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A constitucionalização do direito

internacional
Mito ou realidade?

Otávio Cançado Trindade

Sumário
1. Introdução. 2. Os distintos significados de
“constituição”. 3. A idéia de um direito inter-
nacional objetivo. 4. A constitucionalização do
direito internacional. 5. Possíveis contribuições
do direito constitucional.

1. Introdução
A constitucionalização do direito in-
ternacional não é tema novo na disciplina.
Tampouco se trata de questão unívoca. A
polissemia do termo “constituição” possi-
bilita a atribuição de diversos significados
ao tema “constitucionalização do direito in-
ternacional”. O uso mais comum do termo
“constituição” no direito internacional diz
respeito a tratados que estabelecem orga-
nizações internacionais. Com freqüência,
fala-se em “constituição da Organização
Mundial do Comércio” ou “constituição da
Organização Internacional do Trabalho”.
Nesses casos, o termo “constituição” é
sinônimo da expressão “instrumento cons-
titutivo”, conforme estabelecido pelo artigo
5 da Convenção de Viena sobre o Direito
dos Tratados entre Estados e Organizações
Internacionais ou entre Organizações Inter-
nacionais (1986).
Não é esse o sentido que pretendemos
Otávio Cançado Trindade é doutorando
em Direito e Estado pela UnB, mestre em Di- atribuir quando falamos de “constituciona-
plomacia pelo Instituto Rio Branco (Prêmio lização do direito internacional”. Quando
Hildebrando Accioly) e bacharel em Direito pela nos referimos à “constitucionalização do
UnB. Diplomata. direito internacional”, queremos dizer o

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processo de formação de um direito interna- reria mediante a sujeição dessas relações
cional objetivo, que vincula as relações entre ao direito – rule of law – determinado por
os sujeitos do direito internacional. Trata-se uma constituição cosmopolita. Para Kant, o
da “juridificação” dessas relações. “plano da natureza”, que conduz a história
Esse foi o sentido utilizado por Kant humana, reserva ao direito internacional
em sua proposta de paz perpétua. Para o papel significativo. A história está intima-
filósofo alemão, existe um nexo conceitual mente ligada ao desenvolvimento de um jus
entre direito e manutenção da paz. Esse gentium (Cf. GALINDO, 2006, p. 51-52).
nexo era reconhecido pela maioria dos Nesse artigo, investigaremos o que se
filósofos pós-Revolução Francesa, que quer dizer com “constitucionalização do
buscavam a manutenção da ordem, a ponto direito internacional” e como o projeto de
de se tornar a principal característica do um direito internacional objetivo pode rece-
constitucionalismo dos séculos XVIII e XIX. ber contribuições do direito constitucional.
Para entender a proposta de Kant para as Analisaremos a possibilidade da utilização
relações entre os povos, convém recordar de conceitos de constituição e do constitu-
o que considerava o essencial em uma cionalismo, formulados ao longo da histó-
constituição estatal. ria, no direito internacional. Isso contribuirá
O caminho que Kant propunha para para melhor delimitar o significado de uma
uma constituição republicana fundamen- “constitucionalização do direito interna-
tava-se em dois princípios cardeais. O cional”, evitando-se a polissemia do termo
primeiro era o princípio da liberdade, que “constituição” no direito internacional.
consiste na livre busca da felicidade por
cada um, sempre que isso não impeça a
2. Os distintos significados
busca por parte de outros indivíduos. O
limite da liberdade individual haveria de de “constituição”
ser dado pela lei. O segundo era o princípio Nesse item, pretendemos fazer breve
da igualdade, entendido como a submissão exposição dos distintos significados atribu-
de todos à mesma lei (Cf. FIORAVANTI, ídos ao termo “constituição”. Isso servirá
2001, p. 123-124). Está claro, portanto, o para que, em seguida, possamos analisar
papel fundamental do direito nas socieda- alguns conceitos que podem ser emprega-
des nacionais. dos no direito internacional para descrever
Essa função pacificadora do direito não a emergência de um direito internacional
se limitava, contudo, ao interior do Estado. objetivo.
A ampliação cosmopolita do direito era um A primeira forma de constituição a
imperativo da razão prática, uma vez que que os historiadores do direito costumam
a pacificação universal e duradoura era o se referir é a constituição dos antigos, na
fim último do direito. A idéia de uma co- Grécia. Ainda que outros povos possam
munidade pacífica de todos os povos, ainda ter desenvolvido modelos de constituição
que não amistosa, era, além de imperativo anteriores e mais aperfeiçoados do que o
moral, um princípio de direito. A garantia dos gregos, foi esse o modelo a inspirar a
da união de todos os povos, vinculados a constituição medieval e, por conseqüên-
um direito público mundial, seria a consti- cia, as constituições modernas do direito
tuição cosmopolita (Cf. HABERMAS, 2005). ocidental. O principal problema a que o
Assim, do mesmo modo como a pacificação pensamento político grego propunha-se a
da sociedade no interior do Estado ocorre- resolver era a manutenção da unidade da
ria mediante o rule of law, determinado por pólis. Por meio de uma forma de governo
uma constituição republicana, a pacificação adequada, a ser determinada pela politeia,
das relações entre os povos também ocor- buscava-se atingir o ideal da eunomia, que

