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Pesquisa FAPESP setembro de 2017

Homo sapiens
teria ocupado
Mato Grosso há
setembro de 2017 | Ano 18, n. 259 27 mil anos

Análises de
trechos de DNA
aprofundam
diagnóstico de
doenças
genéticas

Tradições ditam
o uso de
ferramentas entre
macacos do Piauí

Mata Atlântica
volta a crescer no
Vale do Paraíba

Indústria começa
a prestar serviços
para usuários de
seus produtos

ENTREVISTA
Ataliba Castilho:
o dono da língua
é o falante, e não
o gramático

a internet Tecnologias que criam ambientes


conectados mobilizam empresas
e pesquisadores brasileiros para
está nas
coisas
transformar a indústria, o
agronegócio, a saúde e as cidades
Ano 18  n.259

> Manufatura avançada atrai startups


O que a ciência

brasileira

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12 encontra aqui
edições
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100
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fotolab A beleza do conhecimento

Sua pesquisa rende imagens bonitas? Mande para imagempesquisa@fapesp.br


Seu trabalho poderá ser publicado na revista.

No fundo do Amazonas
Em julho deste ano, uma equipe de pesquisadores de várias instituições
brasileiras embarcou no navio norte-americano Alucia para registrar recifes
de coral na margem equatorial do rio Amazonas e na zona marítima
afetada por ele, do Amapá ao Maranhão. “A biodiversidade se altera quanto
mais se vai para oeste, em função da influência do rio”, explica o biólogo
Gilberto Amado, do JBRJ. Na foto, ele (ao fundo) se prepara para mergulhar
até 300 metros de profundidade no cânion do Amazonas, junto com o piloto
do submersível. “Nas profundidades maiores não tem muita diversidade,
os mergulhos mais interessantes acontecem até 150 metros.”

Imagem enviada pelo biólogo marinho Fernando Moraes, pesquisador


do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ)

PESQUISA FAPESP 259 | 3


setembro  259

POLÍTICA DE C&T 57 Ciências HUMANIDADES


atmosféricas
36 Ambiente Poluição diminuiu na Região 82 Arqueologia
Estudo mostra por que a Metropolitana de São Paulo Sítio indica presença do
Mata Atlântica se recupera homem há mais de 25 mil
no Vale do Paraíba 64 Entrevista anos em Mato Grosso
O físico Robert Myers
40 Colaboração explica por que é tão difícil 87 Difusão
Pesquisas feitas com a unificar as teorias que Evento na Grécia
participação de leigos descrevem forças do debateu formas de
ganham espaço Universo divulgação da ciência

44 Periódicos
Acesso aberto a artigos TECNOLOGIA
publicados por revistas
científicas do Brasil é 73 Engenharia
significativo biomédica
  Empresas produzem
equipamentos hospitalares
CIÊNCIA para problemas pulmonares
 
48 Medicina 76 Pesquisa
Sequenciamento de trechos empresarial
de DNA aprofunda Fibraforte desenvolve
diagnóstico e revela genes propulsores para satélites
CAPA causadores de doenças  
Internet das Coisas 80 Fotônica
promete aumentar 52 Etologia Luz de LEDs em ovos
Uso de ferramentas por férteis de galinha faz
a produtividade e
macacos-prego ajuda a os embriões crescerem
impulsionar empresas repensar o papel das mais rapidamente ENTREVISTA
inovadoras tradições na evolução Ataliba
p. 18 de Castilho
  Linguista diz que
norma culta
Centros de pesquisa
incorporou muitos
e startups investem “erros” do
em manufatura português falado
avançada no país no Brasil
p.24 p. 30

Economista coreano
Keun Lee fala da
ascensão e da queda
de líderes
tecnológicos
p. 28
p. 52
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No site de Pesquisa Fapesp estão disponíveis
gratuitamente todos os textos da revista em português,
inglês e espanhol, além de conteúdo exclusivo

SEÇÕES vídeos
youtube.com/user/pesquisafapesp
3 Fotolab

6 Comentários

7 Carta da editora

8 Boas Práticas
Universidades são a
arena decisiva para
combater a má conduta,
diz editorial da Science

11 Dados Wanda Hanke viajou sozinha pela América do Sul no


Mulheres na ciência começo do século XX para estudar indígenas
bit.ly/vWandaHanke
Botânica 12 Notas
Especialistas
descobrem novas 91 Memória
espécies de plantas Primeira lei de patentes
em expedição estimulou a atividade
a montanhas na inventiva no Brasil no
Amazônia século XIX
p. 60
94 Resenhas
Cartas provincianas:
Correspondência entre
Gilberto Freyre e Manuel
Engenharia Bandeira, de Silvana
de produção Moreli Vicente Dias Balões podem levar conectividade a lugares
Sistema privilegia (org.). Por Emerson Tin remotos bit.ly/vbalaointernet
serviços e Dicionário de história da
cria novos desafios África – Séculos VII a
para a indústria XVI, de Nei Lopes e
p. 68 José Rivair Macedo. Por rádio  bit.ly/PesquisaBr
Omar Ribeiro Thomaz
Empreendedores
96 Carreiras falam sobre
Expansão da Indústria projetos
4.0 deverá criar novas financiados por
demandas de formação programa da
FAPESP 
bit.ly/pbrPIPE20

Ilustração da capa
Oliver Burston / Getty Images
Conteúdo a que a
comentários cartas@fapesp.br
mensagem se refere:

Revista impressa

Reportagem on-line Artigos científicos Muito legal saber como se conhece a ida-
O cientista tem a ideia original. É finan- de aproximada de uma árvore (vídeo “A
Galeria de imagens
ciado com dinheiro público, muitas vezes saúde das árvores urbanas”).
Vídeo dentro de uma instituição pública. Faz os ex- Ruth Claudia
perimentos, analisa os dados e escreve o ar-
Rádio
tigo que, por fim, é revisado de graça pelos Um simples experimento mostrando coi-
pares. Tudo que as editoras fazem é hospedar sas importantíssimas para a ciência (vídeo
o texto em PDF em algum servidor com “Astrofísica na banheira”). Parabéns!
contatos paywall. Quase sempre o público (que finan- Allan Guglielmi Herlinger
ciou a pesquisa) e muitas vezes o próprio
revistapesquisa.fapesp.br pesquisador (autor do trabalho) não detêm O legal é a criatividade para bolar um ex-
os direitos sobre o conhecimento gerado. O perimento simples, mas com as caracte-
redacao@fapesp.br
conhecimento deveria ser gratuito e para to- rísticas ideais para comparação do fenômeno
PesquisaFapesp
dos (sobre a nota “Corte dos EUA multa em físico.
PesquisaFapesp US$ 15 milhões sites que pirateiam artigos”). Angni Agni
pesquisa_fapesp Ricardo Oliveira

Pesquisa Fapesp Vídeo incrível, todos que possuem um


pesquisafapesp
mínimo de curiosidade deveriam ver.
Energia solar Renan Souza Sá
cartas@fapesp.br Para aproveitar nos edifícios e no plane-
R. Joaquim Antunes, 727 jamento urbano (relativo à reportagem
10º andar
“Para aproveitar o Sol”, edição 258). Correções
CEP 05415-012
São Paulo, SP
Cláudia Naves David Amorim Na nota “A mãe de todas as flores” (edição 258)
o nome correto da pesquisadora da Universi-
Assinaturas, renovação dade de São Paulo é Juliana El Ottra.
e mudança de endereço Pipe 20 anos
Envie um e-mail para Sobre a reportagem “Pipe 20 anos” (edição O significado da sigla LNBio é Laboratório
assinaturaspesquisa@
257), esse é o tipo de investimento em Nacional de Biociências (LNBio) e não de
fapesp.br
ou ligue para ciên­cia que traz benefícios para a população. Biologia, como foi publicado na reportagem “A
(11) 3087-4237, Tomaz Puga Leivas  era da edição genômica” (edição 258).
de segunda a sexta,
das 9h às 19h A foto da página 85 que ilustra a reportagem
Vídeos “A periferia por ela mesma” (edição 258) é de
Para anunciar 
Contate: Paula Iliadis 
Parabéns pelo vídeo “Internet para todos”. uma quadra na região do Grajaú, em São Paulo,
Por e-mail: Elon Musk, dono da montadora de carros e não na favela Peri. O autor é Erick Diniz.
publicidade@fapesp.br elétricos Tesla, também tem interesse em le-
Por telefone: var internet para qualquer lugar do mundo,
(11) 3087-4212 mas com o uso de satélites. Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser resumidas
Esdley Moreira por motivo de espaço e clareza.
Edições anteriores
Preço atual de capa
acrescido do custo de
postagem.
Peça pelo e-mail: A mais lida de agosto no Facebook
clair@fapesp.br
atlas
Licenciamento Para aproveitar o Sol bit.ly/energsolar258
de conteúdo
Adquira os direitos de
reprodução de textos 49.458 pessoas alcançadas
e imagens
de Pesquisa FAPESP. 2.032 reações
Por e-mail:
mpiliadis@fapesp.br 111 comentários
Por telefone:
(11) 3087-4212 442 compartilhamentos

6 | setembro DE 2017
fundação de amparo à pesquisa do
carta da editora
estado de são Paulo

José Goldemberg
Presidente

Eduardo Moacyr Krieger


vice-Presidente

Conselho Superior

Carmino Antonio de Souza, Eduardo Moacyr

Um novo modelo industrial?


Krieger, fernando ferreira costa, João Fernando
Gomes de Oliveira, joão grandino rodas,
José Goldemberg, Marilza Vieira Cunha Rudge,
José de Souza Martins, Pedro Luiz Barreiros Passos,
Pedro Wongtschowski, Suely Vilela Sampaio

Conselho Técnico-Administrativo

Alexandra Ozorio de Almeida |


Carlos américo pacheco
Diretor-presidente diretora de redação
Carlos Henrique de Brito Cruz
Diretor Científico

fernando menezes de almeida


Diretor administrativo

D
iferentemente das outras revolu- um modelo de Indústria 4.0 com partici-
ções industriais, assim classifica- pação relevante de conhecimento.
das a posteriori, a quarta foi anun- Esta edição trata dessa promessa de no-
issn 1519-8774 ciada previamente, em 2011: a Indústria vo paradigma industrial por várias pers-
Conselho editorial
4.0 foi apresentada na Alemanha, o mais pectivas. A reportagem de capa apresenta
Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa,
Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, industrial dos países mais ricos, como um o conceito de manufatura avançada e al-
Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares de
Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira projeto para promover a competitividade guns exemplos que começam a surgir no
comitê científico por meio da aplicação maciça de novas Brasil (página 24). Esse novo modelo deve
Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente),
Anamaria Aranha Camargo, Ana Maria Fonseca Almeida,
Carlos Américo Pacheco, Carlos Eduardo Negrão, Fabio Kon,
tecnologias na manufatura. afetar as relações de trabalho e mudar as
Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Francisco Rafael Martins
Laurindo, José Goldemberg, José Roberto de França Arruda,
Também chamada de manufatura demandas por qualificações profissionais,
José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Luiz Nunes de
Oliveira, Marie-Anne Van Sluys, Maria Julia Manso Alves,
avançada, a Indústria 4.0 não tem uma tema da seção Carreiras (página 96). Re-
Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio
Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral, Walter Colli definição consensual, mas envolve fá- portagem na página 18 destaca uma das
Coordenador científico bricas inteligentes com o uso combinado tecnologias que a sustenta, a Internet das
Luiz Henrique Lopes dos Santos
de tecnologias como Internet das Coisas, Coisas. Em entrevista à revista durante
diretora de redação
Alexandra Ozorio de Almeida análise de big data, digitalização da ma- sua passagem pelo Brasil (página 28), o
editor-chefe
Neldson Marcolin
nufatura e inteligência artificial. Alguns economista coreano Keun Lee, presiden-
Editores Fabrício Marques (Política de C&T), dos seus princípios básicos são resposta te da International Schumpeter Society,
Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência),
Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores espe­ciais), em tempo real, descentralização, intero- falou sobre assuntos que permeiam a dis-
cussão, como os ciclos de mudança de li-
Maria Guimarães (Site), Bruno de Pierro (Editor-assistente)
perabilidade e orientação ao serviço. As
repórteres Yuri Vasconcelos e Rodrigo de Oliveira
Andrade mudanças devem ocorrer em todas as derança em setores da indústria.
redatores Jayne Oliveira (Site) e Renata Oliveira
do Prado (Mídias Sociais)
etapas da produção e do consumo, pro- Um fenômeno que está relacionado
arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos duzindo efeitos significativos na econo- às mudanças na manufatura é o PSS, ou
(Editora de infografia), Júlia Cherem Rodrigues
e Maria Cecilia Felli (Assistentes) mia mundial. Product-Service System, ou servitização
fotógrafos Eduardo Cesar e Léo Ramos Chaves O papel e as possibilidades do Brasil (página 68). Nessa nova proposição, as
banco de imagens Valter Rodrigues nesse novo contexto ainda estão sendo tradicionais vendas de bens como ele-
Rádio Sarah Caravieri (Produção do programa Pesquisa Brasil) construídos. O seu desempenho depen- trodomésticos são substituídas por um
revisão Alexandre Oliveira e Margô Negro
de, em grande parte, da base industrial e sistema comercial no qual o cliente paga
Colaboradores Alicia Ivanissevich, Bárbara Malagoli,
Diego Freire, Domingos Zaparolli, Elisa Carareto, Emerson de elementos humanos como o espírito pelo usufruto e a empresa continua pro-
Tin, Everton Lopes, Evanildo da Silveira, Fabio Otubo, Omar
Ribeiro Thomaz, Patrícia Santos, Sandra Javera empreendedor, a qualidade de sua força prietária do bem e responsável pela sua
É proibida a reprodução total ou parcial de de trabalho e a base de conhecimento das manutenção e descarte.
universidades, institutos e organizações ***
textos, fotos, ilustrações e infográficos
sem prévia autorização

Tiragem 25.700 exemplares produtoras e difusoras de conhecimento. Deixando de lado a alta tecnologia,
IMPRESSão Plural Indústria Gráfica
distribuição Dinap O país não tem uma indústria eletrônica uma leitura instigante é a entrevista do
GESTÃO ADMINISTRATIVA FUSP – FUNDAÇÃO DE APOIO robusta, importante para a manufatura linguista Ataliba Castilho (página 30),
À UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727,
avançada, e seus esforços tecnológicos concedida ao editor Carlos Fioravanti.
10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP
são relativamente modestos, mais basea- O estudioso da língua falada e do portu-
FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901,
Alto da Lapa, São Paulo-SP dos na reprodução de processos e produ- guês brasileiro fala de mudanças recentes
tos já existentes. A manufatura avançada identificadas na oralidade – por exemplo,
também está associada a um consumo o plural sendo expresso apenas no arti-
Secretaria de Desenvolvimento Econômico,
Ciência e Tecnologia

informado, o que é difícil em uma socie- go, e não no substantivo, como em “os
Governo do Estado de São Paulo

dade com baixo nível de escolaridade e menino” – com a naturalidade de quem


renda. Mas o país possui uma indústria observa o idioma como um objeto vivo
suficientemente grande, diversificada e de estudo, e não da perspectiva apenas
integrada que lhe permite aspirar a ter de guardião da língua culta.

PESQUISA FAPESP 259 | 7


Boas práticas

O papel decisivo das universidades


Instituições de ensino e pesquisa são a arena mais importante para
combater a má conduta, afirma editorial publicado na revista Science

O debate sobre o papel de universidades, revistas escrevem artigos ou produzem imagens”,


científicas e agências de fomento na promoção da escreveram Schrag e Purdy. Na avaliação da
integridade científica teve uma espécie de freio dupla de Columbia, os líderes das universidades
de arrumação em um editorial publicado dispõem das ferramentas adequadas para
na revista Science no dia 11 de agosto, assinado por promover as boas práticas e garantir a acurácia
dois vice-presidentes da Universidade Columbia, dos resultados de pesquisa.
em Nova York. No texto, disponível em Indicadores de qualidade rotineiramente
bit.ly/stepquality, a advogada Naomi Schrag alardeados pelas universidades, como a capacidade
e o geofísico Graham Michael Purdy disseram de obter financiamento e de publicar artigos em
estranhar o silêncio dos reitores e dirigentes revistas de alto impacto, dependem de uma base
acadêmicos na discussão sobre as sólida de metodologias robustas e de resultados
responsabilidades de diversos atores da divulgados de forma transparente, afirmaram no
comunidade científica no combate à má conduta texto. “As universidades devem reforçar
– e lembraram que as universidades são a arena publicamente o valor da qualidade da pesquisa,
decisiva na promoção de padrões elevados de utilizando-a como critério para processos de
qualidade de pesquisa. Segundo o editorial, as seleção, promoções e recompensas. Também
instituições acadêmicas não devem terceirizar devem garantir recursos para difundir essa
para editores de revistas, financiadores e mensagem entre estudantes e pessoal de todos os
sociedades científicas o trabalho de garantir que a níveis, por meio de treinamento em planejamento
base da ciência seja sólida e os resultados, válidos. de experimentos e análise de dados.”
“As agências, os periódicos e as sociedades não O ponto de partida, disseram, é não ignorar
estão dentro de laboratórios, não fazem pesquisa o problema e incutir em seus pesquisadores
clínica nem saem a campo. Não analisam dados, a percepção de que a má conduta

8 | setembro DE 2017
e a reprodutibilidade – o desafio situações que possam configurar também fornece orientação sobre
de confirmar os resultados de um abuso de autoridade. como criar um plano de
estudo em pesquisas subsequentes – Já no campo do gerenciamento de gerenciamento de dados de pesquisa,
são problemas reais. dados, um modelo apontado como além de armazenar, compartilhar e
A ideia de que o combate à má promissor é o programa Integridade de preservar as informações.
conduta exige uma ação coordenada Pesquisa e de Dados, da Universidade O interesse pelo assunto é
entre universidades, editores de Columbia (research.columbia.edu/ crescente. Em 9 de dezembro de 2016,
revistas e agências de apoio à ReaDI-Program), que oferece aos a Universidade Columbia sediou um
pesquisa foi um dos motes principais pesquisadores uma coleção exaustiva simpósio, promovido em parceria com
do relatório Promovendo a integridade de tutoriais, modelos e manuais para outras cinco universidades de Nova
na pesquisa, divulgado em abril pelas ajudar na condução da pesquisa, no York, para discutir a credibilidade,
Academias Nacionais de Ciências, gerenciamento de dados e no a reprodutibilidade e a integridade
Engenharia e Medicina dos Estados cumprimento de requisitos que da pesquisa. “A resposta positiva
Unidos (ver Pesquisa FAPESP garantam a reprodutibilidade dos e a participação vigorosa de
nº 255). A necessidade de articular resultados. Criado pela própria Naomi palestrantes e participantes, entre os
esforços também foi debatida em Schrag, responsável pelo treinamento e quais professores, estagiários, editores
maio no 5º Congresso Mundial de pelos programas de integridade de revistas, líderes acadêmicos e
Integridade Científica, realizado em científica da instituição, o programa autoridades, refletiram a fome da
Amsterdã, Holanda. Um documento comunidade acadêmica por uma
lançado no evento propôs novas discussão substantiva desses temas”,
diretrizes para coordenar o relatou o editorial da Science.
trabalho de editores de periódicos
e universidades no enfrentamento
de casos de má conduta
(ver Pesquisa FAPESP nº 256).

reforço
Para Schrag e Purdy, as soluções
para enfrentar o problema já são
conhecidas, mas precisam ser
reforçadas: “As universidades devem
fortalecer seus escritórios de Código da
integridade científica, revisar
e melhorar seus programas FAPESP prevê
de treinamento em boas práticas
e desenvolver programas proativos responsabilidades
para prevenir a má conduta”. Eles
também sugeriram empenho especial das instituições
das universidades em duas searas:
a orientação de alunos e jovens Lançado em 2011, o Código de boas um ou mais órgãos encarregados de
pesquisadores e o gerenciamento de práticas científicas da FAPESP prevê oferecer programas de educação,
dados. No caso da orientação, um uma série de responsabilidades das aconselhamento e treinamento voltados
exemplo que consideram inspirador instituições de pesquisa na preservação para a promoção de boas práticas
é o programa de treinamento da integridade científica. De acordo com científicas e também para investigar
de mentores criado em 2003 pela o código, universidades e institutos que casos suspeitos de má conduta, punir
Universidade de Wisconsin, Madison, têm projetos e bolsas financiados pela eventuais responsáveis e reparar
que já foi testado e bem avaliado Fundação são os responsáveis principais prejuízos.
por 16 centros de pesquisa médica. pela promoção de uma cultura que A seção do código sobre a
A iniciativa, apoiada pelo Howard estimule boas condutas científicas por responsabilidade das instituições
Hughes Medical Institute, propõe parte de estudantes e pesquisadores prevê que periódicos científicos
que os mentores exponham os alunos e também pela prevenção, investigação devem utilizar procedimentos para
a noções de boas práticas o mais e punição de desvios. identificar más condutas em artigos
precocemente possível, usem O código estabelece que as submetidos para publicação e, caso
ilustrações  elisa carareto

situações concretas para mostrar instituições devem manter políticas e haja alguma ocorrência em projeto de
quais são os tipos de má conduta procedimentos transparentes para lidar pesquisa financiado pela FAPESP,
científica e cultivem uma relação com a questão da integridade ética da informar rapidamente tanto a instituição
de confiança e proximidade com pesquisa. Determina, ainda, que elas a que o autor é vinculado quanto
os orientandos, sempre respeitando tenham em seu organograma a Fundação.
padrões éticos a fim de evitar

PESQUISA FAPESP 259 | 9


elisa carareto
Como lidar com um autor punido
por má conduta

A revista Nature Plants utilizou avaliação por pares”, disse


o editorial da edição de junho Sunridge à revista The Scientist.
para comentar um artigo assinado “Não é nossa tarefa investigar
pelo biólogo Patrice Dunoyer, má conduta científica ou aplicar
pesquisador do Instituto de sanções. Nosso papel é garantir
Biologia Molecular de Plantas do que manuscritos submetidos e
Centro Nacional de Pesquisa publicados sejam tão acurados
Científica (CNRS) da França. e confiáveis quanto possível,
O editorial, contudo, não tratava independentemente de quem
do achado do paper – a descrição seja o autor.”
de um mecanismo utilizado por A publicação do editorial
um vírus que ataca o amendoim –, mostra que não existe um
mas justificava o fato de a revista consenso entre editores de
ter aceito o manuscrito para a revistas sobre o que fazer numa
publicação. Ocorre que o grupo situação dessas. Em 2011,
do CNRS a que Dunoyer pertencia a Sociedade Americana de
até 2015, liderado por Olivier Microbiologia proibiu o médico Bernd Pulverer, editor-chefe do
Voinnet, envolveu-se em um Ramón Cisterna, do Hospital Embo Journal, disse à The Scientist
escândalo de duplicação e Barsuto, em Bilbao, Espanha, que não deixaria de receber um
manipulação de imagens que de publicar artigos em suas manuscrito como o de Dunoyer,
levou à retratação de oito artigos revistas durante dois anos, mas tomaria cuidados adicionais,
científicos em revistas como depois que ele admitiu ter como uma análise além da
Science, The Embo Journal e Plant plagiado um artigo do brasileiro avaliação rotineira e a exigência de
Cell e a correções em outros Arnaldo Lopes Colombo, que fossem apresentados os dados
20 papers. Voinnet foi suspenso professor da Universidade brutos da pesquisa, o que não é
por dois anos do CNRS e Federal de São Paulo (Unifesp). obrigatório na sua publicação.
condenado a passar três anos
sem financiamento da Fundação
Nacional de Ciência da Suíça.
Dunoyer, que era o primeiro autor Médico francês é condenado por
de três dos artigos retratados, foi
suspenso por um mês e perdeu seu
conflito de interesses
laboratório – embora o CNRS
alegue que a desativação não teve O pneumologista francês Michel pagamentos da petrolífera Total e
relação com o caso de Aubier, de 69 anos, foi condenado que ele tinha € 150 mil em ações
manipulação. a pagar multa de € 50 mil e a da empresa. Aubier foi chefe do
O editor-chefe da Nature Plants, seis anos de prisão, com direito a Departamento de Pneumologia do
Chris Surridge, comparou no recorrer em liberdade, por mentir Hospital Bichat-Claude Bernard,
editorial a manipulação de dados em uma audiência no Senado da em Paris, e professor da
com o doping no esporte, explicou França. Há dois anos, Aubier deu Universidade Paris Diderot.
o processo que levou à punição já um depoimento a parlamentares Em março de 2016, o médico
cumprida por Dunoyer e informou minimizando os riscos à saúde afirmara em uma entrevista que
que a revista não tomou cuidados causados pela poluição do ar. a poluição não é cancerígena,
extras com o artigo do biólogo Ele afirmou que a ligação entre exceto em concentrações muito
francês além dos que já valem o câncer pulmonar e a poluição, altas e principalmente no caso dos
para todos os artigos aceitos para incluindo a fumaça de óleo diesel, fumantes. Um grupo de médicos
publicação: quatro especialistas na é “extremamente fraca”. franceses publicou uma
área analisaram o manuscrito em Assegurou que não tinha nenhum resposta indignada, enumerando
duas rodadas de revisão e os dados conflito de interesse nem vínculo evidências que vinculam
brutos usados para produzir as com empresas, mas os jornais a poluição ao câncer.
figuras foram disponibilizados franceses Le Canard Enchaîné e Ao proferir a sentença, a juíza
junto com o artigo. “As decisões Libération mostraram, meses Evelyne Sire-Marin enfatizou
sobre publicação são tomadas com depois, que desde 1997 o nome do a gravidade de mentir sobre um
base na pesquisa submetida e na médico estava na folha de assunto de interesse público.

10 | setembro DE 2017
Dados Mulheres na ciência

Participação feminina em projetos submetidos à FAPESP


Entre 2000 e 2016, a participação feminina subiu de 36% para 42% entre os responsáveis
por projetos submetidos à FAPESP. O número de submissões por pesquisadoras quase
dobrou, passando de 5.732 para 11.333, enquanto o dos submetidos por pesquisadores
cresceu 54%, passando de 10.080 para 15.504.

Projetos submetidos por gênero e participação feminina (2016)

20.000 50%
44%
18.000 42% 42% 45%
40%
16.000 36% 40%
14.000 15.504 35%
12.000 13.942 30%
11.938
10.000 11.333 25%
10.080 10.546 10.939
8.000 20%
8.816
6.000 15%
6.938
4.000 5.732 10%
n Feminino
2.000 5% n Masculino
0 0% n % Feminino total (eixo direito)
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Por grande área do conhecimento Submissões aprovadas


A participação feminina é maior nas áreas de A taxa de sucesso na aprovação de projetos, medida pela fração dos que
Ciências da Saúde (56%) e de Linguística, Letras são concedidos, não apresenta diferença significativa entre submetidos por
e Artes (50%) e menor nas áreas de Engenharias pesquisadoras e por pesquisadores. As maiores taxas de sucesso de projetos
(25%) e de Ciências Exatas e da Terra (24%). submetidos por pesquisadoras foram nas Ciências Exatas e da Terra (44%)
e nas Ciências Humanas (43%), e menores nas Ciências da Saúde (34%),
n Feminino n Masculino na Interdisciplinar (34%) e nas Ciências Sociais Aplicadas (32%).

n Feminino n Masculino
Submissões, por gênero e grande área (2016)

Ciências da Saúde
3.262 2.592 Taxas de sucesso de projetos submetidos, por gênero (2016)
Linguística, Letras e Artes
505 503 64%
70%
Ciências Humanas 58% 56%
1.354 1.456 60%
51%
Ciências Biológicas 62%
50% 58%
2.322 2.584 54% 41%
Interdisciplinar 49%
40%
379 503 38%
Total 30%
11.333 15.504
20%
Ciências Sociais Aplicadas
618 859 10%
Ciências Agrárias
1.213 1.857 0%
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Engenharias
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20

748 2.232
Ciências Exatas e da Terra
932 2.918

0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100% Fonte  Indicadores FAPESP

PESQUISA FAPESP 259 | 11


Notas
Boto-do-araguaia,
poaieiro-de-
-chico-mendes
e macaco
zogue-zogue:
três das 381 novas
espécies
identificadas entre
2014 e 2015

Quase 400 novas espécies


descobertas na Amazônia
Ao longo dos rios Araguaia e Tocantins é possível encontrar uma es-
pécie de golfinho de água doce diferente das que existem em outras
regiões da Amazônia, o boto-do-araguaia (Inia araguaiaensis), descrito
em 2014 por pesquisadores da Universidade Federal do Amazonas
(Ufam) e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) a partir
de exemplares capturados em 2009 e 2010. Com pele variando de rosa
a cinza e de 1,5 a 2,5 metros de comprimento, ele tem o focinho longo
e a testa proeminente. É geneticamente distinto do boto-da-amazônia
(Inia geoffrensis), abundante em toda a região, e do boto-da-bolívia
(Inia boliviensis), encontrado em uma área menor no sul da Amazônia.
O boto-do-araguaia é uma das 381 novas espécies de animais e de
plantas da Amazônia que integram o inventário apresentado no final
de agosto pela organização não governamental WWF-Brasil e pelo
Instituto Mamirauá, órgão de pesquisa ligado ao Ministério da Ciência,
Tecnologia, Inovações e Comunicações. O documento reúne apenas
as novas espécies descritas em 2014 e 2015, entre as quais estão a
ave poaieiro-de-chico-mendes (Zimmerius chicomendesi) e o macaco
zogue-zogue ou rabo-de-fogo (Plecturocebus miltoni), que possui uma
faixa grisalha na testa, costeletas e garganta ocre-escuras e cauda
laranja. Essa é a terceira edição do inventário (bit.ly/WWFamaz2017).
A primeira reuniu cerca de 1,2 mil novas espécies identificadas entre
1999 e 2009 e a segunda, 602 descobertas de 2010 a 2013.

12 | setembro DE 2017
Custo do Brexit
para a ciência

O governo britânico
reiterou o interesse em
continuar participando
de programas científicos
europeus depois que o
Reino Unido deixar
formalmente a União
Europeia (UE), em 2019.
Em documento
divulgado no dia 6 de
setembro, deixou claro
que não pretende abrir
mão de sua participação
em projetos como o
Horizonte 2020,
principal instrumento
de financiamento à
4 pesquisa do bloco. Para
tanto, os britânicos terão
Tablete Plimpton de se deparar com novas
Trigonometria em tablete 322 traz escrita
cuneiforme com
condições. É provável
que tenham de pagar
de 3.700 anos da Babilônia quatro colunas e
15 linhas com € 1,3 bilhão por ano,
números equivalente a suas
Um tablete de argila de 3.700 anos da Babilônia pode receitas anuais atuais
ser o registro mais antigo conhecido de conceitos de do programa. Essa regra
trigonometria, o ramo da matemática que estuda as é válida para países
relações entre os comprimentos dos lados e os ângulos associados ao Horizonte
de triângulos. Segundo essa interpretação, a trigono- 2020. Os britânicos
metria teria surgido na região da Mesopotâmia cerca ainda demonstraram
fotos 1 Gabriel Melo 2 Fabio Schunck  3 Divulgação WWF 4 Andrew Kelly / Universidade de Nova Gales do Sul  5 esa

mil anos antes que na Grécia Antiga. Essa hipótese interesse em manter
foi defendida pelos matemáticos Daniel Mansfield e colaborações na
Norman Wildberger, da Universidade de Nova Gales Comunidade Europeia da
do Sul, na Austrália, que reanalisaram a escrita cunei- Reino Unido deve Energia Atômica e nos
forme do tablete Plimpton 322, hoje parte do acervo gastar € 1,3 bilhão programas Copernicus,
da Universidade Columbia, em Nova York (Historia por ano para de monitoramento
continuar em
Mathematica, 24 de agosto). Desde os anos 1940, terrestre, e Galileo, o
projetos europeus,
alguns historiadores sugerem que a peça contém uma como o sistema de sistema de navegação
série de números que se assemelham ao teorema de navegação Galileo global da UE.
Pitágoras, segundo o qual o quadrado da hipotenusa,
o lado mais longo de um triângulo retângulo, é igual
à soma dos quadrados dos outros dois lados. Agora
a dupla australiana foi além em sua interpretação da
peça, composta de quatro colunas e 15 linhas com
números. Eles dizem que o tablete expressa as noções
de trigonometria por meio da matemática sexagesimal
(baseada no número 60) inventada pelos sumérios e
depois assumida pelos babilônios. “Essa é uma maneira
totalmente diferente de olhar para a trigonometria”,
disse Mansfield à revista Science. “Temos de sair mes-
mo da nossa cultura para ver as coisas na perspectiva
deles se quisermos entender o tablete.” A releitura do
conteúdo da peça de argila foi alvo de distintas rea-
ções. Alguns matemáticos elogiaram o estudo, outros
o classificaram como especulativo. 5

PESQUISA FAPESP 259 | 13


A importância de a hipertensão e o fumo
cada fator de tiveram uma redução
acentuada como fator
risco no derrame de risco para derrame.
Na população
O peso somado dos afrodescendente, a queda
cinco principais fatores desses dois fatores foi
de risco para a menos expressiva. Estar
ocorrência de derrame acima do peso, que nos
– hipertensão, diabetes, anos 1990 tinha uma
tabagismo, obesidade influência insignificante
e colesterol elevado – no desencadeamento de
na população dos derrames, hoje está mais
Estados Unidos diminuiu associado à ocorrência
significativamente do problema, sobretudo
entre 1990 e 2010. entre os negros.
1 A proporção de casos “Contudo, por predispor
Engenheiro- da doença associados a ao desenvolvimento de
-agrônomo, eles caiu de 73% para hipertensão e diabetes,
Morre Julio Cezar Durigan tinha
63 anos
41% (The New England a obesidade representa
Journal of Medicine, um importante fator
Durigan, ex-reitor 25 de maio). A queda, de risco a ser prevenido
no entanto, foi muito e tratado em toda a
da Unesp mais expressiva nos população”, alerta o
indivíduos brancos cardiologista Wilson
O engenheiro-agrônomo Julio Cezar Durigan, do que nos negros (ver Nadruz, da Universidade
membro do Conselho Superior da FAPESP, gráfico). Entre a parcela Estadual de Campinas
morreu na madrugada de 8 de setembro em caucasiana da amostra (Unicamp), principal
São Paulo, aos 63 anos, em decorrência de de 15.350 adultos que autor do estudo, feito
câncer. Durigan foi reitor da Universidade foram acompanhados em parceria com colegas
Estadual Paulista (Unesp) de janeiro de 2013 por duas décadas, dos Estados Unidos.
a janeiro de 2017. Na mesma universidade, foi
também vice-reitor no exercício da reitoria
de janeiro de 2011 a janeiro de 2013, vice- %
-reitor de janeiro 2009 a janeiro de 2011 e Peso dos principais População branca
pró-reitor de Administração de janeiro de fatores de risco
para a ocorrência
2005 a janeiro de 2009. Desde 1997 era 47
de derrame nos
professor titular do Departamento de Fitos- 41
estados unidos
sanidade da Faculdade de Ciências Agrárias 35
(em %) 28
e Veterinárias (FCAV) da Unesp em Jaboti- 20
22 18
cabal. Nessa faculdade, Durigan formou-se 14 13
n Hipertensão 12
engenheiro-agrônomo em 1975 e se tornou n Tabagismo 14 14 13 10 7
mestre em produção vegetal em 1978. Con- n Diabetes 3 4 4 5 5
cluiu o doutorado em solos e nutrição de n Obesidade
3 1 0 0 0
plantas na Escola Superior de Agricultura n Colesterol elevado 1990 1995 2000 2005 2010
Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo
(Esalq-USP) em 1983. Sua especialidade era
o estudo de ervas daninhas. Foi presidente da População negra
Sociedade Brasileira de Ciências das Plantas
Daninhas de 2003 a 2005 e vice-presidente 65
63
versão atualizada em 19/10/2017

da Asociación Latinoamericana de Malezas 60


56
de 2001 a 2003. Entre outros cargos, ocupou
51
a direção da FCAV e a vice-presidência da 36 32
Asociación Universitaria Iberoamericana de 26 19 12
17
Postgrado e foi membro dos conselhos da 16 14 13 12
Associação das Universidades de Língua 16 10 4 8 9
0 1 4 0 0
Portuguesa, do Memorial da América Latina e
da TV Cultura, da Fundação Padre Anchieta. 1990 1995 2000 2005 2010

14 | setembro DE 2017
Optics Letters
destaca artigos
de brasileiros

A revista científica
Optics Letters, um dos
mais tradicionais e
respeitados periódicos
na área de óptica e
fotônica, completou
40 anos em julho deste
ano e celebrou a data
fazendo uma revisão de
sua contribuição para o
desenvolvimento dessa
área da física. Elaborou
um ranking dos 100
artigos científicos de
maior impacto (citados
mais vezes por outros
artigos) na história da
revista, selecionados
entre os mais de 100 mil
publicados em quatro
décadas de existência 2

(bit.ly/2gQUce8). O European X-ray


Cinco dos artigos que Free Electron Laser

integram a seleta lista


(E-XFEL) é um
projeto de 11 países e
Entra em funcionamento a
têm como coautores
quatro pesquisadores
custou € 1,22 bilhão
maior fonte de laser de raios X
brasileiros. Vilson Rosa
de Almeida, engenheiro A maior e mais poderosa fonte de laser de raios X foi inaugurada
eletrônico graduado pelo oficialmente em 1º de setembro na Alemanha. O European X-ray
Instituto Tecnológico de Free Electron Laser (E-XFEL), um projeto de 11 países do Velho
Aeronáutica (ITA), onde Mundo que custou € 1,22 bilhão e começou a ser construído em
é pesquisador, assina 2009, é composto de túneis subterrâneos de até 38 metros de
três trabalhos sobre profundidade que formam um acelerador linear de elétrons com
como confinar e mestrado e doutorado 3,4 quilômetros de extensão entre as cidades de Hamburgo e
controlar a luz em em física pela Unicamp, Schenefeld. O equipamento gera 27 mil pulsos de luz por segundo,
estruturas nanométricas, Brito Cruz desenvolveu 200 vezes mais do que qualquer outra fonte de laser de raios X.
publicados durante o artigo, no qual Com o E-XFEL, os pesquisadores do consórcio europeu esperam
seu doutorado na descreve a produção de obter imagens tridimensionais em nível atômico de uma série de
Universidade Cornell, pulsos de luz ultracurtos processos, como reações químicas envolvendo células e vírus,
nos Estados Unidos. Em (com duração de interações extremamente velozes de nanoestruturas e simula-
dois dos artigos, Almeida femtossegundos), ções do que ocorre no interior do Sol. Segundo disse à agência
tem como coautor o durante estágio de France Presse Robert Feidenhans, diretor-geral do E-XFEL, o
físico Roberto Panepucci, pós-doutoramento nos equipamento “é como uma câmera e um microscópio que tornará
do Centro de Tecnologia Laboratórios Bell, nos possível ver mais detalhes ínfimos de processos do mundo nano
da Informação Renato Estados Unidos. Outro como nunca se viu”. Para gerar os pulsos de raios X, feixes de
Archer, em Campinas. brasileiro que integra elétrons são acelerados quase à velocidade da luz até produzir
Um quarto artigo é de o ranking é o físico altas energias. Em seguida, são direcionados por um arranjo de
autoria do físico Carlos Walter Margulis, hoje dispositivos magnéticos, denominados onduladores. Durante o
fotos 1 unesp 2 E-XFEL

Henrique de Brito Cruz, pesquisador na Suécia, processo, as partículas emitem radiação que é amplificada até
diretor científico da com um artigo de 1986 se tornar um pulso de raios X extremamente curto e intenso,
FAPESP. Também mostrando que as fibras com características similares à da luz laser. A Alemanha bancou
graduado em engenharia ópticas podem dobrar 58% dos custos do E-XFEL e a Rússia, segundo maior sócio do
eletrônica no ITA, com a frequência da luz. empreendimento, 27%.

