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1. SÚPLICA (Miguel Torga) 3.

SÍSIFO (Miguel Torga)

Agora que o silêncio é um mar sem ondas, Recomeça….


E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas Se puderes
Às urgentes perguntas Sem angústia
Que te fiz. E sem pressa.
Deixa-me ser feliz E os passos que deres,
Assim, Nesse caminho duro
Já tão longe de ti como de mim. Do futuro
Dá-os em liberdade.
Perde-se a vida a desejá-la tanto. Enquanto não alcances
Só soubemos sofrer, enquanto Não descanses.
O nosso amor De nenhum fruto queiras só metade.
Durou.
Mas o tempo passou, E, nunca saciado,
Há calmaria… Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Não perturbes a paz que me foi dada. Sempre a sonhar e vendo
Ouvir de novo a tua voz seria O logro da aventura.
Matar a sede com água salgada. És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças…

2. MÃE (Miguel Torga)

Mãe:
Que desgraça na vida aconteceu,
Que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu
Numa linha severa e desenhada?

Como as estátuas, que são gente nossa


Cansada de palavras e ternura,
Assim tu me pareces no teu leito.
Presença cinzelada em pedra dura,
que não tem coração dentro do peito.

Chamo aos gritos por ti – não me respondes.


Beijo-te as mãos e o rosto – sinto frio.
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes
Por detrás do terror deste vazio.

Mãe:
Abre os olhos ao menos, diz que sim!
Diz que me vês ainda, que me queres.
Que és a eterna mulher entre as mulheres.
Que nem a morte te afastou de mim!
4. LIVRO DE HORAS (Miguel Torga) 5. COMEÇO (Miguel Torga)

Aqui diante de mim, Magoei os pés no chão onde nasci.


eu, pecador, me confesso Cilícios de raivosa hostilidade
de ser assim como sou. Abriram golpes na fragilidade
Me confesso o bom e o mau De criatura
que vão ao leme da nau Que não pude deixar de ser um dia.
nesta deriva em que vou. Com lágrimas de pasmo e de amargura
Paguei à terra o pão que lhe pedia.
Me confesso
possesso Comprei a consciência de que sou
das virtudes teologais, Homem de trocas com a natureza.
que são três, Fera sentada à mesa
Depois de ter escoado o coração
e dos pecados mortais, Na incerteza
que são sete, De comer o suor que semeou,
quando a terra não repete Varejou,
que são mais. E, dobrada de lírica tristeza,
Carregou.
Me confesso
o dono das minhas horas
O dos facadas cegas e raivosas,
e o das ternuras lúcidas e mansas. 6. PRECE (Miguel Torga)

E de ser de qualquer modo Senhor,


andanças deito-me na cama
do mesmo todo. Coberto de sofrimento;
E a todo o comprimento
Me confesso de ser charco Sou sete palmos de lama:
e luar de charco, à mistura. Sete palmos de excremento
De ser a corda do arco Da terra-mãe que me chama.
que atira setas acima
e abaixo da minha altura. Senhor, ergo-me do fim
Desta minha condição
Me confesso de ser tudo Onde era sim, digo não
que possa nascer em mim. Onde era não digo sim;
De ter raízes no chão Mas não calo a voz do chão
desta minha condição. Que grita dentro de mim.
Me confesso de Abel e de Caim.
Senhor, acaba comigo
Me confesso de ser Homem. Antes do dia marcado;
De ser um anjo caído Um golpe bem acertado,
do tal céu que Deus governa; O tiro de um inimigo…..
de ser um monstro saído Qualquer pretexto tirado
do buraco mais fundo da caverna. Dos sarcasmos que te digo.

Me confesso de ser eu.


Eu, tal e qual como vim
para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!
7. SÃO LEONARDO DA GALAFURA Distante e preservada na distância.
(Miguel Torga) Olímpica recusa, disfarçada
De terrena promessa
À proa dum navio de penedos, Feita aos olhos tentados e descrentes.
A navegar num doce mar de mosto, Nenhum mito regressa….
Capitão no seu posto Todas as deusas são mulheres ausentes…
De comando,
S. Leonardo vai sulcando
As ondas
Da eternidade, 9. O REGRESSO (Miguel Torga)
Sem pressa de chegar ao seu destino.
Ancorado e feliz no cais humano, “Lá vem a Nau Catrineta
É num antecipado desengano Que tem muito que contar.
Que ruma em direcção ao cais divino. Ouvi, agora, Senhores
Uma história de pasmar…”
Lá não terá socalcos A Mãe correu à varanda,
Nem vinhedos Bem longe de imaginar
Na menina dos olhos deslumbrados; Que o alarme desejado
Doiros desaguados Vinha dum cego a cantar:
Serão charcos de luz “Passava mais de ano e dia
Envelhecida; Que iam na volta do mar,
Rasos, todos os montes Já não tinham que comer,
Deixarão prolongar os horizontes Já não tinham que manjar…”
Até onde se extinga a cor da vida. A Mãe abriu num soluço
O coração a sangrar,
Por isso, é devagar que se aproxima Porque a sola era tão rija
Da bem-aventurança. Que a não podiam tragar…
É lentamente que o rabelo avança “Deitam sortes à ventura
Debaixo dos seus pés de marinheiro. Qual se havia de matar”.
E cada hora a mais que gasta no caminho (A Mãe tinha pão na arca
É um sorvo a mais de cheiro E não lho podia dar!)
A terra e a rosmaninho! “Logo foi cair a sorte…”
(Que sorte tão singular!).
O gageiro olhava, olhava,
Mas só via céu e mar…
8. TRANSFIGURAÇÃO (Miguel Torga) “Alvíssaras, Capitão…”
E o vento a enrodilhar
Tens agora A voz do homem da gávea
outro rosto, outra beleza: Na do ceguinho a cantar!
Um rosto que é preciso imaginar, “A minha alma é só de Deus,
E uma beleza mais furtiva ainda… O corpo dou-o eu ao mar…”
Assim te modelaram caprichosas, A Mãe, que nada podia,
Mãos irreais que tornam irreal Já só podia rezar…
O barro que nos foge da retina. “Deu um estoiro o demónio,
Barro que em ti passou de luz carnal Acalmaram vento e mar.”
A bruma feminina… E quando o cego acabou
Estavam em terra a varar…
Mas nesse novo encanto
Te conjuro
Que permaneças.
10. SEI UM NINHO (Miguel Torga)

Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.

Mas escusam de me atentar:


Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar…

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