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consistia na boa ordem da coletividade, regimes instaurados por meio da violência
mediante a resolução pacífica das contro- inevitavelmente se desviarão, e não serão
vérsias e de uma convivência ordenada e dotados de constituição. A constituição dos
duradoura. antigos é, portanto, um grande projeto de
A mais conhecida obra do pensamento conciliação social e política. Seu legado é
político grego, que se propunha a resolver o a idéia de que uma comunidade política
problema fundamental daquela sociedade, tem uma constituição quando as partes
é a Política, de Aristóteles (1997). Na obra, que a compõem têm a capacidade de se
formula-se o conceito de politeia, traduzido disciplinar, quando não estão dominadas
para a língua inglesa no século XIX como unilateralmente por um princípio político
“constituição”. O uso do termo, contudo, exclusivo e quando essa disciplina não é
é anacrônico1. Por politeia, quer-se dizer a ordenada pelos vencedores (Cf. FIORA-
forma de governo, ou regime político, da VANTI, 2001, p. 30-31).
pólis. Em célebre passagem do livro III, Na Idade Média, ao contrário da per-
capítulo IV=1278b, Aristóteles (2001, p. 89) cepção difundida de um declínio da idéia
afirma que “uma constituição (politeia) é o de constituição, esta ganhou novos traços
ordenamento de uma cidade quanto às suas que a aproximam do conceito atual. A pri-
diversas funções de governo, principalmen- meira característica é sua entrada no mun-
te a função mais importante de todas”. No do jurídico. No lugar de representar uma
capítulo seguinte, Aristóteles discorre acerca ordem política ideal, a constituição passou
das três formas de governo e seus desvios. a significar a ordem jurídica vigente. Essa
No livro V, o filósofo manifesta sua preocu- ordem jurídica determinava a capacidade
pação com a preservação da “constituição” normativa dos distintos poderes públicos
e analisa as causas de sua destruição. que compunham a ordem política medieval
A obra de Aristóteles (2001) será o marco (Igreja, reis, nobreza). A constituição tratava
conceitual da constituição dos antigos. Para de delimitar as esferas de atuação de cada
os antigos, um regime político será dotado
um desses poderes por meio do conjunto
de constituição quando tem suas origens
de regras, pactos e contratos existentes para
na composição razoável das distintas ten-
a manutenção do equilíbrio.
dências e dos interesses da sociedade. Os
A manutenção desse equilíbrio será
1
O uso do termo “constituição” entrou no dis- o núcleo da idéia de constituição mista.
curso político no século XVII. Há duas explicações Numa sociedade medieval estratificada, a
para sua origem. A primeira é uma analogia entre a lei, entendida como a confirmação de um
natureza e a política, isto é, uma metáfora aplicada a
entidades políticas de termo que se referia ao corpo
costume, resultava da conjunção dos ele-
físico. A segunda é a crescente importância, naquele mentos monárquico, aristocrático e demo-
século, do termo jurídico constitutio, do direito romano crático2. Percebe-se claramente diferença
e canônico. O termo referia-se a decretos imperiais. substancial entre a constituição medieval
No direito inglês medieval, referia-se a regulamentos
escritos de alcance local (em contraposição a statute, de
e a dos antigos. Enquanto a primeira visa
maior hierarquia e alcance). No século XVII, na Ingla- a preservar o caráter plural da sociedade,
terra, passou a ser usado na forma de “constituições sem que um poder público venha a romper
fundamentais” com o significado de leis fundamentais. o equilíbrio, a segunda visa a legitimar
Foi, no entanto, quando as colônias norte-americanas
passaram a se referir à “constituição da colônia” que o
poderes públicos fortes. A constituição
termo aproximou-se do significado atual. A expressão medieval era a síntese da pluralidade de
“inconstitucional”, utilizada pela primeira vez por pactos e acordos das distintas partes (Cf.
Bolingbroke, no século XVIII, também ganhou a di- FIORAVANTI, 2001, p. 15-70). Não está
mensão conceitual atual nas colônias norte-americanas
(Rhode Island, em 1764/65), quando da crise sobre a 2
Para uma análise da idéia de constituição mista
tributação imposta pela Inglaterra (Cf. STOURZH, à luz da teoria da diferenciação de Niklas Luhmann,
1988, p. 35-54; MADDOX, 1989, p. 50-67). Cf. Araújo Pinto (2004, p. 57-71).

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presente a idéia de indivíduo, mas a sobe- era valorizado pela constituição medieval.
rania da comunidade política. Locke teoriza sobre os limites do legislador,
A origem da constituição dos modernos que, em lugar de gerar direitos, aperfeiçoa
está na crítica da constituição mista e no a tutela de direitos preexistentes. A teoria
surgimento, no século XVII, das teorias norte-americana do poder constituinte vem
da soberania. As revoluções no continente reforçar a necessidade de limites ao legisla-
europeu – em particular na Inglaterra e dor (mediante o controle de constituciona-
na França – provocadas pela transição da lidade) ao mesmo tempo em que reiterava
sociedade feudal para a capitalista criaram a idéia de soberania popular.
a necessidade de uma reorganização das Outro desenvolvimento fundamental
sociedades nacionais. À constituição mista, pós-Revolução Francesa foi o surgimento
que conferia legitimidade à sociedade feu- da idéia de constituição estatal, predomi-
dal, atribuiu-se uma das causas da anarquia nante nas constituições do século XIX.
e da guerra civil. As teorias da soberania Hegel reafirma a necessidade de um núcleo
procuravam descrever a natureza do po- fundamental estável do Estado. Acrescenta,
der do rei. Era um poder distinto do poder contudo, que tal núcleo deve estar livre da
dos demais estratos sociais, porquanto era luta política e dos interesses particulares.
irrevogável e originário. Para isso, a titularidade da soberania não
Na obra de Jean Bodin, surge a primeira estaria nem com o monarca, nem com o
grande idéia que distingue a constituição povo, mas com o Estado. A constituição não
moderna de suas antecessoras. A constitui- seria norma originária da vontade de um
ção contém um núcleo rígido e inalterável do sujeito. Seria uma ordem fundamental de
poder político. Trata-se de núcleo indispo- convivência3. Opera-se, pois, a personifica-
nível, isto é, que não pode ser alterado ou ção do Estado. O monarca e os representan-
negociado. Hobbes acrescenta novo traço tes do povo seriam meros órgãos do Estado.
da constituição moderna: no lugar de um Desfazia-se, assim, o enfrentamento entre
a soberania do monarca e a soberania do
conjunto de leis fundamentais, trata-se de
povo, porquanto a soberania pertencia ao
uma única lei.
Estado, que não poderia personificá-la em
O debate sobre a origem do poder
um de seus órgãos. A soberania do Estado
soberano oporá constitucionalismo e de-
impedia mudanças provocadas por um de
mocracia até o início do século XX. Com
seus componentes. O Estado confiava ao
Hobbes surge a analogia com o estado na-
ordenamento jurídico a tutela de direitos.
tural, que justificaria o poder soberano do
Concebia-se, portanto, um Estado de direi-
rei. O filósofo inglês utilizou os conceitos
to, ou rule of law4.
de autorização e representação para legiti-
mar o soberano. Apesar de os indivíduos 3
Fica evidente a diferença entre essa noção pós-
abrirem mão de sua liberdade para instituir revolucionária (século XIX) e a noção de constituição
do século XVIII, que pode ser sintetizada na seguinte
um poder soberano comum, não poderá definição, de Vattel (2004, p. 26): “O regulamento
um grupo de indivíduos exercer direito fundamental que determina a maneira pela qual a
de resistência em relação a um soberano autoridade pública deve ser exercida é o que forma a
considerado ilegítimo. Para Rousseau, ao constituição do Estado. Nela se vê a forma sob a qual a
Nação age na qualidade de organismo político, como
contrário, o povo é o titular da soberania e e por quem o povo deve ser governado, e quais são
não está vinculado a nada. Seus represen- os direitos e deveres daqueles que governam. Esta
tantes seriam meros comissários. constituição não é nada mais que o estabelecimento
Os excessos cometidos na Revolução da ordem em que uma Nação se propõe trabalhar em
comum para obter vantagens em razão das quais a
Francesa fizeram com que se recuperasse sociedade política foi estabelecida”.
a necessidade de limite e de garantia na 4
Enquanto a Europa continental buscava disso-
constituição moderna, a exemplo do que ciar a origem de seu direito público de todo ato de