PESQUISA FAPESP 259 | 15


Uma nova fonte
de ondas
gravitacionais? 2

Mensagens postadas no Twitter


por dois astrônomos de universi-
dades norte-americanas em 18 de
agosto difundiram o rumor de que
o Observatório Interferométrico de
Ondas Gravitacionais (Ligo) teria
feito uma nova grande descoberta.
Desde setembro de 2015, o Ligo
mediu em três ocasiões a produção
de ondas gravitacionais – oscilações
do espaço-tempo que viajam à ve- Ilustração de como
locidade da luz e esticam e compri- seria a fusão de duas
estrelas de nêutrons,
mem os objetos que encontram pelo
evento que teria
caminho – resultantes da fusão de ocorrido na galáxia
dois buracos negros. Agora o ob- NGC 4993 (detalhe)
servatório, que possui dois detecto- e liberado ondas
gravitacionais
res em solo norte-americano, teria
registrado um novo tipo de ondas
1
gravitacionais, proveniente da fusão
de duas estrelas de nêutrons, que
são corpos celestes extremamente With water, na bebida depois de
densos originados a partir da implo- please! pronta, os pesquisadores
são do núcleo de estrelas gigantes. Björn Karlsson e Ran
O evento, inédito, teria sido flagrado Alguns apreciadores de Friedman realizaram
em um ponto da galáxia NGC 4993, uísque pedem a sua dose simulações matemáticas
que fica na constelação austral de com gotas de água – do comportamento do
Hidra, a 130 milhões de anos-luz With water, please! composto em amostras
da Terra. O boato se espalhou e foi Assim, dizem, a bebida de uísque contendo
parar nos sites de revistas de divul- se torna mais saborosa diferentes níveis de etanol.
gação científica, como a britânica e aromática. Dois Logo após a destilação,
New Scientist, e da Nature. Os meios Uísque diluído pesquisadores da a concentração de álcool
de comunicação confirmaram que com água facilita Universidade Linnaeus, chega a 70% do volume
liberação do
houve pedidos do Ligo e do Virgo, na Suécia, decidiram da bebida. Esse teor
composto
o observatório europeu de ondas guaiacol, um dos investigar se haveria diminui para algo entre
gravitacionais situado na Itália, responsáveis pelo algum fenômeno 55% e 65% durante a
para que telescópios no espaço e seu sabor e aroma químico que exaltasse maturação nos barris de
em terra firme apontassem seus ins- os sabores e os aromas carvalho e baixa para 40%
trumentos para essa galáxia a fim do uísque e a resposta quando a bebida é diluída
de tentar produzir alguma imagem a que chegaram parece para ser engarrafada.
do fenômeno. No dia 25 de agosto, justificar o hábito: até Nas simulações, a dupla
a colaboração americano-europeia certo ponto, a diluição observou que o guaiacol
emitiu um comunicado dizendo que em água facilita a se associa ao etanol e
“alguns [eventos] promissores de liberação do composto se concentra próximo à
ondas gravitacionais foram identifi- guaiacol, um dos interface entre o líquido
cados nos dados do Ligo e do Virgo principais responsáveis e o ar, favorecendo sua
durante nossas análises prelimina- pelo sabor e aroma de evaporação quando os
res e dividimos o que atualmente tostado dos uísques. níveis de álcool variam
sabemos com parceiros da área de Para saber como seria de 27% a 45% (Scientific
astronomia gravitacional”. 3 a liberação do guaiacol Reports, 17 de agosto).

16 | setembro DE 2017
4

Um telescópio
no sertão
A incerteza de
investimentos em
infraestrutura e
dificuldades de
negociação barraram
a possibilidade de
construção no Uruguai,
como previsto
inicialmente, do
radiotelescópio Bingo,
um projeto internacional
liderado por físicos de
São Paulo que vai
examinar os efeitos da
interação entre o
hidrogênio e a radiação
eletromagnética (ver
Pesquisa FAPESP
nº 252). No início de
setembro, durante
a reunião anual da
Sociedade Astronômica
Brasileira, o físico Carlos
Alexandre Wuensche,
pesquisador do Instituto Iniciativas como o
Nacional de Pesquisas OMC considera ilegais Inovar Auto, de
incentivo à indústria
Espaciais (Inpe) e um
sete programas do Brasil automobilística,
fotos 1 Nasa Goddard/Albert Einstein Institute 2 Digitized Sky Survey 3 publicdomainpictures.net  4 Alberto Coutinho / GOVBA

dos coordenadores do foram condenadas


projeto, anunciou que o pela Organização
telescópio deverá ser A Organização Mundial do Comércio (OMC) tornou público um Mundial do Comércio

construído em um vale relatório em que considera ilegais sete programas da política


da serra do Urubu, industrial do Brasil: a Lei de Informática, o Inovar Auto, o Padis
no município de Aguiar, (desenvolvimento tecnológico na indústria de semicondutores),
oeste da Paraíba. dois regimes de isenção a empresas exportadoras (Recap e PEC),
Segundo Wuensche, além de dois programas já encerrados, o PATVD (de equipamentos
o lugar foi escolhido para TV digital) e o de inclusão digital. O documento condena a
em conjunto com forma como o país estimulou a produção nacional nesses setores,
pesquisadores da por meio da concessão de isenções ou da suspensão de impostos
Universidade Federal de sobre o produto final que não se estendem a concorrentes impor-
Campina Grande e os tados. O governo brasileiro anunciou que vai recorrer ao órgão de
R$ 12 milhões obtidos por apelação da OMC contra a denúncia. Os programas são questio-
meio de financiamento nados pela União Europeia e pelo Japão por serem considerados
da FAPESP poderão subsídios incompatíveis com as regras internacionais. O prazo
cobrir a maior parte para encaminhar o recurso é de 60 dias, e a decisão final do órgão
dos custos do projeto, indicará quanto tempo o Brasil terá para suspender ou modificar
do qual participam os programas caso perca a apelação, informou Carlos Márcio Co-
pesquisadores e zendey, subsecretário de Assuntos Econômicos e Financeiros do
instituições do Brasil, Itamaraty, durante coletiva de imprensa. Enquanto isso, o governo
Uruguai, Reino Unido, da discute o que fazer caso haja uma condenação definitiva. A Lei
Suíça e China. Medições de Informática, por exemplo, pode passar por reformulação para
indicaram que a serra incorporar políticas para a internacionalização das empresas de
do Urubu é praticamente software, investimentos de P&D em startups, desburocratização
livre de interferências dos mecanismos de estímulo e perder as isenções de impostos.
externas e um bom lugar
para abrigar o Bingo.

PESQUISA FAPESP 259 | 17


capa Poluição Qualidade do
ar é monitorada em
vários pontos da cidade
Segurança Água Sensores
Análise de dados detectam
e imagens sobre vazamentos e
crimes subsidia emitem alertas
policiamento instantâneos

Transporte público Usuários são


avisados sobre localização de
Cidades monitoradas
ônibus e trens e tempo de espera

Tráfego Sensores, câmeras


e motoristas conectados
orientam fluxo de carros

Energia Falhas
na distribuição

O Brasil da
de eletricidade
e desperdícios
são detectados

E
Estudo mostra que m um mundo cravejado por sensores conectados à
internet, agricultores confiam a algoritmos a deci-
ambientes conectados têm são sobre o momento de lançar no solo sementes e
fertilizantes, equipamentos coletam sangue para
potencial para aumentar a exame e processam o diagnóstico rapidamente em
produtividade da economia uma nuvem computacional remota, vazamentos de água são
detectados e corrigidos instantaneamente e indústrias mo-
e impulsionar empresas nitoram a sua linha de produção em tempo real, reduzindo
estoques ao mínimo e cortando custos de logística e de ma-
inovadoras nutenção. Esse mundo, o da Internet das Coisas (IoT), migra
velozmente dos laboratórios para a vida real em países como
Estados Unidos, Alemanha, Japão e Reino Unido e é palpável
Fabrício Marques também no Brasil, onde começa a ser visto como uma alter-
nativa para enfrentar a dificuldade de aumentar a produti-
vidade da economia ou as ineficiências do sistema de saúde.
Esse potencial é tangível no estudo “Internet das Coisas:
Um plano de ação para o Brasil”, feito por um consórcio de
instituições sob encomenda do Banco Nacional de Desen-
volvimento Econômico e Social (BNDES) em parceria com
Máquinas Sensores
controlam máquinas
e norteiam paradas e
manutenção
Controle de qualidade
Insumos ou amostras
do produto são Ambiente Configurações
avaliados de modo de equipamentos se
automático autoajustam quando
muda a temperatura
indústrias conectadas
Segurança Detecção
Suprimentos Estoques instantânea de falhas
são verificados de modo ou riscos emite alertas
contínuo e orientam
compras e distribuição

Gestão de dados Algoritmos


processam informações sobre a
produção e sugerem decisões
Fonte das ilustrações  Internet das coisas, um plano de ação para o brasil

o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e importância econômica; e para a indústria, pela


ilustrações  barbara malagoli

Comunicações (MCTIC). Em fase de conclusão, possibilidade de produzir riqueza. Temos a opor-


o trabalho custou R$ 10 milhões e traz o estado tunidade de desenvolver tecnologia tendo como
da arte da IoT em economias avançadas e emer- alicerce o mercado interno”, completa.
gentes. Foram realizadas entrevistas em dezenas A ideia de conectar objetos à internet é quase
de empresas, promovidos eventos para discussão, tão antiga quanto a própria rede mundial de com-
consideradas mais de 2 mil contribuições feitas putadores. O que mudou nos últimos anos foi o
de consultas públicas e mapeadas as aspirações barateamento de tecnologias de microeletrônica
do Brasil nessa fronteira tecnológica. e de sensoriamento e a gigantesca expansão da
Como resultado, o documento aponta nichos conectividade. Segundo dados da consultoria
tecnológicos e segmentos da economia em que o Gartner, funcionam hoje no mundo 8,4 bilhões
país teria mais capacidade de competir. Quatro de objetos conectados, como smart TVs, auto-
ambientes foram identificados como prioritários móveis, sistemas inteligentes de iluminação ou
para investimento: o agronegócio, a saúde, as ci- equipamentos industriais, entre vários outros. O
dades inteligentes e a indústria. “São setores em número é 31% maior do que o de 2016 e, segundo
que já existem empresas consolidadas no Brasil a Gartner, deve crescer em 2020 para 20 bilhões
e há boas oportunidades para desenvolver ino- de “coisas” ligadas à internet. “Um aplicativo co-
vações”, afirma a engenheira Maria Luiza Car- mo o Uber é Internet das Coisas em estado puro.
neiro da Cunha, do Departamento de Tecnologia Automóveis e passageiros se rastreiam por meio
da Informação e Comunicação do BNDES e uma do celular e se encontram”, exemplifica Oliveira.
das coordenadoras do estudo, executado por um O potencial impacto socioeconômico da In-
consórcio que reúne o Centro de Pesquisa e De- ternet das Coisas na produtividade da econo-
senvolvimento em Telecomunicacões (CPqD), a mia brasileira e no aperfeiçoamento de serviços
consultoria McKinsey e o escritório de advocacia públicos foi estimado pela consultoria McKinsey
Pereira Neto Macedo. em até US$ 200 bilhões – o equivalente a aproxi-
Esses ambientes são apontados como promis- madamente 10% do PIB de 2016 –, considerando
sores por se valerem de grandes demandas na- a utilização em diversos segmentos da economia
cionais. “A maioria da população brasileira vive descritos no plano até 2025. No transporte rodo-
no meio urbano e iniciativas em cidades inteli- viário, o monitoramento de mercadorias em tempo
gentes podem atenuar problemas de mobilidade real pode reduzir até 25% dos custos e a escolha
e melhorar a qualidade de vida”, explica Vinícius inteligente de rotas em até 20%, de acordo com
Garcia de Oliveira, pesquisador da Fundação o levantamento, que enumera outras possibilida-
CPqD e responsável pela vertente tecnológica des. Por exemplo, a utilização de IoT pode ajudar
do estudo. “A mesma lógica vale para a frente a detectar crimes e roubos, por meio de câmeras
da saúde, pelo potencial de melhorar o atendi- nas ruas e sensores em automóveis, ou planejar
mento à população; para o agronegócio, por sua ações policiais através da análise de grandes vo-

PESQUISA FAPESP 259 | 19


Água Sensores Carga Produtos são
do solo norteiam rastreados durante transporte
irrigação e armazenamento
específica para
cada área

fazendas inteligentes

Gado Chips
reúnem dados
sobre os animais
do nascimento
ao abate

Safra
Propriedades
Produtividade é
do solo Dados
medida em tempo
de sensores
real durante a culatura para integrar o pelotão das nações que
orientam uso de
colheita buscam se destacar em vertentes tecnológicas sementes e
específicas, como a Alemanha no campo da ma- de agroquímicos
nufatura avançada ou a Espanha e a China no de
cidades inteligentes. Mas pode aspirar a ser uma
referência em países emergentes e a fortalecer a
lumes de dados sobre locais e horários de delitos. indústria e a exportação de produtos nacionais,
O uso de sensores móveis de monitoramento da melhorando a eficiência e a competitividade dos
qualidade do ar e sistemas de alerta em telefones setores público e privado. O trabalho também
celulares devem reduzir em 90% os gastos com apontou um grupo de setores industriais, como
equipamentos para controle da poluição. o de petróleo e gás, de mineração, o automotivo
e o têxtil, que mereceriam ser alvo de políticas
diagnóstico na nuvem específicas e servir de modelo para a implanta-
Empresas e instituições de pesquisa brasileiras já ção posterior em outros segmentos. “São setores
trabalham em soluções para os diversos ambien- com um nível de maturidade superior ao dos
tes. Uma empresa de Curitiba, a Exati, desenvol- demais. Os de petróleo e gás, por exemplo, já
veu uma plataforma para gestão de iluminação têm um histórico consistente de investimentos
pública que está sendo usada em 200 cidades em pesquisa e desenvolvimento”, afirma Maria
brasileiras, utiliza sensores e comunicação sem Luiza Carneiro da Cunha.
fio e agora é aperfeiçoada em parceria com o O BNDES e o MCTIC encomendaram o levan-
CPqD. A Hi Technologies, também de Curitiba, tamento para municiar o Plano Nacional de Inter- Equipamento
está testando com quatro clientes um equipa- net das Coisas, que deve ser lançado pelo governo coleta amostra
mento de diagnóstico, o Hi Lab, que recebe uma no fim de outubro. Trata-se de um conjunto de de sangue e
gota de sangue, submete a amostra a reagentes, estratégias e políticas públicas que busca envolver envia dados
para a nuvem
envia os dados para uma nuvem computacional empresas, governo e instituições de pesquisa na computacional
que os processa e devolve o resultado. “É possí- disseminação do uso de equipamentos conecta- que processa o
vel fazer um teste de zika em 20 minutos ou um dos à internet na indústria e em serviços no país. diagnóstico
diagnóstico de gravidez em 10 minutos”, afirma Vinícius Oliveira, da Fundação fotos 1  hi technologies  2  vivint ilustração barbara malagoli

Marcus Figueiredo, CEO da empresa. “O poten- CPqD, observa que a Internet


cial da IoT em produtos e serviços em saúde é das Coisas tem um perfil mais
muito grande e vamos lançar outros produtos na inclusivo do que o de tendências
esteira do Hi Lab.” O BNDES aprovou em agosto tecnológicas anteriores. “A IoT
um financiamento de R$ 13 milhões para a In- é a terceira onda da internet. A
metrics, empresa de TI baseada em São Paulo, primeira foi o advento da inter-
para desenvolver uma plataforma de Internet net comercial e a segunda o da
das Coisas a ser franqueada a outras empresas e internet móvel. Ambas foram
provedores independentes de novas aplicações. bastante homogêneas e deram
Uma premissa do estudo é que o Brasil não origem a gigantes de tecnologia
dispõe de recursos humanos e financeiros para como a Dell, a Qualcomm ou o
buscar uma posição de liderança global em IoT, Facebook”, diz. “Já a Internet
uma corrida disputada por Estados Unidos, Rei- das Coisas cria um cenário he- 1
no Unido e Coreia do Sul. Tampouco tem mus- terogêneo e muito mais demo-

20 | setembro DE 2017
Os países que patentes publicações científicas

se destacam
Estados Unidos 3.188 China 4.995
Patentes e publicações
científicas sobre Internet
das Coisas relativas ao China 562 Estados Unidos 2.394

ano de 2016
Coreia do Sul 332 Reino Unido 1.139

Fonte iot analytics, elsevier

Japão 208 Índia 1.138

Reino Unido 93 Alemanha 1.128

crático. Uma solução para rastrear uma frota de mo ano, houve um crescimento significativo de
caminhões é diferente de uma solução de ilumi- projetos envolvendo inovações em Internet das
nação pública inteligente e isso cria um ambien- Coisas submetidos ao programa Pesquisa Inova-
te repleto de oportunidades para as empresas. É tiva em Pequenas Empresas (Pipe), da FAPESP.
possível haver 10 empresas brasileiras de médio Atualmente, há 21 projetos em andamento lide-
porte trabalhando com IoT em iluminação pú- rados por startups do estado de São Paulo que
blica, cada uma com sua solução.” desenvolvem soluções em IoT aplicadas a servi-
Pequenas empresas de base tecnológica se mo- ços de saúde, rastreamento de veículos, manejo
vimentam para explorar esse mercado. No últi- de gado, automação predial e gestão de energia,
entre outros. Antes dessa
safra de projetos, o progra-
ma Pipe havia financiado
apenas uma dezena de em-

Serviço para
presas dedicadas ao tema.
Para patrocinar a am-

casas inteligentes
pliação da Internet das
Coisas no Brasil, o plano
vai propor uma articulação
entre agências de fomento
Num período de 24 meses, entre o e ministérios que coorde-
4º trimestre de 2014 e o 3º nam recursos oriundos da
trimestre de 2016, fundos de desoneração tributária de
venture capital e de private equity setores da economia, como
dos Estados Unidos investiram o MCTIC. Segundo Maxi-
miliano Martinhão, secre-
2
US$ 7,2 bilhões em empresas que
oferecem soluções ou serviços em canadenses assinaram o plano mensal tário de Política de Informática do MCTIC, a
Internet das Coisas. Um dos da empresa, que custa entre US$ 40 e sinergia ajudaria a criar um ambiente capaz de
destaques é a Vivint, que comercializa US$ 80, e instalaram em suas casas alavancar o investimento em IoT no Brasil. “Espe-
sistemas para casas inteligentes, um sistema de controle de ramos que o investimento privado possa suprir a
apontada como a startup de IoT que iluminação, termostatos e fechaduras maior parte da carência da nossa infraestrutura”,
mais atraiu investimentos no país nos inteligentes, com câmeras e sensores, diz o secretário. Já Ailtom Nascimento, vice-pre-
últimos cinco anos, de acordo com a que pode ser controlado dentro do sidente da Stefanini, multinacional brasileira de
base de dados CB Insights. Em abril de ambiente ou a distância por meio de serviços de TI, considera que o futuro do plano
2016, o investidor Peter Thiel, criador um aplicativo de celular. “Nós não dependerá em grande medida da disponibilidade
chaves 2 nonononno

do sistema on-line de transferência de vendemos um pedaço de hardware e de investimentos públicos. “É possível celebrar
dinheiro PayPal, e o fundo de capital vamos embora”, disse o fundador da parcerias entre governo e empresas, mas os in-
de risco Solamere investiram US$ 100 empresa, Todd Pedersen ao site de vestimentos que se referem à infraestrutura de
nonononono

milhões na Vivint, sediada em Utah, notícias Business Insider. “Os clientes serviços públicos, no campo da mobilidade ur-
bana ou da oferta de internet na área rural, vão
1 e 3ramos

cujo modelo de negócios é baseado querem um serviço que funcione.”


em prestação de serviços. Mais de Um exército de 2,5 mil vendedores necessitar de incentivo do Estado”, contrapõe.
fotos  léo

1 milhão de norte-americanos e porta a porta impulsiona as vendas. “O cenário econômico atual não cria perspecti-
vas animadoras de curto prazo.”

PESQUISA FAPESP 259 | 21


po, a formação de redes de inovação para os am-
bientes destacados pelo estudo, essas de caráter
virtual, reunindo grupos de pesquisa espalhados
pelo país. “As redes de inovação serão orientadas
pela demanda de soluções de grandes proble-
mas e os centros de competência tecnológicos
irão apoiar e fortalecer as cadeias produtivas”,
considera Martinhão. Essa estrutura deverá se
debruçar sobre uma série de gargalos tecnoló-
gicos, como o desenvolvimento de sistemas de
segurança e de privacidade, de dispositivos de
baixo consumo de energia e de baterias de longa
duração, o aprimoramento da conectividade entre
sistemas e máquinas, a capacidade de trabalha-
rem de forma conjunta, entre outras.
No Brasil, um dos grandes obstáculos para a
expansão de negócios em Internet das Coisas são
as deficiências da infraestrutura de telecomuni-

foto  nexxto ilustração barbara malagoli


Sensores monitoram gôndolas de supermercado e alertam cações, observa o engenheiro Antonio Rossini,
se a temperatura fica abaixo do recomendado um dos fundadores da Nexxto, empresa de São
Paulo que oferece serviços em IoT para monito-
rar temperatura e umidade na cadeia de alimen-
A Stefanini ingressou no mercado da Internet tos. “O Brasil é um país continental e é comum
das Coisas com aplicações na indústria de mine- sair da cidade e perder a conectividade do ce-
ração e na agricultura. Por exemplo, monitora por lular. Essa é uma dificuldade concreta para ex-
meio de sensores 529 quilômetros de dutos que pandirmos nossos serviços para o agronegócio”,
escoam minérios de Minas Gerais até o Porto Su- avalia Rossini. A Nexxto, que recebeu apoio da
deste, em Itaguaí, na Região Metropolitana do Rio
de Janeiro. As informações, transmitidas para salas
de controle em diversas estações ao longo do duto,

Estrutura para Internet das Coisas


permitem intervenções instantâneas caso alguma
coisa fuja da rotina. A capacidade de escoamento
do mineroduto, que pertence à Anglo American e
passa por 32 cidades, é de 26,5 milhões de tonela-
das de polpa de minério de ferro por ano. O mer- As redes que vão dar suporte à Suas antenas são pequenas – do
cado de IoT ainda não chega a 7% do faturamento Internet das Coisas no Brasil tamanho de uma torradeira – e em
do grupo Stefanini, mas a aposta é de crescimento. utilizam tecnologias e frequências áreas rurais conseguem cobrir até
“Está acontecendo uma transformação digital na diferentes da internet comercial. 40 quilômetros de raio. “Ainda falta
cadeia logística do mundo inteiro e o Brasil já é A faixa de frequência reservada nas determinar em que frequência o
parte dessa mudança”, afirma Nascimento. Ele Américas para a transmissão de Brasil vai transmitir dados de IoT,
adverte que o investimento em novas tecnologias dados em IoT é a de 902 mega-hertz porque a de 908 MHz a 915 MHz,
não deve ser visto como uma panaceia. “A Internet (MHz) a 928 MHz – a nova que está dentro da faixa utilizada
das Coisas pode ajudar a melhorar o escoamento frequência de internet 4G no Brasil, internacionalmente, pertence no
da produção, mas, se a estrada for ruim e o cami- por exemplo, é de 700 MHz. Os Brasil a uma operadora de telefonia
nhão atolar, não há como resolver o problema”, dados captados por sensores são e não está disponível”, explica
observa. “Os investimentos na infraestrutura de transmitidos em pacotes na casa de Herlon Oliveira, vice-presidente da
estradas, portos e aeroportos continuarão sendo poucas dezenas de bytes, bem mais Associação Brasileira de Internet
fundamentais como são hoje.” leves do que as informações e das Coisas (Abinc). Oliveira, que
imagens transmitidas pela internet tem uma empresa que presta
centros de competência convencional. Isso, aliado à serviços em IoT em propriedades
A limitação de recursos é uma preocupação do necessidade de operar com custos rurais, diz que seus clientes sempre
plano, que propõe ampla cooperação entre em- mais baixos, levou ao perguntam se a qualidade da
presas, universidades e agências financiadoras desenvolvimento de padrões internet nas fazendas vai melhorar
para evitar a pulverização de investimentos e o tecnológicos específicos para IoT, com a instalação de redes de
isolamento dos grupos de pesquisa. O modelo que são as redes Low Power Wide Internet das Coisas.
proposto se baseia na criação de centros de com- Area (LPWA). Há padrões em teste “Ficam decepcionados quando
petência, sediados em instituições com vocação no Brasil, como o Sigfox, de origem eu explico que são estruturas
para desenvolver tecnologias específicas, como francesa, e o norte-americano LoRa. paralelas”, afirma.
nanotecnologia e conectividade, e, em outro cam-

22 | setembro DE 2017
saúde sob controle Exames Material
coletado é
avaliado por
sensores e
diagnóstico é
processado por
computador em
nuvem

Consulta remota
Parâmetros de
saúde do
Desempenho Dispositivos Equipamentos Sensores paciente Medicamentos
acoplados ao corpo captam rastreiam uso de transmitidos por Etiquetas inteligentes
dados vitais e de desempenho aparelhos hospitalares e celular orientam em lotes de remédios
e dão recomendações programam manutenção atendimento previnem falsificações

FAPESP por meio do programa Pipe, tem mais professor do Departamento de Engenharia de
de mil sensores acompanhando em tempo real Construção Civil da Escola Politécnica da USP,
a operação de 25 clientes, como supermercados que lidera um projeto de pesquisa para avaliar o
que controlam a temperatura de suas gôndolas e impacto de tecnologias de IoT em canteiros de
redes de farmácia que monitoram a distribuição obras. A tendência de contratação de serviços
de medicamentos. O problema tornou-se evi- de startups já é visível no campo da manufatura
dente em uma experiência-piloto que a Nexxto avançada (ver reportagem na página 26).
fez com um fabricante de carnes, que contratou Para Herlon Oliveira, vice-presidente da Asso-
a empresa para conservar lotes de vacinas no va- ciação Brasileira de Internet das Coisas (Abinc),
lor de R$ 400 mil que deveriam o foco deveria ser a formação de cientistas da
ser mantidas em temperaturas computação, profissionais capazes de criar os
entre 2 e 8 graus Celsius e dis- algoritmos que processam a massa de dados pro-
Programa Pipe, tribuídas a produtores em cida- duzidos por sensores e, dessa forma, apoiam a to-
des espalhadas pelo país. “Onde mada de decisões. “Não é necessário desenvolver
da FAPESP, existe alguma conectividade, no Brasil tecnologias que já são consagradas e
é possível usar antenas de alto viraram commodities – hoje, há sensores vendi-
está apoiando ganho e repetidores de sinal, dos por centavos de dólar. Já os algoritmos são
21 projetos mas, para oferecer um serviço a chave para a oferta de serviços de qualidade
de alta qualidade, seria preciso e precisamos ter massa crítica para criá-los”,
de empresas ter uma conectividade perfeita.” afirma Oliveira, que é presidente da Agrus Data,
empresa criada em 2015 que oferece serviços em
inovadoras sobre startups IoT na agricultura. O carro-chefe da empresa é
A formação de recursos huma- um software que, a partir da coleta de dados fei-
Internet das nos é um desafio para o Brasil, ta por sensores em extensas áreas agrícolas e o
Coisas segundo o estudo do BNDES cruzamento com previsões meteorológicas, usa
e do MCTIC: apenas 0,9% do um algoritmo para sugerir o melhor momento de
total de brasileiros empregados lançar sementes, fertilizantes ou agroquímicos.
trabalha com tecnologias de in- Se é preciso formar profissionais especializa-
formação e comunicação, ante 3,7% nos países da dos, há também que se preocupar com o impacto
União Europeia e 3,3% nos Estados Unidos. Mas da Internet das Coisas na mão de obra com baixa
a carência ainda não tem impacto na fase atual qualificação. O estudo do BNDES reconhece que
de implantação de IoT. “Nossas universidades a IoT pode levar à extinção de postos de trabalho,
formam uma boa quantidade de engenheiros e por conta da automação de atividades industriais e
especialistas em TI e muitas empresas, em um de serviços e da assimetria entre o número de em-
quadro de crise econômica, resistem a contra- pregos extintos e os gerados por novas atividades.
tar essa mão de obra, considerada cara. Talvez E adverte que o problema tem sido encaminhado
por isso muitos profissionais criem startups que em outros países por meio de programas de trans-
oferecem produtos e prestam serviços”, infor- ferência de renda e de requalificação profissional
ma o engenheiro mecatrônico Fabiano Corrêa, ou de redução de jornada de trabalho. n

PESQUISA FAPESP 259 | 23


1

A corrida da

Estratégias para impulsionar a manufatura avançada no Brasil incluem


a criação de centros de pesquisa e o apoio de startups

E
ntidades empresariais, governo e agên- da máquina a vapor, com a chegada da energia Montagem de
aviões da
cias de fomento discutem estratégias pa- elétrica a unidades fabris, no século XIX, e, num Embraer aboliu
ra estimular e organizar a disseminação passado mais recente, com a integração da eletrô- os desenhos em
da manufatura avançada no Brasil, um nica e da automação no chão de fábrica. papel e todo o
conjunto de tecnologias que sustentam proces- O avanço da manufatura avançada em diversas processo é
monitorado
sos industriais inteligentes. O desafio é garantir cadeias produtivas terá impacto crescente sobre a digitalmente
competitividade à indústria brasileira frente a indústria nacional, afirma o economista Rafael Mo-
uma transformação que ganha corpo na Europa reira, assessor para Indústria 4.0 do Ministério da
e nos Estados Unidos, dando mais eficiência e Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC).
flexibilidade a linhas de produção e reduzindo “Será cada vez mais intensa a pressão competitiva e
custos. A tendência também é conhecida como as empresas brasileiras vão sentir a necessidade de
Indústria 4.0, alusão ao que seria uma quarta se modernizar”, sugere Moreira, que coordena um
revolução industrial – com impacto na forma de grupo de trabalho do MDIC criado em julho com
produzir equivalente ao obtido com a invenção a missão de estabelecer uma política nacional de

24 | setembro DE 2017
Uso de polímero
para impressão
em 3D em planta
de demonstração
de manufatura
aditiva do
Laboratório
Nacional Oak
Ridge, Estados
Unidos

manufatura avançada. “Algumas empresas brasi- da indústria e do desenvolvimento brasileiro”,


leiras já se posicionam nos estágios mais maduros afirmou.
da Indústria 4.0, mas são exceção. Certas institui- A manufatura avançada se baseia em uma com-
ções de pesquisa estão no estado da arte de algu- binação de tecnologias. Uma delas são os sistemas
mas tecnologias da Indústria 4.0, embora tenham ciberfísicos, capazes de monitorar, por meio de
conexão fraca com o tecido industrial.” Para ele, sensores e softwares, um conjunto de dispositi-
será um desafio equilibrar as demandas de seg- vos, máquinas e equipamentos em um processo
mentos industriais brasileiros e os investimentos de manufatura e fazer com que se comuniquem
necessários em pesquisa e desenvolvimento (P&D) entre si – seu contraponto são os sistemas ele-
para a geração de novas tecnologias. Um dos focos trônicos embarcados, que funcionam de forma
do grupo do MDIC é estimular a criação de test- isolada e autônoma. Outras tecnologias envolvem
beds, que são vitrines de aplicações de conceitos a análise de Big Data para extrair tendências em
da Indústria 4.0 nas quais soluções explorando o enormes volumes de informações produzidos pe-
uso de tecnologias são testadas em um ambiente las máquinas; a computação em nuvem, em que
que simula o chão de fábrica. Os testbeds, afirma dados são armazenados; a Internet das Coisas,
Moreira, podem mostrar às empresas o potencial que coleta e transfere dados a distância (ver re-
das tecnologias e impulsionar o investimento pri- portagem na página 18); a realidade aumentada,
vado em manufatura avançada. que sobrepõe gráficos e vídeos ao mundo real,
ajudando a monitorá-lo; a impressão 3D, que
consórcios permite a fabricação de produtos customizados,
Em maio, a FAPESP abriu um edital para sele- entre outras. Tais recursos permitem trabalhar
cionar empresas ou consórcios de empresas que com um nível mínimo de estoques e conectar vá-
queiram se tornar parceiros da Fundação na cria- rios pontos das cadeias produtivas. Para países
ção de um futuro centro de pesquisa em enge- desenvolvidos, como Estados Unidos e Alema-
nharia de manufatura avançada. O prazo para nha, os ganhos de eficiência obtidos com a In-
submissão de propostas vai até 11 de fevereiro de dústria 4.0 são valiosos também para enfrentar
2018. Após a seleção, será lançada outra chamada a concorrência chinesa, já que não conseguem
fotos 1  embraer 2 oak ridge national laboratory

para selecionar instituições de ensino superior competir nos custos de mão de obra.
e de pesquisa interessadas em sediar o centro. A maioria dessas tecnologias está disponível,
Carlos Américo Pacheco, diretor-presidente do mas custa caro, observa João Alfredo Delgado,
Conselho Técnico Científico da FAPESP, des- diretor de Tecnologia da Associação Brasilei-
tacou, no lançamento do edital, que a FAPESP ra da Indústria de Máquinas e Equipamentos
acompanhou o que está acontecendo nessa área (Abimaq). “Não há nada de essencialmente no-
no mundo, mais especificamente com os progra- vo. Ocorre que essas tecnologias se sofisticaram
mas desenvolvidos na Alemanha e nos Estados e hoje permitem que as empresas comecem a
Unidos, e manteve contatos com lideranças de produzir de um modo que não conseguiam an-
associações industriais brasileiras. “É uma de- tes”, afirma. No Brasil, tecnologias de manufatura
cisão baseada em uma necessidade irreversível avançada estão sendo implantadas de forma mais

PESQUISA FAPESP 259 | 25


consistente em grandes empresas ou em filiais Empresas nacionais também se movimentam.
de multinacionais. Nas unidades da Embraer, Um exemplo é a Romi, que lançou em abril uma
por exemplo, a montagem dos aviões passou a máquina que combina usinagem com manufa-
ser feita sem uso de papel e o processo é moni- tura aditiva – ela é capaz de moldar peças me-
torado digitalmente. Milhares de desenhos são tálicas tirando ou acrescentando camadas, num
produzidos na construção de um avião – hoje eles processo semelhante à impressão
só existem em meio digital. “A integração nos dá 3D, mas feito com pó metálico, que
a oportunidade de entender o que está aconte- foi desenvolvido por uma empresa
cendo no chão de fábrica em tempo real”, disse Núcleo da da Inglaterra. “Já existem empre-
João Carlos Zerbini, gerente de Tecnologia de sas no exterior que usam soluções
Manufatura e Automação Industrial da Embraer. Abimaq reuniu desse tipo, adaptando a manufatura
O Brasil é visto como um mercado promissor aditiva a máquinas de usinagem já
para empresas que desenvolvem soluções de In-
startups que existentes”, diz Douglas Alcântara,
dústria 4.0 no exterior. A Trumpf, filial brasileira da desenvolvem gerente de engenharia de produ-
multinacional alemã que vende máquinas de usi- tos da Romi. “Nossa solução é mais
nagem a laser, vai inaugurar neste mês uma planta soluções harmônica. A máquina vem com a
de demonstração de suas soluções de Indústria 4.0 tecnologia embarcada, é capaz de
em Chicago, Estados Unidos, e está convidando um de manufatura registrar e de receber dados sobre
grupo de empresários brasileiros para conhecê- os processos e enviá-los instanta-
-la. “Como as filiais brasileiras de multinacionais
avançada neamente para os clientes.”
começam a entrar na manufatura avançada, isso Para Delgado, da Abimaq, o país
logo terá impacto nas cadeias de seus fornecedo- tem condições de se tornar um pro-
res, que serão obrigados a se adaptar”, explica João vedor de tecnologias em manufatura
Visetti, diretor-presidente da Trumpf no Brasil. A avançada. “Temos competência para
empresa investiu no aperfeiçoamento de suas má- desenvolver sensores e softwares para a Indústria
quinas, tornando-as conectáveis. “Nossa aposta de 4.0”, explica. Falta, segundo Delgado, articulação
P&D foi desenvolver softwares internamente e por entre os grupos e apoio a eles. “Conheço vários
meio da aquisição de startups especializadas em jovens pesquisadores que fizeram impressoras
soluções para indústria 4.0”, explica. 3D no Brasil, mas não há impressoras brasileiras

Inspeção inteligente
de peças
A Autaza, startup instalada numa
incubadora de empresas do Parque
Tecnológico São José dos Campos,
desenvolveu sistemas de inspeção
industrial por meio de visão
computacional que estão sendo
utilizados por montadoras de
automóvel. Através da solução criada
pela empresa, câmeras fotografam
peças numa linha de produção e descarte de peças defeituosas. adequado para impulsionar a
utilizam recursos de inteligência “A visão computacional baseia a manufatura avançada no Brasil.
artificial para avaliar a sua qualidade. inspeção em critérios matemáticos, e “A maioria das montadoras não tem
“Desenvolvemos um software que não no olho humano.” A empresa teve um sistema automático de controle
analisa a imagem de cada peça como origem um projeto feito em de qualidade e precisa de soluções
produzida e informa por meio de parceria entre a General Motors no customizadas. Uma startup como a
dados objetivos se ela está dentro dos Brasil e o Centro de Competência em nossa consegue ver suas necessidades
parâmetros de controle de qualidade Manufatura, laboratório do Instituto e desenvolver o melhor sistema de
da empresa”, conta Renan Padovani, Tecnológico de Aeronáutica (ITA), inspeção.” A inovação da Autaza está
um dos sócios da Autaza. Segundo ele, em São José dos Campos. Segundo sendo usada, além da GM, por outras
a tecnologia previne desperdício no Padovani, o modelo de startup é duas empresas no Brasil e no exterior.

