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referência John Ruskin.

Selvatiqueza (excerto de
A Natureza do Gótico)1

John Ruskin

Tradução: José Tavares Correia de Lira

Arquiteto, professor doutor na Faculdade de Arquitetura e Urba-


nismo da USP, Rua do Lago 876, CEP 05508-900,
São Paulo, SP, (11) 3091-4553, jtlira@sc.usp.br

Revisão: Fábio Lopes Souza Santos

Arquiteto, professor doutor do Departamento de Arquitetura e


Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos, Avenida Tra-
balhador Sancarlense, 400, CEP 13566590, São Carlos, SP,
(16) 3373-9312, sotosantos@uol.com.br

§ VII. Não estou certo de quando a palavra “Gótico”


foi pela primeira vez aplicada como termo genérico
o epíteto era falso. Corretamente compreendida,
a palavra não carrega qualquer reprovação, antes
à arquitetura do Norte. Entretanto, presumo que ao contrário, sugere uma verdade profunda que o
1
Savageness , no original, qualquer que tenha sido o momento em que pela instinto humano reconhece, quase inconscien-
assim como savage e sava- primeira vez foi usada, esta palavra implicava temente. É verdade, grande e profunda verdade,
gery , aqui traduzidos por
Selvagem e Selvageria, per- reprovação e exprimia o caráter bárbaro das nações que a arquitetura do Norte é rude e selvagem; mas
tence a uma família semân- entre as quais teria surgido aquela arquitetura. não é verdade que, por esta razão, devamos condená-
tica muito cara a Ruskin: Wild,
Wildness, Fierce , Ferocity , Jamais significou que elas literalmente descendiam la ou desprezá-la. Longe disso, creio estar precisa-
Rude, Rudeness, Brute , dos Godos, menos ainda que sua arquitetura havia mente nesse caráter o motivo pelo qual ela mereça
Brutality, Rough, Roughness,
Rustic, Uncouth, Ungainly , sido originalmente inventada por eles. Indicava, a nossa mais profunda reverência.
são termos nem sempre re- no entanto, que aquelas nações e suas construções
feridos diretamente ao gótico
ou ao temperamento huma- exibiam conjuntamente tal grau de austeridade e
no, mas a um aspecto corre- rudeza que, em contraposição ao caráter das nações
lato da paisagem, condições
atmosféricas ou à atitude de meridionais e orientais, pareciam perpetuamente §VIII. Os mapas do mundo traçados pela ciência
um animal, aqui respecti- refletir o contraste entre Godos e Romanos em moderna jogaram em um espaço estreito a expressão
vamente traduzidos por Bra-
vo, Bravura, Feroz, Fero- seu primeiro encontro. E quando este romano, de uma vasta soma de conhecimentos, mas eu jamais
cidade, Rude, Rudeza, Bruto, abatido pela magna impotência de sua luxúria e encontrei um que fosse tão habilmente apresentado
Brutalidade, Áspero, Aspe-
reza, Rústico, Inculto, A- pela insolência de sua culpa, tornou-se o modelo que permitisse ao observador imaginar o contraste
greste. A forma substantiva de imitação da Europa civilizada ao final da assim físico que existe entre os países do Norte e do Sul.
Selvatiqueza é uma palavra
corrente no português do chamada Idade das Trevas, a palavra Gótico tornou- Sabemos as diferenças em detalhe, mas não temos
século XIX. Segundo Candido se um termo de absoluto desprezo e não isento de aquele grande golpe de vista que nos permitise
de Figueiredo e Caldas
Aulete, Selvatiqueza é o mes- aversão. Graças à diligência dos antiquários e percebê-las em seu conjunto. Sabemos que gen-
mo que Selvajaria, “qualidade arquitetos do século atual, contudo, a arquitetura cianas crescem nos Alpes e oliveiras nos Apeninos,
do que é selvagem; bárbaro.
(Fig) aspecto, maneiras sel- gótica foi definitivamente resgatada desse desprezo mas não concebemos bem aquele mosaico variegado
vagens; rusticidade; gros- e talvez alguns de nós, admirados com a magnífica da superfície terrestre que um pássaro enxerga em
seria”; o advérbio Selvatica-
mente, em sentido figurado, ciência de sua estrutura e a sacralidade de sua sua migração; aquela diferença entre os distritos
querendo dizer, “agreste- expressão, possam desejar que o antigo termo de da genciana e os da oliveira que a cegonha e a
mente, grosseiramente”
(Figueiredo, C. Novo Diccioná- reprovação seja retirado e algum outro, de inconteste andorinha enxergam ao longe enquanto se inclinam
rio da Língua Portuguesa , honradez, adotado em seu lugar. Não há qualquer sobre o siroco. Ensaiemos por um momento elevar-
Lisboa, Livraria Clássica
Editora, 1913, Vol. II, p.628; possibilidade, nem tampouco necessidade de uma nos acima do nível de seu vôo e imaginar-nos o
Aulete, C., Diccionario Con- tal substituição. Empregado como termo de desdém, Mediterrâneo estendendo-se sob nós como um

r sco 4 2[2006 revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo programa de pós-graduação do departamento de arquitetura e urbanismo eesc-usp 67
John Ruskin. Selvatiqueza (excerto de A Natureza do Gótico)