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O colapso do império prussiano (cons- popular. A vontade do Estado não deve
truído por Bismarck, Guilherme I e Guilher- ser o resultado de uma discussão, mas da
me II) após a primeira guerra mundial deu vontade direta do povo, sem mediações.
origem à Constituição de Weimar (1919). A Kelsen, por sua vez, associa a constitui-
derrota alemã possibilitou a ascensão ao ção democrática ao pluralismo. O povo é
poder da “social-democracia” e a superação mera abstração, impossível de ter qualquer
da constituição meramente estatal. A exi- correspondência concreta. A constituição,
gência de democracia fez com que as novas dessa maneira, não tem autor, não pode
constituições do período contivessem as ser apropriada por um sujeito. Trata-se de
grandes decisões do poder constituinte. um processo histórico que compõe formas
Diferentemente da época revolucionária, institucionais para acomodar a pluralidade
as constituições democráticas deveriam de interesses. O parlamento, ainda que foro
englobar um núcleo inviolável de direitos ideal para essa composição de interesses,
fundamentais. O legislador constituído está limitado pelo controle de constitucio-
sujeitar-se-ia a um controle de constitucio- nalidade.
nalidade. O debate do constitucionalismo contem-
Dois conceitos de democracia caracteri- porâneo ainda ecoa o debate entre Kelsen
zaram o debate no entre-guerras: o de Carl e Schmitt. O desafio atual é conciliar a
Schmitt e o de Hans Kelsen. Para Schmitt, soberania popular com o pluralismo, que
o aspecto representativo torna impossível rejeita a visão única do bem comum. O
a identidade entre governantes e gover- constitucionalismo moderno é caracteriza-
nados, que é a essência da democracia. O do, precisamente, pela articulação entre o
presidente, eleito diretamente pelo povo, liberalismo – a que se vincula o pluralismo
representaria a sua unidade, e era o guar- – e a democracia. Isso requer, por um lado, a
dião da constituição5. A democracia con- defesa do máximo de pluralismo. De outro,
sistiria na identidade da lei com a vontade um consenso mínimo sobre os valores de
uma comunidade política democrática, que
violência, a Inglaterra já superara esse problema em garanta o pluralismo. É a tensão permanen-
sua revolução do século XVII. A principal caracterís- te entre a lógica da diferença (pluralismo) e
tica da constituição inglesa era a soberania do Parla-
mento. “Parliament means (...) the King, the House of
a lógica da equivalência (comunidade polí-
Lords, and the House of Commons; these three bodies tica) que constitui a garantia da democracia
acting together may be aptly described as the ‘King (Cf. MOUFFE, 1994).
in Parliament’” (DICEY, 2005, p. 37). Tal soberania
caracteriza-se pela origem tripartite do direito inglês:
do rei, da aristocracia e do povo. Nenhum órgão pode 3. A idéia de um direito
invalidar uma lei do Parlamento. Portanto, a soberania internacional objetivo
não tem origem em nenhum dos componentes do
Parlamento de forma isolada. A existência de um direito que vincule
5
Segundo a ideologia nazista, o “führer” é o que os diversos povos e assegure a unidade de
une o Estado, o partido e o povo. A palavra pode
referir-se a um maquinista ou comandante de um
uma sociedade mundial foi defendida pelos
barco para significar condutor ou líder. O testemunho teóricos clássicos do direito internacional,
de Franz Neumann, escrito no calor dos aconteci- nos séculos XVI e XVII. Esse direito era
mentos, é revelador. “Se alega que éste es cosa por associado, com freqüência, ao jus gentium
entero diversa de la dominación: según la ideología
alemana, el carácter de liderazgo es, precisamente,
do direito romano. Em Roma, o jus gen-
lo que distingue al régimen nacional-socialista de la tium, ainda indissociado do direito natural
dominación absolutista. (…) Adolfo Hitler es el líder porquanto não emanava da vontade legis-
supremo. Combina las funciones de legislador supre- lativa, regia as relações entre estrangeiros
mo, administrador supremo y juez supremo. Es líder
del partido, del ejército y del pueblo” (NEUMANN,
dentro do Império. Era um direito intra
2005, p. 107-108). gentes, mas não inter gentes. A Idade Mé-