26 | setembro DE 2017
2 segmentos como a indústria química e a side-
rurgia. “Nossa solução só funciona se o cliente
já tiver um nível de automação que caracterizou
a Indústria 3.0. Se não for esse o caso, é preciso
adaptar as máquinas.”
Já a Automatsmart Tech, criada há um ano e
instalada no Parque Tecnológico de Sorocaba,
criou uma plataforma de gestão de dados de ma-
nutenção industrial, baseada em algoritmos de
análise, armazenamento de dados em nuvem e uso
de dispositivos móveis. Informações coletadas no
chão de fábrica são transferidas para bancos de
dados e analisadas por algoritmos de inteligên-
cia artificial, que fazem quantificações e revelam
tendências. “As decisões sugeridas precisam ser
refinadas e validadas por um gestor, que recebe
as informações num tablet”, frisa o engenheiro
Elias Aoad Neto, gerente de Projetos e sócio da
no mercado. O problema talvez não seja tecno- Instituto empresa. A solução está sendo testada na empresa
lógico, mas de criar demanda e gerar spin-offs Fraunhofer, da Johnson Controls e os empreendedores já a estão
Alemanha,
das universidades.” desenvolve
oferecendo a grandes companhias. A empresa
O centro de pesquisa em engenharia proposto soluções de está de mudança. Foi convidada a se integrar ao
pela FAPESP pode ajudar a aglutinar esforços, manufatura Up Lab, aceleradora de empresas no Senai de São
comenta o diretor da Abimaq. “Precisamos criar avançada para a Caetano do Sul, que criou uma célula de desen-
indústria de
centros de competência para desenvolver solu- biotecnologia
volvimento de tecnologias em manufatura avan-
ções nacionais. Eles podem identificar gargalos e çada. “Vamos acelerar o crescimento da empresa
ajudar as empresas a enfrentá-los”, afirma. Com num polo especializado em Indústria 4.0”, diz.
preocupação análoga, a Abimaq criou um núcleo Para Rafael Moreira, do MDIC, não será simples
de startups que estão trabalhando com tecno- gerar políticas para a manufatura avançada que
logias em manufatura avançada. “A ideia é ver consigam articular as ações de agentes públicos e
o que elas têm de competência para fornecer”, privados. “Precisaremos de instrumentos inovado-
explica Delgado, que destaca a dificuldade das res”, diz. “Observamos que alguns países, mesmo
indústrias de fazer P&D em manufatura avan- depois de lançarem suas iniciativas para a indústria
çada. “Há muitas tecnologias envolvidas e não é Robôs que 4.0, levaram um ou dois anos para executar medidas
possível manter uma estrutura em P&D dedicada interagem com reais em cooperação com o setor privado. Houve
seres humanos
a todas elas. Nossa sugestão para as empresas é dificuldades de articulação, de desenhar projetos
estão sendo
trabalhar com grupos multidisciplinares e com desenvolvidos
viáveis e de conciliar medidas de estímulo à com-
apoio externo de centros de competência.” na Alemanha petitividade com medidas para desenvolvimento
para uso na industrial”, completa. n Fabrício Marques
indústria e em
manutenção preditiva
serviços
Uma das empresas do grupo da Abimaq é a Bir-
mind Automação, de Sorocaba, que mira grandes
clientes interessados em serviços de otimização
industrial. A empresa dispõe de um software que,
abastecido com dados coletados em equipamen-
tos fabris, consegue predizer qual é o momento
de fazer manutenção e seus custos. “O programa
transforma as informações em valores financei-
fotos 1  autaza 2  bildschön gmbh 3  fraunhofer iff

ros. Pode mostrar, por exemplo, quanto um pro-


cesso está desperdiçando de matéria-prima por
conta da falta de performance de uma válvula e,
com isso, que o retorno financeiro obtido pela
redução de consumo em comparação com o cus-
to de troca dessa parte do equipamento torna a
manutenção vantajosa. Temos cases em grandes
indústrias com economias significativas de soda
cáustica, energia elétrica e diversos outros tipos
de insumo”, explica Diego Mariano de Oliveira,
um dos sócios da Birmind, que tem clientes em 3

PESQUISA FAPESP 259 | 27


Janelas de
oportunidade
Economista coreano Keun Lee analisa como surgem
líderes em segmentos tecnológicos

Bruno de Pierro

O
que faz com que empresas O que são ciclos de catch-up? municações na China e com a indústria
ou países deixem escapar a São as sucessivas mudanças de lideran- farmacêutica na Índia.
liderança em um determi- ça em setores da indústria. Empresas
nado setor industrial? E que ou países emergem como líderes inter- Qual a importância do conceito de leap­
fatores contribuem para o nacionais, enquanto líderes históricos frogging, ou salto tecnológico, nesse
surgimento de novos líderes em inovação perdem posições. Mais tarde, os novos processo?
no mundo? Essas perguntas norteiam as líderes são destronados e o ciclo se re- Países considerados retardatários em
pesquisas do economista coreano Keun pete. Líderes históricos podem perder uma determinada área tecnológica po-
Lee, professor da Universidade Nacional o posto, por exemplo, quando ignoram dem dar saltos quando aparece um novo
de Seul, na Coreia do Sul, e presidente da a ascensão de novas tecnologias ou pre- paradigma tecnoeconômico e, assim, su-
International Schumpeter Society, que ferem evitar riscos. perar líderes históricos. Mas é importan-
promove estudos de inovação influencia- te dizer que o leapfrogging está relaciona-
dos pelas ideias do economista austríaco Como a sucessão acontece? do a um estágio avançado de desenvolvi-
Joseph Schumpeter (1883-1950). Por meio de janelas de oportunidade mento tecnológico e, portanto, só ocorre
Lee se dedica ao estudo das sucessi- que emergem durante a evolução de um com empresas ou nações com um nível
vas mudanças de liderança observadas setor. Identifico três tipos de janelas de acumulado de capacidades e um sistema
em setores de alta tecnologia como o de oportunidade. O primeiro está ligado a efetivo de apoio à inovação. Quando não
telefonia celular e de chips de memória. mudanças científicas e tecnológicas. Foi se está pronto para dar o salto, a oportu-
Conhecidas como “ciclos de catch-up”, o que aconteceu na Coreia do Sul, que nidade pode ser até destrutiva.
essas mudanças ocorrem quando líderes aproveitou os avanços das tecnologias
históricos em uma determinada tecno- digitais, deixando para trás o Japão, líder Estar preparado é suficiente para apro-
logia perdem protagonismo, enquanto da era analógica. O segundo tipo tem a veitar a janela de oportunidade?
novas empresas ou países assumem a ver com mudanças de demanda. O cres- O leapfrogging pode ser uma faca de
dianteira. Ele participou de um fórum cimento dos mercados chinês e indiano dois gumes. Veja, por exemplo, o caso da
sobre economias emergentes realizado abriu uma janela de oportunidade para Solyndra, empresa dos Estados Unidos
em agosto na Universidade Estadual de novas empresas em países emergentes. que quebrou em 2011. Ela decidiu inves-
Campinas (Unicamp). Doutor em econo- O terceiro caso é o das janelas institucio- tir na produção de células fotovoltaicas
mia pela Universidade da Califórnia em nais. Trata-se de o Estado criar políticas utilizando materiais como cobre, índio e
Berkeley, nos Estados Unidos, é editor para promover setores industriais, como selênio. O problema é que o mercado de
da revista Research Policy e conselheiro ocorreu com as empresas de alta tecno- energia solar ainda utiliza majoritaria-
do Fórum Mundial Econômico. logia da Coreia, com o setor de teleco- mente o silício para fabricar os painéis,

28 | setembro DE 2017
que a Motorola e a Nokia faziam. É isso
que chamo de estratégia de leapfrog-
ging. A empresa não precisou dominar
tecnologias e processos anteriores pa-
ra investir em algo novo. Muitas vezes,
para alcançar o líder é preciso mudar
o alvo, investir em novas tecnologias, e
isso envolve riscos.

Qual o papel do Estado no desempenho


das empresas que buscam liderança?
Há nações como China e Coreia do Sul
que fortaleceram setores industriais apli-
cando medidas protecionistas. O Esta-
do deve atuar no financiamento da ino-
vação, inclusive compartilhando riscos
tecnológicos. Quando uma empresa de-
cide ingressar em um novo segmento ou
apostar em uma tecnologia disruptiva,
ela não pode fazer isso sozinha.

Nos anos 1980, Brasil e Coreia estavam


praticamente no mesmo patamar so-
cioeconômico. Por que o país asiático
conseguiu prosperar como potência tec-
nológica e o Brasil não acompanhou?
O Brasil abriu tardiamente seu mercado
e demorou para adotar políticas e incen-
Keun Lee: tivos capazes de gerar campeões nacio-
“O Estado deve nais em áreas tecnológicas. Além disso, o
atuar no Brasil tem um mercado doméstico muito
financiamento da
grande, o que pode ter contribuído para
inovação, inclusive
compartilhando as empresas se concentrarem na deman-
riscos” da interna e não se internacionalizarem.
A Coreia, com um mercado interno bem
menor, precisou conquistar os de outros
pois os outros materiais são muito caros. o que representou uma oportunidade países. Isso forçou as empresas coreanas
Por mais que a empresa dominasse uma para a Embraer. O segmento de chips de a investir em inovação, caso contrário
tecnologia mais eficiente, o mercado ain- memória também passou por mudanças não sobreviveriam.
da não estava pronto para isso. sucessivas. Em 1982, a liderança migrou
dos Estados Unidos para o Japão e, 10 Qual a importância atual dos chama-
Mudanças sucessivas na liderança são anos depois, do Japão para a Coreia do dos clusters tecnológicos, como o Vale
comuns em outros setores? Sul. Desde então, as empresas coreanas do Silício?
Sim. A indústria de jatos é um caso em- mantêm a liderança sem sinal de altera- Os sistemas de inovação continuam de-
blemático, porque testemunhou duas ção para os próximos anos. pendendo do surgimento de startups
mudanças de liderança nas últimas três com potencial de desenvolverem novas
décadas. A primeira ocorreu em 1995, O que foi necessário para que uma em- tecnologias e, assim, gerar novos líderes.
quando as fabricantes europeias de aviões presa como a Samsung alcançasse a Os clusters de inovação são fundamen-
British Aerospace e Fokker perderam a liderança no setor de telefonia móvel? tais para atingir esse objetivo, embora eu
liderança para a canadense Bombardier. A americana Motorola inventou o celu- observe que as startups pareçam mais
Em 2005, a Embraer assumiu a lideran- lar e é considerada pioneira. No entanto, empenhadas em progredir para serem
ça. Nesse setor, as mudanças de demanda com o surgimento de telefones celulares adquiridas por grandes companhias do
criaram janelas de oportunidade. Na pri- baseados em novas tecnologias digitais, que para se tornarem elas próprias gran-
meira mudança, as empresas europeias, a finlandesa Nokia ganhou o controle do des empresas. Esses polos conseguem
que faziam jatos de 70 a 120 lugares, per- mercado. Já na era dos smartphones, a proporcionar um ambiente de siner-
deram espaço por conta da procura por coreana Samsung e a americana Apple gia entre grandes e pequenas empre-
eduardo cesar

jatos menores, de 50 lugares. No início derrubaram a Nokia. A Samsung optou sas. Trata-se de um ambiente propício
dos anos 2000, a demanda voltou a ser por arriscar na criação de algo novo em para o compartilhamento de ideias e
de jatos maiores, com até 180 lugares, vez de investir em aparelhos como os conhecimento. n

PESQUISA FAPESP 259 | 29


entrevista Ataliba Teixeira de Castilho

O linguista
libertário
Um dos precursores dos estudos sobre o português
falado no Brasil preza a liberdade dos usuários da língua
e critica o apego excessivo dos gramáticos às regras

Carlos Fioravanti  |  retrato  Léo Ramos Chaves

A
utodenominado caipira por ter nascido em Ara-
çatuba e crescido em São José do Rio Preto, o lin-
guista Ataliba Castilho diverte-se com as mudan-
ças da língua. Uma das mais recentes é a trans- idade 80 anos
formação do pronome que em palavra variável,
especialidade
como em “Ques pessoas?”, identificada em redes sociais por
Linguística
um de seus estudantes de doutorado na Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp). Para ele, “ao se esforçarem para que formação
as pessoas obedeçam às regras, os gramáticos não viram que Graduação em letras
estavam dando um cala-boca no cidadão brasileiro”. A críti- clássicas (1959) e
ca aos gramáticos não significa que Castilho tenha alguma doutorado (1966)
aversão a normas da língua culta, mas apenas que valoriza pela Universidade
os limites geográficos e históricos do idioma. de São Paulo
Professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), de
instituição
1961 a 1975, da Unicamp, de 1975 a 1991, e da Universidade de
Unicamp
São Paulo (USP), de 1993 a 2006, Castilho coordenou grandes
projetos de pesquisa que ajudaram a definir a identidade do produção
português falado no Brasil. O mais recente, o Projeto para a científica
História do Português Brasileiro (PHPB), reuniu 200 pes- 62 artigos, orientou
quisadores de todo o país e os resultados consolidados estão teses e dissertações,
sendo publicados agora. Para entender melhor o português é autor da Nova
brasileiro, Castilho criou uma abordagem multissistêmica da gramática do
língua, um método de análise segundo o qual qualquer ex- português brasileiro
pressão linguística mobiliza simultaneamente quatro siste- (Contexto, 2010),
mas (léxico, gramática, semântica e discurso), que deveriam entre outros livros
ser vistos de modo integrado.

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PESQUISA FAPESP 259 | 31
Casado com a também linguista Célia os portugueses chegaram ao Rio de Ja-
Maria Moraes de Castilho, três filhos e neiro, a Salvador e ao Recife. No século
quatro netos, Castilho viaja bastante: XVIII, Santa Catarina e Rio Grande do
esteve em um congresso em Lisboa em Sul receberam outros portugueses, das
julho e pretende ir a outro, em Coimbra, A línguas ilhas da Madeira e de Açores, não do
no próximo mês. Ele recebeu a equipe continente, como no século anterior. Pa-
de Pesquisa FAPESP na sua casa, em
Campinas, próxima à Unicamp, onde
indígenas têm ra ver como era a língua portuguesa nos
séculos XVI e XVII, Célia examinou os
se aposentou em 1991 e continua como
professor colaborador voluntário. categorias autores dos testamentos deixados pelos
portugueses. Ela viu que 20% dos auto-
res eram cristãos-novos, judeus sefara-
Em que pé está o Projeto para a Histó- que nem o dis, que tinham ido para Portugal depois
ria do Português Brasileiro, um de seus de serem expulsos da Espanha. Naquela
trabalhos mais recentes? diabo pensa. época poucos sabiam escrever. Ela sepa-
Esse projeto começou na USP em 1987. rou os escritos dos judeus, que viviam
Quando começavam a surgir os resulta-
dos dos estudos sobre a língua falada, que
Existem 160 isolados. As mulheres não saíam de casa
e tinham um português muito conserva-
tínhamos começado na década de 1970,
perguntei para os meus colegas de onde no Brasil e só dor. Já os homens tinham um lado mais
conservador, que era o familiar, e outro
tinha vindo tudo aquilo. Começamos en- menos, usado para fazer negócios. Com-
tão a reconstituir a história da implanta- 60 descritas parando a escrita dos cristãos-novos com
ção e do desenvolvimento do português a dos portugueses, Célia separou o que
brasileiro, com o mesmo método dos pro- era o idioma moderno da época – o dos
jetos anteriores: formação de grupos de portugueses – e o conservador, uma va-
trabalho, cronograma, seminários nacio- riação linguística. Ela também estudou
nais, publicação dos resultados. Saíram 10 detalhes da gramática para saber a base
volumes de estudos e agora está saindo a histórica do português caipira, que é a
consolidação dos resultados, em 12 volu- manutenção do português do século XV.
mes. Sete volumes devem sair ainda neste duas vezes. O plural está marcado nas Nosso r caipira é um resquício do por-
ano. O primeiro será o volume 4, coorde- duas palavras, é redundante, pode ser tuguês conservador, falado nessa época.
nado por Célia Lopes, da Universidade mais econômico marcar só o primeiro
Federal do Rio de Janeiro, sobre a história elemento e deixar o outro sem nada. O O r caipira tem 500 anos?
dos substantivos, adjetivos e preposições. francês ainda guarda as consoantes fi- Ninguém sabe ao certo. Uns dizem que
Será que tudo veio do português europeu nais na escrita, mas não mais na fala, índios do Vale do Paraíba teriam esse r,
ou inventamos algo? Uma estudante de como em l’ enfant, les enfants, o s não mas a explicação só vale se se provar que
doutorado que estou orientando na Uni- aparece na língua falada. Acreditamos essa tribo se estendeu sobre São Paulo e
camp, Flávia Orci Fernandes, percorreu as que teremos outra língua, diferente do foi com os bandeirantes para o interior.
redes sociais e pegou marcas de plural no português de Portugal. Os dois idiomas Outros fonólogos acham que o r caipira
pronome que, que não é mais invariável. ainda são o mesmo, mas já mostram mui- é um traço que não se desenvolveu na
Hoje já se fala ou se escreve: ques pes­soas? tas diferenças. Uma projeção do ritmo fonologia portuguesa, mas poderia ter
Como explicamos esse dinamismo da dessa mudança, por meios estatísticos, surgido naturalmente, como uma conse-
língua? Temos de documentar e explicar. indica que em 200 anos não vamos mais quência do sistema fonológico, e não do
A mudança do idioma vai criando outras nos entender com os portugueses (ver contato com os índios. Sistema fonoló-
regras. A classe culta ainda não aceitou, Pesquisa FAPESP nº 230). gico quer dizer sistema de sons. Sempre
mas é uma questão de tempo, acabam existem tendências para combinações
aceitando. É um novo estágio da língua O que mais o fascina no português bra- de sons que explicam essas mudanças.
que está vindo. sileiro? Uma tendência do português brasileiro
É a enorme variação de sotaques e de é a forma de tratar os sons sibilantes, é o
Que outras mudanças estão vendo? formas de execução da língua. É uma que faz a diferença entre nós, paulistas,
Nossos estudos estão indicando que o consequência de nossa história. Como e os moradores do Rio de Janeiro, do Sul
plural não será mais expresso pelo mor- os portugueses vieram em várias le- e do Nordeste. De onde veio o s chiado,
fema s no final do substantivo, mas ape- vas, em cada região foi se desenvolven- como em “ach criançach”? Foi uma ten-
nas pelo s no artigo, como em os menino, do uma modalidade da mesma língua. dência palatizar o som sibilante. Agora
por causa de um mecanismo fonológico Minha mulher, Célia, vem estudando essa mudança deu outro passo, porque
de abertura da sílaba. Parece que as con- quem eram esses portugueses e de onde a vogal em contexto palatal está se di-
soantes estão se transformando mais do vieram. Eles começaram a chegar em tongando, como em “aichs pessoaisch”.
que as vogais. Fazer não está virando fa- 1532 em São Vicente, e foi pelo atual es-
zê? Outras consoantes no fim da palavra tado de São Paulo que começou a lusita- Por que as aulas de português e de gramá-
estão caindo, como duas vez em vez de nização do Brasil. Ainda no século XVI tica eram tão chatas e cheias de regras?

32 | setembro DE 2017
Porque ainda não existia a lin- Na década de 1970 o senhor co-
arquivo Pessoal

guística, só a gramática escolar. meçou o projeto da Norma Ur-


O gramático tem uma percepção bana Línguística Culta (Nurc).
muito estrita da língua. Ele se Como foi?
vê como alguém que tem de de- A ideia era descrever a língua fa-
fender a língua da mudança. Os lada culta. Foi uma surpresa, por-
linguistas também falam de re- que a língua da gente culta tinha
gras porque consideram seu de- muitas partes condenadas pelos
ver explicá-las, mas não ficam só gramáticos, o que mostrava que
nisso e as veem como uma gran- nosso catálogo de “erros” não es-
de curiosidade. Por que é assim? tava levando em conta o uso real da
Sempre foi assim? É assim em língua portuguesa no Brasil. Esse
todos os lugares? O gramático projeto começou com um profes-
fica envolvido na aplicação das sor espanhol do Colégio do Méxi-
regras e vê as coisas novas como co, na Cidade do México, Juan Mi-
erradas e as velhas como cer- guel Lope-Blanch [1927-2002]. Ele
tas. O problema é que eles, ao fazia dialetologia, ou seja, descre-
se esforçarem para que as pes- via a língua das regiões rurais até
soas obedeçam às normas da perceber que as pessoas estavam
língua, não viram que estavam migrando para as cidades. Deci-
dando um cala-boca no cidadão diu então fazer dialetologia urba-
brasileiro. Como se dissessem: na. Nos anos 1960, Lope-Blanch
“Tem de falar e escrever de acor- propôs o estudo da norma urbana
do com as regras. Não fale erra- culta falada nas capitais, não ape-
do!”. E as pessoas, com medo de Castilho entre os colegas João de Almeida (à esq.) e Wladimir nas para o espanhol, mas em to-
não conseguir, falam e escrevem Olivier na formatura do curso de letras na USP em 1959 da a América e em Portugal. Essa
pouco. Esse é um efeito da pre- proposta entrou no Brasil também
gação do gramático tradicional. pelas mãos de um dialetólogo, Nel-
Não foi bom. O cidadão tem de se sentir Rodrigues [1925-2014] a ser um indige- son Rossi [1927-2014], da Universidade
à vontade para se expressar, participar nista ao lhe dizer: “Em português você Federal da Bahia, que fez o primeiro atlas
dos debates, desenvolver o espírito de- só vai redescobrir o que já se sabe, mas linguístico do Brasil. Em uma reunião em
mocrático. O dono da língua é o falante, nas línguas indígenas não, porque não São Paulo em 1969, Rossi disse que Lope-
não o gramático. Aprendemos com o fa- são indo-europeias e têm soluções e ca- -Blanch queria estudar a língua das capi-
lante a língua como ele fala e procura- tegorias totalmente diferentes. Isso sim tais, mas no Brasil nossa capital, Brasília,
mos saber por que está falando de um é novidade”. Ele tinha razão, a estrutura não servia como exemplo de fato linguís-
jeito ou de outro. A expressão veio do da língua indígena tem categorias que tico relevante, porque era muito nova. En-
latim? Foi criada aqui? E podemos usar nem o diabo pensa, e Aryon começou a tão escolhemos cinco capitais de estado,
as estruturas, não apenas classificá-las linguística indígena no Brasil. Um linguis- Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo
e nomeá-las. Para que apenas saber as ta norte-americano, Daniel Everett, veio e Porto Alegre. Seguimos exatamente a
subclasses das orações subordinadas? para a Unicamp nos anos 1970 e depois mesma metodologia do projeto original.
Dizer que está falando errado não é uma estudou a língua da comunidade pirahã, O Nurc foi muito bem nas gravações das
atitude científica, de descoberta. A lin- no Amazonas. Ele entrou em conflito entrevistas e depois nas transcrições, mas
guística substituiu o cala-boca ao prazer com o linguista norte-americano Noam falhou na descrição. Foi feito um corpus
da descoberta científica. Foi só com a Chomsky, que dizia que o que chamamos gigantesco, com 1.500 horas de gravação.
linguística que se ampliou o olhar e se de recursão era universal. Recursão é a Quando chegou na descrição das estrutu-
passou a considerar que qualquer assun- possibilidade de aplicar uma regra re- ras – fonologia, morfologia, sintaxe –, não
to é digno de estudo. petidas vezes na construção das frases. deu certo porque o questionário usado
Em português, toda vez que quero colo- nas entrevistas não tinha uniformidade
Como foi essa mudança? car um plural, coloco um s. No entanto, teórica, era um trambolho. Apliquei o
A linguística começou no Brasil nos anos Everett não encontrou recursividade na questionário para estudar aspecto e tem-
1970. Houve um choque muito grande língua dos pirahã, que também não tem po verbal e vi que aquilo não levaria a re-
porque até então apenas os gramáticos es- palavras para números e cores. Chomsky sultado nenhum, porque cada pergunta
tudavam a língua. Do lado dos linguistas, teve de admitir a exceção à regra que ele correspondia a uma teoria, diferente da
estavam Joaquim Mattoso Câmara Júnior imaginava ser geral. Os linguistas bra- que embasava a pergunta seguinte. Escre-
[1904-1970], no Rio de Janeiro, Theodo- sileiros podem contribuir muito para a vi um texto sobre a não praticabilidade
ro Henrique Maurer Júnior [1906-1979], teo­ria geral das línguas. Existem hoje 160 do questionário para a etapa mais impor-
em São Paulo, e Rosário Farâni Mansur línguas indígenas no Brasil. Era o dobro, tante, a descrição, o conhecimento. Em
Guérios [1907-1987], em Curitiba. Foi mas os índios que as falavam morreram. 1981, em um congresso na Universidade
Mansur que orientou Aryon Dall’Igna Dessas, só foram descritas 60. Cornell, nos Estados Unidos, li o texto.

PESQUISA FAPESP 259 | 33


Pensei que Lope-Branch iria me matar, ra explicar as peculiaridades do texto centrar na língua escrita a descrição de um
pois ele era muito enfático em suas in- oral. Já numa segunda edição, publica- idioma, estarei pegando o ponto de che-
tervenções, mas caí do cavalo. Sabe o que da pela Contexto, saíram sete volumes, gada, não o ponto de partida, e vou ter um
ele disse? “Você tem razão.” Quando não entre 2012 e 2016. Com isso, o português monte de ilusões sobre o funcionamento
tínhamos como decidir, submetíamos a brasileiro passou a ser a única língua da da língua que tomarei como verdadeiras.
questão a uma votação, como se ciência România nova a ter sua variedade culta A partir dos anos 1980, fiquei picado por
fosse democracia. Não é, tem de ter coe- amplamente documentada e descrita. essa mosca e me perguntei qual teoria
rência no conceito e não decidir no voto. poderia tirar daquilo. Criei a abordagem
Quando ele falou isso, concluí que tínha- E quais são essas peculiaridades? multissistêmica da língua, que usei como
mos de sair do projeto. Mas, ao mesmo A língua falada é hesitante, interrompida, base da Nova gramática do português bra-
tempo, não podíamos deixar de usar a redundante, não planejada, fragmentada, sileiro e reelaborei para uma apresentação
maravilhosa quantidade de dados que o incompleta, pouco elaborada, com pouca no 11º Lusistanistentag, dia dos lusitanis-
Nurc já tinha produzido. densidade informacional, frases curtas tas, organizado há dois anos em Aachen,
e simples. Vamos falando e criando ao na Alemanha.
E o que fizeram? mesmo tempo. Outra especificidade são
Voltei inconformado com os rumos do os marcadores discursivos, o tá? e o né?, Como definir a abordagem multissis-
projeto, mas depois tive a ideia de cha- sempre no final das frases. Há, portanto, têmica?
mar os melhores linguistas do Brasil, que uma regra de disposição; a língua falada É muito simples. Toda a linguística sem-
ainda não participavam do Nurc. Chamei tem regularidades diferentes do português pre girou em volta de três eixos: fonética
Mary Kato e Rodolfo Ilari, da Unicamp, escrito. Outro ponto é que aprendemos e fonologia [estudo dos sons], morfologia
Leda Bisol, da PUC [Pontifícia Univer- a modalidade falada primeiro e depois [estudo das flexões] e sintaxe [estudo das
sidade Católica] do Rio Grande do Sul, a língua escrita. Parece um detalhe bo- relações entre as palavras]. Além desse
Luiz Antônio Marcuschi [1946-2016], da bo, mas isso faz toda diferença. A língua sistema, que constitui a gramática, te-
Universidade Federal de Pernambuco, e escrita vem depois de modo impositivo, mos a semântica, que trata do sentido, o
vários outros. Expliquei que o Nurc havia porque aprendemos a língua falada na discurso, que é o modo como as pessoas
empacado porque a metodologia não ti- família e a escrita na escola. Tudo isso dá compõem o texto, e o léxico, ou seja, as
nha consistência. Perguntei se eles topa- uma diferença tremenda entre essas duas palavras. Estamos então falando da lín-
vam fazer uma gramática usando o ma- modalidades. A gramática tradicional só gua como um conjunto de quatro siste-
terial do Nurc. Aí me perguntaram como se preocupa com a língua escrita. Se con- mas, o léxico, a gramática, a semântica e
eu queria essa gramática. Respondi: “Co- o discurso. Para descrever um fenômeno
mo eu quero, não; como nós queremos; de modo completo, tenho de passar por
é o trabalho de um grupo”. Então lancei esses quatro sistemas: léxico, semântica,
a proposta de cada um ir para um canto gramática e discurso. Um indivíduo sozi-
e escrever um texto intitulado “Minha nho consegue fazer isso? Não. O estudo
gramática como a concebo”, assim mes- de uma língua tem de ser feito em grupo.
mo, com esse cacófato. Os grupos com Esse é o corolário do Nurc, da Gramática
afinidade teórica se reuniram esponta- A língua do Português Falado e do Projeto para
neamente, os gerativistas, os funciona- a História do Português Brasileiro, que
listas, os estruturalistas, cada um de um
lado. Como o que cada grupo escreveu
falada é também estimula a convivência de gente
com visões diferentes, abrigando socio-
formava um grupo de trabalho de pes-
quisa, nos dividimos de acordo com as
hesitante, linguistas, gerativistas, funcionalistas e
cognitivistas.
ideias de cada um deles e planejamos nos
encontrar uma vez por ano para discu- redundante, Como o senhor faz para reunir pessoas
tir os resultados, usando de muita fran- com visões diferentes?
queza. Depois dos debates, cada um de fragmentada Eu respeito o pensamento diferente. E
ao respeitar você junta as pessoas. Nin-
nós recolhia o que tinha sobrado de seu
texto, porque era muito séria a discus-
são. Depois, refazíamos os ensaios, que
e incompleta, guém quer ficar levando lambada dos
outros. Ciência não existe para isso, mas
eram então publicados, formando uma
coleção de nove volumes. Veio então o mas segue para unir as pessoas na descoberta do
conhecimento. Algumas pessoas têm
trabalho da consolidação dos resulta- mais facilidade e outras, mais dificul-
dos na gramática propriamente dita. Em regularidades dade para fazer isso. Quando as coisas
2006 saiu o primeiro dos oito volumes da emperram e as opiniões parecem incon-
coleção Gramática do português falado, ciliáveis, às vezes tenho de lembrar: “E
pela Editora da Unicamp, A construção a nossa obrigação, o nosso dever?”. Vou
do texto falado, organizado por Clélia com meu discurso de protestante pres-
Jubran, da Unesp, e Ingedore Koch, da biteriano. Fui criado nessa igreja em São
Unicamp. Elas fizeram uma teoria pa- José do Rio Preto.