temporaneo da Lingua Portu- lago irregular e, dormindo ao sol, todos os seus cadeza, brilho de cor e rapidez de movimento com
gueza, Lisboa, Imprensa Na-
cional, 1881, p.1624). Em Os antigos promontórios. Aqui e ali um trovão amea- a força regelada, o couro peludo e a plumagem
Sertões de Euclides da Cunha çador, uma mancha cinza de tempestade movendo- sombria das tribos do Norte: contraste-se o cavalo
(1902), o aspecto intratável
e árido da terra é confrontado se sobre o campo abrasador. Aqui e ali uma espiral árabe com o Shetland, o tigre e o leopardo com o
à ameaça iminente do jagun- de branca fumaça vulcânica cercada de seu círculo lobo e o urso, o antílope com o alce, a ave do
ço feroz: “Deslembravam-se
do inimigo. A ferocidade do de cinzas. Mas, em sua maior parte, uma grande paraíso com a águia marinha. E então, reconhecendo
jagunço era balanceada pela tranqüilidade de luz. Síria e Grécia, Itália e Espanha, servilmente as grandes leis que regem comple-
selvatiqueza da terra.” ( Os
Sertões, 29 ª ed., Rio de Ja- deitadas no mar azul como pedaços de um pavi- tamente a terra e tudo o que ela sustém, não
neiro, Francisco Alves; Bra- mento dourado, e, à medida que nos curvamos condenemos mas nos regozijemos com a expressão
sília, INL, 1979, p.318.) Selvá-
tico, silvático ou silvestre, sobre elas, gravadas no relevo saliente das cadeias pelo homem de sua própria acomodação às condi-
provêm do latim silva , matas, de montanhas, reluzem suavemente com seus jardins ções das terras que lhe deram nascimento. Olhemos
floresta, donde silvãticus , das
matas, selvagem, alongando- em terraços e flores fortemente incensadas, entre para ele com reverência enquanto dispõe, lado a
se àquilo que é inculto, massas misturadas de loureiros, laranjeiras e pal- lado, gemas resplandecentes e aplaina em suave
sáfaro, indomado. Ainda que
em Ruskin o termo se aplique meiras plumosas, que amortecem com as suas escultura os pilares de jaspe que deverão refletir o
a uma categoria moral da sombras verde-acinzentadas o ardor dos rochedos brilho incessante do sol que se eleva em um céu
arte, que legitima o sacrifício
da perfeição em nome da de mármore e as bordas oblíquas de pórfiro sob a desanuviado: porém, com não menos reverência,
beleza e da verdade, ele não areia cintilante. E então avancemos rumo ao Norte, nele confiemos quando, com áspera força e golpes
é estranho ao registro da
natureza ali onde, dotada de até que vejamos as cores do Oriente gradualmente atropelados, infligir inculta animação às rochas que
espiritualidade ou compreen- transmutarem-se em um vasto cinturão de verde arrancou dentre o musgo dos pântanos, e erguer
dida como base material de
determinações, freqüente- pluvioso - onde as pastagens da Suiça, os vales de contra o céu escurecido a pilha de contrafortes de
mente permite a analogia com álamo da França e as florestas negras do Danúbio ferro e paredes escarpadas, trabalho instintivo de
as categorias da cultura.
Quanto ao termo wilderness, e dos Cárpatos estendem-se das embocaduras do uma imaginação tão selvagem e indócil quanto o
também constante do texto, Loire às do Volga - entrevisto pelas fendas dos mar do Norte; criações de forma agreste e rígidas
traduzimo-lo por “deserto”,
sertão ou região erma e turbilhões cinzentos de nuvens carregadas, e pela hastes, mas cheias de vida ferina, ferozes como o
desabitada (NT). névoa escamada dos regatos que serpenteiam as bater dos ventos e mutáveis como as nuvens que
pastagens. E, então, ainda mais ao Norte, veremos as sombreiam.
a terra elevar-se em massas poderosas de rochedos
plúmbeos e áreas pantanosas ladeadas por urzais, Não há, eu repito, qualquer degradação, qualquer
a guarnecerem com grande desperdício de púrpura reprovação nisso, mas toda dignidade e honradez.
sombria aquele cinturão de floresta e campo, e se E erraríamos severamente se recusássemos reco-
despedaçar em ilhas terríveis e irregulares no meio nhecer como um caractere essencial da arquitetura
dos mares do Norte, castigadas pela tempestade, existente no Norte, ou se não admitíssemos como
2
O primeiro contato de Ruskin resfriadas pelos flocos de gelo ao vento e ator- um caractere desejável ao que ela pode vir a ser,
com os Alpes data de 1833.
mentadas pela pulsação furiosa de êmulas marés, esta bravura de pensamento e aspereza de execução,
A partir de 1841, retornará
anualmente à Suiça para até que sumam as raízes das últimas florestas entre este aspecto de montana irmandade entre a catedral
longas estadias. Em 1869,
os barrancos de colina e a fome do vento setentrional e os Alpes2; esta magnificência de obstinação e
eleito Professor of Fine Arts
em Oxford, não apenas pro- morda os seus cumes até a aridez; e, finalmente, poder, aplicados com tanta energia somente porque
nunciará um conjunto de
por entre o crepúsculo polar, suas paredes de gelo, o toque delicado dos dedos deixou-se resfriar pelo
palestras sobre a paisagem e
a forma das montanhas, mas indestrutíveis como o ferro, ergam-se mortalmente vento glacial e o olho, ofuscar pela névoa dos
realizará alguns projetos de
sobre nós com seus brancos dentes. E tendo uma pântanos, ou cegar pelo granizo; esta clara mani-
prevenção às inundações na
região alpina. Cf. Jaudel, P., vez atravessado em pensamento essa gradação de festação do espírito forte de homens que não
La Pensée Sociale de John
cintas de íris da Terra em toda a sua vastidão material, podem colher da terra safras abundantes, nem se
Ruskin, Paris, Librairie Marcel
Didier, 1973 (NT). desçamos mais para perto dela e observemos a aquecer com a boa e desejada luz do sol, mas devem
mudança paralela no círculo da vida animal. A partir a rocha por pão e rachar a floresta por fogo,
multidão de criaturas velozes e brilhantes que revelando, até mesmo no que fazem para o seu
cintilam nos ares e no mar ou trilham as areias das deleite, alguns dos mais duros hábitos do braço e
zonas meridionais: zebras listradas e leopardos do coração, neles desenvolvidos enquanto agitam
malhados, serpentes brilhantes e pássaros ataviados o machado e impelem o arado.
de púrpura e escarlate. Contrastemos a sua deli-

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John Ruskin. Selvatiqueza (excerto de A Natureza do Gótico)

3
Precisamente nos parágrafos §IX. Se, entretanto, a selvatiqueza da arquitetura a sua imperfeição. Em ambos os sistemas, o traba-
13 o e 14o do capítulo XXI do
gótica, mera expressão de sua origem setentrional, lhador era um escravo5.
primeiro volume de As Pedras
de Veneza. Com efeito, no pode ser considerada de alguma maneira como
capítulo “Treatment of Orna-
ment”, Ruskin trata dos
um caractere nobre, ela possui ainda uma nobreza
modos espirituais e visuais de superior quando a consideramos não mais do ponto
expressão e arranjo dos ma-
de vista do clima, mas como sinal de um princípio §X. Mas no sistema medieval, ou especialmente
teriais da ornamentação. Os
parágrafos décimo-terceiro e religioso. cristão, de ornamento, essa escravidão é inteira-
décimo-quarto associam a
mente abolida, uma vez que a Cristandade reco-
inteligência da arquitetura
gótica em todos os seus Nos capítulos precedentes3, fiz notar que os assim nhece o valor individual de cada alma tanto nas
elementos constitutivos ao
chamados sistemas de ornamento arquitetônico pequenas como nas grandes coisas. Mas ela não
reconhecimento, pelo Cristia-
nismo, do valor de cada alma devem ser divididos em três classes: 1. O ornamento somente reconhece este valor; confessa a sua
individual. Desse modo, as
servil, no qual a execução ou o poder do trabalhador imperfeição ao conferir dignidade somente àqueles
três ordens de ornamento
ligavam-se a três graus de inferior é inteiramente submetido ao intelecto do que reconhecem o seu demérito. Esta admissão de
correspondência entre a
superior; 2. O ornamento constitucional, no qual força perdida, de natureza decaída, que o grego
mente executiva e a mente
inventiva. O primeiro ou orna- o poder inferior executivo é até certo ponto eman- ou o assírio sentiam como intensamente dolorosa
mento servil, em que esta
cipado e independente, e tem vontade própria, e tanto quanto possível recusavam, o cristão pratica
submetia inteiramente o
executivo; o segundo grau, ainda que confesse a sua inferioridade e preste diariamente e a cada hora, contemplando o fato
próprio às nações orientais
obediência a poderes mais elevados; 3. O ornamen- sem medo, como se ao final tendesse à grande
pré-cristãs, principalmente às
camíticas; enfim, o sistema to revolucionário, no qual nenhuma inferioridade glória de Deus. Por conseguinte, a cada espírito
medieval, verdadeiramente
executiva é admitida. Devo aqui explicar de maneira que a Cristandade intima ao seu serviço, a exortação
cristão, no qual a mente do
trabalhador inferior era um tanto quanto mais demorada a natureza destas é: “Faça o que puder e confesse com franqueza o
reconhecida e tinha total
divisões. que for incapaz de fazer! Não deixe o seu esforço
liberdade de ação já que
sempre guiada e enobrecida ser amortecido pelo medo do fracasso, nem silen-
por uma concepção mental
As principais escolas do ornamento servil são a ciada a sua confissão pelo medo da vergonha!” É
(NT).
4
A expressão Figure Sculptu-
Grega, a Assíria e a Egípcia, mas as suas formas de talvez o aspecto mais admirável das escolas góticas
re é recorrente no original. servidão são de tipos diferentes. Na Grécia, o artesão- de arquitetura que elas assim recebam os resultados
Para Ruskin, compreende
mestre era muito mais adiantado em conhecimento do labor6 das mentes inferiores e, dos fragmentos
tanto a estatuária quanto o
relevo de figuras. Não se e em poder que o assírio ou o egípcio. Nem ele, cuja imperfeição delata em cada toque, ergam
trata aqui, é bom salientar,
de uma oposição entre o
nem aqueles para quem trabalhava, podiam supor- indulgentemente um todo majestoso e inimputável.
figurativo e o abstrato, mas tar qualquer aparência de imperfeição, e, portanto,
entre o uso escultórico de
o ornamento que entregava à execução de seus
figuras e o campo estilizado
do ornamento, seja geomé- subordinados era composto de meras formas
trico seja orgânico (NT).
geométricas – bolas, sulcos e folhagem perfeita- §XI. Contudo, a mentalidade inglesa moderna tem
5
O terceiro (sic) tipo de orna-
mente simétricas –, que podiam ser executadas com muito em comum com a grega no fato de desejarem
mento, o Renascentista, é
aquele no qual o detalhe absoluta precisão em régua e linha, e, quando ardentemente que todas as coisas sejam totalmente
inferior torna-se principal, o
terminadas, eram ao seu modo tão perfeitas quanto bem acabadas ou que atinjam uma perfeição
executor de cada porção
menor sendo chamado a as figuras esculpidas4 pelo próprio mestre. Ao compatível com a sua natureza. Tal caráter em
exibir habilidade e possuir
contrário, o assírio e o egípcio, em tudo menos abstrato é nobre, mas se torna ignóbil quando
conhecimento tão amplo
quanto o do mestre do dese- conscientes da forma acurada, contentavam-se em nos leva a esquecer as dignidades relativas desta
nho; e no esforço de dotá-lo
permitir que a suas figuras esculpidas fossem natureza e a preferir a perfeição da natureza menor
dessa habilidade e conhe-
cimento, o seu próprio poder executadas por trabalhadores inferiores; rebaixavam à imperfeição da mais elevada, sem considerar que,
original se abate e a cons-
o modo de tratá-la a um tal nível que qualquer a julgarmos por tal critério, os animais brutos, ditos
trução inteira se torna uma
exibição enfadonha de bem trabalhador poderia atingir e então o treinavam inferiores ao homem, a ele seriam preferíveis, já
educada imbecilidade. Quan-
conforme uma disciplina tão rígida que não haveria que mais perfeitos em suas funções e em sua
do chegarmos a examinar as
escolas renascentistas, have- qualquer chance dele cair abaixo do nível indicado. espécie. Assim, também nos trabalhos humanos,
remos de investigar inteira-
O grego não deu ao trabalhador inferior nada que aqueles que são mais perfeitos em sua espécie são
mente a natureza dessa for-
ma de erro (NA). ele não pudesse executar com perfeição. O assírio sempre inferiores aos que, por sua natureza se
6
Ruskin aqui recorre à palavra lhe forneceu temas que ele poderia executar apenas deixam expor a um maior número de defeitos e
Labour e não a Work. Dada
a importância que Ruskin
imperfeitamente, mas fixou um padrão legal para falhas. Pois quanto mais fina a natureza, mais