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dia herdou a classificação tripartite direito gentium positivo e não-voluntarista. Para
natural, civil e das gentes. Para Francisco o filósofo espanhol, a manifestação do jus
de Vitória, o jus gentium aplicava-se aos gentium se dava por meio do costume (sua
mais distintos povos de todo o mundo (Cf. fonte formal). Sua fonte material seria,
MACEDO, 2007, p. 67-69). Seria um direito contudo, os laços de caridade que unem os
cuja validade decorria da recta ratio inerente diversos povos. Representaria, dessa forma,
à humanidade, e não da vontade de seus um mínimo ético entre os povos. O jus gen-
sujeitos (Cf. MOSLER, 1974, p. 137). A tium, emanado da própria humanidade, e
vontade dos Estados estaria, pois, limitada não da vontade dos Estados, expressa uma
por esse direito. Era um direito objetivo, ordem jurídica de valores objetivos (Cf.
apreendido pela razão humana. MACEDO, 2007, p. 272-274). Apesar de ser
A transformação do jus gentium em di- direito positivo (pois emana do costume),
reito internacional teve como estopim a Re- não está entregue ao arbítrio dos Estados. O
forma Protestante e o desmembramento da jus gentium de Grotius, conquanto despia-se
unidade cristã européia, com a conseqüente de conteúdo ético e emanava do consenso
erosão de uma moral universal. A criação entre as nações (manifestado pelo costu-
de uma sociedade de Estados soberanos me), está imerso numa sociedade mundial
pela Paz de Westphalia levou à necessidade (composta por Estados, povos e indivíduos)
de se determinarem as normas aplicáveis criada pelo direito natural. Isso assegura
aos Estados. Ocorreu um processo de per- a moralidade no direito internacional (Cf.
sonificação do Estado, que passou a osten- MACEDO, 2007, p. 341-342).
tar atributos similares aos dos indivíduos. A visão voluntarista de um direito
O jus gentium daria lugar ao jus inter gentes, internacional subjetivo, confirmada pela
um direito com objeto mais limitado, que jurisprudência da Corte Permanente de
visava tão-somente assegurar a coexistência Justiça Internacional (CPJI)7, prevaleceu
e a coordenação de seus sujeitos. A reação
até a segunda guerra mundial. Contudo,
contra-revolucionária do século XIX – cuja
ela sempre enfrentou resistência. A prin-
teoria da soberania do Estado é um claro
cipal crítica dirige-se à impossibilidade de
desdobramento6 – levou à fragmentação
o consentimento constituir a fonte última
do jus gentium e à exclusão de indivíduos e
do direito internacional, uma vez que seria
povos da seara do direito internacional, que
necessário encontrar uma regra anterior
assumiu mera dimensão interestatal (Cf.
conferindo efeito jurídico ao consentimen-
TRINDADE, 2006, p. 43-44). O fundamento
to8. Teorias baseadas na autolimitação do
do direito internacional seria a vontade de
Estado não resolviam o seguinte problema:
seus únicos sujeitos: os Estados.
a vontade dos Estados que cria o direito
Apesar de a doutrina internacionalista
pós-Reforma Protestante se enveredar internacional é a mesma vontade que o
nesse caminho, Francisco Suárez e Hugo viola.
Grotius formularam a existência de um jus 7
No célebre caso Lotus (1927), a Corte declarou
que as normas de direito internacional emanam da
6
Para Hegel (1949, p. 212-214), as relações regu- livre vontade dos Estados; restrições sobre essa liber-
ladas pelo direito internacional eram determinadas dade não poderiam ser presumidas. Consagrou-se a
pela vontade soberana e arbitrária dos Estados. Para regra residual no direito internacional (o que não está
Jellinek, quando a observância do direito internacional proibido está permitido).
colide com a existência do Estado, a norma jurídica 8
Outras críticas dirigiram-se à insuficiência de o
passa ao segundo plano uma vez que o Estado é consentimento explicar regras como a pacta sunt ser-
superior a qualquer princípio jurídico. O direito inter- vanda e a impossibilidade de um Estado fundamentar
nacional existe para os Estados, e não os Estados para excludente de responsabilidade internacional no seu
o direito internacional (JELLINEK, 1911, p. 559-563 direito interno (FITZMAURICE, 1958, p. 162-176 apud
apud TRINDADE, 2006, p. 45). TRINDADE, 2006, p. 48).

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A idéia de um direito internacional ob- a unidade do direito internacional, trans-
jetivo está fortemente associada ao que se formando-o em mera coletânea de regras
denominou jus gentium, isto é, um direito convencionadas ao acaso. Postular uma
que vincule Estados, povos e indivíduos. constituição significava conferir ao direito
Em obra doutrinária coletiva de 1925, internacional uma base objetiva, capaz de
defendeu-se que esse direito internacional conciliar poder e direito.
objetivo – com aplicação dos princípios Ambas as escolas argumentavam que,
básicos comuns a todos os povos – preexis- para conferir à vontade o poder de criar
te à vontade dos Estados. Afinal, Estados uma norma jurídica, era necessário pres-
nem sempre existiram, e o direito inter- supor uma norma objetiva atribuindo essa
nacional formou-se e evoluiu não apenas qualidade à vontade. Haveria, portanto,
para regular as relações entre Estados (Cf. princípios jurídicos superiores, anterio-
TRINDADE, 2006, p. 56-57). res à experiência jurídica. Tais princípios
A oposição voluntarismo (consensua- constituem o fundamento de um direito
lismo) x objetivismo (não consensualismo) internacional objetivo. O direito interna-
é irreconciliável. A dificuldade está em cional é, pois, retirado da esfera unilateral,
optar-se pelo argumento descendente (na- em que prevalecem vontades soberanas
turalista, não-consensual) ou ascendente momentâneas. São princípios de natureza
(consensualista). O primeiro enfrentaria imperativa, jus cogens, que asseguram a
dificuldades em demonstrar o conteúdo perenidade da constituição internacional
de suas normas. O segundo legitimaria a (Cf. KOLB, 2001, p. 103-105).
vontade de cada Estado a cada momento. A Ainda antes da primeira guerra, como
opção, em abstrato, por um dos argumentos resultado das Conferências de Paz da Haia
tende a aprisionar o intérprete na apologia (1899 e 1907), teóricos da Alemanha e da
(dependência da vontade do Estado) ou na França defendiam um direito internacional
utopia (dependência de uma moralidade objetivo. Na Alemanha, Josef Kohler, funda-
natural). A escolha de um dos argumentos dor do primeiro periódico alemão de direito
dependeria do caso concreto (Cf. KOSKEN- internacional9, declarava a unidade cultural
NIEMI, 2005. p. 332). da humanidade e caracterizava o direito
internacional como uma “ciência da paz”.
Para o jurista, em vez de tratados, era neces-
4. A constitucionalização sário construir uma ciência que identificasse
do direito internacional princípios de um direito natural enraizado
Como reação à predominância das teo- na cultura. Sua influência é evidente na
rias voluntaristas do direito internacional obra de Walther Schücking, membro da
no início do século XX, parte da doutrina delegação da Alemanha à Conferência de
advogou, no entre-guerras, a existência de Paz de Versalhes e o único juiz alemão na
uma constituição internacional ou de princí- CPJI. Schücking chegou a preparar projeto
pios constitucionais internacionais. A escola de constituição para uma confederação
germânica, de viés neonaturalista, recorreu mundial a ser criada na 3a Conferência
a princípios constitucionais que traduzem de Paz da Haia, prevista para 1915 (Cf.
ideais de justiça e de bem comum (Ver- KOSKENNIEMI, 2001, p. 213-222).
dross, Simma, Mosler). A escola italiana, Tais teorias tiveram visível influência
de viés sociológico, fundamentava a cons- nos debates sobre a criação da Liga das Na-
tituição na existência de uma comunidade ções. Schücking foi o autor da proposta ale-
internacional (Santi Romano). Tencionava- mã de uma constituição para a Liga. O texto
se dar uma resposta ao argumento de que a 9
Zeischrift für Völkerrecht und Bundess-
ausência de uma constituição compromete taatsrecht.