34 | setembro DE 2017
Quem foi e como era sua primeira pro- Gramática não dava tanto. Fazia o que o
fessora ou professor de português? programa exigia, mas com ênfase na lei-
Foi o professor Amaury de Assis Ferreira tura. Depois fui convidado para trabalhar
[1920-1995], pai do apresentador de TV no que seria a Unesp de Marília. Cidade
Amauri Jr. Era um professor muito bom, Na Unesp, pequena, grupo pequeno, com pessoas
lia e estudava muito, mostrava os livros procurando um destino. O professor de
que comprava com muito entusiasmo. De
vez em quando eu ia na casa dele, meu
procuramos latim, Enzo Del Carratore, tinha sido meu
colega de turma na USP. Éramos todos
pai era eletricista e ia trocar a resistência
de seu fogão elétrico. Ele me chamava e
criar um jovens e procuramos criar um progra-
ma de trabalho. Víamos o que estavam
mostrava a biblioteca e os livros que ti- estudando na USP. Linguística histórica?
nha comprado. Ele tinha muito prazer programa de Então vamos fazer linguística descritiva.
no que ele fazia. Pensei: “Quero ser um Concentravam-se na língua escrita? En-
cara assim”. Depois peguei outros pro- trabalho. tão vamos estudar língua falada. Aquilo
fessores ótimos em São Paulo, como o definiu as nossas vidas, porque decidi-
Theodoro Maurer, meu orientador de
doutorado. Quietinho, magrinho, filho
Víamos o que mos logo o que fazer. Queríamos pesqui-
sar temas diferentes. Grandes linguistas,
de suíços, ele escreveu sozinho um dos
trabalhos mais extensos do mundo sobre se fazia na Maurer, Mattoso Câmara Júnior, Nelson
Rossi, vieram apresentar seus textos, a
a gramática e a sintaxe do latim vulgar. nosso convite.
Ele tinha outra liderança, que descobri USP para
por acaso, andando no bairro da Conso- Qual sua participação no Museu da Lín-
lação, em São Paulo. Em frente a uma ca-
sa, ouvi uns cantos presbiterianos. Olhei
fazer diferente gua Portuguesa?
Em 2004, Jarbas Mantovanini, que atuava
pela porta e estavam lá o Maurer e um na Fundação Roberto Marinho, apareceu
professor de filologia, Isaac Nicolau Sa- na USP, apresentou o projeto do museu e
lum [1913-1993]. Eles estavam estudando disse que queria me fazer dois pedidos.
o evangelho de São Mateus, todos len- O primeiro era dar ideias para o museu.
do em grego! Eu fazia letras clássicas, O segundo era para fazer a linha do tem-
latim e grego, e fiquei espantado ao ver Suzano, na Grande São Paulo. Adorei es- po sobre a história do português. Aryon
os professores discutindo grego no ori- sa experiência. São Miguel era um bairro iria fazer a parte das línguas indígenas e
ginal. Perguntei: “Por que o senhor não industrial e a escola, para os alunos, era Yeda Pessoa de Castro, da Universidade
chama os alunos?”. “Não posso”, ele dis- a saída para terem uma profissão e não Federal da Bahia, se ocuparia das línguas
se, “a universidade é leiga”. Além de ser ficarem naquele mundo. Tratavam os pro- africanas. Jarbas disse para chamar quem
catedrático em línguas românicas e pas- fessores muito bem. A primeira coisa que eu quisesse. Chamei Mário Viaro e Maril-
tor evangélico que sabia latim, grego e notei ao chegar no colégio de São Miguel za de Oliveira, os dois da USP, para fazer
hebraico, ele era presidente do diretório foi que não tinha biblioteca. Como vou outras partes. Jarbas me perguntou como
de São Paulo de um partido político. E dar aula de português sem biblioteca? eu queria representar a linha do tempo,
não contava nada disso na universidade. Mas tinha um órgão de cooperação es- se com filmes ou painéis fixos. Preferi os
colar, que recolhia um dinheirinho dos painéis, porque já haveria filmes do ou-
O senhor foi para a USP com bolsa da pais que pudessem dar. Perguntei para tro lado da sala. Entreguei o projeto, ele
prefeitura de Rio Preto? o diretor se podia usar o dinheiro para gostou: “Está tudo muito bonito, mas no
Fui. Minha família era muito modesta e comprar livros e ele disse que podia. Eu lugar do último quadro vou colocar um
eu tinha de pagar pensão na capital. Um morava na rua Guaianazes, em frente à espelho. Todos vão percorrer aquela baita
colega meu disse que a prefeitura de Rio Editora Nacional, e comprava os livros história de 2 mil anos e quando chegarem
Preto dava bolsa para quem entrasse na com desconto, deixava na escola e um no final vão ver a si mesmos”. Sabe que
USP ou na então chamada Universidade aluno tomava conta. Comprava romances ele acertou na mosca? Muita gente que
Nacional do Rio de Janeiro. Logo depois históricos de Paulo Setúbal [1893-1937] e via a própria imagem, depois de fazer o
de entrar, em 1956, levei o documento de de Monteiro Lobato [1882-1948] e os li- percurso histórico, caía no choro. Uma
matrícula e deram a bolsa na hora. Eram vros da coleção do Clube do Livro. Os alu- colega de Minas, Maria Antonieta Cohen,
200 cruzeiros, dado tudo de uma vez, nos gostavam muito. Foi em São Miguel ia no começo para ver o museu e depois
para passar o ano inteirinho. A partir do que conheci minha mulher. Ela estudava para ver as pessoas quando chegavam
terceiro ano, aumentou a inflação e a bol- lá, mas não dei aula para ela. no espelho. Ela me perguntou: “Por que
sa só dava para meio ano. Aí comecei a será que elas choram?”. Fiquei pensan-
lecionar, para complementar. Em 1959 O que o senhor ensinava em São Miguel? do muito naquilo. As pessoas choravam,
e 1960, dei aula de português no ginásio Eu imitava meu professor de Rio Preto. decerto, porque viam ali sua identida-
estadual Francisco Roswell Freire, em São Procurava dar aulas animadas, dava ser- de. O que é a língua portuguesa? Sou eu,
Miguel Paulista, e em 1960 lecionei latim viço para os alunos, valorizava o que eles que represento agora todo esse percurso.
no Ginásio Estadual e Escola Normal de faziam, apertava quando não estava certo. A língua é minha identidade. n

PESQUISA FAPESP 259 | 35


política c&T  Ambiente y

Floresta
revigorada
Estudo identifica os fatores que
favorecem a recuperação da Mata Atlântica
na porção paulista do Vale do Paraíba

Rodrigo de Oliveira Andrade

Em Cunha, próximo
à serra do Mar, a
mata se regenera em
áreas mais inclinadas,
em meio a antigas
pastagens

36  z  setembro DE 2017


A volta do verde
450
No quadro à direita, como cresceu a 30%
cobertura vegetal no Vale do Paraíba 400

350 25%

Hectares (mil)
MG eira
ntiqu 300
20%
Ma RJ
SP a
ra d Via Dutra
Ser 250
15%
SP 200

Rio de 150 10%


Janeiro
foto  ramon bicudo

100
São Paulo 5%
50
Oceano Atlântico
Serra do Mar
0 0
Fonte  SILVA, R. F. B. et aL. / Environmental Science & policy 1962 1985 1995 2005 2011

Vale do Paraíba (total)


Vale alto
Vale médio

A
pós séculos de degradação, a Mata Atlântica mostra
sinais inequívocos de recuperação no Vale do Pa-
raíba, no caminho entre Rio de Janeiro e São Paulo.
Nos últimos 50 anos, a vegetação nativa mais que do-
brou. Em 1962, a área de Mata Atlântica se estendia
por pouco mais de 200 mil hectares. Em 1995 esse número subiu
para 350 mil hectares e, em 2011, para cerca de 450 mil hectares,
o equivalente a 30% do território paulista do Vale do Paraíba. A
reconstituição gradual e espontânea de parte da floresta parece
ser resultado de uma convergência de fatores sociais, econômicos
e ambientais, desencadeados a partir da década de 1950, confor-
me verificou o biólogo Ramon Felipe Bicudo da Silva, do Núcleo
de Estudos e Pesquisas Ambientais da Universidade Estadual de
Campinas (Nepam-Unicamp), em uma pesquisa de doutorado sob
orientação do biólogo Mateus Batistella, da Empresa Brasileira de
Pesquisa Agropecuária (Embrapa), e do antropólogo Emílio Mo-
ran, da Universidade Estadual de Michigan, nos Estados Unidos.
“A Mata Atlântica no Vale do Paraíba passa por um processo
conhecido como transição florestal, quando há uma mudança nas
características de uso da terra, saindo de um período de constante
redução da vegetação nativa para outro de expansão natural das
florestas originais”, explica Ramon. “Ali, a transição está relacio-
nada ao abandono de áreas de topografia incompatível com a agri-

pESQUISA FAPESP 259  z  37


Cobertura florestal 18,51% 25,96% 28,81% 32,18%
1985 1995 2005 2011

Representação do padrão da evolução da cobertura de floresta (em %) composta por Mata Atlântica Mata Atlântica 
e culturas de eucalipto sobre antigas áreas de pastagem no Vale do Paraíba Cultura de eucalipto
Pasto degradado 
Pasto de manejo

cultura mecanizada, a projetos de preser-


vação ambiental envolvendo o cultivo de
eucalipto e à migração das populações Os resultados sugerem uma relação
rurais para grandes centros urbanos.”
As conclusões se baseiam em imagens positiva entre o desenvolvimento
do satélite Landsat 5, em dados sobre o
desenvolvimento industrial da região e
econômico e a conservação, diz Moran
em entrevistas com produtores rurais,
pesquisadores de universidades, repre-
sentantes de organizações não governa-
mentais (ONGs) e de órgãos de governo. região, somada à perda de produtividade Para Emilio Moran, os resultados refor-
Desde a colonização portuguesa, a Ma- das pastagens, desencadeou um intenso çam estudos que verificaram processos
ta Atlântica foi submetida a longos pe- fluxo de habitantes da zona rural rumo pontuais de regeneração natural da Mata
ríodos de uso intensivo e desregulado da aos centros econômicos e industriais do Atlântica em outras regiões do Brasil. Um
terra. Foi assim à época da extração do Vale do Paraíba, como as cidades de Tau- deles é um levantamento da SOS Mata
pau-brasil e do cultivo de cana-de-açúcar, baté e São José dos Campos. “À medida Atlântica e do Inpe que registrou um to-
entre os séculos XVI e XVIII, passando que a industrialização e a urbanização tal de 219 mil hectares de Mata Atlântica
pelos ciclos do ouro e do café e, mais re- se intensificaram, mudanças nas for- em recuperação em regiões antes ocupa-
centemente, pela pecuária e expansão ças sociais e econômicas estimularam das por pastagens em nove estados bra-
urbana. Hoje, a área de mata, que já ocu- o abandono das terras agrícolas, sobre- sileiros, de 1985 a 2015. Esse fenômeno
pou mais de 1 milhão de quilômetros qua- tudo em áreas mais acidentadas”, expli- também foi observado em outros países.
drados (km2) espalhados por 17 estados ca Ramon. Alguns habitantes da região Em Indiana, nos Estados Unidos, parte
brasileiros, reduz-se a singelas manchas permaneceram em suas propriedades, da vegetação nativa no sul do estado foi
florestais de cerca de 50 hectares cada, mas deixaram de usá-las para a atividade convertida em cultivo de milho e soja em
segundo o último Atlas de remanescentes agropecuária, passando a trabalhar nas fins do século XIX, restando pouco mais
florestais da Mata Atlântica, da Fundação cidades. “Esse tipo de fenômeno ajudou de 5% da cobertura florestal original. “A
SOS Mata Atlântica e do Instituto Nacio- a criar as condições ideais para a rege- produção depois migrou para áreas mais
nal de Pesquisas Espaciais (Inpe). neração natural da floresta”, comenta o adequadas para o cultivo dessas culturas
A porção de floresta no Vale do Paraí- biólogo Ricardo Ribeiro Rodrigues, da no norte do estado e, ao longo de qua-
ba foi uma das mais atingidas. A região Escola Superior de Agricultura Luiz de se um século, a vegetação se regenerou,
se tornou em fins do século XIX o eixo Queiroz da Universidade de São Paulo dando origem ao que hoje são reservas
entre os dois maiores centros metropoli- (Esalq-USP), especialista em recupera- estaduais”, explica Moran. Mais recente-
tanos do país. A partir da década de 1920, ção florestal. mente, em Medellín, na Colômbia, cons-
começou a passar por um intenso proces- Entre as décadas de 1960 e 1980, a ati- tatou-se que a vegetação nativa em áreas
so de industrialização, consolidado com a vidade agropecuária no Vale do Paraíba antes controladas pelo narcotráfico e usa-
inauguração da rodovia Presidente Dutra diminuiu 13%, o que contribuiu para a das para a plantação de coca começaram
nos anos 1950 e a criação do complexo estagnação dos índices de desmatamento a se regenerar após o fim dos conflitos
tecnológico-industrial aeroespacial de na região. Desde então, a Mata Atlântica armados naquela região do país.
São José dos Campos. Ao analisar dados iniciou um processo espontâneo de re-
históricos e levantamentos estatísticos generação. Muitas terras abandonadas Produção de eucalipto
feitos pelo Instituto Brasileiro de Geo- se converteram em pequenos bosques de Os pesquisadores também observaram
grafia e Estatística (IBGE), os pesquisa- vegetação secundária, resultando em um que a regeneração florestal havia si-
dores constataram que a urbanização da aumento da cobertura florestal. do mais acentuada em áreas próximas

38  z  setembro DE 2017


biental (PMA) de São Paulo ajudou a
coibir o desmatamento e as queimadas.
De acordo com informações do banco
de dados da própria PMA, pouco mais
de 9.500 ocorrências de violações am-
bientais foram registradas na porção
paulista do Vale do Paraíba entre 2003
e 2013, mais da metade envolvendo o
corte ilegal de árvores. Ainda assim, a
extensão das áreas afetadas pelo desma-
tamento teve uma redução considerável
no mesmo período.
Muitas das ocorrências registradas fo-
ram denunciadas pela população. Segun-
do Ramon, ferramentas de governança
como legislação, sanções e distribuição
de materiais de orientação favoreceram
o desenvolvimento de uma noção de ci-
dadania ambiental e um maior engaja-
2 mento em parte da população do Vale
do Paraíba. “Os resultados sugerem o
estabelecimento de uma relação positi-
va entre desenvolvimento econômico e
Projetos de preservação ambiental em Taubaté: exemplo de regeneração da mata conservação ambiental na região, e que
o processo de transição florestal pode
ser acelerado por uma sociedade am-
a remanescentes florestais originais e São Luís do Paraitinga. Juntas, essas seis bientalmente consciente”, afirma Moran.
em terrenos menos aptos à agricultura, cidades contribuíram para 53,8% da ex- O fenômeno do Vale do Paraíba po-
próximos a escarpas e ribanceiras. “As pansão do cultivo de eucalipto no Vale de orientar projetos de restauração
áreas antes usadas como pastagem con- do Paraíba – de 13.115 hectares, em 1985, florestal em áreas onde existam pro-
tribuíram com cerca de 75% para as no- para 38.958 hectares, em 2011. Durante cessos históricos e econômicos seme-
vas áreas florestais nas últimas décadas esse período, a cobertura florestal expan- lhantes. Já em regiões onde a mecani-
no Vale do Paraíba”, afirma Mateus Ba- diu-se em 77%. Hoje, aproximadamente zação agrícola é intensa e os poucos
tistella, da Embrapa. Também houve um 89% da celulose produzida no Vale do remanescentes florestais que sobraram
aumento considerável de vegetação nati- Paraíba é vendida para mercados da Chi- são muito degradados, pode ser neces-
va em áreas hoje usadas para a plantação na e Europa. A crescente demanda global sário investir em outras estratégias de
de eucalipto. A produção dessa árvore por produtos sustentáveis vem forçando restauração. “Nessas condições, outras
costuma ser associada à degradação do as empresas a seguir normas e práticas iniciativas são recomendadas, como o
meio ambiente, seja pelo ressecamento de gestão ambiental específicas para a plantio de sementes ou de mudas de es-
do solo ou pela diminuição da diversida- obtenção de certificação ambiental. “Es- pécies nativas”, diz Ricardo Rodrigues,
de biológica nas regiões onde é cultivada. sas certificações são fundamentais para da Esalq-USP. n
Mas, no caso da porção paulista do Vale o mercado de commodities de celulose,
do Paraíba, explica o pesquisador, hou- contribuindo para que a plantação de
ve um impacto positivo na regeneração eucalipto influenciasse positivamente Projeto
florestal: para poder plantar eucaliptos, a recuperação de matas nativas em seu Florestas plantadas e Mata Atlântica: Análise do uso e
cobertura da terra e suas conexões ambientais, políticas
os produtores precisam de certificações entorno”, afirma Batistella. e socioeconômicas (nº 11/13568-0); Modalidade Bolsa
ambientais. Para obtê-las, foram obriga- de Doutorado; Pesquisador responsável Mateus Batis-
dos a proteger fragmentos de vegetação Fiscalização ambiental tella (Embrapa); Bolsista Ramon Felipe Bicudo da Silva
(Unicamp); Investimento R$ 125.430,79 + R$ 38.768,56
nativa, que se ampliaram naturalmente A partir de entrevistas com represen- (Bolsa Estágio de Pesquisa no Exterior – Bepe).
com o tempo, e a restaurar áreas de mata tantes de ONGs e mais de 90 produtores
Artigos científicos
ciliar, que também se tornaram florestas rurais do Vale do Paraíba, os pesquisa-
SILVA, R. F. B. et al. Socioeconomic changes and environ-
nesse período. dores identificaram outros elementos mental policies as dimensions of regional land transitions
O cultivo de eucalipto para a produção que contribuíram para a regeneração in the Atlantic Forest, Brazil. Environmental Science &
de celulose estabeleceu-se na região nos de parcelas de floresta na região. Uma Policy. v. 74, p. 14-22. 2017.
SILVA, R. F. B. et al. Drivers of land change: Human-envi-
anos 1960, principalmente em áreas de delas é a Lei da Mata Atlântica, de 2006, ronment interactions and the Atlantic Forest transition
pastagens abandonadas ou degradadas, que introduziu incentivos financeiros in the Paraíba Valley, Brazil. Land Use Policy. v. 58, p.
ramon bicudo

como as encontradas nos municípios de para projetos de restauração ambiental. 133-44. 2016.
SILVA, R. F. B. et al. Land changes fostering Atlantic Forest
Jambeiro, Natividade da Serra, Paraibu- Também a fiscalização feita nas últimas transition in Brazil: Evidence from the Paraíba Valley. The
na, Redenção da Serra, Santa Branca e duas décadas pela Polícia Militar Am- Professional Geographer. 2016.

pESQUISA FAPESP 259  z  39


Colaboração y

Parceria com o público


M
Pesquisas científicas omentos antes de o eclipse total do Sol atravessar os
Estados Unidos de costa a costa no dia 21 de agosto,
realizadas com a participação a agência espacial norte-americana (Nasa) convi-
dou o público para colaborar em um experimento
de leigos ganham espaço bastante simples. Munidos de termômetros e smartphones,
milhares de voluntários espalhados pelo país foram instruídos
a baixar um aplicativo e registrar nele eventuais mudanças de
temperatura no ambiente durante o eclipse. Os participan-
Bruno de Pierro tes também deveriam reportar se a velocidade e a direção
das nuvens sofreram alterações abruptas. As informações
coletadas pelos celulares abasteceram uma base de dados e
serão utilizadas em estudos ambientais. “A população pode
nos ajudar a entender quais são os efeitos de um evento raro,
como o eclipse solar, na atmosfera”, disse à rede de televisão
Fox News Elizabeth MacDonald, pesquisadora da agência.
A iniciativa é inspirada em um modelo conhecido como
ciência cidadã, que estimula a produção do conhecimento por
meio da colaboração entre pesquisadores e público leigo. A
participação de amadores na atividade científica não é novi-
dade – a figura do cientista profissional só surgiu no século
XIX. Nas últimas décadas, com o uso de tecnologias digitais,

40  z  setembro DE 2017


Laboratório do
MediaLab-Prado, na
Espanha (à esq.), onde
pesquisadores e público
trabalham juntos (à dir.)

tornou-se recorrente pesquisadores con-


vidarem o público para cooperar, por
exemplo, na coleta de dados meteoro-
lógicos ou no mapeamento de espécies.
“Mídias sociais, bases de dados eletrôni-
cas e dispositivos como tablets e smart-
phones oferecem novas possibilidades de
compartilhar ideias e informações entre
cientistas e cidadãos”, avalia o biólogo
Robert Stevenson, professor da Univer-
sidade de Massachusetts, nos Estados
Unidos, um estudioso da ciência cidadã.
Nos últimos anos, organizações como
os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) 2

e a National Science Foundation (NSF),


nos Estados Unidos, passaram a apoiar
projetos que incluem ciência cidadã e
estudos que buscam as melhores práticas
para assegurar a integridade científica Projetos de ciência cidadã devem
em pesquisas feitas em colaboração com
o público. No ano passado, a Comissão adotar procedimentos rigorosos para
Europeia se comprometeu a financiar,
por meio do programa Horizonte 2020,
validar dados, diz Robert Stevenson
projetos que envolvem ciência cidadã. A
fotos  1 e 2 Alvaro Minguito / flickr /MediaLab-Prado 3 e 5 national park service (nps) 4 sylvia kantor/washington state university

iniciativa é uma parceria com o Doing it


Together Science, um consórcio formado últimos anos inspiram os novos projetos. de auxiliar na elaboração de estratégias
por instituições científicas e organiza- Uma delas é o eBird, iniciativa lançada para a conservação da biodiversidade”,
ções não governamentais sob coorde- em 2002 pela Universidade Cornell, nos afirma Stevenson.
nação do University College London, Estados Unidos, que reúne dados de aves Outra iniciativa é o Galaxy Zoo, criado
no Reino Unido. No Brasil, o Sistema fornecidos por observadores amadores por pesquisadores vinculados a várias
de Informação sobre a Biodiversidade e ornitólogos. A plataforma tem mais de instituições norte-americanas que con-
Brasileira (SiBBr), um projeto do go- 300 mil usuários de 252 países e cerca de vocam astrônomos amadores para ajudar
verno federal, anunciou em fevereiro 300 milhões de registros de aproxima- a classificar imagens de galáxias geradas
que irá apoiar a formação de uma Rede damente 10.300 espécies de aves. Uma por telescópios. Desde seu lançamento
Brasileira de Ciência Cidadã em Biodi- versão brasileira do eBird está em fun- em 2007, a comunidade do Galaxy Zoo
versidade, em que cidadãos ajudarão no cionamento desde 2015 (ver Pesquisa FA- identificou um conjunto de galáxias e
monitoramento de espécies. PESP nº 245). “Em 16 anos de existência, muitas dessas descobertas foram relata-
Algumas experiências bem-sucedidas o eBird tornou-se uma referência em es- das em artigos científicos. A astronomia
que ganharam proporções globais nos tudos de aves e gera conhecimento capaz talvez seja o campo do conhecimento

3 4 5

Nos Estados Unidos, voluntários ajudam cientistas a monitorar borboletas (esq.), insetos polinizadores (centro) e até cabras que vivem em um parque nacional

pESQUISA FAPESP 259  z  41


1 Observadores
amadores de aves
participam de
atividade de pesquisa
no Instituto Butantan,
em São Paulo

mação científica”, afirma Stevenson. Um


dos motivos, ele explica, é a desconfiança
em relação à qualidade dos dados pro-
duzidos. “Os projetos de ciência cidadã
devem adotar procedimentos rigorosos
para assegurar a validade dos dados.”
Para a pesquisadora Andrea Wiggins, da
Universidade de Maryland, nos Estados
Unidos, projetos bem-sucedidos como
o eBird dependem de um conjunto de
metodologias capazes de aumentar a
precisão dos dados. “Trata-se de ofere-
cer aos voluntários treinamento técnico
para executar as tarefas propostas pelos
cientistas. Além disso, os dados coletados
em que a participação do público ocorra pelos cidadãos devem passar pelo crivo
há mais tempo. “Após a publicação dos de especialistas”, escreveu Wiggins em
trabalhos do italiano Galileu Galilei, co- artigo publicado em 2016.
meçaram a aparecer sociedades civis de Uma enorme

N
observação do céu”, comenta Augusto a Universidade Federal do ABC
Damineli, professor do Instituto de As- quantidade de (UFABC), um grupo de pesqui-
tronomia, Geofísica e Ciências Atmosfé- sadores propõe, aplica e avalia
ricas da Universidade de São Paulo (IAG-
conhecimento protocolos que orientam o trabalho de
-USP). Atualmente, com a ampliação do emerge voluntários em projetos de ciência cida-
acesso a telescópios de pequeno porte dã. “Elaboramos um passo a passo que
e da circulação de imagens de satélites fora das mostra ao participante, em linguagem
em sites especializados, a astronomia clara e objetiva, os objetivos da pesqui-
amadora participa da identificação de universidades, sa e recomendações que devem ser se-
estrelas, asteroides e planetas. No início guidas durante o trabalho”, explica a
do ano, o mecânico e astrônomo amador
diz Antonio bióloga Natália Pirani Ghilardi-Lopes,
australiano Andrew Grey descobriu um Lafuente coordenadora do Grupo de Pesquisa em
sistema formado por quatro exoplanetas, Ciência Cidadã da UFABC. A finalidade,
após avaliar mais de mil imagens de es- diz ela, é estabelecer padrões para que a
trelas registradas pelo telescópio Kepler, obtenção e a análise de dados sejam fei-
da Nasa, disponibilizadas na internet tas com o máximo de precisão possível.
pela plataforma Exoplanet Explorers. Austrália.” Os dados de observação foram Essa metodologia vem sendo testada em
O feito foi validado por astrônomos pro- determinantes na descrição de um novo alguns estudos do grupo. Um deles é o
fissionais e rendeu a publicação de um fenômeno, a formação de um buraco na mestrado da bióloga Larissa de Araújo
paper, com Grey como coautor. superfície da estrela (ver Pesquisa FA- Kawabe, que envolve dados obtidos na
“Eu mesmo já publiquei em coautoria PESP nº 244). Estação Ecológica Tupinambás, no lito-
com não acadêmicos”, sublinha Damine- Uma das principais contribuições da ral norte de São Paulo. O projeto conta
li. Em 2014, ele coordenou uma pesquisa colaboração do público em pesquisas é com a participação de funcionários da
sobre o apagão da Eta Carinae, sistema a produção de informações que talvez estação que são mergulhadores e que,
composto por duas estrelas, registrado não pudessem ser geradas de outra ma- munidos de câmeras subaquáticas, aju-
naquele ano. “Era necessário observar neira – em parte porque as iniciativas dam a coletar imagens dos costões ro-
ao longo de 10 meses seguidos, todas têm potencial para mobilizar um grande chosos na ilha das Palmas. O objetivo é
as noites, utilizando espectroscopia”, número de voluntários na coleta de da- monitorar organismos marinhos, como
conta. “Divulgamos uma chamada in- dos em áreas extensas e durante longos algas e esponjas.
ternacional pedindo a colaboração de períodos. Mas o modelo ainda encontra Posteriormente, para a análise das
amadores e obtivemos ajuda de qua- resistências. “Muitos pesquisadores têm fotos, os participantes passam por um
tro voluntários na Nova Zelândia e na receio de trabalhar com pessoas sem for- treinamento de quatro horas – uma das

42  z  setembro DE 2017


diretrizes do protocolo. “Explicamos a cidadã. A primeira utiliza voluntários conhecido pela difusão de um modelo
eles como as fotografias foram obtidas para aumentar a velocidade e a quan- de laboratório cidadão. Pesquisadores,
e como devem ser analisadas posterior- tidade da coleta de dados. “A segunda ativistas e cidadãos reúnem-se para in-
mente”, conta Larissa. Ela enfatiza que promove o envolvimento dos cidadãos vestigar possíveis soluções de problemas,
os voluntários participam não só da ob- também na discussão sobre as próprias em diferentes linhas de pesquisa, como
tenção das fotos, mas também da iden- questões e objetivos da pesquisa, com urbanismo, participação social e tecno-
tificação de organismos. Estudos como base nos conhecimentos obtidos a par- logias sociais. “Essa iniciativa passou a
esse, por exemplo, podem servir para tir de suas experiências”, afirma Sarita, promover, por meio de editais públicos,
detectar precocemente a presença de que coordenou um projeto em Ubatuba experiências de investigação colabora-
espécies exóticas, como o coral-sol, fo- que buscou incorporar essa concepção tiva e inovação social que receberam o
tografado na estação ecológica. Trata-se de participação cidadã na pesquisa. Para nome de laboratórios cidadãos”, explica
de uma espécie que está se espalhando Stevenson, da Universidade de Massa- Henrique Parra, professor da Universi-
pela costa brasileira, competindo com chusetts, envolver o público em todas as dade Federal de São Paulo (Unifesp),
espécies nativas. etapas da pesquisa nem sempre é factí- atualmente em um estágio de pós-dou-
Boa parte dos projetos envolve o pú- vel. “Há temas que não despertam tanto torado no Conselho Superior de Inves-
blico exclusivamente na coleta de dados, interesse do público e outros que exigem tigação Científica da Espanha.
mas alguns pesquisadores veem outras das pessoas muito tempo de treinamento

Q
formas de participação dos amadores. e dedicação”, diz ele. ualquer pessoa que tenha uma
De acordo com a cientista social Sari- Algumas experiências internacionais proposta de pesquisa pode con-
ta Albagli, pesquisadora do Instituto têm incentivado interações mais pro- correr aos editais do MediaLab-
Brasileiro de Informação em Ciência e fundas. Uma delas é o MediaLab-Pra- -Prado. Se o projeto for aprovado, o par-
Tecnologia (Ibict), é possível identifi- do, espaço cultural criado há 10 anos ticipante passa a fazer parte de uma rede
car duas grandes abordagens de ciência pela prefeitura de Madri, na Espanha, de colaboradores acadêmicos e não aca-
dêmicos, que poderão ajudar no desen-
volvimento do trabalho. Antonio Lafuen-
te, pesquisador do Centro de Ciências
2 Humanas e Sociais do Conselho Superior
de Investigações Científicas da Espanha
e um dos diretores do MediaLab-Prado,
explica que a ideia é criar ambientes on-
de problemas possam ser identificados,
documentados e contrastados com di-
ferentes pontos de vista. “Uma enorme
quantidade de conhecimento emerge
fora das universidades e instituições de
pesquisa. Não se trata mais de separar
o mundo entre os que sabem e os que
não sabem, mas de unir experiências”,
propõe Lafuente.
Ainda que pontuais, outras iniciati-
vas semelhantes ao MediaLab-Prado
buscam propor formas mais amplas de
colaboração na ciência. O Public Lab,
Funcionários da por exemplo, nasceu após o vazamen-
Estação Ecológica to de petróleo no golfo do México em
Tupinambás, no
2010. Diante da falta de informações
litoral norte de
São Paulo, oficiais sobre o desastre, moradores da
mergulham ao lado costa sul dos Estados Unidos, em par-
de pesquisadores ceria com pesquisadores e engenhei-
para coletar dados
ros, construíram pequenos sistemas de
sobre organismos
marinhos monitoramento utilizando balões e câ-
meras digitais para coletar imagens em
tempo real. Foram produzidas mais de
fotos 1 eduardo cesar 2 UFABC

100 mil imagens aéreas de alta resolu-


ção. O episódio levou à criação de uma
comunidade aberta, o Public Lab, hoje
mantido por doações de instituições co-
mo o Instituto de Tecnologia de Massa-
chusetts (MIT) e a NSF. n

pESQUISA FAPESP 259  z  43


Periódicos y

Produção
científica
acessível
Acesso aberto a artigos publicados
por revistas do Brasil é significativo,
mas impacto ainda é limitado

Fabrício Marques

O
Brasil se destaca no panora- movimento ser criado internacionalmen- seminação dos periódicos indexados na
ma internacional do acesso te. Tomou impulso a partir de 1997 com SciELO é de US$ 500 por artigo. A conta
aberto, movimento lançado a criação da biblioteca virtual SciELO dobra se for preciso traduzir o paper para
no início dos anos 2000 com (sigla de Scientific Electronic Library o inglês. “Vários estudos apontam uma
o objetivo de tornar a produção científica Online), programa financiado pela FA- média internacional de mais de US$ 1,2
disponível on-line e sem custo para os PESP com apoio do Conselho Nacional mil da taxa de publicação de artigos dos
leitores. Segundo dados compilados pelo de Desenvolvimento Científico e Tec- periódicos de acesso aberto via dourada”,
grupo de pesquisa espanhol Scimago, nológico (CNPq), que reúne atualmente diz Packer. “A quantia chega a US$ 2.500
33,5% dos artigos de autores brasileiros 283 periódicos do Brasil disponíveis na em periódicos híbridos”, afirma o coorde-
indexados na base de dados Scopus em web – no total, eles publicaram mais de nador da SciELO, referindo-se a revistas
2016 foram divulgados em periódicos 300 mil artigos que foram objeto de uma disponíveis só para assinantes, mas que
que oferecem livremente para leitura na média de 810 mil downloads diários nos divulgam papers em seus sites se o autor
web todo o seu conteúdo assim que ele é oito primeiros meses de 2017. pagar uma quantia extra.
publicado, num modelo conhecido como De acordo com Abel Packer, coorde- A maioria das revistas de acesso aberto
“via dourada”. Trata-se da maior propor- nador-geral da SciELO, o programa vem do Brasil segue a via dourada, oferecendo
ção entre as 15 nações com maior volume ajudando a profissionalizar e internacio- acesso a todo o seu conteúdo sem que o lei-
de produção científica cadastrada na nalizar dezenas de periódicos do país, tor precise pagar. Nesse modelo, os custos
ilustraçãO freepik + ana paula campos

Scopus. O país também se distingue no permitindo sua indexação em bases de podem ser cobertos ou pela cobrança dos
ranking das nações com maior número dados internacionais, além de dar mais autores de uma taxa de publicação de arti-
de periódicos científicos de acesso aberto visibilidade à produção científica brasi- gos (APC) ou por subsídios governamen-
(ver quadros na página 47). leira. “Sai mais barato publicar em um tais de agências ou entidades de fomento à
O engajamento de periódicos do Bra- periódico vinculado a SciELO, pois o pesquisa. No caso brasileiro, é raro cobrar
sil no acesso aberto, que se contrapõe objetivo final não é o lucro”, completa. taxas de autores. As despesas são bancadas
ao modelo tradicional de acesso por as- O custo médio estimado do processo de por linhas de financiamento de órgãos co-
sinaturas, teve início antes mesmo de o avaliação, editoração, publicação e dis- mo a Coordenação de Aperfeiçoamento de