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John Ruskin. Selvatiqueza (excerto de A Natureza do Gótico)

concede ao léxico da econo- transparecerão os seus defeitos; e é uma lei do sua própria conta, ele simplesmente irá parar, a
mia – formas da produção,
classes produtoras, instru- universo que as melhores coisas sejam aquelas que sua execução tornar-se-á hesitante, ele pensará, e
mentos e produtos - preser- mais raramente se deixam entrever em sua mais aposto que pensará errado; aposto que este ser
vamos sempre que possível a
distinção etimológica do ori- bela forma. A erva selvagem cresce forte e satis- pensante cometerá um erro no primeiro toque que
ginal, às vezes empregando fatoriamente um ano após o outro, mas o trigo, aplicar em seu trabalho. E, apesar de tudo, você
as formas “lida” ou “labuta”
sempre que o texto o pedir. conforme à sua nobre natureza, está exposto à terá feito dele um homem, pois até então era apenas
Por mais que freqüente- crueza das geadas. Por conseguinte, ainda que uma máquina, uma ferramenta animada.
mente, como aqui e desde a
antigüidade clássica, a dis- desejemos a perfeição em tudo o que vemos e
tinção seja ignorada ou con- fazemos, e por ela nos empenhemos, jamais colo-
fundida, como na referência
aqui a um “labor mental” quemos o objeto vil, em sua estreita realização,
característico da época cristã, acima do objeto mais nobre, com seu poder de §XII. E observe que nesta circunstância você terá
quando se sabe que quem
labora é o corpo, e que a progresso; nem coloquemos a minuciosa polidez que fazer uma escolha decisiva: ou bem fará da
distinção entre trabalho ma- acima dos defeitos em sua majestade; não prefiramos criatura uma ferramenta ou bem um homem, mas
nual e trabalho intelectual é
moderna; ou ainda a “resul- a vitória mesquinha à derrota honorável, nem nunca as duas coisas. Pois os homens não foram
tados” ou obras, ainda que rebaixemos o nível de nosso alvo, que mais certa- feitos para trabalhar com a mesma acuidade das
erguidos imperfeita e
fragmentariamente, “a sta- mente haveremos de desfrutar o prazer da realização. ferramentas nem para serem perfeitos e precisos
tlely and unaccusable who- Mas, acima de tudo, em nossos tratos com as almas em todas as suas ações. Se exigir deles tal precisão
le”. Seguimos as sugestões
do próprio Ruskin, que em de outros homens, por excesso de severidade e e pedir que seus dedos meçam graus como as rodas
Unto This Last (1862), estreita precaução, devemos ter cuidado para não de uma cremalheira, e seus braços tracem curvas
estabelece uma distinção
importante: “ labour is the sufocar aqueles esforços que de outro modo pode- qual compassos, você terá que desumanizá-los. Toda
contest of the life of man with riam conduzir a um nobre desfecho, e, mais ainda, a energia de seus espíritos terá que ser empregada
an opposite”. (§70); e que em
Munera Pulveris (1863), para não recusar admiração pelas coisas excelentes para deles fazer roda de engrenagem ou compasso.
acrescenta: “literally, it is the apenas porque misturadas com rústicos defeitos. Toda a sua atenção, todo o seu vigor terão que ser
quantity of ‘lapse’, loss, or
failure of human life, caused Assim, no feitio e natureza do mais rude ou simples destinados à realização de um ato inferior. O olho
by any effort. It is usually dos homens que empregamos na lida manual, há de sua alma haverá que se curvar à ponta de seu
confused with effort itself or
the application of power certas aptidões para coisas melhores: no pior deles dedo; a força da alma devendo animar todos os
(opera); but there is much há uma imaginação preguiçosa, uma capacidade nervos invisíveis que levam aquele dedo, dez horas
effort which is merely a mode
of recreation, or of pleasure entorpecida de emoção, movimentos vacilantes de por dia, a não romper com a precisão de aço; e,
(...) Labour is the suffering in pensamento, e, na maior parte dos casos, é de assim, minadas a alma e a visão, o ser humano
effort (...). In brief, it is that
quantity of our toil which we nossa inteira responsabilidade que sejam pregui- inteiro ter-se-á perdido ao final, tornando-se –
die in” (§59) Que em Fors çosos e entorpecidos. Eles não poderão, contudo, naquilo que concerne ao seu trabalho intelectual
Clavigera , afirma que os
“workmen” são aqueles que ser fortalecidos a não ser que nos contentemos nesse mundo – comparável a um monte de serragem.
trabalham ao mesmo tempo em acolhê-los em sua debilidade e, em sua im- Ele é apenas salvo pelo Coração, que não poderá
com a cabeça e as mãos, e
os “labourers”, os que não perfeição, honrá-los e estimá-los acima dos melhores ser transformado em roda de engrenagem nem
se utilizam senão de suas e mais hábeis trabalhadores manuais. E é isso o compasso, mas depois da décima hora da jornada,
mãos (11 §6). Segundo
Hannah Arendt, “labor, como que devemos fazer com todos os que entre nós dilatar-se-á na humanidade de seu lar. Por outro
substantivo, jamais designa o labutam: procurar a sua parte pensante e fazê-la lado, se do trabalhador quiser fazer um homem,
produto final, o resultado da
ação de laborar; permanece desabrochar não importando o que se perca com você terá que renunciar a dele fazer uma ferramenta.
como substantivo verbal, uma isso, nem com que faltas e erros sejamos obrigados Que ele apenas comece a imaginar e a pensar, e a
espécie de gerúndio. Por outro
lado, é da palavra corres- a arcar. Pois o que de melhor há neles não poderá tentar fazer qualquer coisa digna de ser feita e a
pondente a trabalho [Work] se manifestar senão acompanhado de muitas falhas. sua precisão de máquina perder-se-á imediatamente.
que deriva o nome do próprio
produto, mesmo nos casos em Que se entenda isso claramente: pode-se ensinar E toda a sua aspereza, toda a sua lentidão, toda a
que o uso corrente seguiu um homem a traçar uma linha reta e a cortá-la, a sua incapacidade emergirá. Vergonha após vergo-
tão de perto a evolução
moderna que a forma verbal lançar uma linha curva e cinzelá-la e a copiar e nha, malogro após malogro, pausa após pausa:
da palavra “trabalho” se cinzelar, com admirável rapidez e perfeita precisão, também daí surgirá sua majestade; a sua altura,
tornou praticamente obso-
leta. É o caso do francês um número infinito de linhas e formas, a partir de apenas a apreciaremos quando virmos as nuvens
ouvrer e do alemão werken. modelos dados, e você achará o seu trabalho pousarem sobre ela; claras ou escuras que sejam
Em ambas estas línguas,
diferentemente do uso cor- perfeito em sua espécie. Mas se pedir-lhe que pense estas nuvens, atrás delas, no meio delas, haverá
rente do inglês labour , as a respeito de qualquer uma dessas formas, que transfiguração.
palavras travailler e arbeiten
quase perderam seu signi- considere se não poderá inventar uma melhor por