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previa, além de um Parlamento mundial, a preconizava a unidade do direito (interna-
manutenção permanente da paz por meio cional e interno), Verdross identificava a
da arbitragem obrigatória, pelo tribunal da constituição da comunidade internacional
Liga, de todas as disputas jurídicas, bem nos princípios fundamentais do direito
como da mediação obrigatória, pelo Gabi- internacional, que determinam suas fontes,
nete Internacional de Mediação, de todas sujeitos e distribuição de jurisdições. Essa
as disputas políticas. O texto inspirou-se constituição baseava-se no direito consue-
em proposta apresentada na Conferência tudinário e em tratados multilaterais, como
da Haia de 1907, recusada, na ocasião, pela o Pacto Briand-Kellogg (a obra de Verdross
Alemanha imperial. A submissão completa é anterior à Carta da ONU).
das relações internacionais ao direito foi, Em novo trabalho de 1984, publicado
contudo, rejeitada pelos aliados (Cf. KIM- em co-autoria com Bruno Simma, Verdross
MICH, 1976, p. 20). (1984) afirma que a Carta da ONU atingiu
A doutrina sociológica francesa do direi- o status de constituição da comunidade
to internacional, sob influência de Augusto universal de Estados. O termo é usado,
Comte e Émile Durkheim, ganhou relevo diferentemente das concepções materiais
graças às obras de Léon Bourgeois, Léon anteriores, com o significado de constitui-
Duguit e George Scelle. A escola sociológica ção formal. É entendido, pois, como um
segue a premissa de que o comportamento conjunto de regras de direito internacional
humano é determinado pelas leis morais e superiores em relação às demais normas.
sociais da coletividade. O próprio Estado Sua existência é pré-condição para a vali-
seria criação da sociedade. O direito emer- dade das demais normas do ponto-de-vista
ge espontaneamente de fatos objetivos. O lógico e jurídico.
direito internacional não escaparia dessa Alguns autores contemporâneos segui-
realidade, sendo fruto da existência de uma ram essa linha e têm identificado a Carta da
sociedade internacional. George Scelle, ONU como uma constituição internacional.
principal representante da escola socioló- Em primeiro lugar, argumenta-se que a
gica no direito internacional, afirmava que Conferência de São Francisco foi um “mo-
a sociedade internacional, como qualquer mento constitucional”. A profunda trans-
sociedade, é composta por indivíduos. Se o formação na ordem internacional estaria
direito constitucional é, sobretudo, um di- refletida no preâmbulo e no capítulo I da
reito sociológico, a sociedade internacional Carta. Em segundo lugar, a Carta, a exem-
também tem a sua constituição. Trata-se de plo de qualquer instrumento constitucional,
uma constituição não escrita da sociedade prevê as funções básicas de governo, isto é,
internacional formada pelos princípios o modo de criação e de aplicação do direito,
do direito internacional. O conteúdo do ainda que sem a nítida separação orgânica
direito internacional poderia ser dividido de funções verificada no direito interno (Cf.
em princípios constitucionais, direito ad- FASSBENDER, 1998, p. 529-619).
ministrativo, direito dos contratos e direito O mais sólido argumento a favor da
internacional penal (Cf. KOSKENNIEMI, Carta como constituição parece ser a
2001, p. 330). hierarquia de normas criada pelo instru-
Esses debates do entre-guerras foram mento. Segundo essa leitura da Carta,
centrais para Alfred Verdross utilizar-se da alguns dispositivos, como seu artigo 2(6)
noção de “constituição” no plano interna- – que impõe a obrigação de Estados não
cional. O aluno de Hans Kelsen publicou, membros da ONU observarem seus prin-
em 1926, The constitution of the international cípios – e seu artigo 103 – que determina
legal community (Cf. SIMMA, 1995, p. 33-54). a primazia das obrigações decorrentes
Influenciado pelo monismo de Kelsen, que da Carta sobre as demais –, são exceções

