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2009 65
Exigências metodológicas
da virada hermenêutica para a educação
Resumo: Abstract:
Considerando a reviravolta provocada pela Considering the turnabout caused by hermeneutics in
hermenêutica em várias áreas do pensamento, em several areas of thought, particularly within the
especial no âmbito das ciências humanas, o presente humanities, this paper develops it in education, as
artigo a descreve na educação, enquanto filosofia hermeneutical philosophy and philosophical
hermenêutica e hermenêutica filosófica, com seus hermeneutics, as its principles of justification and
princípios de justificação e elementos organizadores. organizing elements. This comprehensive organizing
Esses elementos organizadores compreensivos na element in education leads to interpret the present as a
educação levam a interpretar o presente como uma time of the educational hermeneutics reason. In
época da razão educativa hermenêutica. Ao apresentar a presenting the contemporary turn of hermeneutics, the
virada hermenêutica contemporânea, o artigo remonta a article goes on assumptions of how to operate and the
pressupostos do modo de operar e do horizonte geral general horizon of education. Thinking about education
da educação. Pensar a educação a partir da hermenêutica from the hermeneutics means rethinking its
significa repensar seus pressupostos, seu limites, suas assumptions, its limits, its conditions, its structure, as a
condições, sua estrutura, como condição do ser e fazer condition of being and doing education in the
educação na compreensão de mundo do século XXI. understanding of XXI’s century world.
Palavras-chave: Keywords:
Virada hermenêutica. Educação. Conhecimento. Hermeneutical Turn. Education. Knowledge.
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rico e desafiador, a pergunta é pela caracterização e disciplinas das ciências humanas, e se coloca como
situação da educação no momento presente. um pressuposto indepassável da educação. É
possível afirmar que, hoje, em se tratando de
A relevância da indagação pelo lugar e função
ciências humanas, a hermenêutica é o pressuposto
da hermenêutica no âmbito educacional e, por isso,
organizador de justificação e fundamentação.
também, a justificativa deste tema de pesquisa, tem
Portanto, com o advento da hermenêutica, em sua
como lugar de origem a crise de um tipo de
versão moderna, discursos autoritários, dogmáticos,
pensamento e de alguns conceitos, historicamente,
legalistas, historicistas e fundamentalistas tiveram
fundamentais para a constituição da educação.
suas bases interpretativas abaladas.
Entre estes, estão os conceitos de conhecimento,
de verdade e de sujeito, com seus diversos A reviravolta provocada pela hermenêutica em
desdobramentos. Com a presente investigação que várias áreas do pensamento tornou-se uma reflexão
procura repensá-los, torna-se problemático não fundamental, como um pressuposto de justificação.
apenas um estilo de fazer educação, que se pode Apesar do termo hermenêutica derivar do uso
escolher ou refutar, mas a atividade educacional linguístico da teologia e dos problemas da
enquanto tal passa a ser estudada e avaliada em seus compreensão bíblica,2 o deslocamento atual
limites e em sua produtividade. Exige, por isso, a verificado na hermenêutica, enquanto hermenêutica
revisão dos elementos organizadores tradicionais de filosófica,3 coloca um problema fundamental:
reflexão; a introdução de novos temas na reflexão remonta a pressupostos do modo de operar e do
educacional; a adoção de perspectivas insuspeitadas horizonte geral da educação. Pensar a educação a
de possibilidades interpretativas. partir da hermenêutica significa repensar seus
Trata-se da reivindicação de um elemento pressupostos, seu limites, suas condições, sua
organizador que responde aos critérios de uma estrutura... Esse é o real-interpretado que
teoria hermenêutica educacional do sentido. Em pretendemos abordar, com suas exigências
termos fundamentais, significa guardar distância em metodológicas, para poder continuar a fazer
relação à compreensão objetivista do conhecimento educação no contexto do século XXI, como a
e da verdade, e se apresenta como exigência teórica época da razão hermenêutica da educação.
e prática de um deslocamento, a saber, da educação Afirmar que a hermenêutica é hoje a
como saber em constituição na e pela alternativa de pensar na educação significa também
hermenêutica. A hermenêutica na educação, reconhecer-lhe a função de justificação ou
portanto, expressa uma caracterização essencial de legitimação do pensamento educacional, antes
todo o labor educacional, a fim de pôr a descoberto buscada na perspectiva ontológica ou em algum de
a raiz da problemática e a amplitude de sua tarefa. seus desdobramentos, como, por exemplo, nos
O presente ensaio, portanto, circunscreve-se pela conceitos de verdade e de autoridade, justificados
indagação do sentido, do lugar e da sustentabilidade no modo de pensar da modernidade com
da hermenêutica na educação, num contexto em características cartesianas. Em termos
que as discussões filosóficas e o pensamento fundamentais, significa guardar distância em relação
humano em geral buscam legitimar-se a partir da à compreensão metafísica onto-teo-lógica. Este
linguagem. modo de fazer educação não possibilita tomar
positivamente a descontinuidade, a diferença e a
pluralidade tão fortemente presentes e
A virada hermenêutica disseminadas em todas as áreas do saber
A virada hermenêutica, da epistemologia para a contemporâneo.
ontologia da compreensão,1 marca profundamente
as bases de todo o processo de cognição, não só na 2 CORETH, Emerich. Questões fundamentais de hermenêutica.