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John Ruskin. Selvatiqueza (excerto de A Natureza do Gótico)

ficado original de dor e atri- §XIII. E agora, leitor, olhe ao redor deste seu quarto §XV. Não creia que falo de maneira arrebatada ou
bulação.” (Arendt, H., A
Condição Humana , 5 ª ed.,
inglês de que você tão freqüentemente se orgulhou, extravagante. É exatamente essa degradação do
São Paulo, Forense, 1991, tão boa e sólida a sua execução, tão bem acabados operador em uma máquina8 que, mais do que
p.91). (NT)
os seus ornamentos! Examine mais uma vez todos qualquer outro mal de nosso tempo, está levando
7
Na tradução francesa de
Mathilde Crémieux, a sen-
estes ornatos precisos, estes polimentos perfeitos, em toda parte a massa das nações a uma luta vã,
tença é “un signe d´esclavage estas combinações impecáveis de madeira seca e incoerente e destrutiva em favor de uma liberdade
plus amer et plus dégradant
que celui de l´Américain
aço temperado! Tantas as vezes que você deles cuja natureza são incapazes de se explicar. O clamor
fustigé ou de l´Ilote grec”, cf. exultou e pensou como era grande a Inglaterra universal que se levanta contra a riqueza e a hierar-
La Nature du Gothique, Paris,
Aillaud, 1907, p.36 (NT).
porque o seu trabalho mais ligeiro era desem- quia não é extraído das pressões da fome ou das
8
“ This degradation of the
penhado com tanto esmero. Ai de nós! Lidas mazelas do orgulho ferido. Uma coisa e outra têm
operative into a machine”, a corretamente, tais perfeições assinalam em nossa muita força e sempre tiveram em todas as épocas,
frase ressoa o ódio ruskiniano
perante as invenções diabó-
Inglaterra uma escravidão mil vezes mais amarga e mas jamais os alicerces da sociedade estiveram tão
licas do maquinismo. Para degradante que a do africano açoitado ou do helota abalados como no presente. Não é que os homens
Ruskin, além de usurpar os
direitos da mão, uma má-
grego7. Os homens podem ser espancados, acorren- estejam mal alimentados, mas que não encontrem
quina parece guiar-se por si tados, atormentados, emparelhados como gado, qualquer prazer no trabalho9 que lhes assegura o
mesma, impondo também ao
pensamento as suas próprias
trucidados como moscas de verão e ainda assim ganha-pão e, por conseguinte, vêem na riqueza o
determinações (NT). permanecerem num sentido, e no melhor dos seu único meio de prazer. Não é que os homens
9
Segundo Philippe Jaudel, A sentidos, livres. Mas neles aplainar a sua alma, crestar sintam-se atingidos pelo desprezo das classes
Natureza do Gótico desen-
volve a seguinte frase de As
e decepar em frágeis árvores decotadas os galhos superiores, mas que não possam suportar o seu
Sete Lâmpadas : “Creio que sorventes de sua inteligência humana, fazer de sua próprio desprezo; sentem que o tipo de labor ao
a verdadeira questão a se
colocar com relação a todo
carne e pele, que após o trabalho dos vermes teriam qual estão condenados é verdadeiramente degra-
ornamento é simplesmente com Deus, um punhado de tiras de couro para dante e os torna alguma coisa inferior aos homens.
esta: foi feito com alegria?
O entalhador era feliz ao
amarrar o maquinário – é verdadeiramente agir Jamais as classes superiores tiveram tanta soli-
executá-lo?” (Lamp of Life, como um capataz. E deve ter havido mais liberdade dariedade ou caridade para com as classes inferiores
§24). O movimento de sua
escrita doravante e cada vez
na Inglaterra, ainda que as mais leves palavras de quanto hoje e, no entanto, nunca foram tão odiadas
mais se deslocaria da arte seus senhores feudais valessem a vida de homens, por elas: porque antigamente a separação entre o
para o artista, e deste para a
sociedade, esfera em que uma ainda que o sangue do agricultor atormentado nobre e o pobre era apenas um muro elevado pela
e outro são produzidos. caísse nos sulcos de seus campos arados, que no lei; agora é uma verdadeira diferença de nível, um
Jaudel, P., La Pensée, op. cit.,
p.69 (NT).
tempo em que a animação das multidões é despa- precipício entre os terrenos mais altos e os mais
10
Tradução de “Go, and he chada como combustível para alimentar a fumaça baixos no campo da humanidade com um ar
goeth, and to another, Come, das fábricas e sua força diariamente desperdiçada pestilencial lá no seu fundo. Não estou certo se
and he cometh”. Ruskin
remete-se ao diálogo entre o em fina tecelagem ou torturada para reproduzir a jamais chegará o dia em que a natureza da justa
centurião e seu servo, do exatidão absoluta de uma linha. liberdade será compreendida por todos, nem
Evangelho de Mateus, VIII, 9
(NT). Toda citação bíblica quando os homens verão que obedecer a outro
seguiu a tradução da Vulgata, homem, trabalhar para ele, reverenciá-lo em sua
anotada pelo Pe. Matos
Soares, 25 ª ed., São Paulo, situação, não é escravidão. É com freqüência o melhor
Paulinas, 1970 (NT). §XIV. E, de outra parte, retorne à contemplação da tipo de liberdade – a liberdade que exclui a
11
Talvez o autor se refira a fachada da velha catedral que tantas vezes lhe fez preocupação. O homem que diz a outro, Vai, e ele
Inverness, burgo ao norte da
Escócia, capital das High- sorrir da espantosa ignorância de seus velhos vai, e a um terceiro, Venha, e ele vem10, tem na
lands, nos arredores de escultores: examine uma vez mais a feiura daqueles maior parte dos casos mais senso de restrição e
Perthshire, onde se passa a
novela de Walter Scott (NT). diabretes e monstros informes, aquelas estátuas dificuldade que o homem que o obedece. Os seus
12
Ver o prefácio de “Fair Maid austeras, rígidas e sem anatomia; mas não zombe movimentos são impedidos pela carga em seus
of Perth” (NA). A novela de delas porque são sinais da vida e da liberdade de ombros; os movimentos do outro, pelo bridão em
Scott (1771-1832), The Fair
Maid of Perth, or St. cada trabalhador que golpeou aquelas pedras; de seus lábios: se não há maneira de aliviarmos a carga;
Valentine´s Day , publicada uma liberdade de pensamento, em tal grau na escala não precisamos sofrer com o bridão se não o
pela primeira vez em 1828, tira
o seu nome à jovem donzela dos seres, que nenhuma lei, nenhum título, ne- mordermos. Prestar reverência a um outro, colocar-
Catharine Glover, afamada nhuma caridade seria capaz de assegurar, mas que se inteiramente ao seu dispor não é escravidão; é
pela rara beleza e cortejada
por todos os jovens galantes deveria ser o objetivo primeiro da Europa atual com freqüência o modo mais nobre de se viver
da corte real escocesa. A reconquistar para seus filhos. nesse mundo. Há, com efeito, um tipo de reverência