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ao direito internacional geral que qualifi- internacional seria, portanto, seu caráter
cam a Carta como Constituição. Parte da objetivo. Apesar de não identificar a Carta
doutrina entende, contudo, que o artigo como a constituição internacional, Tomus-
2o obriga a Organização a fazer com que chat (1993) considera-a um tratado, como
não-membros observem seus princípios. outros tratados globais, que concretizam
O dispositivo, portanto, não vincularia princípios constitucionais da ordem jurí-
não-membros. Da mesma forma, o artigo dica internacional.
103 apenas autorizaria Estados-membros Essa corrente constitucionalista é segui-
a não observarem obrigações contraídas da por Erika de Wet (2006), titular da cáte-
decorrentes de tratados que entrem em dra de direito internacional constitucional
conflito com obrigações oriundas da Carta da Universidade de Amsterdã10. A autora
(observância a uma decisão do Conselho considera que uma ordem constitucional
de Segurança, por exemplo). internacional emergente consiste de: uma
Outra corrente constitucionalista no comunidade internacional; um sistema
direito internacional não associa a Carta internacional de valores; e estruturas rudi-
da ONU com a constituição da sociedade mentares para a sua aplicação. Apesar de a
internacional. Hermann Mosler (1974) e adoção da Carta da ONU ter sido momento
Christian Tomuschat (1993) argumentam decisivo na formação de uma comunidade
que a constituição da sociedade interna- internacional, o sistema exclusivamente
cional são aquelas normas e princípios que estatal da Carta não compreende toda a
dizem respeito à criação, validade e extin- comunidade internacional, que vai além
ção do Direito. Em seu Curso na Academia dos Estados. Por conseqüência, ela não
de Direito Internacional da Haia, em 1974, pode ser considerada a constituição da
Mosler considera a sociedade internacional comunidade internacional. A Carta da
uma comunidade regida pelo direito. A ONU seria o fator de ligação das distintas
constituição estabeleceria o fundamento comunidades normativas (nacional, regio-
da validade do sistema jurídico do qual nal ou setorial – como OMC, OIT, etc.) que
derivam as obrigações nessa comunida- formam a comunidade internacional (Cf.
de. Os valores jurídicos fundamentais da WET, 2006, p. 51-76).
comunidade, por sua vez, formariam a Essa ordem constitucional internacional
ordem pública internacional. Para Mosler, a emergente seria caracterizada pela crescen-
constituição da sociedade internacional não te hierarquização. Um sistema internacio-
coincidiria, necessariamente, com a Carta nal de valores, composto por normas de
das Nações Unidas. forte conteúdo ético, tem adquirido posição
Tomuschat (1993) recupera o tema da hierárquica superior por meio da prática
comunidade internacional em seu Curso dos Estados. Nesse processo, a Carta da
da Academia de Direito Internacional ONU desempenha papel fundamental,
da Haia de 1993. O autor considera a porquanto seus artigos 1o(3), 55, 56, 62 e 68
comunidade internacional uma entidade foram a base para a negociação e a adoção
jurídica regida por uma constituição, cujos de normas de direitos humanos posterior-
principais elementos são normas sobre a mente elevadas ao núcleo desse sistema
criação, aplicação e adjudicação do direito. de valores. Dois marcos para esse sistema
Tomuschat (1993), no entanto, vai além de 10
A autora coordena, em conjunto com três dou-
seu antecessor ao considerar que existe um torandos e um pós-doutorando, o projeto de pesquisa
arcabouço jurídico – ou constituição – que “The emerging international constitutional order – the
implications of hierarchy in international law for the
determina certos valores comuns que in- coherence and legitimacy of international decision-
dependem do consentimento dos Estados. making” (informação disponível em <http://home.
A principal característica da constituição medewerker.uva.nl/e.dewet/>).

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emergente de valores foram a Convenção aplicáveis a ilícitos internacionais em geral,
de Viena sobre Direito dos Tratados (1969) e a violação de normas peremptórias impõe
o caso Barcelona Traction (1970), na Corte In- três deveres adicionais para os Estados
ternacional de Justiça (CIJ). A primeira, em (comunidade internacional como um todo).
seu art. 53, introduziu no direito internacio- Uma obrigação de fazer, que constitui o
nal positivo o conceito de normas jus cogens, dever de cooperar para pôr fim à violação;
com o objetivo de torná-las indisponíveis, duas obrigações de não fazer, que compre-
isto é, inderrogáveis pela prática dos Esta- endem o dever de não reconhecimento da
dos ou pela celebração de tratados. Já no situação criada pela violação como lícita e
caso Barcelona Traction, a CIJ fez a distinção de não prestação de qualquer ajuda para a
entre obrigações de um Estado para com a manutenção da situação delituosa. James
comunidade internacional como um todo Crawford (2002, p. 249), relator do Proje-
(erga omnes) e obrigações para com outros to, atribui a ausência de dispositivos mais
Estados considerados individualmente. O específicos sobre o dever de cooperação
primeiro tipo de obrigação vincula todos à diversidade de circunstâncias possivel-
os Estados11. mente envolvidas nesses tipos de violação
Também no direito da responsabili- (denominadas, por seus predecessores
dade internacional do Estado, a noção de na CDI, crimes de Estado). Há, portanto,
hierarquia de obrigações se faz presente. possibilidade de cooperação dentro de
A Parte II do Projeto de Artigos sobre uma moldura não institucionalizada, mas
Responsabilidade Internacional do Estado “sempre mediante meios legais”.
(2001), preparado pela Comissão de Direito O debate sobre a constitucionalização
Internacional da ONU (CDI), trata, preci- do direito internacional tem adentrado
samente, das conseqüências jurídicas de certas comunidades normativas setoriais,
ilícitos internacionais. O artigo 41 discorre ou regimes internacionais. Para alguns
acerca das conseqüências específicas de autores, o direito da OMC, por exemplo,
uma “grave violação de obrigações sob nor- está passando por um processo de cons-
mas peremptórias de direito internacional titucionalização. O debate tem fomentado
geral”12. Além das conseqüências jurídicas maior discussão doutrinária sobre o signi-
11
A distinção foi reafirmada, em 2004, na Opinião
ficado da constitucionalização no direito
Consultiva no 9 (Conseqüências jurídicas da construção internacional. Deborah Cass (2005, p. 28)
de um muro nos territórios palestinos ocupados), em seu distingue da seguinte maneira constituição,
parágrafo 155: “A Corte considera que, dentre as constitucionalismo e constitucionalização:
obrigações violadas por Israel, figuram obrigações
erga omnes. Como a Corte indicou no caso Barcelona
a primeira trata de arranjos formais de go-
Traction, tais obrigações, por sua própria natureza, verno; o segundo refere-se ao conjunto de
‘concernem todos os Estados’ e, ‘tendo em vista a valores associados a constituições liberais,
importância dos direitos envolvidos, pode-se conside- tais como o império do direito (rule of law)
rar que todos os Estados têm o interesse jurídico em
ter esses direitos protegidos’ (...) As obrigações erga
e a proteção de direitos; constitucionaliza-
omnes violadas por Israel são a obrigação de respeitar ção é o processo de mudança mediante o
o direito de autodeterminação do povo palestino e qual arranjos formais, com os valores do
algumas de suas obrigações sob o direito internacional constitucionalismo liberal, são feitos. A
humanitário” (tradução livre, disponível em <www.
icj-cij.org> acesso em 15.6.2007).
constitucionalização compreenderia seis
12
Artigo 41: 1) Os Estados cooperarão para pôr elementos: um conjunto de práticas sociais
fim, mediante meios lícitos, a graves violações con- para regular o comportamento político e
forme o significado do artigo 40; 2) Nenhum Estado
reconhecerá como lícita uma situação criada por das demais conseqüências previstas nessa Parte, e de
uma grave violação conforme o significado do artigo outras conseqüências que possam advir do direito
40, nem fornecerá assistência ou ajuda para manter internacional em virtude da natureza da violação
essa situação; 3) Esse artigo se aplica sem prejuízo prevista nesse capítulo.

