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ENCONTRO E TRANSGRESSÃO

José Teotonio

Não há quem negue que a produção dramatúrgica do irlandês Samuel Beckett (1906-1989)
consolidou-se como marco do teatro moderno ocidental, curiosamente não por uma via
positiva, mas exatamente pelo seu inverso, esvaziando a dramaturgia de sua condição de
expressão do drama, tal qual até então pensado pela tradição burguesa. E o seu nada a fazer
foi recentemente – e corajosamente – revisitado pelo Coletivo dos Anjos de Jandira, com a
montagem do espetáculo Esperando Esperando, inspirado no clássico texto Esperando Godot,
de Beckett. Fui ver uma de suas apresentações no Teatro Municipal Luiz Gonzaga, um teatro
de 300 poltronas vazias para a exibição, pois a proposta do coletivo é inserir fisicamente o
público no palco, juntinho do elenco, respirando e suando juntos, e sentindo quase o toque
dos atores. Como metonímia de nossa participação corporal, nossos sapatos foram solicitados
e usados em cena como liame e cumplicidade da cena, convocados que estávamos para
participar da solidão originária dos dois vagabundos desesperançados do autor irlandês para,
ao final, irrompermos – cena e público – em pura pulsão de vida, nossos corpos cúmplices e
parceiros dos atores e da música final apropriadamente executada ao vivo. Enfim, o que vimos
no espetáculo dos Anjos – e do qual participamos – foi como que uma subversão da subversão
do teatro do absurdo beckettiano. Em lugar de esvaziamento angustiante do autor de Godot, o
que o coletivo, em Jandira, realizou foi o entrelaçamento crítico entre a cena e o seu público,
numa convocação ao gesto coletivo. Além do drama, ou do seu esvaziamento, o grupo – e a
plateia – realizaram um instigante encontro teatral.

Por séculos, o teatro ocidental foi pautado pelo texto e, no século XVIII, com o advento da
burguesia como classe dominante, implantou-se e consolidou-se o drama burguês como
expressão cênica do seu ideário, com revisões e reinterpretações de Aristóteles que
adequassem o drama aos seus olhos e trejeitos, fixações de preceitos dramatúrgicos, etc., de
modo que a cena se adequou ao drama escrito e dele seguiu como fiel executor. Somente a
partir do início do século XX tem-se início uma série de contestações que visaram a libertar a
cena do texto, buscando dar àquela autonomia em relação a este. Aparecem nesse contexto
figuras como Gordon Craig (1872-1966) e Meyerhold (1874-1940) que propõem repensar o
teatro como fenômeno autônomo, independente do texto, postulando a peça escrita como
apenas um dos participantes da cena. Nessa vertente do debate, anos depois, Grotowski
(1933-1999), por conta de sua aguçada capacidade de observação e reflexão, mas sobretudo
graças aos seus experimentos teatrais revolucionários para a época, afirma e pratica o que
considera a equação mínima e essencial do teatro: o contato vivo aqui e agora dos atores
entre si e o auto-desvelamento à plateia, de modo que tudo o que se somasse a isso, seria em
benefício dessa equação, incluindo o texto, considerado por ele como que um bisturi a serviço
desse ato. E, nessa vertente de praticar o teatro como ato autônomo, Peter Brook (1925-)
propõe a cena teatral como o lugar de encontro privilegiado entre atores e público, mas um
encontro criativo entre os participantes, onde se constrói sentidos mobilizando pulsões
naquele momento mágico que se instaura no ato teatral, quando sentimos que agora somos
nós! e nos vemos num poderoso dispositivo capaz de transformações pessoais, e ao mesmo
tempo coletivas, lugar e tempo prenhe de ressignificações. E a experiência vivida em Jandira,
no palco junto aos atores de Esperando Esperando, insere-se nesse contexto, propondo seus
passos e sapatos, buscando veredas. Evoé!

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