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John Ruskin. Selvatiqueza (excerto de A Natureza do Gótico)

estória se passa em Perth, servil, isto é, irracional ou interesseira: mas há também bom e desejável produzir muitos alfinetes em um
distrito montanhoso do norte
uma nobre reverência, razoável e amorosa; e um dia, mas se ao menos pudéssemos ver com que
da Escócia, nos anos turbu-
lentos do reinado de Robert homem nunca é tão nobre quanto ao prestar cristalina areia as suas pontas foram polidas – areia
III ao final do século XIV.
Começa pela tentativa fra-
reverência desta maneira. Não, ainda que o sen- tirada da alma humana, que antes deveria ser
cassada do duque de timento ultrapasse os limites da razão e se torne examinada à lupa para que pudéssemos discernir
Rothsay, filho do rei, de in-
amoroso, o homem é elevado por este tipo de o que ela é – pensaríamos que nisso também deve
vadir a casa do honesto bur-
gense Simon Glover para reverência. Quem, na realidade, mais carregava ter havido alguma perda. O grande protesto que
sequestrar a sua única filha,
e termina na carnificina que
consigo a natureza do servo? O camponês irlandês, se levanta de todas as nossas cidades fabris, mas
afoga nobres e pobres em um que ainda ontem esperava por seu senhorio, deitado alto que o estouro de suas caldeiras, está inteira-
mesmo mar de sangue. O
com o focinho de seu mosquete atravessado pela mente empenhado nisto: que ali tudo fabricamos,
interesse de Ruskin pela no-
vela de Scott é coerente com sebe despedaçada; ou aquele velho servo montanhês exceto homens; alvejamos o algodão, temperamos
a causa pre-rafaelita, assu-
mida por ele a partir de 1851,
que há duzentos anos, em Inverkeithing11, abriu o aço, refinamos o açúcar e modelamos a louça;
e igualmente inclinada para mão de sua vida e da vida de seus sete filhos em mas nunca consideramos as vantagens de dar brilho,
a exploração dos contos e
nome do seu mestre?12 temperar, refinar ou modelar um só espírito vivo.
baladas medievais, mas a sua
referência não é tanto ao E todo o mal de que nos adverte aquele clamor só
culto trágico do fair sex em
Enquanto um deles tombava, instava o seu irmão pode ser enfrentado de uma maneira: nem pelo
tempo de ascensão feminina
por concubinato. O que pare- à morte: “Mais um para Heitor!”13 E por esta razão, ensinamento nem pela pregação, porque ensinar
ce chamar-lhe a atenção
em todas as épocas e em todas as nações, os homens os homens não é senão exibir-lhes a própria miséria,
nesse momento é o desprezo
do cidadão comum pelos prestaram-se reverência e se sacrificaram uns pelos e predicar-lhes, se não fizermos nada mais do que
valores da nobreza feudal que
outros, não apenas sem reclamos, mas com alegria; predicar, é escárnio. O mal só poderá ser enfrentado
tanto contemplam a prepo-
tência do senhor e a traição e a fome, o perigo e a espada, todo dano e a pelo correto entendimento, por parte de todas as
do vassalo quanto justificam
vergonha foram voluntariamente suportados em classes, dos tipos de labor que são bons para o
a revolta do reles armeiro ou
artesão contra a torpeza do nome dos mestres e dos reis. Pois todas estas dádivas homem, capazes de elevá-lo e torná-lo feliz; pelo
mestre de cavalaria do rei,
do coração enobreciam os homens que as davam firme sacrifício daquela comodidade, beleza e
ainda que em nome da fide-
lidade ao seu reinado. Ao tanto quanto aqueles que as recebiam; a natureza economia que apenas se obtém em troca da de-
meu ver, é a esse contencioso
o ditava e Deus recompensava o sacrifício. Mas gradação do trabalhador; e pela exigência, com
que se destina a citação, sem
contar que na história esco- sentir a alma humana definhar entre eles na igual firmeza, de produtos e resultados de um labor
cesa, como se diz, “ there is
ingratidão, vê-la soçobrar inteiramente em um saudável e enobrecedor.
plenty of wilderness ”. Ver
Scott, W., “The Fair Maid of abismo sem fundo, ser contabilizado em um aglo-
Perth or St. Valentine´s Day”
merado de mecanismos, numerado entre suas
in The Waverley Novels, vol.
5, London, Adam & Charles manivelas e avaliado pela quantidade de marteladas;
Black, 1892 (NT).
isto a natureza não ordena, Deus não abençoa, §XVII. Mas como, nos perguntaremos; como estes
13
“Another for Hector!”,
verso da Ilíada, de Homero.
nem tampouco a humanidade será capaz de suportar produtos serão reconhecidos e esta exigência,
Heitor, filho de Priamo, o mais por muito tempo. regulada? Facilmente, pela observação de três regras
valente dos combatentes em
simples e abrangentes:
Tróia. No romanceiro me-
dieval, é o grande herói da
Guerra, a quem se sacrificava
I. Nunca encorajar a fabricação de qualquer artigo
a própria morte (NT).
14
A expressão adotada aqui
§XVI. Nestes últimos tempos, muito temos estudado que não seja absolutamente necessário e de cuja
por Ruskin é “ division of e aperfeiçoado a grande invenção civilizada da produção a Invenção não tome parte;
labour”, que optamos em tra-
divisão do trabalho14; ocorre apenas que lhe demos
duzir por “divisão do traba-
lho” (ver nota 9 supra), dada um nome errado. Verdadeiramente falando não é II. Nunca exigir remate exato por si mesmo, mas
a ironia explicitamente dirigi-
o trabalho, mas os homens que são divididos: apenas em função de algum fim prático ou nobre;
da à ciência econômica, en-
tão muito popular na Ingla- partidos em meros segmentos de homens, de tal
terra. Desenvolvida a partir da
modo despedaçados em pequenos fragmentos e III. Nunca encorajar a imitação ou a cópia de qualquer
tradição empirista inglesa, a
Economia Política é uma res- migalhas de vida que a menor fatia de inteligência espécie, exceto em nome da preservação da memória
posta teórica de cunho liberal
remanescente em qualquer um deles não é suficiente dos grandes trabalhos.
à vasta expansão manufatu-
reira do final do século XVIII. para que produza um alfinete ou um prego; exaure-
A obra fundamental de Adam
se na produção da agulha de um alfinete ou na O segundo destes princípios é o único que emerge
Smith, A Riqueza das Nações
(1776), começa precisamente cabeça de um prego. Considera-se hoje algo de diretamente da consideração de nosso assunto