44  z  setembro DE 2017


blicação e pressionam os orçamentos de
Vias de difusão livre universidades e agências de fomento.
É o que mostra a experiência do Reino
Modelos de acesso aberto a publicações científicas Unido, que desde 2014 determinou que
a produção científica de instituições vin-
Via dourada Práticas autorizadas culadas a seus Conselhos de Pesquisa
Os periódicos oferecem acesso livre
por periódicos fechados (RCUK) fosse divulgada em acesso aber-
na web aos artigos logo que eles são O site SHERPA/RoMEO acompanha os to. Como parte significativa dos pesqui-
publicados. Muitos cobram uma taxa diferentes tipos de abertura dos artigos sadores publica em revistas que cobram
dos autores, outros são subsidiados permitidos por editoras. Os principais são: taxas extras para disponibilizar artigos
Via verde n Autor pode arquivar em repositórios
em acesso aberto, os custos aumentaram.
a versão pós-print (manuscrito Segundo um estudo da Universidade de
Repositórios institucionais oferecem
na web versões de artigos publicados
na versão final após a revisão) Birmingham, as universidades do Reino
em periódicos fechados que foram n Autor pode arquivar apenas
Unido gastaram em 2015 £ 33 milhões,
franqueados pelos autores a versão preprint (último manuscrito o equivalente a R$ 135 milhões, em des-
Via híbrida antes da revisão) pesas associadas à publicação em acesso
n Autor pode arquivar a versão
aberto em 2015 – o equivalente a 20% do
Periódicos fechados cobram uma taxa gasto geral com publicações. “O acesso
preprint e pós-print
extra de autores para que seus artigos
sejam disponibilizados livremente nos
aberto é uma tendência irreversível, mas
websites das revistas Licenças mais utilizadas alguém tem de pagar a conta, que está ca-
da vez mais salgada”, afirma Rui Seabra
Via de bronze Artigos em acesso aberto dispõem de uma Ferreira Júnior, presidente da Associação
licença do Creative Commons para orientar
Artigos estão disponíveis nos websites Brasileira de Editores Científicos (Abec).
os usuários. As mais importantes são:
dos periódicos embora não tenham Segundo um estudo divulgado em
uma licença de uso que os qualifique CC-BY Permite download e utilização agosto no repositório PeerJ Preprints e
como de acesso aberto irrestrita de artigos, com citação da fonte
liderado pela norte-americana Heather
Via preprint CC-BY-NC Permite download e utilização Piwowar, da Universidade de Pittsburgh,
de artigos, com citação da fonte, desde só 12% dos artigos em acesso aberto são
Manuscritos não submetidos
que sem fins comerciais
à revisão por pares estão disponibilizados no modelo prevalente no
acessíveis em servidores abertos CC-BY-NC-ND Permite download e Brasil, a via dourada. Outros 17% seguem
de preprints antes de serem utilização de artigos, mas sem fins a “via verde”, em que o autor arquiva no
enviados a um periódico comerciais nem mudanças no material
banco de dados de sua instituição uma có-
pia do trabalho publicado em periódicos
fechados, que, dessa forma, fica disponível
Pessoal de Nível Superior (Capes), o CNPq ao público. Algumas revistas permitem
e a FAPESP, e pelas sociedades científicas que os autores ofereçam a versão final do
e instituições que publicam cada revista. manuscrito, outras só a versão do anterior
“Mais da metade dos custos é financiada à revisão (ver quadro ao lado).
pela instituição que publica o periódico, Cerca de 13% dos artigos da amostra
que também fornece instalações e funcio- estavam classificados na “via híbrida”, em
nários”, afirma Packer. No caso da coleção Alguém tem que revistas de acesso fechado cobram
SciELO, diz o coordenador da bibliote- taxa extra do autor para divulgação on-
ca, os recursos investidos pela FAPESP de pagar a -line. A editora Elsevier transformou seus
custeiam o funcionamento do sistema de periódicos em híbridos. “Decidimos fle-
submissão on-line de manuscritos, além
conta desse xibilizar para que cada um decida como
da manutenção do portal e da sua base de modelo, que deseja publicar”, afirma Dante Cid, vice-
dados, e da disseminação internacional. -presidente para relações acadêmicas na
“O custo médio anual da SciELO é de US$ está cada vez América Latina da Elsevier. O trabalho
120 por artigo", diz Packer. da PeerJ Preprints observou a existência
mais salgada, de um quarto modelo, batizado de “via
de bronze” – cerca de 58% dos artigos
custos crescentes
O acesso aberto avança no mundo intei-
diz Rui Seabra, consultados livremente vinham de pe-
ro, impulsionado por iniciativas como da Abec riódicos de acesso fechado que foram
a decisão da União Europeia de exigir disponibilizados pelas editoras sem que
que todos os artigos produzidos em seus houvesse uma licença formal para isso.
estados-membros estejam disponíveis A divulgação em acesso aberto amplia
sem cobrança para os leitores até 2020. as chances de que os artigos sejam co-
Ações desse tipo, porém, envolvem o fi- nhecidos, mas não garante mais impacto.
nanciamento dos custos de taxas de pu- No caso dos periódicos do Brasil, o nú-

pESQUISA FAPESP 259  z  45


dem ser mais bem aproveitados em pe-
Revistas do país bem classificadas riódicos do país. “Existe uma produção
científica com importância estratégica
Fator de impacto em 2016 de acordo com o Journal Citation Reports para a ciência e a sociedade brasileira.
Mas ela não se enquadra nos critérios de
Título Fator de impacto publicação de revistas internacionais de
alto impacto, que só aceitam manuscritos
MEMÓRIAS DO INSTITUTO OSWALDO CRUZ 2.605 de conteúdo muito inovador, na frontei-
ra do conhecimento.” Cita o exemplo da
JOURNAL OF MATERIALS RESEARCH AND TECHNOLOGY 2.359
revista Pesquisa Agropecuária Brasileira,
DIABETOLOGY & METABOLIC SYNDROME 2.347 editada desde 1966 pela Embrapa, que
JORNAL DE PEDIATRIA 2.081 tem fator de impacto 0.542. “O impac-
to não é alto para padrões internacio-
REVISTA BRASILEIRA DE PSIQUIATRIA 2.049 nais ou mesmo para a Capes, mas ela é
BRAZILIAN JOURNAL OF MEDICAL AND BIOLOGICAL RESEARCH 1.578 estratégica, pois o Brasil tem o agrone-
gócio como carro-chefe da economia.”
JORNAL BRASILEIRO DE PNEUMOLOGIA 1.496
A ideia de que existe uma produção re-
BRAZILIAN JOURNAL OF INFECTIOUS DISEASES 1.468 gional desdenhada por periódicos de
alto impacto nunca foi aferida. “Nesse
JOURNAL OF VENOMOUS ANIMALS AND TOXINS INCLUDING TROPICAL DISEASES 1.447
contexto, não há estudos sobre artigos
REVISTA DE SAÚDE PÚBLICA 1.353 rejeitados”, afirma Abel Packer.
JOURNAL OF APPLIED ORAL SCIENCE 1.342
Para ampliar o impacto de seus pe-
riódicos, editores buscam atrair artigos
BRAZILIAN ORAL RESEARCH 1.331 de conteúdo inovador. Não é um desa-
JOURNAL OF THE BRAZILIAN SOCIETY OF MECHANICAL SCIENCES AND ENGINEERING 1.235 fio trivial. Uma queixa dos editores é de
que o Sistema Qualis, usado pela Capes
BRAZILIAN JOURNAL OF PHYSICAL THERAPY 1.226 para classificar periódicos nos quais os
NEOTROPICAL ICHTHYOLOGY 1.203 programas de pós-graduação do país pu-
blicam sua produção, dá mais peso para
Fonte  JCR / Thomson Reuters a divulgação em revistas dos países de-
senvolvidos, o que impediria a consoli-
dação de periódicos do Brasil.
mero de citações é restrito, embora haja na base Web of Science (WoS). Mas is- Na opinião de Ferreira Júnior, da Abec,
sinais de crescimento. Mais da metade so varia de acordo com o modelo. Os de falta definir uma política editorial nacio-
dos 122 periódicos do país que constam via verde e os híbridos têm desempenho nal. “O governo federal ajuda a financiar
no ranking de 2016 do Journal Citation de 30% acima da média mundial de ci- os periódicos nacionais, mas, para fins de
Reports (JCR) aumentou o seu Fator de tações. Já os de via dourada, prevalente avaliação, a Capes pede que o pesquisa-
Impacto (FI), com cinco deles atingindo no Brasil, apresentam desempenho 17% dor mande seus melhores artigos para o
FI maior do que 2. Isso significa que, em abaixo da média mundial. exterior”, aponta. Em países da Europa
média, cada artigo desses periódicos foi Um trabalho publicado em maio na ou nos Estados Unidos, governos não se
citado em outras publicações pouco mais revista Scientometrics por pesquisadores envolvem nas políticas de publicação. “Já
de duas vezes nos últimos dois anos. Só da Espanha analisou a trajetória de arti- na China, o governo investiu no fortale-
um terço dos periódicos do Brasil lis- gos indexados na base WoS publicados cimento de um conjunto de periódicos
tados no JCR tem FI superior a 1 – nos em 2009 e concluiu que, em 173 temas que canalizaram parte do crescimento da
outros dois terços, a média é inferior a de pesquisa, os de via dourada tiveram produção científica do país”, diz Ferrei-
uma citação por artigo. Há cinco anos, menos impacto do que os de acesso via ra. De acordo com Rita Barradas Barata,
só 17 periódicos do Brasil alcançavam FI assinatura, enquanto em apenas 36 te- diretora de avaliação da Capes, a institui-
maior que 1. Para efeito de comparação mas o impacto foi maior. Abel Packer, da ção avalia os periódicos pelo potencial de
com um periódico de referência mundial SciELO, diz que o estudo tem um viés: circulação e pelo impacto, sem distinguir
de acesso aberto, o PLOS ONE teve fator ele inclui na via dourada periódicos mui- os de acesso aberto ou fechado. Em al-
de impacto 2.806 em 2016. to heterogêneos e a maioria com pouco gumas áreas, principalmente em huma-
tempo de indexação, que não deveriam nidades e ciências sociais aplicadas, em
desempenho dos modelos ser comparados diretamente com os pe- que a indexação em bases mais interna-
O avanço do acesso aberto tem estimula- riódicos de acesso fechado, a maioria cionais não é frequente, estar na base da
do pesquisadores a estudar qual dos mo- indexada há muitos anos. SciELO é “fortemente valorizado como
delos produz mais impacto. O trabalho Ferreira Júnior, da Abec, distingue critério de qualidade para o periódico”.
de Heather Piwowar constatou que os resultados de pesquisas que devem ser Mas, lembra Rita, existem publicações
artigos em acesso aberto são citados 18% publicados em revistas internacionais científicas relevantes produzidas por
mais que a média dos papers indexados daqueles que têm escopo regional e po- editoras comerciais e que apresentam

46  z  setembro DE 2017


política restrita de acesso aberto. “Não
O modelo em 15 nações há por que impedir os pesquisadores
de publicarem em periódicos de gran-
Artigos em periódicos de acesso aberto de via dourada* de prestígio apenas por não adotarem
publicados pelos países com maior produção científica em 2016** o acesso aberto.”
Há dois anos, a biblioteca SciELO lan-
% de çou novas normas para ampliar a reper-
documentos cussão internacional de seus periódicos,
em acesso Nº de exigindo, por exemplo, que 75% dos ar-
aberto documentos
tigos indexados estivessem em inglês – o
Brasil 33,5% 23.071 patamar anterior era de 60% – e que o
Coreia do Sul 18,4% 14.509 contingente de autores e de pareceristas
Índia 17,6% 24.501 com afiliação no exterior fosse ampliado
Espanha 17,3% 14.796 (ver Pesquisa FAPESP nº 227). Paulo Sen-
Itália 14,2% 15.095
telhas, professor da Escola Superior de
Japão 14,1%
Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da
17.162
USP, e editor-chefe do periódico Scientia
China 14,0% 66.187
Agricola, conta que a internacionalização
Holanda 13,8% 7.700 rende resultados, mas não é isenta de trau-
Alemanha 12,6% 20.694 mas. O periódico da Esalq, que integra a
Canadá 12,6% 12.195 coleção SciELO desde o seu início e tem
Austrália 12,4% 11.181 hoje fator de impacto 1.108, o mais alto
Reino Unido 12,4% 22.659 entre os periódicos do Brasil no campo
França 11,2% 12.638
da agronomia, decidiu em 2003 que só
publicaria manuscritos em inglês. “Houve
EUA 11,0% 66.182
uma reação contrária e, em um primeiro
Rússia 10,9% 8.019
momento, o número de manuscritos sub-
Mundo 13,7% 381.251 metidos caiu”, lembra ele. “Aos poucos, a
revista ganhou mais visibilidade e passa-
mos a atrair mais autores de fora.” Hoje,
Revistas de acesso aberto de via dourada* publicadas pelos 65% dos pareceristas que avaliam artigos
países com maior produção científica em 2016** são do exterior, ante 5% no início dos anos
2000. “Os artigos em inglês nos deram
% de acesso a revisores estrangeiros e foram
revistas fundamentais para melhorar a qualidade
em acesso Nº de da revista.” Ele sustenta que os periódicos
aberto revistas do Brasil mais internacionalizados vão se
Brasil 82,3% 284 beneficiar do avanço do acesso aberto. “A
Espanha 40,1% 206 partir de 2020, quando os pesquisadores
Coreia do Sul 33,0% 71 da Europa tiverem de publicar em acesso
Índia 32,6% 149 aberto, haverá mais oportunidades para
Itália 20,4% 99
que nossas boas publicações atraiam ar-
tigos de qualidade de fora”, vaticina. n
Canadá 13,1% 42
Austrália 12,9% 34
Japão 11,8% 54 Projeto
Alemanha 9,4% 167 Desenvolvimento e operação da coleção SciELO Brasil
França para o período de 1º de novembro de 2016 a 31 de ou-
9,1% 53
tubro de 2019 (nº 15/26964-1) Modalidade Auxílio a
Reino Unido 7,6% 417 Pesquisa – Regular Pesquisador responsável Abel Laerte
Packer (Fundação de Apoio à Unifesp) Investimento
China 7,4% 45
R$ 21.756.884,07 (para todo o projeto).
Holanda 6,4% 151
Rússia 6,0% 16 Artigos científicos
Dorta-González, P. et. al. Reconsidering the gold open
EUA 4,0% 406 access citation advantage postulate in a multidisciplinary
Mundo 13,2% 3.774 context: an analysis of the subject categories in the Web
of Science database 2009–2014. Scientometrics. v. 112
p. 877–901. ago. 2017.
Piwowar H. et al. The State of OA: A large-scale analysis
of the prevalence and impact of Open Access articles.
* Periódicos que oferecem acesso livre na web a seus artigos PeerJ Preprints, 2017. Disponível em: doi.org/10.7287/
assim que são publicados  ** Indexados na base Scopus Fonte Scimago peerj.preprints.3119v1.

pESQUISA FAPESP 259  z  47


A
ciência  MEDICINA y
t
A A

Mergulho g

t
nas doenças
genéticas c

Análise de trechos de DNA que contêm os genes


aprofunda o diagnóstico de doenças

A
Carlos Fioravanti

t
c
A

E
m março deste ano, em uma das salas do Jorge tem vivido situações desse tipo com fre-
ambulatório do quinto andar do Hospital quência desde 2013, quando começou a usar uma
das Clínicas da Faculdade de Medicina técnica que faz o sequenciamento completo de
da Universidade de São Paulo (HC-FM- conjuntos de trechos do DNA conhecidos como
-USP), o endocrinologista Alexander éxons, que representam de 1% a 2% do material
Jorge atendeu um casal para apresentar a provável genético. É no exoma, o conjunto dos éxons, que
causa da microcefalia e da baixa estatura da filha estão os 19 mil genes humanos, cujas mutações
de 4 anos. Não era a infecção da mãe com sífilis podem causar doenças. O sequenciamento de
durante a gravidez, como se cogitara inicialmen- todo o material genético (genoma) raramente é
te, mas uma mutação em um gene de reparo do feito para finalidades médicas, por ser mais caro
DNA conhecido como BRCA1. O médico explicou e dar informações sobre trechos do DNA cha-
que essa mutação, identificada na filha em homo- mados íntrons, raramente associados a doenças.
zigose (duas cópias) e nos pais em heterozigose Nos últimos anos, o sequenciamento completo
(uma cópia), favorecia o desenvolvimento de tu- de exoma se sobrepôs à abordagem anterior, que
mores de mama e ovários. Em seguida, a mulher lia poucos éxons de cada vez, e tem se mostrado
de 32 anos comentou: “Doutor, tenho um caroço eficaz para identificar a mutação responsável por
na axila”. Era um sinal de que ela própria poderia 8.500 doenças genéticas provocadas por um único
ter um câncer de mama não diagnosticado e já em gene em até 40% das pessoas examinadas. “A taxa
expansão. Diante da situação, Jorge encaminhou de sucesso pode chegar a 80% quando já existem
a mãe de sua paciente para a equipe de oncologia, genes candidatos previamente selecionados para
no prédio ao lado, para fazer o diagnóstico. explicar o quadro clínico”, assegura Jorge.

48  z  setembro DE 2017


O custo para sequenciar o exoma ainda é alto tiva, para pesquisadores e clínicos. Em setembro Placa com
– no Brasil, pode chegar a R$ 10 mil. Outra di- de 2016, Jorge não tinha como confirmar se uma milhões de éxons
organizados em
ficuldade é que o sequenciamento fornece uma mutação no gene BCL11B seria responsável pela
oito trilhas que
quantidade monumental de informação porque deficiência intelectual, defeito na arcada dentária serão lidos
qualquer pessoa apresenta cerca de 50 mil muta- e baixa estatura de um adolescente. Ele entrou simultaneamente
ções, a maioria inócuas. As análises exigem equipes no site GeneMatcher, que compartilha informa- no equipamento
(em segundo plano)
especializadas de biólogos, bioinformatas e médi- ções sobre mutações genéticas e suas possíveis
do laboratório de
cos para se chegar às 20 ou 30 alterações mais re- consequências com médicos, pesquisadores e sequenciamento
levantes, que debilitam a função original dos genes pacientes. Seu relato chamou a atenção de pes- em larga escala da
e poderiam explicar os sintomas de uma doença. quisadores da Alemanha e dos Estados Unidos Faculdade de
Medicina da USP
Apesar das limitações, essa técnica tem ajudado que tinham casos semelhantes, associados àquela
a solucionar diagnósticos incertos e a direcionar mutação, e lhe permitiu fechar o diagnóstico e
tratamentos. Depois de identificar a mutação no reunir informações sobre uma nova doença que
gene BRCA1, que poderia explicar a microcefalia poderiam facilitar o trabalho de outros médicos.
e a baixa estatura da menina, com o apoio de rela- “Quanto mais detalhadas as descrições dos
tos semelhantes em outros países, Jorge concluiu quadros clínicos dos pacientes e das famílias,
que não deveria adotar o tratamento tradicional com hipóteses diagnósticas consistentes, maior
para baixa estatura, com hormônio de cresci- a chance de fazer uma interpretação correta do
léo ramos chaves

mento, que poderia aumentar o risco de câncer. exoma”, diz a bióloga Maria Rita Passos Bueno,
O sequenciamento de exoma está trazendo uma uma das coordenadoras do Centro de Pesqui-
nova forma de trabalho, mais aberta e colabora- sas sobre o Genoma Humano e Células-Tronco

pESQUISA FAPESP 259  z  49


(CEGH-CEL) do Instituto de Biociências da USP.
Em geral os médicos, os centros de pesquisa e
os laboratórios responsáveis pelos diagnósticos
trabalham de modo isolado, mas a integração de
equipes, a troca de informações e a harmoniza-
ção de procedimentos técnicos e éticos poderiam
beneficiar os pacientes, os pesquisadores e as
equipes médicas, segundo estudo de um grupo
do Instituto Nacional do Câncer da Holanda pu-
blicado em maio na revista Annals of Oncology.

Um gene, várias doenças


As análises do exoma estão indicando que doen-
ças antes vistas como distintas poderiam ter a Na Faculdade de
mesma origem genética. A equipe da Mendelics, Medicina da USP,
a bióloga Amanda
uma das empresas de São Paulo especializada em Narcizo (à esq.)
análises genéticas, em atuação desde 2013, verifi- prepara uma
cou que o gene TRPV4 poderia causar tanto doen- placa com
ças musculares quanto ósseas. Em seu doutorado 96 microtubos
(detalhe acima)
na Universidade Estadual Paulista (Unesp), sob para fragmentação
a orientação da bióloga Silvia Rogatto, a também acústica de
bióloga Maísa Pinheiro identificou uma alteração trechos de DNA,
em um gene de reparo de DNA – a ser apresen- etapa inicial do
sequenciamento
tada em um artigo submetido para publicação de exomas
– como possível causa do câncer de mama e do
de tireoide. Maísa identificou a mutação em pa-
cientes tratados no A.C.Camargo Cancer Center,
em São Paulo, que tinham um dos dois ou os dois
tipos de câncer, além de familiares atingidos por ve começar a oferecer o miniexoma, a um custo
esses tumores. “O câncer de mama e o de tireoide aproximado de R$ 4 mil, para procurar mutações
poderiam integrar uma síndrome de predispo- em até 6.709 genes já associados a doenças gené-
sição hereditária”, sugere Silvia, atualmente na ticas, em vez de examinar todos os 19 mil genes.
Universidade do Sul da Dinamarca, em Odense. A redução de preço pode aumentar o uso dessa
O sequenciamento de exoma tem sido cada técnica no sistema de saúde brasileiro.
vez mais usado por grupos de pesquisa em São O médico e bioinformata Guilherme Yamamoto,
Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Bra- que trabalha no Instituto da Criança do Hospital
sília e outras cidades para descobrir as causas das Clínicas e no CEGH-CEL, avaliou a eficácia
de tumores, de doenças esqueléticas, muscula- do miniexoma para detectar mutações em 500
res, neurológicas e outras, de origem genética. genes responsáveis por um grupo de 26 doenças
Um grupo do Baylor College of Medicine, dos genéticas de recém-nascidos com ênfase em er-
Estados Unidos, fez o sequenciamento de exo- ros inatos do metabolismo. Usando essa estratégia
ma de 2 mil pacientes, a maioria crianças, com de sequenciamento focado de genes, ele refez os
suspeita não confirmada de doenças genéticas testes genéticos de 90 pessoas: 45 crianças aten-
associadas ao atraso de desenvolvimento neuro- didas no Hospital das Clínicas de Porto Alegre e
lógico. Todos tinham passado por testes bioquí- 45 controles. Sem conhecer o diagnóstico prévio,
micos de sangue, que não definiram a causa das Yamamoto encontrou um resultado falso-positivo
doenças. Como relatado em um artigo de 2014 e um verdadeiro-positivo no grupo dos 45 que
no Journal of the American Medical Association, inicialmente não apresentavam doença genética.
as mutações reveladas pelo sequenciamento de No outro grupo, ele identificou a doença genéti-
exoma elucidaram a causa das doenças de 504 ca adequadamente em 22 das 45 crianças. O teste
pacientes e permitiram planejar o tratamento e apresentou uma sensibilidade total de 50% e de
o aconselhamento genético familiar. 73% no grupo de erros inatos do metabolismo,
O CEGH-CEL atende famílias com doenças embora não tenha detectado os casos de distrofia
genéticas desde 1968, trabalha com sequencia- muscular, epilepsia e imunodeficiência.
fotos  léo ramos chaves

mento de exoma desde 2012 e identificou no- “A triagem por teste genético tem uma alta
vas mutações causadoras de autismo, doenças especificidade, com apenas um falso-positivo”,
musculares, doenças esqueléticas, deficiência argumentou Yamamoto. Segundo ele, essa abor-
intelectual, obesidade e surdez. Em setembro, dagem poderia complementar a triagem neona-
o laboratório de testes genéticos do centro de- tal, mais conhecida como teste do pezinho, que

50  z  setembro DE 2017


por grupos de doença, indicando as prejudiciais
e eliminando os achados incidentais em genes
de menor interesse, e procura automaticamente
relatos semelhantes em bases de dados on-line.
Outro programa da equipe do bioinformata
João Paulo Kitajima, da Mendelics, começou a
ser testado em agosto para identificar genes que
escapam das análises normais de exoma. Esses
genes têm uma peculiaridade: não toleram a per-
da de função de uma de suas cópias – são os cha-
mados constraints. Com essa estratégia, espera-se
resolver casos não solucionados. Em dois dias
de trabalho, a médica geneticista Luiza Ramos
detecta doenças genéticas, metabólicas e infec- encontrou uma alteração genética que poderia
ciosas. “O teste do pezinho apresenta baixa espe- explicar um dos primeiros 52 casos não solucio-
cificidade, com alta frequência de falso-positivos, nados examinados por meio do novo programa.
para algumas doenças examinadas”, diz. Segundo Em frente a outro computador da mesma sala, a
ele, o ganho de precisão no reconhecimento das médica geneticista Fabíola Monteiro comentou
doenças genéticas de recém-nascidos poderia que as análises de exomas estão ampliando o
adiantar o início do tratamento. conhecimento sobre genética, ao revelar muitas
“O sequenciamento de exoma funciona bem formas e muitas causas para as mesmas doenças.
para identificar erros inatos de metabolismo”, “O que está escrito nos livros de genética”, diz ela,
concorda o neurologista Fernando Kok, professor “é muito pouco, diante do que estamos vendo”. n
da FM-USP e diretor médico da Mendelics. Sua
empresa pretende lançar neste ano um teste para
identificar mutações em 260 genes responsáveis Projetos
por 150 doenças genéticas em recém-nascidos. 1. Novas abordagens e metodologias na investigação genético-
-molecular dos distúrbios de crescimento e desenvolvimento pu-
beral (nº 13/03236-5); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador
Reanálises responsável Alexander Augusto de Lima Jorge (USP); Investimento
Na Mendelics, biólogos, geneticistas, médicos re- R$ 2.948.891,06. 
cebem os resultados organizados por meio de um 2. CEGH-CEL – Centro de Pesquisas sobre o Genoma Humano e de
Células-Tronco (nº 13/08028-1); Modalidade Centro de Pesquisa,
programa de computador chamado Abracadabra, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisadora responsável Mayana Zatz
desenvolvido pelo grupo liderado pelo neurolo- (USP); Investimento R$ 27.221.413,39 (para todo o projeto).
gista David Schlesinger, presidente da empresa, Artigos científicos
destacado em 2014 pela MIT Technology Review VIS, D. J. et al. Towards a global cancer knowledge network: Dissect-
como um dos 10 pesquisadores com menos de 35 ing the current international cancer genomic sequencing landscape.
Annals of Oncology. v. 28, n. 5, p. 1145-51. 2017.
anos mais inovadores do Brasil (ver Pesquisa FA- YANG, Y. et al. Molecular findings among patients referred for clini-
PESP nº 220). O Abracadabra filtra as mutações cal whole-exome sequencing. JAMA. v. 312, n. 18, p. 1870-79. 2014.

Para entender os resultados


Na Universidade Estadual de Campinas neste ano, conta Iscia, que é professora causa de 80% de doenças
(Unicamp), um grupo coordenado pela da Faculdade de Ciências Médicas da neurodegenerativas com início na vida
médica geneticista Iscia Lopes Cendes Unicamp e pesquisadora do Instituto adulta, como ataxia e demência, nem
atualmente desenvolve programas de Brasileiro de Neurociência e sempre detectadas mesmo após
computador para facilitar a interpretação Neurotecnologia (Brainn), um dos sucessivos exames de imagem. A
dos resultados do sequenciamento de Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão proporção de diagnósticos positivos para
exomas, que pode ser útil na busca pela (Cepid) financiados pela FAPESP. a deficiência intelectual foi de 20%,
causa de doenças provocadas por apenas Além de buscar novas estratégias para 10 vezes mais elevada do que a obtida
um gene. Esses programas também avaliar o sequenciamento de exomas, o pela técnica adotada no serviço público
integram essas informações com as grupo de Iscia também investiga a de saúde, que consiste no exame de
disponíveis em bases de dados como a relação entre o custo e o benefício de se cromossomos (cariótipo). “Aumentando a
Iniciativa Brasileira em Medicina de incorporar esse exame ao sistema público proporção de diagnósticos corretos sobre
Precisão (BIPMed), com informação de saúde. Em um estudo em fase final de a origem das doenças, os gastos com
genética específica da população desenvolvimento com 150 pacientes, a outros exames e consultas caem e o
brasileira. Os primeiros programas devem médica geneticista Joana Trotta verificou tratamento, quando possível, pode
ser liberados para uso público ainda que o exoma poderia indicar a provável começar logo”, conta Iscia.

pESQUISA FAPESP 259  z  51


Etologia y
Na serra da Capivara,
gravetos servem
para encontrar
alimento (à esq.); o uso
de pedras para quebrar
frutos é mais comum na
espécie (abaixo e à dir.)

Cultura
primata
Transmissão de práticas de uso de ferramentas por macacos-prego
ajuda a repensar o papel das tradições na evolução

fotos tiago falótico / usp  infográfico ana paula campos  ilustração Fábio Otubo
Maria Guimarães

C
om uma pedra erguida acima sa FAPESP nº 196) e mostrou, em artigo Até agora, o uso de pedras como fer-
da cabeça, o jovem Porthos bate publicado em julho na revista Scienti- ramentas para cavar só foi documentado
vigorosamente no chão arenoso fic Reports, que a ação do jovem macho nessa população. Especialmente quando
de modo a abrir um buraco. Seu envolve conhecimento, aprendizado e se trata de desentocar aranhas, é preciso
objetivo: uma aranha, que logo consegue transmissão de práticas culturais – ou experiência. O estudo, resultado de ob-
desentocar e rola entre as mãos para tradições, como alguns preferem chamar servações feitas durante o doutorado de
tontear a presa que em seguida come. quando os sujeitos não são humanos – Falótico, encerrado em 2011 sob orien-
Ele é um macaco-prego da espécie Sa- dentro de grupos sociais. A pesquisa tação do biólogo Eduardo Ottoni, mos-
pajus libidinosus, habitante do Parque está no bojo de um corpo teórico que tra que quase 60% dos adultos e jovens
Nacional Serra da Capivara, no Piauí, e busca entrelaçar biologia, ciências so- (como Porthos) têm sucesso na tarefa.
objeto de estudo de pesquisadores do ciais e humanas e recém-desembocou Macacos juvenis (o correspondente a
Instituto de Psicologia da Universidade na formação da Sociedade de Evolução crianças), por outro lado, só conseguem
de São Paulo (IP-USP). O biólogo Tiago Cultural. Sua reunião inaugural acaba em pouco mais de 30% dos casos. Isso
Falótico tem caracterizado o uso de fer- de acontecer na Alemanha, entre 13 e acontece porque é preciso reconhecer o
ramentas por esses animais (ver Pesqui- 15 de setembro. revestimento de seda que fecha a toca do

52  z  setembro DE 2017


n Cerrado

Cheios de MA
n Caatinga

pA
recursos Pi
ce
rn
pb
Macacos do Piauí pe
revelam variação no to al
uso de ferramentas mt se
ba
Serra das
go df Confusões
Serra da
Grupos da fazenda Boa Vista mg Capivara
e do Parque Nacional Serra
Pedra contra alimento
da Capivara permitem
relacionar comportamentos Pedra para cavar Fazenda
inovativos a aspectos Boa Vista
Pedra contra pedra
ecológicos; na serra das
Graveto
Confusões os estudos ainda
estão no início Populações com uso
de ferramentas

Fonte tiago falótico/usp Macho Fêmea

pESQUISA FAPESP 259  z  53


As teorias por trás de evolução e cultura
Percepção de mecanismos de integração entre organismo e comportamento avança com o conhecimento

1850 1875 1900 1925 1950 1975 2000 2025

Charles Darwin e O alemão August Síntese moderna Edward O. Wilson Edward Síntese estendida
Alfred Wallace Weismann apresenta a agrega define sociobiologia: O. Wilson vê biologia e
propõem a teoria da existência de células conhecimentos de as bases biológicas do propõe a cultura como dois
evolução, segundo germinativas, o que genética ao conceito comportamento social união de mecanismos
a qual a seleção exclui a herança de evolução, dando ciências evolutivos que
exercida pelo de traços adquiridos. origem à modelagem Richard Dawkins biológicas e atuam um sobre
ambiente favorece O princípio ficou matemática defende o gene como humanas em o outro
a disseminação de conhecido como da genética o alvo da seleção Consilience,
determinadas barreira de Weismann de populações natural, com pouco com pouco
características reconhecimento impacto na
evolutivo para a área
cultura

Ferramentas da genética
aracnídeo, sinal de que o habitante está de populações são
lá dentro. “Os juvenis às vezes cavam aplicadas a modelos que
uma toca que acabou de ser aberta por combinam heranças
genéticas e culturais
outro macaco”, conta Falótico. Estrutu- Fonte eduardo ottoni / usp

ras subterrâneas, parecidas com batatas,


da planta conhecida como farinha-seca
(Thiloa glaucocarpa), também são desen- ao lado daquele usando a ferramenta, não pedras são menos abundantes, mas neces-
terradas com mais eficiência pelos adul- se interessa e olha para o outro lado!” sárias (e usadas) para quebrar cocos. Gra-
tos. Já as raízes de louro (Ocotea), outro Os macacos da mesma espécie que ha- vetos estão por toda parte, mas não têm
alimento desses primatas, apesar de en- bitam a fazenda Boa Vista, em Gilbués, uso. Essa diferença cultural entre grupos
volverem o uso de pedras maiores, não cerca de 300 quilômetros (km) para su- de macacos foi explorada em um experi-
parecem apresentar um desafio especial doeste, têm tradições distintas no uso de mento feito pelo psicólogo Raphael Moura
para os aprendizes. Macacos dos dois se- ferramentas. Ali, uma área com mais in- Cardoso durante o doutorado, orientado
xos se mostraram igualmente capazes de fluência de Cerrado do que Caatinga, as por Eduardo Ottoni, e relatado em arti-
cavar com pedras, com uma taxa de su-
cesso equivalente, embora eles pareçam
ter mais interesse pela atividade: entre
as 1.702 situações observadas, 77% en-
volviam machos e apenas 23%, fêmeas.
“Esperávamos encontrar uma corre-
lação entre o uso de ferramentas e a es-
cassez de alimentos, mas não foi o que
vimos”, conta Falótico. Se os macacos
da serra da Capivara encontram algo co-
mestível que exija o uso de ferramentas,
recorrem a elas. Seu modo de vida, em
que passam metade do tempo no chão
rodeados de pedras e gravetos, parece
ser propício ao desenvolvimento das ha-
bilidades. Mas não é só isso. Embora não
haja diferença entre os sexos nos hábitos
alimentares, as fêmeas nunca usam gra-
vetos – que seus companheiros masculi-
nos utilizam para desentocar lagartos de
frestas e retirar insetos de troncos, por
exemplo. Há diferença apenas, aparente-
mente, no interesse. “Quando um macho
vê outro usar uma vareta, ele observa 1

atento; já uma fêmea, mesmo que esteja Tolerância: macho adulto da fazenda Boa Vista come castanha partida observado de perto por jovem

54  z  setembro DE 2017


foi que os macacos da Boa Vista, exímios
quebradores de coco, não tentaram partir
a caixa. “Eu esperava isso deles, não dos
outros”, diz Ottoni.

