de aposentada, com o crescimento da família e

de sua distribuição geográfica por 3 continentes diferentes,

passei a viajar frequentemente para o exterior. Coisa que nunca

havia pensado em fazer. Já fui várias vezes para os Estados

Unidos, Europa e Austrália. Gosto muito de conhecer outros povos

e costumes. Comecei também a aprender piano, a música sempre

me encantou.

Sinto-me uma pessoa inteiramente realizada, mas isso

não quer dizer que tenha pendurado a chuteira. Tenhos novos

planos e novas idéias que também pretendo concretizá-los. À

guisa de conclusão, gostaria apenas de dizer:

- A vida é muito importante, mas é preciso saber vivê-la.

107
- È bom evitar fazer alguma coisa, da qual se venha a se

arrempeder depois.

- Cada pessoa possui uma grande força interior, da qual

ela mesma, às vezes, duvida. O mistério è encontrar essa

força e saber direcioná-la corretamente.

- Procure sempre fazer o bem para quem quer que seja.

- Não desanime diante de qualquer dificuldade.

Iole em viagem para Toledo, Espanha.

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Os netos.

109
Julia

Gabriel
110
Os bisnetos
REINAUGURACAO

Nossa idade – velho ou moço – pouco importa.

Importa é nos sentirmos vivos e alvoroçados mas uma vez,

e revestidos de beleza, a exata beleza que vem dos gestos


espontâneos

e do profundo instinto de subsistir enquanto as coisas em redor se


derretem

e somem como nuvens errantes no universo estável.

Prosseguimos. Reinauguramos. Abrimos olhos gulosos

A um sol diferente que nos acorda para os descobrimentos.

Esta è a magia do tempo.

Esta è a colheita particular que se exprime no cálido abraço

e no beijo comungante, no acreditar na vida

e na doação de vivê-la em perpétua procura e perpétua criação.

E já não somos apenas finitos e sós.

Somos uma fraternidade, um território,

Carlos Drummond de Andrade

111
JANEIRO 2010, 80 ANOS

112
No dia 8 de janeiro de 2010, eu fui para Pinhal para

comemorar no dia seguinte o aniversário de Beatriz, que havia

sido no dia 5. Os seus filhos estavam presentes e o seu primeiro

neto, o Gabriel, e o almoço no sábado seria em uma chácara que

haviam alugado.

Um pouco antes da hora do almoço, saímos de sua

casa. Estranhei a direção que tomaram pois estávamos indo para

um outro local, a Associação Atlética Banco do Brasil – AABB, em

frente ao Clube de Campo Caco Velho -, onde sempre são feitas

festas. No carro, estavam comigo a Beatriz e o seu filho maior, o

Marcelo, para quem eu perguntei:

A sua mãe não vai trocar de roupa ?

Fiz a pergunta porque ela estava de bermuda e


camiseta comuns, e eu achava estranho alguém ir trajado dessa
maneira para a sua festa de aniversário que certamente
contaria com a presença de vários amigos e amigas.
Ele me respondeu:

Ah vó, ela quer ir desse jeito…

Chegando na Associação pensei que fossem dar


algum recado antes da entrada da Beatriz, que deveria ser a
primeira a entrar. Mas o Marcelo pediu que eu entrasse, dizendo:
Vó, o almoço será aqui e ela vai entrar junto com você.

Minha estranheza aumentou. Subindo a escada que

dá acesso à entrada do salão, vejo a Maria Adele vindo em

113
Minha estranheza aumentou. Subindo a escada que dá

acesso à entrada do salão, vejo a Maria Adele vindo em minha

direção e me dando os parabéns … Logo depois vi o José Pascuini,

que foi meu funcionário na farmácia… Vi ainda que o salão

estava cheio de gente, muitos conhecidos e alguns ainda não ,

pois não eram de meu tempo em Pinhal ou haviam crescido. De

repente, vejo meus irmãos do Paraná : a Rose, a Tita, o Fuad e o

Sérgio. Foi nesse momento que a ficha caiu!

A festa era para mim!A minha surpresa foi enorme,

além de ter sido um teste para o meu coração!

Meus filhos, netos e companhia limitada trabalharam

muito bem. Como è que eu não havia percebido nada ? Eles

fizeram como as formigas que trabalham em silêncio, de baixo

da terra. Passada um pouco a emoção do dia, ainda continuo

me perguntando: - Como conseguiram fazer tudo a escondida ?

Na festa haviam mais de 200 pessoas ! Parentes e amigos,

alguns dos quais eu não via há mais de 50 anos ! Algumas da

época da famárcia, outras de minha casa em Pinhal e

Campinas. Gente muito querida ! E além dos parentes, haviam

também os “agregados” que fizeram parte de minha caminhada

em um momento ou outro, integrando-se ao nosso convívio.

114
Como trabalharam bem essas formigas ! Fiquei muito contente

pois a festa surpresa me causou enorme alegria. Nunca havia

imaginado que ao chegar aos 80 anos, eu fosse poder comemorá-

los com tantas pessoas queridas, de tanto lugares diferentes, e até

de fora do país !

Aos poucos, fui me sentindo como se estivesse em

casa, junto com toda a minha grande família, recebendo e

retribuindo afeto. Talvez, a família não nasça pronta e

acabada, a gente è que a constrói diariamente com muito amor,

trabalho e perseverança.

115
VIDA, VIDA

Não acredito em pressentimentos, nem agouros me assustam.


.Não temo a calúnia ou o veneno.

Viverei na casa – e a casa viverá:


Invocarei qualquer dos séculos para lá construir a minha casa.
Por isso tenho vossos filhos ao meu lado
E também vossas mulheres, sentados à mesa,
Mesa para o magnífico avô e para o neto.
Cumpre-se aqui e agora o futuro.

Escolho uma idade à minha medida.


Guia-nos o sul, com redemoinhos de pó sobre a estepe;
renques daninhos, pragas de gafanhotos,
as cintilações faiscantes das ferraduras polidas,

Peguei no destino, atei-o à sela;


E agora que estou no futuro, permaneço hirto nos estribos,

De boa vontade daria a vida


Por um lugar seguro e quente,
Não me guiasse agulha aérea viva
Pelo mundo como a uma linha.

Arseni Tarkovski

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EDIÇÕES LIMITE
Rua Waldemar César Silveira, 262
Campinas –13045-270—SP

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