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John Ruskin. Selvatiqueza (excerto de A Natureza do Gótico)

pela observação da variedade imediato; mas explicarei também, brevemente, o emprego de pedras preciosas pode realçar-lhes o
e combinação de trabalhos
envolvidos em toda produção:
sentido e a extensão do primeiro, reservando a esplendor; e já que talhadas tendo em vista um
fonte fundamental da riqueza abordagem do terceiro para outra ocasião. nobre fim, tornam-se perfeitamente admissíveis.
das nações, a este trabalho
comum, a esta cooperação
natural que se verifica espon- I. Nunca encorajar a fabricação de nada que não
taneamente nas sociedades
humanas, Smith chama “divi-
seja necessário e de cuja produção a Invenção não
são do trabalho”. Processo tome parte; §XIX. Talvez eu devesse insistir ainda mais na
amoral no cerne das econo-
demonstração desta primeira lei por outro viés,
mias industriais, a divisão do
trabalho segundo Smith retira Por exemplo: rosários de vidro são completamente mas a nossa preocupação imediata é principalmente
a responsabilidade individual
inúteis, e não há qualquer necessidade de de- com a segunda, que prescreve nunca exigir um
do trabalhador pelo produto;
parcelando a produção, reduz senho15 ou inteligência para fazê-los. Em primeiro remate exato em uma obra que não conduza a um
o seu papel a operações
lugar, o vidro que as forma é estirado em varetas, nobre fim. Observem que não tenho considerado
específicas e repetidas, acele-
rando e tornando assim mais que são em seguida talhadas, pelas mãos do admirável a rudeza ou qualquer outra imperfeição
eficiente o processo como um
homem, em fragmentos do tamanho de contas e do Gótico senão ali onde, sem ela, é impossível
todo. Contudo, como bem
nos mostra Hannah Arendt, então arredondadas nos fornos. Os homens que obter-se algum desenho ou pensamento. Se você
a gênese do conceito moder-
cortam as varetas passam sentados todo o dia de quiser conhecer o pensamento de um homem
no passa pela distinção fisio-
crata entre trabalho produtivo trabalho, as suas mãos vibrando, perpétua e inculto e áspero, é preciso que o faça de uma forma
e trabalho improdutivo; pela
primorosamente, em compassada apatia, as contas áspera e inculta; mas de um homem educado, que
diferença entre trabalho qua-
lificado e não-qualificado, um caindo como granizo sob a sua vibração. Nem eles sem esforço é capaz de exprimir seus pensamentos
pouco mais tarde; e por últi-
nem os homens que extraem as varetas ou fundem de uma forma elegante, você deverá aceitar a
mo, sobrepondo-se a ambas,
pela divisão fundamental os fragmentos têm a menor oportunidade de usar expressão graciosa de bom grado. E receba seu
entre trabalho manual e
qualquer faculdade humana; e é por isto que cada pensamento, sem, com isso, impor silêncio ao
intelectual. O alvo imediato de
Ruskin seriam os Princípios de boa moça que adquire estes rosários de vidro camponês porque ele ignora a boa gramática ou
Economia Política (1848) de
envolve-se em um comércio de escravos bem mais você ainda não o ensinou a sua própria gramática.
John Stuart Mill, por ele
considerado o principal en- cruel que aquele que, durante tanto tempo, esfor- Gramática e refinamento são duas coisas boas, mas
saio moderno sobre o assun-
çamo-nos em abolir. antes deles é preciso assegurar-se de algo ainda
to. (NT).
melhor. Assim o é na arte: desejamos nos grandes
15
No Inglês de Ruskin, design
remete à faculdade mental da Contudo, potes e taças de vidro podem se tornar o mestres o remate delicado que eles sempre nos
“invenção” na produção
objeto de invenções primorosas; e se ao adquiri- ofereceram. Michelangelo, Leonardo, Phidias,
artística, por oposição à
representação material da los pagarmos por esta invenção, isto é pela forma Perugino, Turner, todos arrematavam as suas obras
idéia como parte de sua
bela, pela cor, pela gravação, e não apenas pelo com o mais primoroso cuidado, o que sempre
produção real, que ele viria a
explorar pouco depois em The remate de execução, estaremos prestando bom contribuiu para a inteira realização de seus nobres
Elements of Drawing (1857)
serviço à humanidade. fins. Mas homens inferiores a eles não são capazes
e The Elements of Pers-
pective (1859). Curiosamen- do mesmo acabamento, para o qual é necessário
te, temos aqui uma distinção
pleno conhecimento, e é por isso que devemos
reminiscente ao conceito
renascentista de disegno , receber os seus pensamentos da maneira como
como aquilo que está presen-
§XVIII. Assim também, no talhe de pedras pre- eles os são capazes de oferecer. Assim sendo, a
te no espírito ou que dá
visibilidade a um ato de pen- ciosas, que de ordinário requer muito pouco exer- regra a seguir é bastante simples: considere em
samento. A nossa palavra
cício das faculdades mentais: talvez algum tato e primeiro lugar a invenção e só em seguida a exe-
“desenho” também é sua
herdeira, assegura-nos o julgamento para evitar as falhas, mas nada que cução, naquilo que ela pode ajudar a invenção,
dicionário seiscentista do
solicite a inteligência. Por esta razão, qualquer isto é, sem custar ao inventor qualquer esforço
Padre Raphael Bluteau. Tanto
que o pequeno tratado Da pessoa que use jóias talhadas em função de seu doloroso, e nada além disso. Acima de tudo, não
Ciência do Desenho, escrito
valor é apenas um condutor de escravos. exija qualquer refinamento de execução ali onde o
por Francisco de Holanda em
1571, aborda precisamente pensamento está ausente, pois isto é trabalho de
este desenho na ideia, na
Mas o trabalho do ourives, e o design variado16 de escravo, sem qualquer compensação. Ao invés disso,
deliberação secreta do enten-
dimento : “Desenho, e não jóias e adornos pode se tornar o objeto da mais prefira o trabalho áspero ao polimento cuidadoso,
debuxo nem pintura (...):
nobre inteligência humana. Por conseguinte, o em que apenas o propósito prático é atendido, e
antes determinar, inventar, ou
figurar, ou imaginar aquilo dinheiro que se paga na aquisição de uma placa nunca acredite ser possível orgulhar-se daquilo que
que não é, para que seja e
bem burilada, de vasos preciosamente gravados, se realiza à base de paciência e lixa.
venha a ter ser.” (apud,
Bueno, B. S., “Desenho e camafeus ou esmaltes, é útil à humanidade; o

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John Ruskin. Selvatiqueza (excerto de A Natureza do Gótico)