Aprendizado social
Os resultados, surpreendentes, podem
reforçar a importância da transmissão
de tradições entre os macacos. A capa
da edição de 25 de julho deste ano da
revista PNAS traz justamente a foto de
um macaco-prego da fazenda Boa Vista
comendo uma castanha que conseguiu
quebrar com a ajuda de uma grande pe-
dra redonda, observado de perto por um
jovem. A imagem anuncia a coletânea
2 especial sobre como a cultura se conec-
Jovens aprendizes tentam tirar proveito de escavação feita por fêmea ta à biologia, da qual faz parte um artigo
do grupo liderado pelas primatólogas
go de 2016 na Biology Letters. Eles puse- contínua e imediata. Ao longo de cinco Patrícia Izar, do IP-USP, Dorothy Fra-
ram – tanto na fazenda Boa Vista como dias de exposição à caixa, 10 dos 14 ma- gaszy, da Universidade da Georgia, nos
na serra da Capivara – caixas de acrílico chos usaram o graveto logo na primeira Estados Unidos, e Elisabetta Visalberghi,
recheadas de melado de cana. O único sessão, e apenas os três mais jovens não do Instituto de Ciências e Tecnologias
fotos 1 luca antonio marino 2 Tiago falótico / usp

jeito de retirar a guloseima era por meio foram bem-sucedidos. Os demais conse- Cognitivas, na Itália, sobre os macacos da
de uma fenda no alto com largura sufi- guiram um sucesso de 90% na empreita- fazenda Boa Vista, que estudam sistema-
ciente apenas para varetas. “Na serra da da. As fêmeas não tentaram, assim como ticamente desde 2006. Nas observações
Capivara, um macho logo acertou uma os macacos da fazenda Boa Vista. Lá, os recolhidas ao longo desse tempo, chama
pedrada na caixa”, lembra Ottoni, que, pesquisadores até tentaram ajudar: depois a atenção a tolerância dos adultos em re-
previdente, tinha planejado o aparato “à de seis horas expostos à tarefa, os maca- lação aos jovens aprendizes que olham
prova de macaco-prego”. “Quando na- cos deparavam com um graveto já finca- de perto e até comem pedaços dos cocos
da aconteceu, ele largou a pedra, coçou do na fenda. Mesmo tirando e lambendo partidos. “Os adultos competem pelos
a cabeça e pegou um graveto.” Ele brin- o melado da ponta, nenhum deles voltou recursos e os imaturos podem ficar per-
ca que nem precisou editar o vídeo para a inserir a ferramenta na caixa ao longo to”, conta Patrícia. As análises publicadas
mostrar em um congresso – foi uma ação de 13 dias de experimento. Uma surpresa no artigo recente mostram muito mais

membranas das células, de maneira que o Os cebídeos, família que inclui os


Sob o comando sistema não se dessensibiliza. “É como macacos-prego, também têm um tipo de
se o macaco recebesse constantemente a oxitocina que aumenta a propensão à
de hormônios instrução ‘tenho que cuidar dos filhotes’”, paternidade ativa. Os grupos de Cátira
explica Cátira. Faz diferença para a e de Ottoni recentemente iniciaram
O cuidado com os filhotes está ligado sobrevivência de saguis, que frequentemente uma colaboração para investigar as
ao hormônio oxitocina em mamíferos. O têm filhotes gêmeos, por exemplo. características genéticas em machos mais
grupo liderado por Maria Cátira Bortolini, da O resultado está em artigo publicado em e menos cuidadores. “Já conseguimos
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, agosto na PNAS, que também descreve o extrair material genético de amostras
descreveu há poucos anos as variações resultado da aplicação dessas oxitocinas de fezes e estamos selecionando genes
na molécula de oxitocina em espécies de em ratos por meio de borrifadas nasais, candidatos a serem rastreados”, conta
macacos nas quais há bons pais (ver Pesquisa experimento realizado em colaboração com ela, fascinada com a tolerância dos
FAPESP nº 228). Ensaios farmacológicos o fisiologista Aldo Lucion, da UFRGS. As machos e as habilidades cognitivas dos
feitos no laboratório do bioquímico Claudio fêmeas lactantes, já inundadas de oxitocina, primatas do Piauí. “A capacidade de
Costa-Neto, da Faculdade de Medicina de alteraram pouco o comportamento. Mas os inovar, por um lado, e a de sentar e
Ribeirão Preto da USP, agora desvendaram o machos tratados com o hormônio alteraram observar, por outro, são necessárias para
caminho da oxitocina dentro das células e radicalmente o hábito de ignorar os filhotes e o desenvolvimento e a transmissão de
verificaram que os receptores das formas correram para cheirá-los, uma reação que foi traços culturais adaptativos e certamente
alteradas ficam mais expostos nas três vezes mais rápida com a oxitocina de sagui. há um cenário genético por trás disso.”

pESQUISA FAPESP 259  z  55


do que proximidade: os quebradores de O uso de pedras
coco influenciam a atividade dos outros, para escavar
só foi descrito
sobretudo os jovens, que também come- na serra
çam a manipular pedras e cocos. Isso du- da Capivara
ra alguns minutos. “A tradição canaliza
a atividade para o mesmo tipo de ação
importante para essa tradição”, define.
Patrícia ressalta que os macacos nas-
cem nesse contexto. “Muitas vezes ve-
mos filhotes nas costas das mães en-
quanto elas quebram”, conta. Com esse
aprendizado contínuo, acabam se tor-
nando especialistas na tarefa. Mas não
basta observar, e daí a importância de
os filhotes serem atraídos pela ação dos
adultos – principalmente os mais efica-
zes. “O sucesso passa pela percepção da
tarefa e das propriedades da ferramen- nar, perpetuar-se e fazer parte da cultura serindo características medidas nos su-

tiago falótico / usp


ta”, detalha, descrevendo um complexo mantida por gerações. Resende defende jeitos em causa. Em agosto de 2016 ele
corpo-ferramenta em que é constante- que indivíduo e sociedade são indissociá- apresentou, no congresso da Sociedade
mente necessário ajustar força, gestos veis, embora historicamente tenham sido Primatológica Internacional, em Chica-
e postura. Quando quebram tucum, um vistos como entidades distintas. go, resultados do experimento feito pela
coquinho menos resistente, os macacos bióloga Camila Coelho durante douto-
ajustam a força das pancadas depois de Teoria revista rado orientado por ele com um período
ouvirem o som da superfície rachando, Reunir a evolução cultural e a biológica passado na Universidade de Durham, no
o grupo mostrou em artigo do ano pas- é justamente o foco da síntese estendida, Reino Unido, para aprender o método. Os
sado na Animal Behaviour. Para cocos agora sedimentada com a fundação, em resultados indicam que, no caso dos ma-
mais difíceis, eles escolhem pedras que 2016, da Sociedade de Evolução Cultu- cacos-prego, o aprendizado social prevê
podem chegar a ser mais pesadas do que ral – o primeiro presidente é o zoólogo a difusão de informação na espécie.
o próprio corpo. E a seleção da pedra é Peter Richerson, da Universidade da Ca- Até meio século atrás, o uso de ferra-
criteriosa, conforme mostrou um ex- lifórnia em Davis, cujo grupo privilegia a mentas era considerado privilégio hu-
perimento em que Patrícia e seu grupo estatística. Essa visão conjunta amplia o mano. Ao observar chimpanzés na Tan-
forneceram pedras artificiais com dife- olhar evolutivo, já que a transmissão de zânia, a inglesa Jane Goodall derrubou
rentes tamanhos, pesos e densidades. ideias ou inovações não se dá apenas de essa exclusividade e, de certa maneira,
As pedras grandes logo atraíam a aten- pais para filhos e pode trazer vantagens causou a redefinição das fronteiras entre
ção dos macacos, mas se fossem pouco seletivas favorecendo as capacidades gente e bicho. Muito se descobriu de lá
densas – mais leves do que aparentavam cognitivas e sociais relevantes. Considera para cá, mas falar em cultura animal ain-
– eram abandonadas. “Eles têm a per- também que a cultura pode influenciar da esbarra em certo desconforto. Talvez
cepção de que o peso é importante na aspectos físicos, como a conformação e não por muito mais tempo. n
quebra”, diz Patrícia. o tamanho do cérebro, ou o desenvolvi-
Essas sociedades primatas alteram o mento de habilidades que por sua vez
ambiente. Macacos escolhem pedras ou sedimentam o comportamento. Os genes
Projetos
troncos achatados como base para que- e a cultura, duas vias de transmissão de
1. Uso de ferramentas por macacos-prego (Sapajus libidi-
brar coco, e para lá carregam as raras informação, relacionam-se, portanto, nosus) selvagens: Ecologia, aprendizagem socialmente
pedras grandes e duras que encontram por uma via de mão dupla. mediada e tradições comportamentais (no 14/04818-0);
no ambiente. Essa conformação é impor- A oportunidade de ver comportamen- Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsá-
vel Eduardo Benedicto Ottoni (USP); Investimento R$
tante não só por criar oficinas de que- tos surgirem e se espalhar é rara, e por 609.276,69.
bra, mas por canalizar a possibilidade de isso abordagens experimentais que pro- 2. Variabilidade de comportamento social de macacos-
aprendizado, já que todos sabem onde a vocam inovações são um acréscimo im- -prego (gênero Cebus): Análise comparativa entre po-
pulações para investigação de correlatos fisiológicos (no
atividade acontece e pode ser observada. portante aos comportamentos diversos 08/55684-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular;
“Não faz sentido pensar em maturação dos macacos-prego do Piauí. Ferramen- Pesquisadora responsável Patrícia Izar (USP); Investi-
motora independente do contexto so- tas estatísticas recentes podem ajudar mento R$ 186.187,33.
3. Desenvolvimento de novos ligantes/drogas com ação
cial, alimentar”, afirma a bióloga Briseida a aprofundar essa compreensão, como agonística seletiva (biased agonism) para receptores
Versão atualizada em 21/09/2017

Resende, também do IP-USP e coautora a Análise de Difusão Baseada em Redes dos sistemas renina-angiotensina e calicreínas-cininas:
do artigo da PNAS. O desenvolvimento (Network-Based Diffusion Analysis) que Novas propriedades e novas aplicações biotecnológicas
(no 12/20148-0); Modalidade Projeto Temático; Pesqui-
individual depende das experiências de o grupo de Ottoni começa a usar. “O pro- sador responsável Claudio Miguel da Costa Neto (USP);
cada um, de suas capacidades físicas e do grama monta uma rede social aleatória e Investimento R$ 3.169.674,21.
acervo acumulado pelo grupo, no qual compara à real”, explica o pesquisador, Os artigos citados estão listados na versão on-line desta
uma inovação criada pode se dissemi- que torna as análises mais robustas in- reportagem

56  z  setembro DE 2017


ciências atmosféricas y

Perigo no
céu de São Paulo
Poluição do ar diminuiu nos últimos
30 anos, mas os níveis de alguns compostos
ainda são superiores ao aceitável

Diego Freire

P
esquisadores que estudaram a à gasolina e do aumento do número de
qualidade do ar na Região Me- carros flex, que já compõem mais da me-
tropolitana de São Paulo (RMSP) tade da frota de veículos leves da Região
ao longo das últimas três décadas Metropolitana de São Paulo. O etanol
afirmam que a concentração total de po- emite menos monóxido de carbono (CO),
luentes emitidos por carros, caminhões hidrocarbonetos (HC) e óxidos de nitro-
e indústrias diminuiu e o paulistano res- gênio (NOx) do que a gasolina e, desde
pira hoje um ar mais limpo do que nos 1993, é adicionado ao derivado de pe-
anos 1980. A qualidade melhorou porque tróleo em proporções crescentes – hoje
baixaram as concentrações dos princi- cada litro de gasolina contém 27% de eta-
pais componentes da poluição, tanto os nol. Contribuíram ainda para melhorar a
gases como as partículas microscópicas. qualidade do ar do paulistano a adoção
A má notícia é que, apesar das reduções, de processos de produção mais limpos
os níveis de alguns dos poluentes ainda pela indústria, como a substituição de
são quase duas vezes mais altos que os caldeiras a óleo por caldeiras a eletrici-
aceitos pela Organização Mundial da dade, e a mudança nos anos 1980 e 1990
Saúde, a OMS (ver gráfico na página 58). de muitas fábricas para outras cidades.
Os níveis de poluentes lançados na De 1988 a 2015, os carros que circulam
atmosfera caíram em consequência da por São Paulo passaram a emitir 20 vezes
implementação de políticas públicas de menos CO, NOx e material particulado e
controle da poluição por veículos auto- 40 vezes menos HC. Já as emissões dos
Vista aérea motores, que levou ao desenvolvimento mesmos poluentes por veículos pesados
de motores mais eficientes e menos po- (caminhões e ônibus), para os quais a re-
léo ramos chaves

do Parque do
Ibirapuera, região
luentes (ver Pesquisa FAPESP nº 224). gulamentação surgiu mais tarde, caíram
de tráfego intenso
na zona Sul da Parte dessa queda também se deveu ao três vezes, segundo análises feitas por
capital paulista efeito combinado da adição do etanol pesquisadores do Instituto de Astrono-

pESQUISA FAPESP 259  z  57


mia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da quase 7 bilhões, em 2014, segundo dados
Universidade de São Paulo (IAG-USP), da Agência Nacional do Petróleo.
apresentadas em três artigos publicados Vapores de Dos principais poluentes avaliados
este ano nas revistas Atmospheric En- pelo grupo do IAG-USP, só um não di-
vironment, Atmospheric Chemistry and combustível minuiu de modo consistente: o ozônio,
Physics e Journal of Transport & Health. um poluente secundário, resultado de
Dados da Companhia Ambiental do Es-
liberados no reações de compostos produzidos pelos
tado de São Paulo (Cetesb), que monitora abastecimento motores com substâncias da atmosfera e
a qualidade do ar na RMSP, mostram, no a radiação solar. As concentrações desse
entanto, que, apesar do aprimoramento podem gás, que causa irritação nas vias respi-
dos motores e do uso de etanol puro ou ratórias e aumenta o risco de infecções,
associado à gasolina, os veículos leves contribuir de baixaram até meados da década passa-
(carros e motos) e os pesados continuam da, mas, em seguida, voltaram a subir,
sendo as principais fontes poluidoras da
modo relevante embora não tenham atingido níveis tão
atmosfera na metrópole. para a formação elevados quanto os da metade dos anos
A principal razão de a qualidade do ar 1990. Além dos gases lançados ao ar pe-
não ter melhorado ainda mais nos últi- de ozônio e lo escapamento dos veículos, vapores de
mos anos foi o aumento substancial no combustível liberados durante o abas-
número de veículos na região, que sal- outros poluentes tecimento parecem contribuir de modo
tou de 1 milhão, em 2000, para quase 7 relevante para a formação de ozônio e
milhões, em 2014. “Apesar de os veícu-
secundários outros poluentes secundários. É que, a
los estarem mais eficientes e poluírem cada litro despejado nos tanques, alguns
menos, a frota cresceu muito”, lembra mililitros sobem na forma de vapor para
a física Maria de Fátima Andrade, do a atmosfera. Parece pouco, mas, segundo
10.000
IAG-USP, coordenadora dos três estu- a pesquisadora do IAG, o impacto final
dos. Com mais carros nas ruas, o volume pode ser importante – superior ao dos
de combustível consumido cresceu 25% gases liberados pelo escapamento de car-
em menos de uma década: passou de 5,5 CO ros e caminhões –, dado o volume total
bilhões de litros por ano, em 2007, para de combustível abastecido na RMSP. “Os
processos evaporativos não são dimen-
sionados adequadamente”, afirma Maria
de Fátima. “É possível que o impacto des-
O ar de uma megacidade ses vapores esteja sendo subestimado.”
1.333 Hoje o componente da poluição que
Concentração dos principais poluentes monitorados mais preocupa os especialistas, por re-
na Região Metropolitana de São Paulo presentar um maior risco para a saúde
humana, é o chamado material particu-
165
lado ou MP: uma mistura de partículas
n Valores médios registrados sólidas ou líquidas muito pequenas. Elas
pela Cetesb em 2016
são produzidas diretamente pelos mo-
O3 n Valores aceitos pela OMS tores durante a queima do combustível
[Valores em microgramas ou formadas na atmosfera a partir de
por metro cúbico (µg/m3)]
certos gases. Seu tamanho é inversamen-
100 te proporcional à capacidade de causar
problemas à saúde: quanto menores suas
dimensões, mais tempo elas permane-
NO2 cem em suspensão no ar e maiores os
potenciais efeitos danosos. Por serem
MP10 tão pequenas, elas penetram facilmente
MP2.5 SO2 no trato respiratório e ali se acumulam,
40
37 podendo provocar inflamações pulmo-
29
nares, agravar doenças como a asma e
20
17 20 até causar problemas em outros órgãos.
10
Na RMSP, a Cetesb monitora tanto a
3
concentração das maiores, as partículas
Ozônio Partículas Partículas Dióxido de Dióxido Monóxido inaláveis com até 10 micrômetros de diâ-
inaláveis inaláveis finas nitrogênio de enxofre de carbono
metro (MP10), como a das partículas inalá-
veis finas, de até 2,5 micrômetros (MP2,5).
Fonte Qualidade do Ar no Estado de São Paulo – 2016 – Cetesb; ANDRADE,
M.F. et al. Atmospheric Environment. 2017; WHO – Air Quality Guidelines Os níveis de ambas vêm diminuindo, em-

58  z  setembro DE 2017


bora continuem superiores aos recomen- Marginal do rio Pinheiros, te público, como o uso de combustíveis
dados pela OMS. Mas a Cetesb não mede uma das vias mais mais limpos e a aplicação de novas tecno-
movimentadas da cidade
os níveis de partículas ainda menores – as logias para reduzir o tempo de viagem, a
de São Paulo
chamadas ultrafinas, com diâmetro da fim de que baixem os níveis de poluentes
ordem de nanômetros –, produzidas em para os valores recomendados pela OMS.
maior quantidade por veículos movidos “A exposição prolongada à poluição nos
a gasolina do que a álcool. inflige um risco difícil de evitar, porque
Um estudo realizado com a colabo- morte. “Existem vários níveis de vul- ela reproduz no organismo o que o ci-
ração de pesquisadores do Instituto de nerabilidade das pessoas à poluição do garro faz a um fumante”, afirma. “Eu
Física (IF) da USP e publicado em ju- ar e uma parte delas morre por conta decido se fumo ou não, mas não tenho
lho deste ano na revista Nature Commu- dos problemas de saúde causados pela como fazer esse tipo de escolha ao res-
nications relatou um aumento de 30% poluição, especialmente dos provoca- pirar o ar de São Paulo.” n
na concentração de partículas ultrafinas dos por partículas tão pequenas”, conta
(menos de 50 nanômetros de diâmetro) Saldiva, coordenador de um estudo que
na cidade de São Paulo entre janeiro e estimou que a cada ano cerca de 3,5 mil Projetos
maio de 2011. Nesse período, houve alta pessoas morrem na cidade de São Pau- 1. Narrowing the uncertainties on aerosol and clima-
considerável no preço do etanol e os mo- lo por causa da poluição (ver Pesquisa te changes in São Paulo State: NUANCES-SPS (nº
08/58104-8); Modalidade Projeto Temático; Programa
toristas de carros bicombustível passaram FAPESP nº 129). “Elas se depositam nos Mudanças Climáticas (PFPMCG); Pesquisadora respon-
a consumir mais gasolina do que álcool. alvéolos pulmonares e, de lá, chegam sável Maria de Fátima Andrade (USP); Investimento R$
Os dados de poluição foram coletados na facilmente ao sistema nervoso central 3.297.909,37.
2. GoAmazon: Interação da pluma urbana de Manaus
estação do Instituto de Física e usados e a outras partes do organismo”, conta com emissões biogênicas da Floresta Amazônica (nº
para alimentar modelos estatísticos que Saldiva, líder na FM-USP de uma equi- 13/05014-0); Modalidade Projeto Temático; Programa
consideraram o tráfego, as informações pe que atualmente investiga se há uma Mudanças Climáticas (PFPMCG); Pesquisador respon-
sável Paulo Eduardo Artaxo Neto (USP); Investimento
meteorológicas e o comportamento do conexão entre a exposição prolongada à R$ 4.290.930,31.
consumidor. “A modelagem indicou que, poluição e o desenvolvimento da doença
quando os preços do etanol voltaram a de Alzheimer em seres humanos. Tem- Artigos científicos
cair, o consumo de gasolina baixou e a pos atrás seu grupo havia observado que ANDRADE, M. F. et al. Air quality in the megacity of São
Paulo: Evolution over the last 30 years and future per-
concentração dessas partículas medida filhotes de roedoras expostas à poluição spectives. Atmospheric Environment. v. 159, p. 66-82.
na atmosfera também diminuiu”, conta o ambiental da cidade nasciam com bai- jun. 2017.

físico Paulo Artaxo, professor do IF-USP xo peso, por problemas na placenta que PACHECO, M. T. et al. A review of emissions and concen-
trations of particulate matter in the three major metro-
e um dos autores do estudo. dificultariam a passagem de nutrientes. politan areas of Brazil. Journal of Transport & Health. v.
Os pesquisadores também obtiveram 4, p. 53-72. mar. 2017.

Da gestação à velhice indícios de que a exposição prolongada VARA-VELA, A. et al. Impact of vehicular emissions on
the formation of fine particles in the Sao Paulo Metro-
Para o patologista Paulo Saldiva, da Fa- aos poluentes – em especial às partículas politan Area: A numerical study with the WRF-Chem
léo ramos chaves

culdade de Medicina (FM) da USP, di- finas e ultrafinas – prejudica o desenvol- model. Atmospheric Chemistry and Physics. v. 16 (2),

minuir a concentração de partículas vimento dos pulmões. p. 777-97. jan. 2017.


SALVO, A. et al. Reduced ultrafine particle levels in São
finas e ultrafinas de poluição no ar é, Para Saldiva, é urgente que se adotem Paulo’s atmosphere during shifts from gasoline to ethanol
literalmente, uma questão de vida ou iniciativas para melhorar o transpor- use. Nature Communications. jul. 2017.

pESQUISA FAPESP 259  z  59


botânica y

Jardins
de altitude
C
omumente concebida como um
tapete verde que cobre uma ex-
tensa área plana, a Amazônia
reserva um relevo peculiar e
Expedições a montanhas da Amazônia menos conhecido: montanhas com alti-
tudes que variam de 800 a 3 mil metros
descobrem mais de duas dezenas de novas (m). Esses imponentes maciços aparen-
temente imutáveis são, para os biólogos,
espécies de plantas laboratórios vivos em constante transfor-
mação. Ali, surgem, vivem, reproduzem-
Alicia Ivanissevich -se, migram e desaparecem espécies em
grande número e variedade. Grupos de
pesquisadores de diferentes instituições
do país vêm contribuindo para traçar
um retrato mais fiel da flora dessa região
montanhosa da Amazônia, e algumas

60  z  setembro DE 2017


pinceladas dessa pintura já podem ser visitaram a serra do Aracá e o pico da Na serra do Imeri,
apreciadas. Mais de duas dezenas de Neblina, no Amazonas, e a serra Grande no Amazonas, fica
o pico da Neblina
novas espécies vegetais – sobretudo de e o monte Caburaí, em Roraima, andan- (à esq.), onde a equipe
plantas com flores – foram descobertas do, sem trilhas, sobre pedras ou em solos do Jardim Botânico
em uma série de expedições feitas em encharcados e colhendo plantas em meio do Rio de Janeiro
anos recentes e agora estão em processo a valas, arbustos e buracos. Formadas por identificou os
arbustos Bonnetia
de descrição na literatura científica. serras com picos íngremes ou elevações neblinae (no alto) e
Entre 2011 e 2014, cinco biólogos com topo em forma de mesa conhecidas Leandra maguire
do Jardim Botânico do Rio de Janeiro pelo nome indígena tepui, essas terras (acima)
(JBRJ) exploraram áreas remotas do altas abrigam uma vegetação bem dis-
lado brasileiro do Escudo das Guianas, tinta daquela que cresce sobre a vasta
fotos ricardo azoury

formação geológica que compreende as planície amazônica.


Guianas, grande parte da Venezuela e Nas terras baixas, com até 500 m de
uma pequena porção do extremo norte altitude, predomina a floresta densa e
do Brasil. Enfrentando climas extremos alta, enquanto a flora das serras e dos
e viagens demoradas, os pesquisadores tepuis lembra os campos rupestres das

pESQUISA FAPESP 259  z  61


No monte Caburaí,
em Roraima, ponto
mais ao norte do
Brasil, os botânicos
usam o laboratório
do acampamento
para analisar o
material coletado
durante o dia

Saxofridericia regalis,
comum nas terras
altas da Venezuela
e das Guianas e
agora encontrada
no monte Caburaí

áreas montanhosas de Minas Gerais e da


Bahia. Parte desse universo botânico até
então quase inexplorado cientificamente
no país começa a ser revelada.
Nessas expedições, os pesquisado-
res coletaram cerca de 4 mil amostras
de plantas. Até agora foram registra-
das em território brasileiro cerca de 60
novas ocorrências de plantas vascula-
res que tinham sido observadas apenas
em países vizinhos. Ao menos 10 novas
espécies, entre briófitas e plantas com
flores, foram ou estão sendo descritas.
O Aracá era o único tepui para o qual
existia uma lista preliminar de plantas
com o registro de cerca de 250 espécies,
publicada em 1992 pelo botânico britâ-
nico Ghillean Tolmie Prance e pelo bo-
tânico norte-americano David Johnson,
que promoveram expedições à região
na década de 1990. “Com as nossas co-
letas, conseguimos ampliar essa lista, vegetação do entorno chegando mais o topo”, conta o botânico Gustavo Mar-
identificando cerca de 450 espécies de perto do cume. Mas nosso trabalho mos- tinelli, coordenador do Centro Nacional
plantas vasculares apenas nessa par- trou que a composição florística no to- de Conservação da Flora do JBRJ e um
te alta da serra”, comemora a botânica po é tipicamente dos tepuis”, afirma a dos pesquisadores da equipe que explo-
Rafaela Campostrini Forzza, curadora pesquisadora. rou as montanhas.
do Herbário do JBRJ e integrante das Alcançar os tepuis da região não é fá- “Não é apenas uma caminhada difícil”,
expedições. cil e exige uma logística complexa, que observa Rafaela. “Subimos com equipa-
inclui transporte aéreo, terrestre e aquá- mento pesado, sílica-gel, álcool, jornais,
aracá, também um tepui tico, além de auxílio de ajudantes locais. comida, barraca e outros apetrechos, e
As famílias, os gêneros e muitas espécies Das três expedições à serra do Aracá, a descemos carregados com sacos e sacos
encontradas no Aracá são os mesmos primeira – mais exploratória – e a tercei- de plantas, amostras prensadas e amar-
que predominam nos outros tepuis do ra foram feitas a pé. “Voamos do Rio até radas”, conta. “Foi dureza.”
escudo das Guianas. “Alguns estudos Manaus, onde uma van nos levou para A segunda expedição ao Aracá e as
questionavam se o Aracá era um tepui, Novo Airão, no Amazonas; daí, pegamos demais às outras montanhas foram fei-
por estar muito distante da área original um barco; depois, uma voadeira até a tas de helicóptero, graças ao patrocínio
e ser uma montanha mais baixa, com a base do Aracá e, de lá, caminhamos até da Natura, empresa de cosméticos que

62  z  setembro DE 2017


apoiou a pesquisa. “No Aracá, o helicóp- 2

tero ficava em um vilarejo do município


de Barcelos, subia para levar dois grupos
a pontos distantes da serra, o que seria
muito difícil de fazer a pé, e os pegava de
volta no fim da tarde”, conta a botânica.
“Isso permitiu coletar um número maior
de amostras. Para subir a pé o pico da
Neblina, por exemplo, levaríamos de três
a quatro dias, enfrentando chuva e frio.”

No topo da Serra da Mocidade


Entre janeiro e fevereiro do ano passa-
do, uma expedição multi-institucional
coordenada pelo Instituto Nacional de
Pesquisas da Amazônia (Inpa) buscou
mapear as espécies de plantas caracterís-
ticas da serra da Mocidade, que faz parte
do parque nacional de mesmo nome, no
estado de Roraima. A equipe de botâni-
cos liderada por Alberto Vicentini conse-
guiu coletar 395 amostras
de plantas, entre musgos, O musgo
samambaias, licófitas, he- Sphagnum
aciphyllum
páticas, antóceros, gimnos- (acima à esq.)
permas e angiospermas. e a planta
“Essa lista ainda é muito carnívora
preliminar e os dados de- Drosera
roraimae,
vem ser interpretados com achados
cautela”, destaca o botânico na serra do
Ricardo Perdiz, doutoran- Aracá (ao lado)
do do Inpa que participou
da expedição. “Mas, consi-
derando apenas as coletas
feitas na Unidade de Con-
servação do Parque Nacio-
nal da Serra da Mocidade,
que somam cerca de mil
amostras, já identificamos
557 espécies, 321 gêneros
e 134 famílias de plantas”,
relata Perdiz.
Segundo o botânico, o
número de coletas ainda
é considerado baixo para ter uma ideia que só existem naquela região. “Topos de flores – todas coletadas acima de mil me-
aproximada da riqueza da flora regio- morro são geograficamente separados; tros de altitude – que eram conhecidas
nal. “Se analisarmos esses dados por ti- portanto, abrigam a priori populações apenas em países vizinhos.
po de planta, vamos perceber o quanto isoladas”, teoriza Perdiz. “Suspeitamos As expedições do JBRJ foram docu-
ainda é preciso coletar e conhecer”, diz. que, entre as plantas coletadas no topo mentadas no vídeo Montanhas da Ama-
“E, se examinarmos a distribuição das de um dos morros da Mocidade, haja 11 zônia: Em busca da flora desconhecida
coletas no espaço geográfico, veremos novas espécies.” (bit.ly/AMountain) e no livro Expedições
também que há muitas lacunas, uma vez Na serra da Mocidade, já foram des- às montanhas da Amazônia, publicado
que existem áreas nas quais não houve critas duas espécies novas de briófitas. em 2015 (bit.ly/AMontanhap). As via-
uma coleta sequer.” Uma terceira espécie de Dacryodes, da gens exploratórias do Inpa, que, além
fotos ricardo azoury

Como os dados estão sendo analisados, família Burseraceae, que inclui a mirra de plantas, buscaram colher amostras de
os pesquisadores ainda não podem dar e o incenso, deverá ser publicada até o insetos e da fauna da serra da Mocidade,
informações certeiras sobre as plantas fim do ano. A expedição coordenada pelo originaram o documentário Expedição
coletadas, mas esperam identificar um Inpa também permitiu identificar quatro novas espécies, que se encontra em fase
número elevado de espécies endêmicas, novos registros no Brasil de plantas com de finalização. n

pESQUISA FAPESP 259  z  63


Entrevista Robert Myers y

Um dicionarista
do Cosmo
Considerado um dos mais influentes teóricos da atualidade,
físico canadense explica por que é tão difícil unificar as teorias
que descrevem as quatro forças do Universo

Ricardo Zorzetto

O
físico canadense Robert Myers, 58 Myers cresceu em Deep River, uma cidadezi-
anos, iniciou sua carreira de pes- nha com 5 mil moradores na província de Ontário,
quisador nos anos 1980 tentando no Canadá. Decidiu estudar física por ser a área
descobrir como seriam os buracos que lhe parecia mais desafiadora e, desde 2001,
negros em um Universo com mais integra o time de pesquisadores do Perimeter Ins-
dimensões do que as quatro conhecidas – três de titute for Theoretical Physics, um dos centros de
espaço (comprimento, largura e altura) e uma de física teórica mais inovadores do mundo, sediado
tempo. O trabalho não saiu como esperava. Mas em Waterloo, também na província de Ontário.
abriu o caminho para ele se tornar uma referên- Em julho, Myers esteve em São Paulo e deu au-
cia internacional em teoria das cordas, o modelo las para quase 100 alunos de graduação em física
físico segundo o qual o Universo seria formado da América Latina que estão em nível avançado.
por filamentos microscópicos – as cordas – que Eles se preparavam para concorrer às poucas va-
vibrariam em até 10 dimensões. gas de um mestrado a ser feito parte no Perimeter,
Desde então, Myers já publicou 211 artigos, que parte no Centro Internacional de Física Teórica
foram mencionados cerca de 22 mil vezes, e vem (ICTP) do Instituto Sul-americano para Pesquisa
delineando os rumos de como usar a teoria das Fundamental (Saifr), na Universidade Estadual
cordas para entender a força da gravidade. Ele foi Paulista (Unesp). Na entrevista a seguir, Myers
considerado recentemente um dos pesquisadores falou sobre trabalhar no Perimeter e a respeito
mais influentes em sua área. Seu nome estava nas da área da física que vem ajudando a desenvolver.
edições de 2014 e 2015 do ranking World’s Most
Léo ramos chaves

Influential Scientific Minds, que reúne os auto- O senhor está no Perimeter desde o início e tam-
res dos artigos mais citados na última década em bém é professor na Universidade de Waterloo.
diferentes áreas da ciência. Quais as diferenças entre as duas instituições?

64  z  setembro DE 2017


Myers durante visita a
São Paulo em julho deste
ano, quando deu curso
para alunos da América
Latina que concorreriam
a mestrado internacional

Creio ter sido o primeiro pesquisador


contratado pelo Perimeter. A Univer-
sidade de Waterloo é uma instituição
grande, com uns 10 mil alunos e vários
interesses e atividades. Tem boa repu-
tação em engenharia e matemática. Em
física, começa a melhorar. No Perime-
ter, o foco é a física. Fica em Waterloo
porque é lá que Mike Lazaridis tem seu
negócio [ele é o dono da empresa de ce-
lulares BlackBerry e fez a doação de US$
100 milhões para fundar o Perimeter].
Quando criaram o instituto, queriam
parcerias com outras instituições, mas
houve uma decisão consciente de não
fazer parte da universidade. Temos par-
ceria com as universidades de Toronto,
York, McMaster e Western. Contratamos
professores com eles e trabalhamos com
seus alunos. Isso nos dá flexibilidade.
Em uma universidade, as pessoas fazem
parte de uma equipe maior, que segue as
prioridades estabelecidas pela reitoria. É
preciso negociar mais e tentar conven-
cer as outras partes de que as suas metas
pessoais também são importantes. No
Perimeter, definimos nossas prioridades
sem interferências.

Vocês têm liberdade para escolher o


que pesquisar.
Sim, e é muito mais fácil mudar de área e
experimentar novos caminhos. Em parte,
porque somos uma instituição pequena.

pESQUISA FAPESP 259  z  65


Também há uma característica ali que Os buracos negros são objetos que sur- tica seriam úteis para entender buracos
é mirar alto e ir atrás de questões de- gem em condições extremas, em que a negros e gravitação quântica.
safiadoras. gravidade é muito intensa, e poderiam
fornecer informações sobre vários as- O que gostaria de descobrir?
Quantos alunos há no Perimeter? O ní- pectos da teoria. Uma de suas caracte- Buracos negros são uma espécie de play-
vel dos estudantes é diferente dos de rísticas mais animadoras é que ela é uma ground para os matemáticos. Atualmente,
outras instituições? teoria de gravitação quântica [a teoria qualquer teoria que tente explicar fenô-
Somados, não passam de 100. São cerca de das cordas inclui uma descrição quân- menos astrofísicos muito energéticos
30 alunos no mestrado e 45 no doutorado. tica da gravidade e tenta compatibilizar os atribui a buracos negros. Há uns 40
Há o programa Visiting Graduate Fello- a mecânica quântica, que descreve três anos, pensavam-se em soluções mais
wship, que todos os anos traz um bom forças físicas – eletromagnética, nuclear elegantes. No início dos anos 1970, Jacob
número de alunos de pós-graduação de forte e nuclear fraca – relevantes para os Bekenstein [1947-2015] foi o primeiro fí-
nível avançado. Eles trabalham um tem- fenômenos microscópicos, com a teoria sico a olhar para os buracos negros sob
po no Perimeter, mas fazem suas teses e da relatividade geral, de Einstein, que uma perspectiva diferente e tentar incor-
pesquisas em outras universidades. Todos trata da força da gravidade e descreve os porar na relatividade geral, que trata da
nossos estudantes são alunos de Waterloo, fenômenos macroscópicos]. Com o tem- gravidade, ideias da teoria da informa-
uma vez que não é o instituto que con- po, os físicos encontraram conexões e ção. Ele realizou experimentos mentais
cede os títulos de mestrado e doutorado. foram capazes de estudar buracos negros que tentavam imaginar como seria a físi-
A ideia inicial era fazer algo bem-feito. e ter insights sobre a teoria das cordas. ca envolvida em certo fenômeno e disse
Ao estabelecer parcerias, o instituto e as que, para a física que conhecemos fazer
outras instituições se beneficiam mutu- Não era usual estudar buracos negros sentido, os buracos negros deveriam ter
amente. Hoje, Waterloo atrai alunos de em várias dimensões? entropia [medida de como a energia po-
física melhores do que há 15 anos. Era algo à frente do tempo. Isso interes- de ser distribuída entre os componentes
sou a mim e a meu orientador, Malcolm microscópicos desse objeto]. Também
Recentemente o senhor foi escolhido John Perry. À medida que avancei, ten- falou que essa entropia deveria ser pro-
duas vezes um dos cientistas mais in- tei aproveitar as oportunidades. Costu- porcional à área da superfície do buraco
fluentes do mundo em sua área. Além mo dizer que temos uma caixa de ferra- negro. Muita gente viu isso com ceticis-
disso, já publicou mais de 200 artigos, mentas de ideias e técnicas. Quanto mais mo. Ter entropia significa apresentar
citados 22 mil vezes. Qual o segredo? ferramentas se coloca na caixa, maior a uma estrutura interna, como as molé-
Trabalhei muito. Não sei que conselho capacidade de resolver problemas. No culas de um gás encerrado em uma sa-
dar. Digo para meus alunos que devem momento, estou animado em trabalhar la. E, do ponto de vista da relatividade
buscar algo de que realmente gostem. em uma área que tenta entender como geral, não fazia sentido pensar em uma
O resto vem com o esforço. Vejo mui- as ideias da teoria da informação quân- estrutura interna para buracos negros.
ta gente perseguindo uma carreira por
precisar de um trabalho para sobreviver. Como a ideia foi recebida?
Tive a sorte de conseguir um trabalho Bekenstein era aluno de pós-gradua-
divertido. O entusiasmo nutre muitos ção em Princeton e as pessoas o ques-
pesquisadores. É muito mais do que um tionaram, até que, anos depois, Stephen
trabalho ou uma carreira, é algo pelo Hawking propôs que, quando ocorrem
qual somos apaixonados. Gostamos de Hoje buscamos flutuações quânticas nos buracos ne-
trabalhar duro, por longas horas, para gros, eles podem liberar radiação tér-
descobrir novas fórmulas ou analisar ferramentas mica. Se esses objetos funcionam como
resultados de experimentos. um reservatório de calor, eles têm de ter
da teoria da entropia. Bekenstein e Hawking realiza-
Seu artigo mais citado (1.539 vezes) é informação ram uma predição muito precisa sobre
sobre buracos negros. O que estudou? o que seria a entropia do buraco negro.
Esse artigo é de 1986. Foi minha tese de quântica para É uma fórmula notável. De um lado, ela
doutorado na Universidade de Prince- traz informação sobre a área, uma carac-
ton, Estados Unidos. Na época, houve tentar entender terística geométrica bidimensional do
uma segunda revolução na teoria das espaço-tempo. Do outro, ela apresenta a
cordas, que animou as pessoas. Vivemos
aspectos entropia, que insinua algo sobre a estru-
em um espaço-tempo de quatro dimen- relevantes da tura interna, sobre o estado quântico que
sões, três de espaço e uma de tempo. E compõe o buraco negro. Essa fórmula su-
a teoria das cordas é formulada em um gravidade e dos gere que a informação sobre a estrutura
espaço-tempo com até 10 dimensões. interna ou a natureza quântica do buraco
Estava interessado em saber como se- buracos negros negro pode estar codificada na sua geo-
riam os buracos negros em um Universo metria. Conto essa história porque, para
com mais de quatro dimensões. Tinha tentar entender mais profundamente
uma ideia em mente, mas não deu certo. essa ideia e outras relacionadas, retor-