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econômico; a crença no surgimento de uma A crítica de que a ausência de uma con-
nova regra fundamental, ou Grundnorm, cepção universalmente aceita de bem co-
que transforma um conjunto de normas mum impede a existência de uma constitui-
em uma ordem coerente e unificada; a ção da comunidade internacional parte da
existência de uma comunidade política premissa de que tal concepção é necessária
que autorize a constituição, cujos interesses para uma constituição. Pensamos, contudo,
estarão nela refletidos; a existência de um que esse entendimento está dissociado do
processo deliberativo de elaboração do di- constitucionalismo contemporâneo. Este é
reito; definição das relações entre os órgãos alicerçado, precisamente, no pluralismo,
criados; existência de um nível de aceitação entendido como a recusa de uma visão
social ou legitimidade do processo. única de bem comum. A primeira etapa
da construção do sujeito constitucional é
a negação de qualquer forma específica de
5. Possíveis contribuições
bem comum. Ele é inerentemente incom-
do direito constitucional pleto e, por conseqüência, sempre aberto
Apesar do crescente debate sobre a a uma busca incessante de completude
constitucionalização do direito internacio- nas diversas concepções de bem de uma
nal, há quem questione sua possibilidade sociedade. Após negar exclusividade o
e utilidade. Para Koskenniemi (2007, p. predomínio de concepções de bem, o sujeito
1-30), a impossibilidade do constituciona- constitucional pode readmiti-las dentro de
lismo internacional reside na ausência de um universo pluralista. A única concepção
um consenso internacional básico sobre o que não é excluída no primeiro momento
bem comum ou um projeto político com- é a do próprio pluralismo, condição para
partilhado, elementos que o autor entende o constitucionalismo contemporâneo (Cf.
essenciais no constitucionalismo nacional. ROSENFELD, 2003, p. 26, 54).
Não seria possível, segundo essa visão, Não é a intenção deste artigo indagar
acordo sobre os valores constitucionais no sobre os méritos do uso de conceitos de
plano internacional. Além disso, não há direito constitucional na seara do direito
um poder constituinte internacional que internacional, mas somente explorar con-
possa dizer o que é constitucional. A mera tribuições do constitucionalismo para um
repetição do vocabulário constitucional no direito internacional objetivo. É importante
plano internacional não tem nenhum méri- registrar, contudo, que o uso de analogias
to intrínseco. A única razão para se preferir de direito interno no direito internacional é
o constitucionalismo no plano internacio- tão antigo quanto o surgimento do conceito
nal – com as práticas e instituições a ele de jus gentium, ele próprio uma analogia a
associadas – seria a opção por um projeto partir do direito romano. Em monografia
político que identificasse objetivos polí- sobre o tema, H. Lauterpacht (1970) propõe
ticos que uma constituição internacional analogias de direito privado para o estudo
tenciona fortalecer. Para o autor, contudo, de territórios (propriedade, posse, prescri-
o próprio direito internacional é um projeto ção aquisitiva e extintiva, servidão), para
político. Atua como uma idéia reguladora a sucessão de Estados, para a responsabi-
da comunidade universal, independente de lidade internacional e para o direito dos
interesses particulares. Seria, na terminolo- tratados. O autor conclui que o uso dessas
gia kantiana, um projeto de razão prática analogias, sempre utilizadas por autores
para julgar o estado das relações mundiais clássicos, resultava do entendimento de
a partir de um ideal de universalidade que que o direito internacional é a realização
não pode ser reduzido a uma instituição do direito natural, cujos preceitos foram
ou técnica. incorporados pelo direito romano. Tal