Desígnio” in Oceanos , Lis- §XX. Citarei apenas um exemplo que mostrará ao labuta manual é uma degradação quando governada
boa, jan.2000, pp.45-6). Ao
que parece, a diluição da leitor o que eu quero dizer: a manufatura do vidro, pelo intelecto.
palavra “debuxo” na história a que aludi acima. Nosso vidro moderno é de uma
do vernáculo ( dibujo, como
até hoje no espanhol) corres- substância maravilhosamente transparente, justo Em larga escala, e em trabalhos determináveis à
pondeu à promoção do senti- em sua forma e exato em seu corte, e nos orgulhamos régua e compasso, é com efeito possível e necessário
do de “desenho” como repre-
sentação por meio de linhas, disto. Deveríamos nos envergonhar. O velho vidro que os pensamentos de um homem sejam efe-
traços e sombras, corres- de Veneza era turvo, inexato em todas as suas formas tuados pelo trabalho de outros. Foi neste sentido
pondente ao drawing inglês,
sobre aquele sentido primeiro e, se muito, desajeitadamente cortado. Mas os velhos que uma vez defini a melhor arquitetura como a
de imaginação da forma. Em venezianos com razão se orgulhavam dele. Pois há expressão do pensamento de um homem adulto
sua edição de 1813, o dicio-
nário de Antônio de Moraes esta diferença entre o trabalhador inglês e o ve- pelas mãos de uma criança. Mas em pequena escala,
Silva dá como primeira acep- neziano: o primeiro apenas se preocupa em seguir e em um desenho que não pode ser matematica-
ção de “desenho”, “a ideya,
ou traça, que o Pintor tem na exatamente os seus padrões, realizar curvas perfeitas mente definido, os pensamentos de um homem
fantezia”; e em seguida, “o e bordas perfeitamente afiadas, tornando-se uma jamais podem ser expressos por um outro: e a
debuxo della no papel”.
Figuradamente: desenho é simples máquina de arredondar curvas e afiar bordas. diferença que existe entre o espírito do toque17
“ideya, modelo, molde”, Já o velho veneziano em nada se importava com daquele que inventa e o do homem que obedece a
depois, “empresa, projecto”;
e por último, “designio”, quer que as suas bordas fossem afiadas ou não, mas instruções é, com freqüência, tudo o que diferencia
dizer: “desenho, intento, inventava um novo desenho para cada vidro que o trabalho artístico grandioso do comum. Deverei
tenção, projecto, vistas” (Sil-
va, A. de M., Diccionario da produzia, jamais ornando uma alça ou um bico de me esforçar em outra parte por mostrar quão larga
Lingua Portugueza , vol. 1, um vaso sem ali dispor uma nova fantasia. E por é a separação entre a execução original e a de
Lisboa, Lacérdina, 1813). Já
em 1873, Domingos Vieira conseguinte, apesar de haver vidros venezianos segunda-mão; propomos antes aqui salientar o
anunciaria uma inversão im- bastante feios e desajeitados, quando feitos por outro erro e mais fatal de desprezar a labuta manual
portante: “Desenho. s.m. (a
mesma palavra que designio) trabalhadores desajeitados e pouco inventivos, há quando governada pelo intelecto; pois não é menos
representação por meio do outros que são tão encantadores em suas formas fatal o erro de desprezá-la quando regulado pelo
lapis, da penna, do pincel”.
Definição à qual se seguiriam que nenhum preço é muito alto pelo que se paga intelecto, que valorizá-la em si mesma. Nos dias de
as várias modalidades de por eles, pois em nenhum deles jamais encontra- hoje, nos esforçamos permanentemente em separar
desenho, crusado, d´esboço,
lavado, para bem adiante, e remos a mesma forma repetida duas vezes. Portanto, os dois; queremos que um homem esteja sempre
- em sentido figurado - reapa- não se pode ter o remate e a forma variada ao pensando e outro sempre trabalhando; a um damos
recerem os sentidos de “de-
sígnio, intenção, propósito, mesmo tempo. Se o trabalhador estiver pensando o nome de cavalheiro, a outro, de mão-de-obra,
projecto”. O mesmo com em suas bordas, não poderá pensar em seu desenho, enquanto o trabalhador devia estar constantemente
relação ao verbo desenhar: é
antes de tudo “traçar o e se se aplicar ao desenho, não poderá pensar em pensando e o pensador constantemente traba-
desenho d´um objeto” e por suas bordas. A você caberá escolher se irá pagar lhando e ambos serem cavalheiros no melhor sentido
último, “projectar, traçar no
espírito, delinear, imaginar” pela forma encantadora ou pelo remate perfeito, e da palavra. Da forma como é, são ambos intratáveis;
(Vieira, Fr. D., Grande Diccio- decidir ao mesmo tempo se do trabalhador irá fazer um invejando, o outro desprezando o seu irmão; e
nario Portuguez ou Thesouro
da Língua Portugueza, vol. 2, um homem ou uma mó. o grosso da sociedade é composto de mórbidos
Porto, Editores Ernesto Char- pensadores e trabalhadores miseráveis. É, portanto,
dron e Bartholomeu de Mo-
raes, 1873). É interessante somente pelo labor que o pensamento pode se
reconhecer o prestígio da tornar saudável e somente pelo pensamento que
representação gráfica em
relação à idéia mental da §XXI. Mas não, interrompe-me o leitor: “ – se o o labor pode se tornar feliz e os dois não podem
coisa no Português ao final do trabalhador desenha com beleza, por que mantê- ser separados impunemente. Seria bom que todos
século XIX, ao mesmo tempo
em que se observa uma lo na fornalha? Deixe-o ser levado embora e que nós fôssemos bons artesãos de alguma espécie e
tendência para traduzir a se torne um cavalheiro, que tenha um estúdio e que a desonra da labuta manual fosse completa-
palavra design por “projeto”.
Senão anacrônica, o risco de nele desenhe o seu vidro, e eu farei com que este mente abandonada de modo que, mesmo que se
imprecisão se entrevê no seu seja soprado e cortado por trabalhadores comuns; persistisse uma aguda distinção de raça entre nobres
sutil deslizamento semântico
de “idéia adoptada e desse modo terei o meu desenho e também o meu e plebeus, entre esses últimos não haveria uma
escolhida que supõe cousa remate”. aguda distinção de emprego, como entre os deso-
meditada” para “plano ou
disposição de meios para a cupados e os trabalhadores ou entre os de profissão
execução de um desígnio”. A Toda idéia como esta funda-se em duas suposições liberal e não liberal. Todas as profissões deveriam
decisão sobre a melhor tradu-
ção da palavra design é equivocadas: a primeira, que os pensamentos de ser liberais e deveria haver menos orgulho quanto
talvez a mais difícil em portu- um homem podem ser, ou devem ser executados à peculiaridade do emprego e mais quanto à
guês. Tendo em vista o uso
primitivo da palavra, absolu- pelas mãos de outro homem; a segunda, que a excelência em sua realização. Mais ainda, em cada

