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À Paz Perpétua Um Ideal Regulativo para Uma Realidade Concreta - Raffz Vieira
À Paz Perpétua Um Ideal Regulativo para Uma Realidade Concreta - Raffz Vieira
INTRODUÇÃO
Kant estabelece, na obra Metafísica dos Costumes (1797), que a guerra
consiste no “modo bárbaro (ao modo dos selvagens)” de resolução de conflitos
(KANT, 2013, p.133); isto é, Kant identifica a guerra como a forma de resolver
disputas contrária ao modo civil e deve ser repudiada completamente. Na mesma
obra, Kant nos conta que “a razão prático-moral exprime em nós o seu veto
irrevogável: não deve haver guerra alguma” (KANT, 2013, p.135). É comum no
cenário teórico das relações internacionais que passagens como essas nas
obras do filósofo alemão custeiem um entendimento idealista do autor: uma
posição que entende a paz como meta final de todas as nações e um repúdio
quasi-romântico a guerra. Tal entendimento da doutrina kantiana das relações
internacionais, sem dúvidas, prostrou o caminho das críticas realistas a essa
posição, notando principalmente a ingenuidade desse pensamento frente as
relações de poder, ao auto interesse de cada Estado em obter poder e, também,
frente os benefícios que a guerra pode trazer para determinados Estados,
motivando-os, assim, a persistirem em empreitadas bélicas visando seus
interesses próprios.
Neste artigo, tratarei da concepção errônea que a literatura idealista nas
relações internacionais tem de Kant, enfatizando como a percepção dessa
corrente do trabalho do alemão é ingênua; explicitarei o realismo moderado
presente na obra de Kant e a distância dele para um utopismo, como é
comumente caracterizado e também para um realismo reducionista, como o da
tradição realista nas relações internacionais. Tal caráter realista ficará evidente
ao discorrer sobre a teoria de guerra kantiana, contrastando com duas outras
teorias: a teoria da guerra justa e a teoria da guerra regular.
IDEALISMO E REAISMO
O idealismo nas relações internacionais é uma doutrina que entende os
Estados como agentes racionais direcionadas a manutenção da estabilidade e,
consequentemente, da paz em suas relações. Herdeiros das máximas
iluministas de progresso, os idealistas costumam entender a sociedade
globalizada de uma forma unificada, entendendo a necessidade de uma
mentalidade cosmopolita visando instaurar esse cenário de paz tão desejado. A
Liga das Nações (1920-1946) e o período entre guerras constituem o exemplar
paradigmático dessas concepções idealistas em seu efeito. Os 14 pontos do
presidente americano Woodrow Wilson, enunciados em 1918, são, também,
exemplos dessa concepção teórica tendo efeito no cenário diplomático
internacional.
Já o realismo é uma doutrina que entende o Estados como máquinas de
autopreservação e busca incessante pelo poder. A herança maquiavélica é
fortíssima nessa tradição e envolve uma análise que tem a pretensão de manter-
se completamente livre de juízos de valores, sempre focando no concreto e no
empírico. O historiador ateniense Tucídides é muitas visto como uma fonte
originária dessa linha de pensamento. A centralidade dos Estados no cenário
das relações internacionais é crucial na perspectiva realista e, como muitos
pensam, tal centralidade permite esgotar as questões principais na disciplina. A
análise de racionalidade dos realistas, contra os idealistas, diz mais respeito a
uma conduta de perseguição de interesses próprios e mútua associação que
indique uma maior aquisição de poder; inversamente, iniciação de conflitos
quando também há um interesse próprio que permite tal aquisição de poder. O
realismo tende a ter a posição de desfavorecer concepções moralmente
salientes e a desdenhar a influência do fator ideológico no comportamento dos
Estados.
THE MIDDLE GROUND
O primeiro ponto para que entendamos que Kant não se insere, de forma
alguma, em uma tradição idealista ingênua, é enxergar a forma como ele discorre
sobre a guerra. Numa guerra, as condutas ali praticadas são, geralmente, atos
proibidos, incluindo matança deliberada de pessoas e destruição de bens.
Através dessa visão jurídica sobre guerra, entendida como um processo imbuído
de ações outrora proibidas, surge um questionamento: como é possível
identificar um princípio regulativo de uma atividade que, por sua natureza, é
contrária ao direito? Em outras palavras, como podemos identificar princípios
éticos capazes de governar tal processo?
É esse problema que, inicialmente, preocupa Kant. Reconhecer que a
guerra é a ausência do direito e, ainda assim, encontrar o direito na guerra; poder
avaliar a guerra sob uma ótica normativa é, então, uma tarefa que parece
contraditória desde o início. Críticas dessa ótica kantiana costumam vir da
seguinte forma: tal posição de encontrar um princípio regulativo na guerra sabota
a própria ideia de torná-la menos proeminente, com uma obstinação ferrenha
aos princípios que acaba gerando uma análise sem frutos práticos para a
diminuição do derramamento de sangue que toma primazia na hora de tratarmos
do tema. É uma concepção demasiadamente legalista, os críticos dizem. Aqui
pretendo apresentar que, diferente do que se costuma dizer, tal concepção não
promove uma ingenuidade principiada, mas sim identifica um ponto de partida
normativo e que permite trazer o linguajar dos procedimentos legais para a
guerra sem, no entanto, reduzi-la à um mero procedimento jurídico. É a ideia da
guerra enquanto um procedimento legal que é capaz de fornecer um decreto,
isto é, uma decisão vinculante às partes, que gerencia o processo bélico.