66  z  setembro DE 2017


namos o tempo todo à questão de como Não é bem isso. Na teoria quântica de
a geometria do espaço-tempo codifica campos não existe o conceito de gra-
a informação sobre os estados micros- vidade. É como se fosse uma língua na
cópicos que não podemos ou ainda não Há situações em qual essa palavra não existisse. Então,
conseguimos ver. Bekenstein percebeu não tenho de me preocupar com ela. É
cedo que a entropia era uma forma de que a mecânica uma vantagem porque essa teoria é um
caracterizar a informação, mas levou um sistema com o qual deveríamos nos sen-
tempo para reconhecermos. Em vez de
quântica e tir confortáveis para fazer os cálculos.
usar a teoria da informação para tentar a relatividade Como a física que descrevo com essa
entender aspectos relevantes da gravida- teoria é a mesma que descrevo com a
de e dos buracos negros, hoje usamos a geral teriam um relatividade geral, que tem gravidade,
teoria da informação quântica, uma área usamos nossa intuição para entender
que cresceu a partir da ideia de usar a papel importante. como as coisas funcionam em uma de-
mecânica quântica para produzir novos las e depois tentamos traduzir e enten-
tipos de computadores.
Deveria haver der o que isso significa na outra. Há um
um modo de diálogo, na realidade. Em algumas situ-
Como esse conhecimento poderia ser ações usamos a relatividade geral para
usado? unir essas fazer cálculos que são difíceis na teoria
Para construir computadores mais rá- quântica de campos e, assim, aprender
pidos ou entender melhor o compor- duas teorias algo sobre esta. Em outras, fazemos os
tamento da matéria. Há teorias sobre a cálculos com as ferramentas da teoria
matéria condensada que usam a entropia quântica de campos para tentar aprender
de emaranhamento ou ideias da teoria algo novo sobre a gravidade. É uma obra
da informação quântica para caracterizar em desenvolvimento há uns 20 anos,
estados novos da matéria [são estados um dicionário complicado de entender.
exóticos que não podem ser descritos
por fenômenos – magnetismo, densida- O objetivo é alcançar a chamada teo- O que gostaria de descobrir no final?
de e outros – usados para caracterizar a ria do tudo? Gostaria de entender o que é a radiação
matéria comum]. Isso já ofereceu ferra- Pode-se chamar assim. Alguns dizem Hawking que escapa dos buracos negros.
mentas para os físicos no passado. Agora teoria da gravitação quântica. Não entrei em detalhes, mas parece ha-
um novo grupo de físicos está indo até ver inconsistências.
os teóricos da informação quântica para Uma das ferramentas utilizadas é o
pegar emprestadas novas ferramentas princípio holográfico, uma proposta No fato de os buracos negros emitirem
que podem nos permitir olhar de modo teórica segundo a qual seria possível alguma forma de radiação?
diferente para questões que estão sendo descrever a informação contida em um Emitir radiação significa liberar energia.
analisadas há muito tempo. espaço tridimensional, como uma es- Se passasse um tempo longo o suficien-
fera, a partir do que se conhece de sua te, o buraco negro poderia emitir toda a
Que tipo de questão gostaria de respon- superfície, um espaço bidimensional. É sua energia e desaparecer. Isso cria um
der com essas ferramentas? uma tentativa de eliminar a gravidade paradoxo, porque a mecânica quântica
Em última análise, descobrir como uni- da história? determina que a informação não pode
ficar as teorias que descrevem as quatro De certo modo, é. Penso na holografia desaparecer no Universo, ela tem de ser
forças conhecidas, um dos grandes misté- como um dicionário. Há fenômenos que conservada, assim como ocorre com a
rios para os físicos teóricos. De um lado, queremos descrever e podemos usar duas energia. É uma pergunta importante que,
temos a mecânica quântica. Ela funciona línguas. Uma delas é uma classe especial talvez, só seja respondida por uma teoria
muito bem e faz predições e verificações de teoria quântica de campos, a chamada completa de gravitação quântica.
experimentais, mas na escala dos átomos. teoria de campos conforme. Os detalhes
De outro, temos a relatividade geral, que não importam, mas, nessa linguagem, O que essa teoria completa permitiria
descreve os fenômenos associados aos não existe gravidade. Na outra, usamos descrever?
objetos maiores, como o movimento dos gravidade, mas em uma dimensão a mais. Tudo, da menor à maior escala. Isso seria
planetas ou a evolução do Universo. Co- Um dos obstáculos é que, de um lado, importante, por exemplo, para entender
mo físico teórico, consigo imaginar expe- tenho a teoria quântica de campos, que como devem ter sido os instantes iniciais
rimentos mentais em que as duas teorias descreve um mundo em três dimensões, do Universo. Sabemos que o Cosmo está
teriam um papel importante. Deveria duas de espaço e uma de tempo. Como em expansão acelerada. Se pudéssemos
haver um modo uni-las. Mas ainda não vou usá-la para descrever fenômenos reverter o tempo, veríamos ele encolher
descobrimos como fazer isso de modo que ocorrem em quatro dimensões, três até um momento em que os efeitos da
consistente. A esperança é de que não de espaço e uma de tempo? gravidade quântica se tornariam impor-
estejamos olhando para os problemas tantes. Em princípio, ela poderia nos dar
da maneira certa e que a teoria da infor- A gravidade não é importante na escala um insight sobre de onde veio o Univer-
mação quântica nos ajude a progredir. tratada pela teoria quântica de campos? so, onde tudo começou. n

pESQUISA FAPESP 259  z  67


tecnologia  Engenharia de Produção y

Pague
A
lgumas empresas de manufatura co-
meçam a adotar um novo modelo de
negócio de seus produtos. As vendas

pelo
tradicionais estão sendo substituí-
das por um sistema comercial no
qual as empresas mantêm a posse dos bens pro-
duzidos, cuidam de sua manutenção e garantem
seu funcionamento, e o cliente paga por usufruir
as funções proporcionadas pelo produto. É o sis-

usufruto
tema produto-serviço, da sigla PSS, product-ser-
vice system, também conhecido como product as
a service ou servitização no Brasil, palavra que
significa a estratégia de mudança de uma empresa
fornecedora de produtos para uma solução PSS.
No exterior já existem muitos exemplos, princi-
palmente na Europa. A Rolls-Royce disponibiliza
suas turbinas de avião em um modelo PSS em que
Sistema reúne produtos e as companhias aéreas pagam por hora de voo. A
Michelin oferece aos gestores de frota de cami-
serviços em estratégia comercial nhões um sistema pelo qual é remunerada pela
milhagem rodada de seus pneus. Na Holanda, a
que elimina a venda do bem Philips faz para clientes corporativos a análise
e gera oportunidades e novos do ambiente e o design da iluminação. O cliente
paga pela luz utilizada em horas, o que abrange
desafios para a indústria todo o serviço, inclusive instalação, fornecimento
de equipamentos e manutenção.
A BMW oferece o uso de seus veículos, por
Domingos Zaparolli meio da empresa DriveNow, em 12 cidades da Eu-
ropa, como Berlim, Viena, Londres, Copenhagen,
Estocolmo e Milão. Em Copenhagen, por exem-
plo, são 400 veículos disponíveis. O pagamento é
por hora de uso e inclui combustível e seguro. O
acesso a essa solução é por aplicativo de celular.
A cidade de Vancouver, no Canadá, possui quatro
concorrentes desse tipo de oferta, a Zipcar, a car-

68  z  setembro DE 2017


2go, EvoCar e a Modo. Essa modalidade também sem considerar a infraestrutura computacional. O
é conhecida como car sharing. No Brasil, a Zaz- serviço é cobrado de acordo com o que for pro-
car, de São Paulo, adota esse modelo de negócio. cessado. Por exemplo, em imagens de plantações
Nos Estados Unidos, a General Motors lançou o geradas por drone, o valor é definido segundo o
Maven, um serviço de aluguel de curto prazo de- tamanho que o cliente quiser”, explica Ulisses
senvolvido para quem não quer mais arcar com Mello, diretor de pesquisa da IBM Brasil. Para ele,
as taxas, seguros e todas as tarefas e gastos resul- a solução desenvolvida no país tem vocação global
tantes da posse de um automóvel. Segundo a con- e deve ser levada para outros países.
sultoria McKinsey, serviços de compartilhamento A Xerox no Brasil também lançou um serviço
de automóveis e semelhantes representarão um de cobrança por impressão, responsabilizando-se
mercado de US$ 1,5 trilhão em 2030. pela manutenção e gestão de materiais. Há dé-
É na oferta ao cliente de serviços complemen- cadas, a empresa vende ou aluga suas máquinas.
tares ao usufruto do produto que o PSS se dife- A JBT, fabricante de máquinas para a indústria
rencia de opções como a locação, que não inclui cítrica, desenvolveu um modelo de negócio no
manutenção, ou o leasing – caracterizado como qual se torna provedora do serviço de processa-
uma locação financeira em que o contratante pode mento da laranja. A cobrança é por tonelada de
ter o usufruto de um produto pagando prestações laranja processada.
mensais, sem envolver o custo dos serviços, e no Pesquisadores da área de engenharia da pro-
final tem a opção de compra. dução avaliam que o PSS pode criar um novo
No Brasil, algumas empresas de manufatura paradigma industrial. Hoje, muitas empresas
também estão adotando a servitização. Um exem- adotam estratégias de produtos que preveem a
plo é a Whirlpool, que optou por não vender o obsolescência programada, ou seja, são desenvol-
purificador de água Brastemp. A empresa instala vidos para não ter uma alta durabilidade e assim
o equipamento na casa de seus clientes, cuida da fazem o cliente voltar mais rápido ao consumo,
manutenção, faz a troca do refil e cobra por meio impulsionando as vendas e a escala produtiva.
de uma assinatura mensal. Outro exemplo é da Com o PSS, a durabilidade do bem produzido
IBM, que sempre vendeu computadores e softwa- passa a ser de interesse das empresas. Quanto
res e agora desenvolve com empresas brasileiras maior for a vida útil do produto, maiores são os
uma plataforma de consulta on-line sobre dados ganhos. “As empresas vão precisar mudar o foco
ilustrações bárbara malagoli

e soluções para o agronegócio. Na IBM AgriTech, do negócio. Em vez de quantidade, o objetivo vai
o cliente paga pela informação consumida, como ser desenvolver produtos com mais qualidade e
condições climáticas em tempo real e recomen- durabilidade”, presume a tecnóloga Fernanda
dações sobre o melhor dia e hora para o plantio, Hänsch Beuren, professora do curso de enge-
adubação e irrigação. “As aplicações dessa plata- nharia de produção da Universidade do Estado
forma são consumidas como prestação de serviços, de Santa Catarina (Udesc).
O PSS é também um processo mais ecoeficien-
Metodologia da mudança te. O fabricante conhece melhor do que ninguém
as características de seus produtos e os fatores
Etapas para transformar empresas de manufatura em provedoras que irão gerar um aumento de sua vida útil. A Mi-
de servitização que estão em estudo na EESC-USP chelin conseguiu aumentar em 2,5 anos o tempo
de uso médio dos pneus que mantém sob contra-
to de PSS, cuidando de forma adequada de sua
1 Análise do Negócio manutenção. Produtos com uma vida útil maior
Entendimento do modelo de negócio atual da empresa apresentam um índice de descarte menor. Por-
para identificar os desafios da servitização e o tanto, as empresas produzem menos e demandam
contexto do novo modelo de negócio
menos insumos.

N
o final da vida útil do produto, o descarte
não é feito pelo cliente, que muitas ve-
2 Proposição de valor zes não tem informação ou interesse em
Descrição do conceito inicial da solução criada a dar uma destinação correta ao material. Como
partir da interação com clientes, como entrevistas mantém a posse do produto, a tendência é que o
e testes com protótipos, esclarecendo o valor
para o público-alvo
fabricante reaproveite materiais e insumos em
processos de remanufatura e, quando necessário,
faça um descarte mais organizado e ambiental-
mente correto de componentes que se tornaram
3 Modelo de negócio inicial obsoletos. “É um importante apoio à transição de
Apresenta os elementos essenciais do modelo de um modelo econômico linear, de extração, pro-
negócio com nova solução, incluindo informações cessamento e descarte de insumos, para a econo-
sobre segmento de mercado, parcerias e processos
mia circular, de reaproveitamento sustentável”,
diz o engenheiro mecânico Henrique Rozenfeld,
professor da Escola de Engenharia de São Carlos
4 Business case (EESC-USP).
Análise financeira do modelo de negócio, A mudança para o modelo PSS pode resultar
identificando sua viabilidade e indicando em vários benefícios para as empresas. O siste-
modificações necessárias para que a
comercialização se torne viável
ma gera receitas adicionais e recorrentes com
a prestação contínua de serviços. Proporciona
fidelização e um maior vínculo com o cliente, o
que permite ao fornecedor conhecer melhor as
5 Arquitetura demandas e os hábitos de consumo, informações
Representação detalhada do conceito, ilustrando que irão orientar a inovação e o desenvolvimento
como sistemas, subsistemas e componentes do PSS de novas soluções mercadológicas. É também uma
se relacionam. Inclui elementos do produto e
estratégia para diferenciar o produto no mercado
processos do negócio
e enfrentar a concorrência ditada pelo preço.
Para Rozenfeld, a servitização tem potencial
6 Detalhamento de reverter o processo de desindustrialização em
Especificação total do negócio, com todas as países com economia de baixa escala produtiva,
informações, e definindo os recursos como a brasileira. “A indústria local não tem uma
necessários para produzir, comercializar e
estrutura de custos para fazer frente a um con-
prover o PSS aos clientes
corrente que opera com grandes volumes globais,
mas pode agregar valor aos seus produtos e se di-
ferenciar pela qualidade dos serviços prestados e
7 Preparação da cadeia de valor pela customização”, diz. É o que já vem fazendo
Organização da infraestrutura para fabricar os a indústria de bens de capital da Alemanha para
elementos tangíveis do novo sistema e garantir enfrentar os concorrentes asiáticos que oferecem
a oferta do PSS projetado com o desempenho
máquinas com um custo inicial inferior.
esperado
O PSS também proporciona vantagens para
os consumidores. A primeira delas é que não há
necessidade do desembolso imediato de recursos
para usufruir do produto e os gastos são diluídos
8 Lançamento da cadeia de valor
Implementação e oferta do PSS, iniciando o ao longo do tempo de uso, permitindo inclusive
funcionamento de toda a infraestrutura o acesso a bens mais sofisticados. O consumidor
também reduz os riscos associados a uma aqui-
Fonte Henrique Rozenfeld/USP sição, como o desencanto, a desvalorização e a

70  z  setembro DE 2017


máquinas e ainda recebe soluções integradas e
Vantagens e desvantagens customizadas para determinadas áreas do ne-
gócio, permitindo focar seus recursos em seus
O que é preciso considerar antes de aderir ao PSS processos-chave.
A difusão do conceito do sistema produto-ser-
viço é recente, tem por volta de 10 anos, e foi se
formatando em países como Alemanha, Estados
Unidos e Dinamarca, em mercados B2B. O enge-
nheiro mecânico Eduardo Zancul, professor da
Escola Politécnica da Universidade de São Paulo
Oportunidades (Poli-USP), afirma que o PSS ganha impulso ao
Proximidade e fidelização oferecer respostas a macrotendências da socie-
do cliente dade, como uma maior preocupação com o am-
Acesso às informações que biente e o estímulo ao desenvolvimento susten-
vão orientar a P&D Riscos tável. Também reflete o início de uma mudança
Diferenciação da Receita diluída ao longo cultural em direção à economia compartilhada,
concorrência da vida útil do bem
que valoriza o usufruto e não necessariamente
Receitas adicionais vindas
da prestação de serviços
Maior necessidade de capital a posse de um bem.
de giro
“O modelo PSS ainda apresenta vários desa-
Previsibilidade do fluxo
financeiro
A qualidade do serviço fios que precisam ser superados para ter uma
determina o sucesso
maior difusão. O primeiro deles é que a cultura
Mais facilidade na Readequação da mão de obra
adequação à legislação de da posse de bens ainda é a prevalecente, difícil
resíduos sólidos Resistência cultural de clientes de ser revertida, principalmente para mercados
que desejam a posse do bem
voltados ao consumidor final”, analisa Mendes.
Outro problema é como equacionar o modelo
de negócio. Uma questão-chave é a engenharia
financeira. No modelo comercial tradicional, o
fabricante é remunerado no curto prazo, após a
Novo sistema exige venda de seu produto. No PSS, o fabricante obtém
um faturamento maior, ao ofertar produto mais
relacionamento mais duradouro serviços, porém a remuneração é lenta, será di-
luída durante a vida útil do equipamento, aumen-
entre empresa e cliente tando a necessidade de capital de giro. “Em um
país como o Brasil, onde o custo do dinheiro é
alto, esse é um grande obstáculo”, analisa Zancul.
Em mercados sazonais existe uma vantagem para
obsolescência. Também não precisa se preocu- o fabricante, porque em momentos de baixa nas
par com a manutenção e a atualização ou mes- vendas os sistemas ou produtos que estão em uso
mo com o descarte pós-uso. O PSS, no entanto, garantem um faturamento recorrente e constante.
não é necessariamente uma opção mais barata

M
para o consumidor. O sistema produto-serviço endes, da UFSCar, diz que existem im-
é conveniente para o cliente por ter vantagens portantes barreiras organizacionais que
como a manutenção assegurada e não precisar precisam ser superadas. “As empresas
disponibilizar o pagamento total, como acontece industriais terão que desenvolver novas capaci-
no sistema de venda direta ao consumidor. Saber dades e processos”, afirma. Um exemplo: quem
se o valor desembolsado a longo prazo é maior adere ao PSS precisa desenvolver relacionamen-
do que a compra imediata é de difícil cálculo. tos mais duradouros com os clientes e ampliar
“Os estudos que temos indicam que pode ser até sua estrutura dedicada aos serviços. O cliente
menor, porque, ao adquirir o produto no modelo levará em consideração não somente a qualidade
atual, o cliente arca com as manutenções e com do bem tangível, mas, principalmente, a qualida-
eventuais custos adicionais”, analisa Rosenfeld. de dos serviços prestados, como confiabilidade,
O administrador Glauco Henrique de Sousa segurança e nível do atendimento. “Quem adotar
Mendes, professor do Departamento de Enge- o PSS e prestar serviços ruins terá dificuldade de
nharia de Produção da Universidade Federal sustentar o modelo de negócio.”
de São Carlos (UFSCar), diz que nos mercados Há um impacto também no mercado de traba-
B2B (business-to-business), ou venda de empresa lho. As empresas contratarão mais funcionários
para empresa, nos quais o PSS está mais difun- ligados à prestação de serviços e terão que oferecer
dido, o cliente corporativo reduz a sua necessi- capacitação para que o serviço realmente atenda
dade de realizar investimentos em ativos como às expectativas dos clientes. Fernanda, da Udesc,

pESQUISA FAPESP 259  z  71


avalia que o PSS estimulará o trabalho em rede,
com a atuação em conjunto de empresas espe-
cializadas em toda a cadeia produtiva e comer-
cial, da concepção e produção ao atendimento do
consumidor final. “É muito difícil uma empresa
conseguir se especializar em todas as etapas do
processo. É mais fácil terceirizar e agregar parcei-
ros especializados ao ciclo do negócio”, esclarece.

C
ompreender os fatores de risco e de sucesso
do PSS e desenvolver técnicas e métodos
que auxiliem as empresas a aderir ao siste-
ma são questões em estudo entre os pesquisado-
res da área de engenharia da produção. “A teoria
do PSS ainda não está amadurecida e a maioria
das empresas que planeja migrar para o sistema
desiste”, conta Rozenfeld. O pesquisador está à
frente de uma equipe na EESC-USP que elabo-
ra um projeto destinado ao desenvolvimento de No Brasil, o sistema
uma metodologia para transformar empresas
provedoras de produtos em provedoras de pro- produto-serviço já chegou a
dutos-serviços, previsto para terminar em 2018.
Essa metodologia de servitização, descreve
pequenas e médias empresas
Rozenfeld, é composta por várias fases, como
análise do negócio, definição da proposição de
valor, que são os diferenciais do produto e como
ele será percebido pelo cliente, e do modelo de fornecedora de equipamentos para reciclagem de
negócio, criação do business case (documento que solventes químicos, a Rochmam, a migrar de um
estabelece a lógica do negócio para investidores, modelo de negócio, que atualmente envolve a ven-
bancos, entre outros), design das arquiteturas de da ou aluguel de máquinas, para um modelo PSS.
tecnologia da informação, processos e serviços, Rochmam e DEV estão incubadas no Centro
além da preparação e do lançamento da cadeia de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia
de valor, que detalha as atividades da empre- (Cietec) na Cidade Universitária, em São Paulo.
sa na oferta da solução integrada de produto e Em uma primeira fase, já concluída, a DEV se
serviços. No momento, a equipe da EESC-USP dedicou a desenvolver hardwares e softwares
trabalha no apoio a duas empresas interessadas necessários para permitir à Rochmam monitorar,
no sistema: uma fabricante de drones para a ir- via internet, os parâmetros operacionais de suas
rigação agrícola e outra de equipamentos para máquinas. A segunda fase do projeto, em anda-
diagnóstico médico. mento, é o desenvolvimento de um gateway – o
Para Mendes, que participa desse projeto e de equipamento de conectividade – que possa ser
outros com o mesmo tema, o foco da pesquisa integrado com controladores lógicos programá-
atual é compreender a adoção de práticas de PSS veis e que tenha produção economicamente viá-
por pequenas e médias empresas fabricantes de vel em larga escala. A ideia é que a solução IoT
máquinas e equipamentos industriais e propor proporcione os meios que viabilizarão à Roch-
um conjunto de diretrizes, métodos e ferramentas mam agregar serviços aos seus equipamentos e
para auxiliar as companhias de menor porte. “No cobrar por solvente reciclado. n
Brasil, os estudos sobre o PSS em pequenas e mé-
dias empresas têm sido pouco enfatizados, mas
em países como França e Itália a servitização já Projetos
é uma realidade”, informa. 1. Metodologia para transformação de oferta orientada a produtos
O potencial da internet das coisas (IoT) em so- para sistema produto-serviço (PSS) (nº 15/23094-6); Modalidade
Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Henrique
luções PSS é uma das áreas de investigação de Rozenfeld (USP); Investimento R$ 47.206,47.
Zancul, da USP. Esse tipo de solução está sendo 2. Modelo de referência para gestão do processo de desenvolvimento
desenvolvida por uma ex-aluna, a engenheira de de sistemas produto-serviço (nº 13/14549-4); Modalidade Auxílio à
Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Glauco Henrique de
produção Silvia Mayumi Takey. Ela é sócia da DEV Sousa Mendes (UFSCar); Investimento R$ 28.144,08.
Tecnologia e coordena um projeto do programa 3. Aplicação de tecnologia de internet das coisas para viabilização de
Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) sistemas produto-serviço (PSS) (nº 16/50062-0); Modalidade Progra-
ma Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisadora
da FAPESP que tem como objetivo o desenvolvi- responsável Silvia Mayumi Takey (Dev Tecnologia); Investimento
mento de uma solução IoT que pode auxiliar uma R$ 952.355,59.

72  z  setembro DE 2017


ENGENHARIA BIOMÉDICA y

Respiração sob
controle

Pequenas empresas
desenvolvem
equipamentos
hospitalares para
problemas pulmonares

Evanildo da Silveira

D
Na tela, tomógrafo
desenvolvido pela
uas empresas paulistas desen- trica em determinada voltagem (impe- Timpel permite
volveram equipamentos para dância) que existe entre as várias partes saber com precisão
terapia intensiva que estão do corpo. Para fazer o diagnóstico, uma o volume de ar no
pulmão do paciente
sendo vendidos para hospitais cinta com 32 eletrodos é colocada em
do Brasil e do exterior. Uma delas é a volta do tórax do paciente e ligada a um
Timpel, cujo nome é um acrônimo do monitor. Pulsos elétricos de baixa inten-
produto que criou, um tomógrafo por sidade atravessam o corpo do indivíduo
impedância elétrica (TIE) usado para e encontram diferentes resistências no
possibilitar ventilação de precisão a percurso. Isso permite que o médico sai- O profissional pode observar no moni-
pacientes que respiram com a ajuda de ba a quantidade de ar que entra no tórax tor se o ar se dirige para os dois pulmões,
ventiladores mecânicos ou pulmonares. e para onde está indo. “O sangue conduz o que é bom, ou apenas para um, situação
A outra é a Magnamed, que fabrica dois bem a eletricidade”, explica o médico que pode causar complicações. É possível
tipos de ventiladores pulmonares, um Carlos Carvalho, diretor da Divisão de controlar melhor o volume, a pressão e o
para unidades de terapia intensiva (UTI) Pneumologia do Instituto do Coração fluxo de oxigênio injetado, melhorando
e outro para transporte de emergência de (InCor), da Faculdade de Medicina da o prognóstico e diminuindo os riscos de
eduardo cesar

pessoas com dificuldades respiratórias. Universidade de São Paulo (FM-USP), lesão pulmonar, com a possibilidade de
O tomógrafo da Timpel se vale da dife- que participou das pesquisas clínicas tratamento individualizado para cada
rença de resistência a uma corrente elé- para a criação do tomógrafo. paciente. “Cerca de 40% dos pacientes

pESQUISA FAPESP 259  z  73


Teste de em desenvolvimento”, conta Carvalho.
equipamentos “Conseguimos alguns investidores pa-
para ventilação
ra a Timpel produzir o equipamento.”
pulmonar na
Magnamed Embora tenha começado a ser usado
em caráter experimental por pacientes
da UTI respiratória do Hospital das Clí-
nicas da FM-USP e do InCor, em 2006,
a comercialização do TIE só teve início
em 2015. “Até agora no Brasil vendemos
mais de 60 equipamentos para hospi-
tais privados, públicos e universitários”,
conta o engenheiro eletricista Rafael
Holzhacker, diretor da Timpel. “Temos
internados em UTI necessitam de res- ciente e oferece maior controle da venti- uma rede de distribuição estabelecida
piração artificial e, desses, 40% morrem lação, porque o médico pode ver na tela no Brasil. No exterior, abrimos a Tim-
por causa de complicações causadas pelo o volume, a pressão e a distribuição do pel Medical, com sede na Holanda, para
procedimento”, informa o pneumologista ar nos pulmões”, informa Ueda. facilitar a logística e suporte próximo ao
Marcelo Britto Passos Amato, da FM-USP, Novas estratégias em ventilação ar- cliente. Já obtivemos a marca CE, para
que também participou dos estudos clíni- tificial começaram a ser desenvolvidas comercialização no mercado europeu,
cos que levaram à criação do TIE. “Nosso por meio de um projeto de pesquisa que e temos compradores na Espanha, Ale-
objetivo é reduzir esses índices.” teve financiamento da FAPESP, lidera- manha, França e Suécia, além de Peru,
Dos dois equipamentos desenvolvidos do por Amato, entre 2002 e 2008 (ver Chile, Estados Unidos e Canadá, esses
pela Magnamed, o primeiro foi o Oxy- Pesquisa FAPESP nº 151). Essas estra- dois últimos por enquanto restritos à
Mag, um ventilador pulmonar (respi- tégias evidenciaram a necessidade de pesquisa, dada a restrição regulatória.”
rador artificial) portátil para pacientes um equipamento que permitisse a vi- O faturamento da empresa em 2016 foi
transportados em qualquer tipo de UTI sualização em tempo real e a individua- de R$ 972 mil e nos seis primeiros meses
móvel. “O dispositivo ajuda médicos e lização do tratamento. “No começo não deste ano atingiu R$ 1,1 milhão.
paramédicos a agirem de forma mais rá- pensávamos que o trabalho iria resultar A história da Magnamed começou na
pida em momentos de emergência”, diz num produto”, lembra. “Quando per- garagem da casa da mãe de Ueda, onde
o engenheiro eletricista Wataru Ueda, cebemos que isso era possível, criamos ficou por seis meses em 2005. Depois,
presidente da empresa. “O OxyMag é a Timpel, em 2004.” Faziam parte da em sociedade com o engenheiro mecâ-
leve, com apenas 3,25 quilos, de fácil empresa, incubada no Centro de Ino- nico Tatsuo Suzuki e o engenheiro ele-
manuseio, com display colorido touch vação, Empreendedorismo e Tecnologia tricista Toru Kinjo, ele elaborou o plano
screen e bateria com mais de seis horas (Cietec), na Cidade Universitária em São de negócio. “No ano seguinte, o projeto
de duração. Com esse aparelho é possível Paulo, pesquisadores da Faculdade de foi selecionado para integrar o Cietec”,
ventilar pacientes neonatais com extre- Medicina, da Escola Politécnica (Poli) e lembra Ueda. “Lá, fizemos a pesquisa e o
mo baixo peso, pediátricos e adultos.” do Instituto de Matemática e Estatística desenvolvimento do produto, colocando
(IME), todos da USP. em prática a ideia de negócio. Foram dois
Produto da pesquisa A Timpel logo fechou uma parceria anos de incubação, com pesquisas finan-
O FlexiMag, por sua vez, é um ventila- com a Dixtal Biomédica, empresa es- ciadas por agências como FAPESP, CNPq
dor pulmonar para ser usado em UTI. pecializada em equipamentos médicos [Conselho Nacional de Desenvolvimento
O equipamento capta a falta de estímu- hospitalares, para o desenvolvimento do Científico e Tecnológico] e Finep [Finan-
lo respiratório: ao sentir que o paciente tomógrafo, que durou cerca de quatro ciadora de Estudos e Projetos].”
não inspirou, faz esse trabalho por ele, anos. “Em 2008, essa empresa foi com- O fundo de investimentos de capital
forçando a respiração. “O aparelho res- prada pela Philips, que não quis adquirir semente Criatec, mantido com recursos
ponde rapidamente à dificuldade do pa- o projeto do TIE porque ele ainda estava do Banco Nacional de Desenvolvimento

74  z  setembro DE 2017


OxyMag é um
respirador portátil
para uso em
ambulâncias com
equipamentos
de UTI

a aprovação da Food and Drug Admi-


nistration (FDA), a agência federal que
controla o uso de alimentos, medica-
mentos e dispositivos médicos nos Es-
tados Unidos.  “Dado o nível de inovação
e potencial clínico do tomógrafo por im-
pedância elétrica, desde o princípio nós
tivemos um foco de internacionalização,
desenvolvendo projetos de colaboração
científica com centros de diversos países,
Econômico e Social (BNDES), fez tam- incluindo os Estados Unidos”, explica
bém um aporte no negócio. Ao todo, R$ 5 Holzhacker. “O FDA é fundamental para
milhões foram investidos na Magnamed Com foco que a Timpel consiga acessar o mercado
naqueles anos. “Esse financiamento deu norte-americano, que representa mais
um novo fôlego ao negócio, que já se en- no mercado de 40% do mercado mundial.”
contrava sem recursos para continuar o A dificuldade é que, como nenhuma
desenvolvimento dos produtos”, revela
externo, a empresa até hoje comercializou equipa-
Ueda. “No fim de 2008, o OxyMag estava Timpel possui mento semelhante naquele país, o FDA
finalizado e a primeira fábrica da Mag- trate o tomógrafo por impedância elé-
named foi montada em Cotia (SP).” O mais de 50 trica como uma inovação. “Por isso, a
aparelho começou a ser comercializado rota de aprovação é mais complexa do
em 2010, e o FlexiMag, em 2013. patentes que seria o processo de equipamentos
Até agosto deste ano foram vendidos médicos já tradicionalmente usado”, diz
cerca de 5 mil equipamentos. “Em 2011,
depositadas em Holzhacker. “Os documentos técnicos do
70% do volume de vendas da Magnamed vários países TIE foram elaborados e submetidos, e
era de exportações”, informa Ueda. “Ho- ainda há interação com os especialistas
je, o quadro se inverteu: 70% das vendas do FDA em questões como usabilidade,
de um faturamento de R$ 34 milhões entre outros itens que estão sendo re-
em 2016 foram no mercado brasileiro.” solvidos para que o equipamento seja
A empresa foi a fornecedora oficial dos aprovado.” n
equipamentos de ventilação de emergên-
cia da Olimpíada do Rio de Janeiro de garante um melhor funcionamento, evi-
2016 e exporta para mais de 50 países, tando falhas e reduzindo os custos de Projetos
especialmente para a América Latina e manutenção.” 1. Ventilador pulmonar eletrônico neonatal com venti-
Sudeste Asiático. No caso da Timpel, Holzhacker afirma lação de alta frequência (nº 09/52357-4); Modalidade
Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas
que a empresa é pioneira no desenvolvi- (Pipe); Pesquisador responsável Toru Miyagi Kinjo (Mag-
Mercado de equipamentos mento do tomógrafo por impedância elé- named); Investimento R$ 71.643,27.
Nenhuma das duas empresas está sozi- trica e possui mais de 50 patentes depo- 2. Aquisição de sinal com alta resolução e processamento
paralelo para reconstrução de imagens em tomografia
nha nos respectivos mercados dos apa- sitadas nos principais países do mundo, por impedância elétrica. (FAPESP – Pipe/Pappe Sub-
relhos que desenvolveram. “Temos con- protegendo aspectos fundamentais da venção 2013) (nº 13/50775-9); Modalidade Progra-
correntes grandes e de peso no Brasil e tecnologia. “Há outras duas companhias ma Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe);
Pesquisador responsável Rafael Holzhacker (Timpel);
no mundo”, diz Ueda. “Mas o FlexiMag no mundo que desenvolveram aparelhos
fotos eduardo cesar

Investimento R$ 245.475,00.
tem resposta mais rápida. Já o Oxymag semelhantes, uma na Alemanha e outra 3. Novas estratégias em ventilação artificial: Diagnóstico e
é muito versátil e um dos mais leves do na Suíça”, conta. Agora, a empresa está prevenção do barotrauma/biotrauma através da tomogra-
fia de impedância elétrica (TIE) (nº 01/05303-4); Modali-
mercado. Além disso, utiliza um siste- trabalhando para dar um grande passo dade Projeto Temático; Pesquisador responsável Marcelo
ma, patenteado pela Magnamed, que para aumentar o seu mercado. Ela busca Britto Passos Amato (USP); Investimento R$ 5.102.802,63.

pESQUISA FAPESP 259  z  75


pesquisa empresarial

Impulso
espacial
Fibraforte desenvolve propulsores
para satélites em parceria com o Inpe

Yuri Vasconcelos

76  z  setembro DE 2017


O
Brasil poderá tornar-se Leonardo Ferreira, professor do Institu- um combustível e um oxidante. Sistemas
dentro de alguns anos um to de Física da Universidade de Brasília propulsivos, compostos de tanque de
fornecedor global de pro- (UnB). “A iniciativa da Fibraforte benefi- propelente, tubulação e válvulas custam
pulsores para satélites. Es- cia o país na disputa pelo mercado espa- por volta de US$ 2 milhões e são empre-
ses equipamentos exercem cial. Mesmo que não consigamos vender gados em satélites de órbita baixa, como
o papel do motor do artefato e são res- um satélite completo, podemos fornecer os de sensoriamento remoto, de observa-
ponsáveis por grande parte das mano- seus componentes”, diz Ferreira, que já ção da Terra e de coleta de dados, enge-
bras feitas no espaço. Eles são acionados foi pesquisador do Instituto Nacional de nhos de médio porte que pesam até mil
para que o satélite fique corretamente Pesquisas Espaciais (Inpe). quilos (kg) e orbitam o planeta entre 300
alinhado à Terra, ao Sol, a outros alvos A Fibraforte foi criada em 1994 por quilômetros (km) e 800 km de altitude.
de interesse astronômico, ou ainda para três engenheiros formados no Instituto Há poucos meses, os pesquisadores
a realização de correções de órbita du- Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em da empresa começaram a trabalhar em
rante a vida útil do engenho. Essas ma- São José dos Campos, para atuar como uma nova classe de propulsores, mais
nobras de correção e manutenção são desenvolvedora de sistemas mecânicos potentes e de engenharia mais complexa,
necessárias para contrapor perturbações para o programa espacial brasileiro. Nos que emprega uma mistura de dois pro-
da órbita por efeitos gravitacionais ter- últimos anos teve um faturamento mé- pelentes líquidos, um combustível e um
restres, do Sol e da Lua. O conhecimento dio de R$ 6 milhões. Hoje, ela domina oxidante, em uma reação de combustão.
para produzir propulsores está restrito o processo de fabricação de um tipo de Esses propelentes são convertidos numa
a uma dezena de empresas, todas elas propulsor, classificado como monopro- mistura gasosa a temperaturas de cerca
estrangeiras. A Fibraforte Engenharia, pelente, que usa apenas um fluido para de 3000 °Celsius. A mistura é expandida,
com sede em São José dos Campos, no funcionar – no caso, a hidrazina na for- acelerada num bocal e expelida a veloci-
interior paulista, está prestes a entrar ma líquida, o propelente químico mais dades de aproximadamente 3 quilôme-
nesse time. comum usado em motores de foguetes tros por segundo (km/s), gerando uma
léo ramos chaves

“Projetar, desenvolver e produzir pro- e satélites. Monopropelente porque a força de empuxo sobre o satélite. Eles
pulsores é um passo importante para reação de liberação da energia química são destinados a satélites geoestacioná-
elevarmos o índice de nacionalização de do propelente é de decomposição e não rios que podem pesar até 7 mil kg e ficam
nossos satélites”, ressalta o físico José de combustão, situação que necessita de posicionados a 36 mil km da superfície.
Os geoestacionários são usados prin-
cipalmente pelo setor de comunicações
para transmissão de sinais de telefonia,
internet, televisão e rádio. Ao contrário
dos satélites de órbita baixa, o veículo
lançador não injeta o satélite na órbita
empresa final, mas em uma zona de transferên-
cia. A navegação até a faixa de operação
fibraforte é feita por sistema propulsivo próprio.
Sede
Nesses casos, aproximadamente 40%
São José dos Campos
da massa total do satélite é composta
(SP)
de propelentes utilizados na manobra
de transferência.
Nº de funcionários A Fibraforte foi contemplada em maio
15 deste ano com recursos dos programas
Teste de modelo Principais produtos Pesquisa Inovativa em Pequenas Empre-
de qualificação de Propulsores e sistemas sas (Pipe) e Apoio à Pesquisa em Em-
propulsor que será
mecânicos para presas (Pappe) Subvenção – respecti-
utilizado no
Amazônia-1 satélites vamente da FAPESP e da Financiado-
ra de Estudos e Projetos (Finep) – para
desenvolver quatro projetos voltados à
produção de um propulsor bipropelente.
A equipe de pesquisa e desenvolvimento
(P&D) da empresa trabalha na criação de

pESQUISA FAPESP 259  z  77


componentes do subsistema (válvulas de
O motor dos satélites controle de fluxo, placa injetora e câmara
de empuxo) e de uma bancada de testes
Conheça o subsistema de propulsão desenvolvido de injetores de combustível.
pela Fibraforte para o Amazônia-1 “Diferentes tecnologias de propulsão
podem ser usadas para o controle de al-
Satélite
como funciona titude [posicionamento do satélite em
relação à Terra] e a correção de órbita
1 movimentação de satélites, como para a propulsão elé-
Os propulsores são responsáveis pela trica, de plasma ou com combustíveis
movimentação do artefato no espaço, sólidos. Mas os monopropelentes e os
de modo a corrigir a trajetória
bipropelentes são os mais tradicionais e
2 manobras os que têm maior confiabilidade. A dife-
O propelente sofre um processo de expansão rença entre um e outro está no empuxo,
termodinâmica nos propulsores, que expelem que é a força usada para deslocamento
jatos para realizar as manobras
do satélite”, explica o engenheiro aero-
náutico Jadir Nogueira Gonçalves, um
dos fundadores e diretor comercial da
Fibraforte. Ele conta que a empresa co-
O tanque armazena meçou a fazer pesquisas na área de pro-
Subsistema o propelente a ser pulsão espacial no fim dos anos 1990,
usado
de propulsão
As tubulações quando participou a convite do Inpe do
levam o combustível desenvolvimento de um propulsor mo-
do tanque nopropelente de 2 newtons (N) de em-
aos propulsores
puxo para uma plataforma suborbital do
instituto – essa força equivale ao esforço
necessário para elevar do solo um objeto
que pese 200 gramas.
Válvulas Em 2005, a Fibraforte concluiu, tam-
de segurança bém em parceria com o Inpe e com fi-
46 cm de nanciamento da FAPESP, um módulo de
diâmetro propulsão mais potente, de 5N de empu-
xo, projetado para equipar a Plataforma
Multimissão (PMM), uma estrutura ge-
nérica criada pelo Inpe na década pas-
Válvulas para
enchimento, sada como base para fabricação de saté-
pressurização lites da classe de 500 kg. O sistema vai
e dreno do 14 cm ser usado pela primeira vez no satélite
propelente
de sensoriamento remoto Amazônia-1,
São seis propulsores,
com empuxo de cujo lançamento deve ocorrer em 2019.
Fonte fibraforte 5 newtons cada O módulo propulsivo desse artefato, o
primeiro satélite nacional de médio por-
te inteiramente projetado e construído
equipe de pesquisadores
no país, é composto por seis propulsores
Confira alguns dos profissionais que fazem P&D na Fibraforte e conheça as instituições
(ver infográfico).
responsáveis por sua formação “Criamos também as válvulas de en-
chimento, o dreno de combustível e de
infográfico  ana paula campos  Imagens  Inpe / Fibraforte

José Nivaldo Hinckel, matemático, gerente Fundação Universidade Regional de Blumenau (Furb): graduação gás pressurizante e a tubulação, além de
de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA): mestrado
Instituto Politécnico Rensselaer (Estados Unidos): doutorado montarmos todos os itens do subsiste-
Leonardo Lara Tajiri, engenheiro Universidade Federal de Itajubá (Unifei): graduação e mestrado
ma”, conta o matemático e especialista em
eletricista, engenheiro de desenvolvimento propulsão espacial José Nivaldo Hinckel.
Luciano Bontempo, engenheiro mecânico, Universidade Estadual do Maranhão (UEMA): graduação Ex-funcionário do Inpe, ele é hoje gerente
engenheiro de desenvolvimento ITA: mestrado de P&D e um dos líderes da equipe de pes-
Jadir Gonçalves, engenheiro aeronáutico, ITA: graduação quisa em propulsão da Fibraforte. “Entre
diretor comercial os principais componentes do módulo,
Thomas Shaw, engenheiro aeronáutico, ITA: graduação só não fizemos o tanque de combustível,
diretor industrial mas já estamos trabalhando no projeto
Lauro Benassi, engenheiro mecânico, Escola de Engenharia Industrial de São José dos Campos (EEI): desse equipamento. Em breve seremos
diretor de qualidade graduação capazes de fabricá-lo.” A Fibraforte re-

78  z  setembro DE 2017


Tubeira do
propulsor em
processo de
cebeu recursos da Finep, no valor de R$
soldagem
2,6 milhões, para desenvolver o tanque de
propelente e já construiu um modelo, que
passou pelos primeiros testes estruturais
e de desempenho.