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John Ruskin. Selvatiqueza (excerto de A Natureza do Gótico)

tamente decisivo para Ruskin uma das várias profissões, nenhum mestre deveria qualquer que seja ele, pode ser perfeito e a demanda
como forma de restabelecer
a dignidade da “invenção” no se orgulhar em demasia da realização de seu mais por perfeição é sempre um sinal de equívoco a
espaço da produção, além do pesado trabalho. O pintor deveria moer as suas respeito dos fins da arte.
que, ao que tudo indica, ainda
corrente quando da primeira próprias cores; o arquiteto trabalhar no canteiro
edição do segundo volume de de obras com os seus homens; o contra-mestre ser
The Stones of Venice (1853),
e apesar de a forma original ele mesmo um operário mais habilidoso que
inglesa ser hoje muito bem qualquer homem em seus moinhos; e a distinção §XXIV. E isto por duas razões que se baseiam, ambas,
estabelecida no vocabulário
português do desenho indus- entre um e outro homem seria apenas de experiência em leis eternas. A primeira, que nenhum grande
trial ou de objetos, optamos e habilidade, sua autoridade e riqueza sendo obti- homem jamais termina o seu trabalho até que tenha
por traduzir design direta-
mente por “desenho”, de- das natural e merecidamente. atingido o seu ponto de falência; ou seja, que a
signer por desenhista, flexio- sua mente está sempre muito além de seu poder
nando a forma verbal à ma-
neira de “desenhar”, ainda de execução, e este aqui e ali recuará na tentativa
que às vezes, quando neces- de seguir aquela. Mais ainda, que ele só dará às
sário, tenhamos preservado a
palavra original em inglês. §XXII. Eu me afastaria demais da matéria em exame partes inferiores de seu trabalho a atenção inferior
Um bom precedente, firme- se prosseguisse neste assunto interessante. Creio que elas requerem; a sua grandeza fazendo com
mente assentado na definição
primeira da palavra, revisada que já se disse o bastante para mostrar ao leitor que ele de tal modo se acostume ao sentimento
sob a lógica do capital à luz que a rudeza ou imperfeição que no princípio fez de insatisfação com o que faz de melhor que em
das transformações da produ-
ção artística e arquitetônica do termo “Gótico” um termo de reprovação, momentos de lassidão ou irritação consigo mesmo,
na modernidade é o livro de quando corretamente entendido, é um dos mais não se importará que o espectador também esteja
Sérgio Ferro, O Canteiro e o
Desenho (São Paulo, Projeto, nobres caracteres da arquitetura cristã, e não apenas insatisfeito. Creio que só houve um homem que
1979). Quanto aos termos nobre mas essencial. O que parece ser um fantástico não admitiria esta necessidade e sempre lutou para
draw, drawing, sketch,
sketcher, menos recorrentes, paradoxo é, no entanto, uma importantíssima atingir a perfeição: Leonardo18. A finalidade de seu
adotamos formas mais con- verdade: nenhuma arquitetura pode ser verdadeira- vão esforço era tal que o levava simplesmente a
vencionais como traçar, tra-
çado, esboço, bosquejador. mente nobre se não for imperfeita. E isso é facilmente trabalhar dez anos em um quadro para depois
Ver também a nota 33 abaixo demonstrável. Pois na medida em que o arquiteto, abandoná-lo inacabado. E, portanto, se tivermos
(NT).
que supomos capaz de fazer tudo com perfeição, grandes homens como tenazes trabalhadores, ou
16
The various designing, no
original (NT). não pode executar o todo com as suas próprias homens menores dando o melhor de si mesmos, o
17
No original, spirit of touch mãos, ou bem haverá de escravizar os seus trabalha- trabalho será imperfeito, não importando quão
(NT). dores à velha moda grega, e atualmente inglesa, e belo que ele possa ser. Pois nenhum trabalho
18
Gloriosa exceção do pri- nivelar o seu trabalho às capacidades de um escravo, humano, a não ser o mau trabalho, à sua maneira
meiro período da Renas-
cença, assim como Rafael e o que é degradá-lo; ou bem aceitar os seus trabalha- ruim, pode ser perfeito19.
Michelangelo, Leonardo teria dores tal qual os encontra, deixando-os revelar as
sido educado na antiga esco-
la, “seus mestres, quase tão suas fraquezas ao mesmo tempo que sua força, o
grandes quanto eles, conhe- que provará a imperfeição do gótico, mas enobrecerá
ciam a verdadeira missão da
arte e a cumpriram; imbuídos o trabalho tanto quanto o intelecto da época o §XXV. A segunda razão é que a imperfeição é de
do antigo e profundo espírito permite. certo modo essencial a tudo o que sabemos da
religioso, eles o comunicaram
a seus discípulos, que, be- vida; é o sinal de vida em um corpo mortal, isto é,
bendo ao mesmo tempo das de um estado de progresso e mudança. Nada do
vivas fontes do saber que
jorravam de todas as partes, que é vivo é ou pode ser rigidamente perfeito; parte
provocaram a admiração uni- §XXIII. Mas o princípio pode ser exposto de maneira está decaindo, parte nascendo. A flor de dedaleira
versal.” John Ruskin, As
Pedras de Veneza, São Paulo, ainda mais abrangente. Eu confinei a sua ilustração – terça parte em botão, terça parte já morta, terça
Martins Fontes, 1992, p.134 à arquitetura, mas não deverei firmá-lo como parte em plena flor - é um tipo de vida deste mundo.
(NT).
verdade apenas para a arquitetura. Até aqui utilizei E em todas as coisas que vivem, há certas irregula-
19
Muitas pessoas supõem
que os mármores de Elgin são as palavras imperfeito e perfeito para distinguir, ridades e deficiências que não são apenas sinais
“perfeitos”. Nas suas partes tão somente, o trabalho grosseiramente inábil do de vida, mas fontes de beleza. Em nenhum rosto
mais importantes, eles de fato
se aproximam da perfeição. trabalho executado com precisão e ciência regulares; humano as linhas de ambas as faces são exatamente
Mas apenas ali. Os drapeja- e tenho pleiteado que qualquer grau de inabilidade as mesmas, nenhuma folha é perfeita em seus
dos são inacabados, o cabelo
e a lã dos animais são inaca- deveria ser admitido na medida em que só assim a lóbulos, nenhum galho em sua simetria. Todos
bados e o baixo-relevo inteiro mente do trabalhador teria espaço para se exprimir. admitem irregularidade à medida que supõem
do friso são asperamente
cortados (NA). Thomas Bruce Mas falando com exatidão, nenhum bom trabalho, mudança; e banir a imperfeição é destruir a ex-

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John Ruskin. Selvatiqueza (excerto de A Natureza do Gótico)

(1761-1841), sétimo Conde pressão, impedir a manifestação, paralisar a vitali- nascentista: que a primeira causa de decadência
de Elgin, na Escócia, autor do
Memorandum on the Subject
dade. Se todas as coisas são literalmente melhores, das artes na Europa foi um implacável requisito de
of the Earl of Elgin’s Pursuits mais encantadoras e mais amadas por suas imper- perfeição, tão incapaz de ser silenciado por veneração
in Greece (1816), notabilizou-
se pelas coleções de antigui-
feições divinamente estabelecidas, a lei da vida à grandeza, quanto suavizado no perdão da sim-
dades gregas recolhidas em humana deve ser o Esforço, e a lei do julgamento plicidade.
campo. Byron chamou-o de “o
elginizador” pelos saques
humano, a Misericórdia.
autorizados que empreendeu Até aqui, então, acerca da Rudeza ou Selvatiqueza,
sobre as ruínas de Atenas a
Então aceite como uma lei universal que nem a que é o primeiro elemento mental da arquitetura
partir de 1803. Em 1816,
vendeu a sua coleção parti- arquitetura nem qualquer outra grande obra huma- gótica. É também um elemento de muitas outras
cular ao Museu Britânico,
inclusive os famosos “mármo-
na possam ser boas a não ser que sejam imperfeitas; arquiteturas saudáveis como a bizantina e a ro-
res de Elgin”, fragmentos e estejamos preparados para este outro fato estra- mânica; mas o verdadeiro gótico não pode existir
principais do Parthenon ate-
nho que haveremos de discernir com clareza à sem ele.
niense (NT).
medida que nos aproximarmos do período re-

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