Filosofia, mas também no âmbito das diversas São Paulo: EPU, 1973. p. 5-43.
3 STEIN, Ernildo. Intrepretacionismo: a tradição
hermenêutica diante de duas novas propostas. In: REIS,
1 RICOEUR, Paul. Conflito das interpretações. Lisboa: Rés, Róbson Ramos dos; ROCHA, Ronai Pires da (Orgs.).
1989. p. 4-10. Filosofia hermenêutica. Santa Maria: UFSM, 2000. p. 56.
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Faz-se necessário estabelecer entre a história, a um dado ontológico e nem num ser garantidor do
tradição e a contemporaneidade um estatuto status de veracidade na relação de pensamento e
teórico que aceite a descontinuidade, a alteridade e pensado, conhecimento e conhecido, falante e
a diferença, possíveis de serem pensadas a partir do falado. O lugar de origem desta forma
conceito de intersubjetividade, própria da dimensão hermenêutica de pensar se dá com Kant,
hermenêutica dialógica. O trabalho educacional não parcialmente, quando afirma que o que
se dá sobre uma série de proposições acabadas cuja conhecemos é apenas o fenômeno, e com
inteligibilidade é procurada pelo sujeito Nietzsche ao afirmar que a filosofia, as ciências, as
cognoscente, segundo o esquema do sujeito e do verdades são “apenas interpretação”.5 Gadamer
objeto, e que nos procure explicar o que nos é dado expressa veementemente este caráter não definido
compreender. de um caminho que conduziria da linguagem aos
E a verdade não pode ser fechada num fatos, à realidade. No movimento da linguagem, do
qual participamos e somos parte, o resultado não é
conjunto de verdades conceituais e nem na ordem
da verdade objetiva, pensada segundo a lógica das passível de avaliação, tal como Kant queria no
proposições segundo o princípio da não começo da “Crítica da razão pura”.6
contradição. Não podemos mais partir da ideia de O lugar de origem da hermenêutica
verdade como a adequação entre o entendimento e contemporânea está em Heidegger. Ela aparece
a realidade, e sim encontrar uma verdade mais primeiramente em Ontología: hermenéutica de la
originária. Esta pertence à ordem da manifestação e facticidad,7 com a seguinte formulação: “o termo
nos remete a uma plenitude de verdade que denomina, na ligação com seu significado
permanece, todavia, sempre oculta. originário: uma determinada unidade de realização
do hermeneuein (do participar a alguém), quer dizer, a
explicitação (interpretação) da facticidade que traz
A perspectiva hermenêutica e a interpretação ao encontro, à vista, ao captar e ao conceito”.8
permanente Heidegger mostra, nesta definição, uma reviravolta
em relação ao conceito da hermenêutica
Costumamos dizer que “levamos” uma
conversação, mas a verdade é que, quanto
precedente, não mais de caráter epistemológico,
mais autêntica é a conversação, menos mas ontológico, ligado ao termo de facticidade. A
possibilidade os interlocutores de “levá-la” na facticidade “é a denominação para o caráter
direção que desejariam. De fato, a ontológico do nosso, do próprio dasein”.9 Dessa
conversação autêntica não é nunca aquela que forma, na “hermenêutica se forma para o dasein
teríamos querido levar. Antes, em geral, seria
mais correto dizer que chegamos à
uma possibilidade de se tornar compreendente para
conversação, quando não nos enveredamos
nela. Como uma palavra puxa a outra, como a 5 NIETZSCHE, Friedrich. Sobre a verdade e mentira no sentido
conversação dá voltas para cá e para lá, extra-moral. São Paulo: Abril Cultural, 2000. p. 51ss.
encontra seu curso e seu desenlace, tudo isso
6 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Nova
pode ter talvez alguma espécie de direção, mas Cultural, 2000. p. 35: “Se a elaboração dos conhecimentos
pertencentes ao domínio da razão segue ou não o
nela os dialogantes são menos os que dirigem
caminho seguro de uma ciência, isso deixa-se julgar logo a
do que os que são dirigidos.4 partir do resultado. Quando após muito preparar-se e
equipar-se esta elaboração cai em dificuldades tão logo se
Esta compreensão de linguagem e de acerca do seu fim ou se, para alcançá-lo, precisa
conhecimento fornece uma nova base de discussão freqüentemente voltar atrás e tomar outro caminho;
quando se torna igualmente impossível aos diversos
para a educação e para o ensino em geral. Os colaboradores porem-se de acordo sobre a maneira como
conceitos de realidade, de fato, de verdade e de o objetivo comum deve ser perseguido: então se pode
resultado recebem uma nova dimensão, não mais estar sempre convicto de que um tal estudo acha-se ainda
bem longe de ter tomado o caminho seguro de uma
baseada numa lógica da clareza e da evidência
ciência, constituindo-se antes um simples tatear”.
linguística e cognitiva, nem numa realidade como 7 HEIDEGGER, Martin. Ontología: hermenéutica de la
facticidad. Madrid: Alianza, 1999.