Posições idealistas e realistas, portanto, encaixam-se nesse cenário como
posições extremas e insuficientes, enquanto Kant, como de praxe em sua
carreira filosófica, nos oferece uma posição moderada e que traz os benefícios
das duas concepções dominantes, ainda que estejamos falando de duas futuras
posições nas relações internacionais; demonstrando assim, o pioneirismo de
Kant em ter em sua obra o material necessário para resolver essa constante
oscilação teórica dentro do debate Inter paradigmático das relações
internacionais.
UM PRINCÍPIO REGULATIVO
O ponto crucial da possibilidade de uma análise normativa apropriada a
um cenário de guerra é que tal disputa é resolvida independente de seus méritos.
Não são, então, fatores constritivos, isto é, tentativas de diminuir as
consequências sangrentas de uma guerra, que tomam lugar de primazia na hora
de estipular um contexto amplo de guerra; tais fatores, são conducentes da paz
mas, em última instância, são secundários e não podem carregar um peso
suficiente para extrair algo de valor da guerra. São os fatores normativos, as
análises que trazem a analogia de um procedimento legal para a guerra, que
tomam essa centralidade, permitindo que tenhamos a paz enquanto princípio
regulativo da guerra. Importante notar que a conduta da guerra não é descartada,
mas toma posição de resultado que flui dessa análise normativa que irá
expressar uma possibilidade de paz em meio a um conflito bárbaro.
O problema fundamental da guerra, através dessa análise normativa, se
dá pela resolução de um conflito através da força. Aqui, precisamos retornar a
um trabalho importantíssimo do filósofo alemão: Antropologia de um Ponto de
Vista Pragmático (1785). Na obra, Kant identifica quatro tipos de governo:
A. Lei e liberdade sem força¹ (anarquia).
B. Lei e força sem liberdade (despotismo).
C. Força sem liberdade e lei (barbarismo).
D. Força com liberdade e lei (república).
Através dessas quatro condições que relacionam os conceitos de força,
lei e liberdade, Kant nos mostra as quatro possibilidades de governo, estipulando
que só um desses quatro é consistente com a ética: a república. No entanto, é
possível que achemos um princípio regulativo na guerra, que consiste em
resolução de problemas sem lei ou liberdade mas na base da força (e, portanto,
barbarismo), a partir do momento em que conectamos tal visão da guerra com
um procedimento similar ao da transição de uma condição de estado de natureza
para uma condição de um estado jurídico. Kant, famosamente, coloca:
Eles [os que permanecem no estado de natureza] agem, porém,
de maneira injusta no mais alto grau, porque privam de toda
validade o conceito de direito mesmo e, como que
conformemente à lei, entregam tudo à violência selvagem e
destroem, deste modo, o direito dos homens em geral. (KANT,
2013, p. 113)
Veja que, permanecer no estado de natureza consiste numa injustiça à
humanidade no mais alto grau e que o postulado do direito público nos
estabelece como obrigados a entrar numa condição civil. Assim, mesmo num
cenário de ausência de justiça, que é o cenário do estado de natureza, temos
um princípio regulativo ali presente, especificamente o princípio explicitado pelo
postulado do direito público: uma obrigação de trazer à tona, i.e., a existência,
uma condição civil; ou, em palavras colocadas por mim em outra ocasião: “Kant
nos demonstra que não podemos (do ponto de vista ético) virar as costas para
as relações legais que esse tipo de instituição [o Estado jurídico e seu caráter
qua condição civil] possibilita”.²
Através dessa análise comparativa podemos extrair a plausibilidade
da paz enquanto princípio regulativo da guerra.
Numa passagem da Metafísica dos Costumes (1797), Kant assevera:
Certamente o [...] estado de natureza não deveria ser, por isso,
um estado de injustiça (iniustus), em que os homens se
confrontassem uns com os outros somente segundo a simples
medida de sua força; mas [é] na verdade um estado desprovido
de direito (status iustitia vacuus), no qual, quando o direito era
controverso (ius controversum), não se encontrava nenhum juiz
competente para emitir uma sentença com força de lei, em nome
da qual seria permitido a cada um impelir o outro pela violência
a entrar em um estado jurídico: porque, embora segundo os
conceitos jurídicos próprios de cada um algo exterior possa ser
adquirido por ocupação ou por contrato, esta aquisição é
somente provisória, todavia, enquanto não tiver para si a sanção
de uma lei pública, já que não está determinada por uma justiça
pública (distributiva) [isto é, a justiça sendo distribuída de forma
universal e consistente com o direito, vigorada pelo Estado qua
vontade omnilateral] nem assegurada por nenhum poder que
exerça esse direito. Se antes do ingresso no estado civil não se
quisesse reconhecer nenhuma aquisição como jurídica, nem
sequer provisoriamente, então aquele estado mesmo seria
impossível. (KANT, 2013, p. 118)
Notas:
1 – Aqui Kant está se referindo ao defeito executivo do estado de natureza,
contra Locke, também denominado “problema da aplicação das questões de
direito no estado de natureza”. Ver: Kant e a legitimidade do Estado – Raffz Vieira
2 - Kant e a legitimidade do Estado – Raffz Vieira
Referências:
KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes. Tradução de Clélia Aparecida
Martins, Bruno Nadai, Diego Kosbiau e Monique Hulshof. São Paulo: Editora
Vozes, 2013.