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procedimento passou a ser rechaçado pelos constitucional do direito internacional é a
positivistas por acreditarem que ameaçava proibição da ameaça ou uso da força.
a independência e o caráter científico do A constituição medieval também ofe-
direito internacional. Para Lauterpacht, rece elementos que estão contidos na
contudo, há uma norma consuedutinária idéia de constitucionalização do direito
– hoje positivada no art. 38 do Estatuto da internacional. O principal deles é a não
CIJ –, confirmada na época pela prática dos equivalência da constituição a uma única
tribunais, segundo a qual princípios gerais lei, mas a uma pluralidade de regras e pac-
do direito, justiça e eqüidade são, ao lado tos. No direito internacional, como vimos,
dos tratados e do costume, vinculantes a despeito de alguns autores identificarem
sobre os Estados. Tais fontes são, em sua sua constituição exclusivamente na Carta
grande maioria, idênticas a institutos do da ONU, a maioria dos autores a entende
direito interno (Cf. LAUTERPACHT, 1970, como um conjunto de normas imperativas
p. 297-306). que podem, ou não, ser encontradas na
A partir da primeira metade do século Carta. Há normas constitucionais que se-
XX, com o surgimento da Liga das Nações, riam, a exemplo da constituição medieval,
a tendência de se utilizarem estruturas típi- costumeiras, isto é, decorrentes de uma
cas de direito interno não se limitou a ins- prática reiterada pelos Estados considerada
titutos específicos de direito internacional obrigatória (opinio juris). Há autores que en-
como aqueles estudados por Lauterpacht, tendem que só uma norma costumeira pode
mas incluiu projetos para a construção da adquirir a qualidade de constitucional.
ordem internacional (Cf. GALINDO, 2006, Segundo Brownlie (1998, p. 513), para uma
p. 196-197). Como visto, os próprios debates norma ser considerada jus cogens, portanto
que levaram ao surgimento da Liga foram constitucional, ela deve ser, antes de tudo,
marcados por analogias domésticas. Faz-se consuetudinária.
necessário, pois, determinar o que se quer É a constituição moderna a que oferece
dizer quando se utiliza a analogia consti- mais elementos para que se possa entender
tucional no direito internacional. Recorre- o significado de uma constitucionalização
remos, para isso, aos valores e conceitos do direito internacional. Em primeiro lugar,
desenvolvidos pelo constitucionalismo surge a idéia de núcleo rígido e inalterável
nacional em seus distintos momentos na inerente à constituição. Em segundo lugar,
história. no ambiente pós-revolucionário, surgem as
Quando nos referimos à constituciona- idéias de limite do poder e de garantia de
lização do direito internacional, há poucos direitos fundamentais.
elementos oriundos da constituição dos No direito internacional, a existência
antigos. A idéia de constituição na socieda- de núcleo rígido e inalterável de normas
de grega não era um conceito jurídico, mas implicaria a existência de hierarquia entre
político. O principal legado da Antigüidade obrigações, por conseguinte, uma ordem
foi a discussão sobre as formas de regime jurídica. Normas constitucionais, contidas
político, seus desvios e os cuidados a tomar nesse núcleo, seriam indisponíveis pelos
para evitá-los. O que se assemelha ao atual Estados, inegociáveis. A rigidez de nor-
debate sobre a constitucionalização do mas fundamentais é elemento essencial da
direito internacional é o ideal a que alme- constitucionalização do direito internacio-
javam, a ser atingido pela constituição: a nal (Cf. SCHILLING, 2005)13. O reconhe-
eunomia, entendida como a boa ordem da 13
Para o autor, os outros dois elementos são a in-
coletividade mediante a resolução pacífica ternacionalização de direitos fundamentais e a genera-
das controvérsias. Quiçá se possa, a partir lização de normas fundamentais, isto é, sua aplicação
desse ideal, concluir que a principal norma no sistema jurídico internacional como um todo.

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cimento de normas jus cogens, positivado tade do século XX, a personalidade jurídica
na Convenção de Viena (1969), equivale a internacional reconhecida pelos fundadores
reconhecer a rigidez de certas normas no do jus gentium do século XVI. O indivíduo
direito internacional, que desfrutam de se emancipa do próprio Estado quando
hierarquia mais elevada do que normas de tem negado direito fundamental reconhe-
tratados ou consuetudinárias. A principal cido por convenções internacionais para
conseqüência é que a norma jus cogens não pleiteá-lo perante tribunais internacionais.
pode ser derrogada pelos Estados nem por Nos sistemas interamericano e europeu de
tratados nem por costumes com igual força proteção dos direitos humanos, o indiví-
normativa. Além disso, podem ter efeito duo, além de personalidade jurídica, tem
no ordenamento jurídico doméstico sobre capacidade processual plena (locus standi
normas que violem um jus cogens14. in judicio). Nesse contexto, a constitucio-
As idéias do constitucionalismo mo- nalização do direito internacional significa
derno relativas à limitação do poder são que esse direito, a exemplo do direito cons-
de difícil equivalência no debate sobre a titucional, tem como finalidade, cada vez
constitucionalização do direito internacio- mais, a garantia de direitos fundamentais
nal. No plano nacional, elas dizem respeito (Cf. TRINDADE, 2007, p. 151-171).
à diferenciação funcional dos órgãos do Es- Pode-se dizer, portanto, que a consti-
tado e dos controles a serem exercidos entre tucionalização do direito internacional é
eles. No plano internacional, a limitação do a reprodução de conceitos do constitucio-
poder pode ser associada a discussões rela- nalismo nacional no direito internacional.
tivas ao controle da legalidade dos atos do Neste trabalho, procuramos identificar
Conselho de Segurança das Nações Unidas. idéias desse constitucionalismo e sua equi-
A esse respeito, não apenas são divergentes valência no direito internacional. Se uma
as posições doutrinárias, mas também as constituição é fruto da contemplação de
decisões judiciais sobre o tema. Enquanto uma sociedade sobre si mesma num dado
a CIJ recusou-se a exercer tal controle no espaço e tempo, ou seja, é a “personalida-
caso Lockerbie (1992), o Tribunal Penal Inter- de” de uma sociedade (ALLOT, 1990, p.
nacional ad hoc para a ex-Iugoslávia (ICTY) 133), a sociedade – ou comunidade – inter-
exerceu tal controle ao declarar a possibili- nacional pode valer-se das centenas de anos
dade de o Conselho criar tribunais penais de debate constitucional em sociedades
ad hoc, em exceção preliminar no caso Tádic nacionais para eleger valores a serem uni-
(1995) (Cf. BORE, 2006, p.827-860). versalizados e retirados da disponibilidade
Já a idéia de garantia de direitos equiva- dos Estados.
le, no debate sobre a constitucionalização
do direito internacional, à emergência da
proteção internacional dos direitos huma-
nos. O indivíduo, conceito intimamente Referências
vinculado ao constitucionalismo moderno
e ausente das constituições medieval e dos ALLOTT, Philip. Eunomia: new order for a new world.
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antigos, recuperou, a partir da segunda me-
PINTO, Cristiano Paixão Araújo. A reação norte-ame-
14
“O fato de a tortura ser proibida por uma norma ricana aos atentados de 11 de setembro de 2001 e seu
peremptória de direito internacional tem efeitos nos impacto no constitucionalismo contemporâneo: um
níveis inter-estatal e individual. No nível inter-estatal, estudo a partir da teoria da diferenciação do direito.
serve para deslegitimar internacionalmente qualquer 2004. ?f. Tese (Doutorado)—Universidade Federal de
ato legislativo, administrativo ou judicial que autorize Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004.
a tortura” (International Criminal Tribunal for the
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