4 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Petrópolis: 8 HEIDEGGER, 1999, p. 14.
Vozes, 1997. p. 559. 9 HEIDEGGER, 1999, p. 07.
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si e ser assim”.10 Hermenêutica e facticidade são Coimplicada pelo “ser-em”, “ser-no-mundo”, “ser-
termos coimplicados em seu sentido: “a relação com” e o “ser-si-mesmo” na forma dialógica,
entre hermenêutica e facticidade não é aquela da torna-se muito mais que uma alternativa, mas o
captação do objeto e do objeto captado, ao qual caminho possível de construção da verdade e do
aquela simplesmente se teria que adequar, mas o conhecimento na contemporaneidade. Esta nova
explicitar mesmo é um possível privilegiado como compreensão de mundo aberta por Nietzsche e,
do caráter ontológico da facticidade”.11 sobretudo, por Heidegger revela, ao menos, dois
elementos centrais: primeiro, há, em princípio,
Na obra Ser e tempo, hermenêutica tem uma
muitas possibilidades de interpretação, sem que se
dimensão central. A compreensão é um modo de
possa discutir sobre sua verdade, pois as
ser do ser-aí que compreende o ser ao se
interpretações não são expressão da realidade, mas
compreender, teorizando a hermenêutica
esta, ao contrário, se esconde atrás delas, sendo
ontologicamente. O ser-aí não simplesmente busca
apenas vista em perspectiva, como quebrada; em
compreender o ser, como um querer em termos de
segundo lugar, o ser humano não pode dispensar
conhecimento, mas ele sempre lida com o ser como
essas interpretações; ele vive interpretando, e nisso
um conceito operatório, que, por sua vez, revela-se
está seu único acesso ao mundo e à vida.
no modo como compreende. Compreender é o
modo pelo qual o ser-aí é como é. A ontologia
heideggeriana se volta contra a ontologia Razão educativa hermenêutica
precedente que, enquanto fenomenologia
hermenêutica, parte da compreensão do ser e não Na compreensão de mundo do presente não é
mais do ente como simplesmente dado. Partindo mais possível ignorar o que Wittgenstein,12
desta base, a hermenêutica remete ao sujeito/ser Heidegger13 ou Gadamer14 apontam como “giro
humano, não simplesmente perscrutando o que ele linguístico”, “círculo hermenêutico”, “jogos de
é, mas como ele é; o modo de como o ser humano linguagem”, como determinantes, matrizes
conhece dá indícios de como ele é. disciplinares do pensar e ser da educação. Desde as
primeiras e mais simples regras hermenêuticas, não
A partir desta concepção de hermenêutica se pode ignorar a historicidade e o “lugar” ou
heideggeriana, posteriormente desenvolvida por
“contexto”, tanto do texto quanto do intérprete, e,
Gadamer, a hermenêutica é o modo mais próprio
em estreita conexão, a “aproximação de
de fazer filosofia. Filosofar significa interpretar,
horizontes”. Nesta perspectiva, a verdade, por
interpretar a realidade da vida, em seus mais
exemplo, reside na linguagem, na palavra, que é
diversos níveis e aspectos, mas não com o
sempre interpretação, como interpretação aberta e
propósito de fazer o seu inventário, e sim, antes, de
inacabada, num encontro de palavras em contextos
lhe atribuir um sentido. Filosofar é uma atividade com subjetividades em educação no presente. A
que permanece no nível conceitual da reflexão, sem compreensão disso produz uma descontinuidade na
uma incursão direta sobre a realidade, sobre a tradição, uma ruptura mais ou menos dolorosa na
fatualidade. Como ela é construção conceitual de consciência dogmática, ou, conforme Kant, um
compreensão e não construção dos objetos e sobre “despertar do sono dogmático”, e uma necessidade
objetos, ela permanece no nível da interpretação. recorrente de hermenêutica do estar em educação.
Também no setor do ensino, o que melhor
corresponde ao que nele hoje se verifica é a O caráter dialógico do ensino se torna possível
perspectiva da filosofia hermenêutica. a partir do pressuposto hermenêutico de todo
Esta compreensão dinâmica da verdade e do 12 WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. São
conhecimento como acontecência na e pela Paulo: Nova Cultural, 2000.
linguagem em relação, em jogo, em diálogo, tem na 13 HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. 11. Aufl. Tübingen:
Max Niemeyer Verlag, 1967, § 32. p. 148: "Auslegung
intersubjetividade o pressuposto imprescindível. gründet existenzial im Verstehen, und nicht entsteht
dieses durch jene".
10 HEIDEGGER, 1999, p. 15. 14 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Petrópolis:
11 HEIDEGGER, 1999, p. 18. Vozes, 1997. p. 559ss.
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