TRANSFERÊNCIA DE TECNOLOGIA
Com a experiência adquirida ao longo
Ensaio do
de duas décadas de atuação na área de injetor de
propulsão, a Fibraforte foi selecionada combustível
em janeiro de 2015 para participar do
Acordo de Transferência de Tecnologia
Espacial, contemplado no contrato de A indústria global de satélites fatu- também se dedica ao desenvolvimento
fabricação do Satélite Geoestacionário rou US$ 260,5 bilhões em 2016, sendo de outros componentes para satélites.
de Defesa e Comunicações Estratégicas que US$ 13,9 bilhões foram destinados Com a Cenic, indústria do setor espacial
(SGDC). Adquirido pelo governo brasi- à fabricação dos artefatos – a receita sediada em São José dos Campos, ela foi
leiro da multinacional francesa Thales restante foi obtida com a operação e o responsável pela estrutura do Cbers-4,
Alenia Space (TAS), o SGDC foi colo- lançamento dos satélites e com a produ- colocado em órbita em 2014. A estrutura
cado em órbita em maio deste ano (ver ção de equipamentos de apoio em terra. é o corpo do satélite, o “armário” onde
Pesquisa FAPESP nº 256). O acordo de Norte-americanos e europeus dominam vão acondicionados todos os seus com-
transferência de tecnologia firmado en- esse mercado. Nos últimos 25 anos, o ponentes e subsistemas (de propulsão,
tre a AEB e a Thales previu o repasse de Brasil projetou e construiu uma dezena térmico, de comunicação, de telemetria).
20 tecnologias de satélites da fabrican- de satélites. Nenhum deles usou siste- Para Petrônio Noronha de Souza, dire-
te europeia para indústrias nacionais. mas propulsivos feitos no país. “Como o tor de Política Espacial e Investimentos
A Fibraforte foi escolhida para receber mercado brasileiro de satélites é restri- Estratégicos da Agência Espacial Brasi-
capacitação para o domínio do ciclo de to, tornar-se um fornecedor global é um leira (AEB), empresas como a Fibraforte
desenvolvimento de um sistema de pro- caminho natural”, sustenta Gonçalves. são fundamentais para o país ter uma
pulsão monopropelente para pequenos A Fibraforte conta com um setor de cadeia produtiva no setor espacial com
satélites, com peso entre 100 kg e 300 kg. pesquisa, desenvolvimento e inovação um mínimo de autonomia. “Ter uma base
“Com propulsores de apenas 1N de (P&D&I) formado por 12 técnicos e pes- industrial consolidada, com capacida-
empuxo, esse módulo de propulsão será quisadores, de um total de 15 funcioná- de para fornecer equipamentos e sub-
capaz de fazer manobras mais precisas rios. “A área de inovação é disseminada sistemas para satélites, além de fazer a
de ajuste de órbita”, destaca Gonçalves. por todos os departamentos. Somos uma montagem desses artefatos, é essencial
“Como resultado desse programa, teremos companhia de poucos funcionários de para o programa espacial brasileiro”,
condições de nos qualificar para fornecer alta especialização”, ressalta o engenhei- destaca Souza. n
à Thales e a outras empresas integradoras ro aeronáutico Thomas Shaw, diretor
de satélites sistemas completos de propul- industrial da Fibraforte. Segundo ele,
fotos  léo ramos chaves

são, propulsores isolados e o tanque de as etapas de fabricação mais simples e Projeto


propelente.” Segundo o pesquisador, em outras atividades com baixa intensidade Desenvolvimento e qualificação de propulsor monopro-
três anos a empresa estará apta a fabricar de P&D costumam ser terceirizadas. pelente de 5N para satélite (nº 03/07755-5); Modali-
dade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe);
monopropulsores para os programas es- Embora o foco da Fibraforte sejam Pesquisador responsável Humberto Pontes Cardoso
paciais dos Estados Unidos e da Europa. os subsistemas de propulsão, a empresa (Fibraforte); Investimento R$ 590.007,79.

pESQUISA FAPESP 259  z  79


Fotônica y

Desenvolvimento
sob a luz
Incidência de LEDs em ovos férteis de galinha, de forma
controlada, faz os embriões ganharem peso e altura

Marcos de Oliveira

L
uzes de LED vermelho incidindo sobre LEDs”, diz Bagnato. Depois de testados vá-
ovos fecundados de galinha aceleraram rios lotes de ovos com potências diferentes, o
o crescimento de embriões em até 25% melhor resultado apareceu com a dosagem de
e o aumento de peso em 50%, indica es- 0,014 miliwatt (mW) por centímetro quadrado
tudo realizado por um grupo de pesquisadores (cm2) de luz por dia. “É uma dose muito fraca.”
do Instituto de Física de São Carlos da Univer- Para que esse processo possa ser utilizado na
sidade de São Paulo (IFSC-USP). “A luz acelera avicultura comercial, ainda serão necessários
o metabolismo em uma reação molecular”, ex- outros experimentos para estudo do desenvol-
plica o físico Vanderlei Bagnato, coordenador vimento do embrião de frango, de modo que
da pesquisa e do Centro de Pesquisa em Óptica ele não cresça muito rápido e quebre a casca
e Fotônica (CePOF), um dos Centros de Pes- de forma antecipada. É preciso modular o cres-
quisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP. cimento do embrião, já que o ovo não muda de
“Existem processos com luz que os avicultores tamanho com a luz e o pintinho começa a que-
utilizam nas granjas para substituir a galinha brar a casca entre 18 e 21 dias. “Não adianta o
no aquecimento dos ovos na incubadora, mas o embrião crescer muito, porque enquanto não
que propomos, embora possa ser feito na mesma estiver maduro a ave não pode sair do ovo. Além
incubadora, é diferente. São feixes de luz com disso, há também o crescimento das penas no
comprimentos de onda específicos que não final da vida do embrião antes da quebra da cas-
aquecem. A fotoestimulação age nas células.” ca”, pondera a engenheira Irenilza de Alencar
Em artigo publicado na revista Journal of Nääs, professora aposentada da Faculdade de
Biophotonics em julho deste ano, Bagnato e a Engenharia Agrícola da Universidade Estadual
dentista Cristina Kurachi, também professora de Campinas (Feagri-Unicamp) e diretora-pre-
no IFSC, a pesquisadora em pós-doutorado Hil- sidente da Fundação Apinco [Associação Bra-
de Buzzá e a mestranda Amanda Zangirolami sileira dos Produtores de Pintos de Corte] de
utilizaram LEDs com emissão de luz em 630 Ciência e Tecnologia Avícolas, em Campinas.
nanômetros (nm) e laser com 635 nm posicio- Ao comentar o estudo, Irenilza conta que há
nados nos dois polos dos ovos. A iluminação experimentos com luz em ovos de galinha desde
foi feita com feixes de fibras ópticas sobre ovos 1975, em Israel. Também citados por Bagnato,
já fecundados durante 24 horas, por 14 dias. esses primeiros estudos utilizaram luz verde e o
“Usamos lasers, mas é possível usar apenas crescimento chegou a 17%. “Quando cresceram

80  z  setembro DE 2017


fotoestimulação
infográfico  júlia cherem rodrigues

A iluminação com luz vermelha acelera o metabolismo e o crescimento


acontece por uma reação molecular do embrião

Iluminação
por LEDs

Várias dosagens de luz


foram testadas nos dois polos
dos ovos em períodos
diferentes; um grupo de
controle não foi iluminado.
A que mais acelerou o
crescimento e o peso foi a
iluminação com 0,014
miliwatt durante 24 horas
por 14 dias. Mesmo sob
condições idênticas de luz,
alguns embriões cresceram
menos que outros. Ao lado,
uma simulação do controle iluminado iluminado
crescimento do embrião a cada 3 dias constantemente

fonte cepof

em demasia, os frangos apresentaram problemas de luz de LEDs nos embriões poderá contribuir,
musculares e nos ossos”, alerta Irenilza. Outro mas ela adverte que ainda serão necessários
problema é que o crescimento do embrião sob a muitos estudos para verificar se o crescimen-
luz de LED não é homogêneo, por razões ainda to dos ossos não é demasiadamente afetado.
desconhecidas. São necessários mais estudos Bagnato também não vê aplicação imedia-
para que os resultados da pesquisa possam ser ta dos resultados do estudo na avicultura. O
viáveis do ponto de vista comercial. Ainda não objetivo desse trabalho, diz o pesquisador,
existe maneira eficaz, por exemplo, de garantir é aprimorar os banhos de luz usados em re-
que os até 100 mil ovos que se desenvolvem ao cém-nascidos prematuros humanos. De for-
mesmo tempo em uma incubadora sejam uni- ma semelhante aos banhos de luz azul para
formes em tamanho e em qualidade. tratamento da icterícia, doença que deixa os
recém-nascidos amarelados, ele imagina que a
solar e artificial fototerapia poderá acelerar o desenvolvimento
“Essa é uma área aberta à pesquisa, principal- daqueles que nascem antes dos nove meses.
mente agora com os LEDs”, afirma a engenhei- “Como a luz acelera o metabolismo, a hipótese
ra. Ela conta que estudos mostraram que os que levantamos é de que seria possível dimi-
frangos de corte em fase de crescimento prefe- nuir o tempo do bebê na incubadora.” O físico
rem a luz de LEDs em vez de lâmpadas fluores- continua os estudos, agora com ratos. “Com
centes das granjas. “As aves ficam estressadas mamíferos, dá para induzir o parto prematuro,
e agressivas porque percebem a intermitência o que não é possível com aves.” n
das fluorescentes. Ao trocar por LED, que não
tem essa característica, elas ficam calmas.” A
pesquisadora avalia que o estudo do grupo de Projeto
Bagnato traz boas contribuições sobre o tema CePOF-Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (nº 13/07276-1);
porque existem poucas informações sobre a Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid);
influência da luz artificial nos embriões dentro Pesquisador responsável Vanderlei Salvador Bagnato (USP);
Investimento R$ 28.014.802,21 (para todo o projeto).
dos ovos. “As aves são altamente influenciadas
Artigo científico
pelas luzes solar e artificial, principalmente os
Buzzá, H.H. et al. Photostimulation effects on chicken egg deve-
indivíduos jovens. A iluminação contribui para o lopment: Perspectives on human newborn treatment. Journal of
crescimento do frango.” Segundo Irenilza, o uso Biophotonics. Online em julho de 2017.

pESQUISA FAPESP 259  z  81


humanidades   arqueologia y

Homo sapiens
no centro da
América do Sul
Sítio perto de Cuiabá indica presença do homem
há 27 mil anos em Mato Grosso

Marcos Pivetta

D
istante cerca de 80 quilômetros Não há ossadas de Homo sapiens no local,
(km) a noroeste de Cuiabá, o mas uma série de vestígios indiretos de Laço
município mato-grossense de sua presença. Como a espécie humana 2 mil anos
Jangada está colado ao centro teria se estabelecido em um ponto tão
geográfico da América do Sul. Para qual- distante do litoral em tempos tão remo-
quer lado que se ande, a visão do oceano, tos é, no entanto, uma pergunta ainda
seja o Pacífico ou o Atlântico, somente sem resposta.
aparece depois de percorridos ao me- Uma síntese dos achados de duas dé-
nos 1.500 km. Nessa porção do Cerrado, cadas e dos estudos posteriores feitos Os arqueólogos
a vegetação é mais densa e a serra das com material obtido no abrigo Santa Eli- Denis e Águeda
Vialou em frente
Araras, com altitudes entre 500 metros na, nome do sítio paleoarqueológico, ga-
a material
(m) e 800 m, pontua a paisagem. Em nhou as páginas da edição de agosto da encontrado no sítio
um abrigo sob rochas de difícil acesso, revista científica Antiquity. As informa- de Santa Elina
situado em um vale na parte sudeste ções do artigo já tinham sido apresen-
da cadeia de montanhas, dois paredões tadas em textos e até em livros escritos
calcários preservam um pedaço pouco em português ou francês, mas não em
conhecido da pré-história do Brasil e inglês, e em uma revista internacional
das Américas. Entre 1984 e 2004, o casal de peso da arqueologia. No trabalho, a
de arqueólogos Denis Vialou e Águeda brasileira Águeda e o francês Denis, com
Vilhena Vialou, do Museu Nacional de o auxílio de colaboradores, resumem os
História Natural da França, coordenou três tipos de vestígios da presença huma-
escavações em duas áreas contíguas na encontrados na região e as datações
de 80 metros quadrados desse refúgio associadas a eles.
rupestre e encontrou indícios de que o O primeiro são fragmentos de pedra
homem moderno teria habitado a região que exibem marcas, como serrilhados,
em dois momentos: por volta de 27 mil retoques e riscos, que só poderiam ter
anos e entre 12 mil e 2 mil anos atrás. sido produzidas de forma artificial pela

82  z  setembro DE 2017


artefato lítico
27 mil anos

Calçamento
manchado
6 mil anos

sandália de fibras
2 mil anos

colar
2 mil anos

estojo peniano
2 mil anos mão do homem com o auxílio de alguma Etnologia da Universidade de São Paulo
ferramenta lítica. O segundo são ossos de (MAE-USP), onde o casal de arqueólo-
dois exemplares de preguiças-gigantes gos dá aulas durante dois meses por ano
do gênero Glossotherium descobertos em como professores convidados. Alguns de
camadas geológicas com grande quanti- seus colaboradores brasileiros são tam-
dade de artefatos de pedra trabalhados bém pesquisadores da instituição pau-
pelos habitantes do abrigo. “Encontra- lista, como os arqueólogos Levy Figuti e
mos dois adornos, com furos nas extre- Veronica Wesolowski de Aguiar e Santos.
midades, feitos de osteodermas de pre- O acervo do abrigo rupestre conta com
guiça”, comenta Águeda. Osteodermas 4 mil peças da indústria lítica, além de
são placas ósseas, semelhantes a esca- mais de 200 ossos de preguiças-gigantes.
mas, que ficavam no dorso do animal. “O sítio apresenta, ainda, cerca de mil
O terceiro tipo de vestígios compreende pinturas rupestres”, destaca Denis. Nos
restos de fogueiras, de origem antrópica, paredões que protegem o abrigo, os de-
presentes ao longo das camadas associa- senhos, geralmente de figuras humanas,
Léo Ramos Chaves

das à ocupação humana. animais ou seres disformes, apresentam


O material obtido em Santa Elina está tons avermelhados, decorrentes do uso
guardado no Museu de Arqueologia e de hematita, principal forma do minério

pESQUISA FAPESP 259  z  83


de ferro. A hematita era levada para o in-
terior do sítio e esfregada contra blocos Vestígios da pré-história
de pedra que formavam uma espécie de
calçamento interno. Dessa forma, o ho- Alguns dos mais antigos sítios arqueológicos encontrados
mem pré-histórico obtinha o pigmento no território brasileiro
para seus desenhos. Esses blocos, alguns
deles guardados no MAE-USP, apresen-
tam ainda hoje manchas da cor do mi-
nério de ferro.
Diferentes amostras retiradas de San- Serra da 25 mil
Capivara anos
ta Elina, cujas escavações atingiram em
alguns pontos 4 m de profundidade, fo-
ram submetidas a três técnicas de data-
ção e os resultados foram convergentes.
Mais de 50 amostras de carvão, restos
de fogueiras por humanos encontrados
nas camadas mais superficiais do sítio,

fotos 1 reprodução do livro Pré-História de Mato Grosso – Vol. 1 – .Santa Elina 2 léo ramos chaves  3 e 4 reprodução do livro Pré-História de Mato Grosso – Vol. 2 – Cidade de Pedra  mapa  fabio otubo
foram datadas por carbono 14. A idade lagoa
Santa 27 mil santa
da maioria das amostras variou entre 2
elina anos
mil e 12 mil anos e seis atingiram entre 12 mil
anos
10 mil e 20 mil anos. Lascas de madeira
e microcarvões, provenientes de esca-
vações mais profundas, também foram cidade 6 mil
datados por esse método clássico e atin- de pedra anos
dourado
giram por volta de 27 mil anos. Dois os-
sos da megafauna, um retirado de uma 12 mil
camada mais superficial e outro oriundo anos

de sedimentos mais profundos, foram


submetidos ao chamado método urâ-
nio/tório. O primeiro obteve a idade de
13 mil anos e o segundo, de 27 mil anos.
Três amostras de sedimentos contendo isolados da serra das Araras. A viagem cios de fogueiras antrópicas da pré-his-
quartzo de camadas distintas (2,30 m, 3 foi proveitosa e rendeu a descoberta do tória. “Datamos carvões dessas fogueiras
m e 3,85 m de profundidade) foram da- abrigo rupestre recheado de pinturas e e os resultados indicam uma presença
tadas por termoluminescência óptica. com rico material paleoarqueológico. humana na Cidade de Pedra entre 6 mil
As idades atingiram, respectivamente, Paralelamente às escavações em Santa e 2 mil anos atrás”, esclarece Águeda.
18 mil, 25 mil e 27 mil anos. Elina, a dupla, sempre com a colabora- A cronologia proposta por Águeda e
ção de colegas e alunos de universidades Denis para os sítios mato-grossenses, em
Escritos de índios brasileiras e francesas, também iniciou especial para o abrigo Santa Elina, sinali-
O casal franco-brasileiro tomou conhe- trabalhos de campo em outra parte de za que o Homo sapiens pode ter se esta-
cimento da existência do abrigo Santa Mato Grosso. Perto de Rondonópolis, belecido muito antes do que se pensava
Elina no início dos anos 1980. Durante cerca de 300 km ao sul do município no centro da América do Sul. No Brasil,
os meses que costumam passar no Bra- de Jangada, há um conjunto de mais de apenas a região do Parque Nacional Serra
sil, Águeda e Denis foram convidados 170 sítios líticos denominado Cidade de da Capivara, em São Raimundo Nonato,
por um conhecido de Cuiabá para vi- Pedra. Além de pinturas, a região tem no Piauí, apresenta indícios da presença
sitar sua fazenda em Mato Grosso, on- cerâmicas, adornos feitos com pedaços humana tão ou mais antigos do que os
de havia “escritos de índios” em pontos de hematita e uma abundância de resquí- de Santa Elina. Desde a década de 1980,

Adorno de
25 mil anos
feito com osso
de preguiça
e artefato lítico
modificado
pelo homem

1 2

84  z  setembro DE 2017


3 4

Pintura rupestre
de um dos 170 sítios
pré-históricos da
Cidade de Pedra,
perto de
Rondonópolis

a arqueóloga brasileira Niède Guidon atualmente se mostra superada pela des- há mais de 25 mil anos. Devido à sua
sustenta que essa região do Nordeste, coberta de sítios mais antigos em várias localização, o abrigo funciona como um
onde existem 1.350 sítios arqueológicos partes do continente. Hoje as revistas refúgio natural em meio às elevações da
conhecidos, teria sido povoada pelo ho- científicas estão mais abertas a traba- cadeia de montanhas. É provável que a
mem algumas dezenas de milhares de lhos que reforçam essa linha.” Conhecida região tenha sido acessível por navegação
anos ou até mesmo 100 mil anos atrás. fundamentalmente por meio das pontas fluvial desde tempos remotos, pois a serra
Durante muito tempo, as datações mais de pedra resgatadas em localidades do das Araras está a 30 km do rio Cuiabá, um
antigas defendidas por Niède, que se ba- estado do Novo México, a cultura Clo- importante afluente da bacia do Paraná-
seavam em análises de carvão de fogueira vis apresenta sítios que foram datados Paraguai. “Não temos sítios arqueológicos
e posteriormente de material lítico traba- em, no máximo, 13 mil anos. Sua supos- de 25 mil anos em número suficiente
lhado pelo homem, foram alvo de grande ta primazia em termos de antiguidade nas Américas para esboçar uma rota
polêmica. Nos últimos anos, novos estu- se casava com a hipótese da chegada, provável”, diz Denis. “O que sabemos é
dos apontam que a presença humana no mais ou menos nessa mesma época, do que, há 10 mil anos, o homem já estava
Piauí parece realmente ultrapassar ao Homo sapiens ao continente americano presente em todo o continente.”
menos os 20 mil anos. “Não há nenhum via Beríngia, antiga porção de terra fir- Um levantamento publicado em 2013
problema em haver datações muito anti- me que conectava a Sibéria ao Alasca, e na revista científica Quaternary Inter-
gas em vários pontos das Américas, como sua posterior dispersão pelas Américas national indica que, entre 13 mil e 8 mil
é o caso de Santa Elina”, comenta Niède, por rotas internas. anos atrás, o homem tinha se estabelecido
diretora-presidente da Fundação Museu Enquanto essa abordagem predomi- em todas as grandes regiões e biomas do
do Homem Americano (FUMDHAM), nou, sítios arqueológicos com indícios de Brasil. O trabalho contabilizou dados de
entidade civil que administra o parque serem mais antigos do que Clovis ou que 90 sítios e 277 datações. “O homem pro-
em cooperação com o Instituto Chico não reforçavam a visão da entrada do ho- vavelmente entrou nas Américas há pelo
Mendes de Conservação da Biodiversida- mem moderno nas Américas pelo Alasca menos 18 mil anos”, sugere Adriana Dias,
de (ICMBio) e o Instituto do Patrimônio eram vistos com extrema desconfiança. autora do estudo ao lado dos arqueólogos
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). O sítio chileno de Monte Verde tem sido, Lucas Bueno, da Universidade Federal de
por exemplo, alvo de discussões acalora- Santa Catarina (UFSC), e James Steele,
mudança de paradigma das entre os arqueólogos desde a déca- do University College London, no Reino
A cronologia da chegada do Homo sa- da de 1970, quando saíram os primeiros Unido. “Mas a ocupação efetiva de todo
piens às Américas, o último continente dados insinuando a presença do homem o continente ocorreu por volta de 12 mil
a ser conquistado pelo homem moderno, no sul do continente há 14,5 mil anos. A anos. Santa Elina é uma luzinha piscando
tem passado por grandes revisões nos mais recente revisão do status de Mon- no painel da colonização que atesta a pos-
últimos 15 anos. “Houve uma mudan- te Verde ocorreu em novembro de 2015, sibilidade de ter havido um povoamento
ça de paradigma”, explica a arqueóloga quando um estudo na revista PLOS ONE antigo no centro da América do Sul.” n
Adriana Schmidt Dias, da Universidade datou artefatos de pedra modificados por
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). humanos em 18,5 mil anos.
Artigo científico
“A ideia difundida por colegas norte- Águeda e Denis evitam falar sobre
VIALOU, D. et al. Peopling South America's centre: The
-americanos de que a chamada cultu- como o homem teria chegado a Santa late Pleistocene site of Santa Elina. Antiquity. vol. 91,
ra Clovis fora a primeira das Américas Elina, no coração da América do Sul, n. 358, p. 865-84.

pESQUISA FAPESP 259  z  85


O sumiço da megafauna
de Lagoa Santa
1

Estudo diz que mudanças


climáticas e a presença
humana podem ter levado
à extinção de grandes
herbívoros
Fungo
Sporormiella
encontrado na

A
Lagoa Olhos
extinção da chamada mega- d'Água funciona
fauna na América do Sul por como marcador
volta de 11 mil atrás é tema de da presença de
grandes
debates sem fim. Dois fatores herbívoros
costumam ser apontados como possíveis
causas do desaparecimento de pregui-
ças terrestres gigantes, mastodontes, 2

gliptodontes (ancestrais dos atuais ta-


tus) e outros animais que podiam pesar
toneladas: mudanças climáticas, que lerar o processo de extinção.” O artigo tem a pretensão de dar a resposta defi-
teriam inviabilizado sua adaptação a também é assinado pelo geólogo Paulo nitiva sobre a extinção da megafauna”,
um ambiente natural em mutação, e a Eduardo de Oliveira, da Universidade pondera Raczka. “Apenas estamos apli-
chegada do homem moderno ao seu de São Paulo (USP), e pelo paleoecólogo cando uma nova forma de análise sobre
hábitat. Um estudo publicado em 18 de Mark Bush, do Florida Tech. essa questão.” O fungo Sporormiella já foi
agosto na revista científica Quaternary Raczka coletou vestígios de pólen, car- empregado em estudos semelhantes da
Research usa uma metodologia alterna- vão e do fungo em dois corpos d’água da Austrália, Estados Unidos e Peru.
tiva para abordar essa questão em Lagoa região mineira, a Lagoa Olhos d’Água Para o bioantropólogo Walter Neves,
Santa, em Minas Gerais, onde há sítios e o Lago Mares, que se formaram por da USP, que estuda a região de Lagoa
pré-históricos que atestam a presença volta de 23 mil anos atrás. O fungo se Santa, não faz sentido a suposição de que
humana e da megafauna. reproduz no trato intestinal de herbí- mudanças climáticas ou a caça possam
O biólogo brasileiro Marco F. Raczka, voros e é eliminado com as fezes. Como ter levado ao desaparecimento da mega-
que faz estágio de pós-doutorado no Ins- a beira de lagos é um local comumente fauna. “Não defendo a hipótese ambien-
tituto de Tecnologia da Flórida (Florida escolhido pelos animais para fazer suas tal porque, antes de sua extinção, esses
Tech), Estados Unidos, analisou a pre- necessidades, esses corpos d’água são bichos resistiram a várias oscilações cli-
sença de vestígios fósseis de fungos do áreas de concentração do fungo quan- máticas igualmente severas ao longo dos
gênero Sporormiella, que funciona como do há (ou havia) herbívoros por perto. últimos 3 milhões de anos. Não há tam-
um marcador da existência de grandes Segundo as análises, a quantidade do bém sequer um ossinho de megafauna
herbívoros em uma área. Embora tam- fungo nos dois lagos começou a decair nos sítios arqueológicos do Brasil, muito
fotos 1 google maps 2 fungi.myspecies.info

bém contasse com carnívoros no topo por volta de 18 mil anos atrás, antes menos em Lagoa Santa, que sustente a
da cadeia alimentar, como o tigre-den- da chegada do homem a Lagoa Santa, ideia de que houve caça em excesso”,
te-de-sabre, a megafauna era composta e atingiu seu nível mais baixo entre 12 comenta Neves. “Ninguém sabe por que
basicamente por herbívoros. “Nossas mil e 11 mil anos atrás, quando o Ho- a megafauna desapareceu.”  n
análises indicam que a população de mo sapiens já tinha fincado pé por ali. O
grandes herbívoros já estava diminuin- declínio da megafauna teria se iniciado
Artigo científico
do em Lagoa Santa antes da chegada do em um período mais frio e úmido e seu
RACZKA, M. F., BUSH, M. B. e OLIVEIRA, P. E. The col-
homem”, explica Raczka. “Mas sua pre- fim, coincidido com um momento de lapse of megafaunal populations in southeastern Brazil.
sença na região deve ter ajudado a ace- aumento da temperatura. “O estudo não Quaternary Research. 17 ago. 2017.

86  z  setembro DE 2017


DIFUSÃO y

Desafios globais
da divulgação
científica
Evento na Grécia apresentou atividades
de comunicação de ciência que
podem ser realizadas em qualquer país

Patricia Santos

C
ompartilhar e explicar para públicos engenharia e matemática (STEM), o curso está
variados os avanços científicos que sur- previsto para acontecer em três edições sedia-
gem cotidianamente nas diversas áreas das em um país europeu diferente a cada ano – a
do conhecimento são desafios comuns a primeira ocorreu em 2016, em Cleves, na Alema-
cientistas e comunicadores de todo o mundo. A nha. A organização do evento acrescentou o A,
dificuldade em conseguir financiamento para es- de arte, na sigla, transformando-a em STEAM.
sas atividades também. Para apresentar e debater A proposta do curso de verão é enfatizar habi-
experiências de divulgação, a União Europeia lidades de comunicação, teorias sobre o tema e
financiou por meio do programa Erasmus+ um abordar políticas e gestão de projetos de divul-
evento de formação de divulgadores científicos. gação científica.
Realizado entre 3 e 12 de julho na cidade de Ma- Foram apresentados alguns estudos de caso
ratona, na Grécia, o STEAM Summer School re- como exemplo de ações que podem ser reali-
sulta de parceria entre as universidades de Malta zadas em qualquer país. Um deles foi o Bright
(República de Malta), Haag-Helia (Finlândia), Club, um pequeno show humorístico envolven-
Rhine-Waal (Alemanha), Edimburgo (Escócia), do cientistas de todas as áreas. A cada edição do
Associação Helênica de Jornalistas de Ciência Bright Club, um comediante profissional conduz
Science View (Grécia) e a União Europeia de a noite convidando ao palco pesquisadores vo-
Associações de Jornalistas de Ciência. luntários que fazem apresentações do tipo stand
ilustraçãO sandra javer

O evento reuniu 52 cientistas, professores, es- up. Em 8 minutos, usam o humor para falar de
tudantes de pós-graduação, jornalistas e divul- assuntos científicos que dominam. Além do en-
gadores de 19 países, a maioria europeus, e tam- tretenimento, o show é uma oportunidade para
bém participantes da Ásia, África e das Américas. que o cientista desenvolva habilidades de enga-
Direcionado à divulgação de ciência, tecnologia, jamento com o público.

pESQUISA FAPESP 259  z  87


1 2

Atividades
orientadas de
comunicação
científica (à esq.
e acima),
na Grécia

Criada na University College London cia do Reino Unido. Cross esteve à frente
(UCL) em 2009, a ideia se espalhou por da coordenação da área de Engajamento
mais de 10 localidades no Reino Unido. Público da UCL por sete anos. Quando
Edições foram realizadas na Austrália, o projeto foi criado, ele tinha em mente
Alemanha, França, Bélgica, Malta e em a ideia de divulgar ciência pelo humor e
julho na Grécia durante a STEAM Sum- foi buscar soluções para tornar a propos-
mer School. “Os interessados entram em ta viável. O comediante conversou com
contato e conversam conosco para depois pesquisadores das áreas de marketing,
começar a preparar o show. Não somos psicologia e profissionais que realizam
‘donos’ do Bright Club, apenas fomos os shows de comédia e conseguiu definir
primeiros a realizá-lo”, explica a histo- uma estratégia para venda de ingressos:
riadora Lizzy Baddeley, coor- era preciso chegar a um valor acessível
denadora da área de Engaja- que, ao mesmo tempo, relacionasse o
mento Público na UCL. Os Bright Club a um evento de alta quali-
organizadores tanto podem dade. O Wellcome Trust, instituição fi-
A comédia ser ligados a instituições de lantrópica britânica de pesquisa biomé-
pesquisa ou voluntários inte- dica, financiou o início do projeto e hoje
stand up sobre ressados em ciência. Eles po- os custos são cobertos pelos ingressos
temas científicos dem definir a frequência de
shows, com a recomendação
vendidos a £ 8 (cerca de R$ 30), exceto
o pagamento dos profissionais envol-
foi criada em de seguir uma estrutura prin- vidos na organização que são ligados à
cipal. Um manual com infor- UCL, conta Lizzy. Fora de Londres, cada
2009 e se mações é enviado aos interes- Bright Club tem sua forma própria de
sados em replicar o evento, financiamento.
espalhou por que deve ser feito em locais
já reconhecidos pelo público
10 cidades como ambientes de comédia
Bright Club
Durante o STEAM Summer School, 10
do Reino Unido e os organizadores precisam participantes do curso realizaram per-
ter cientistas diferentes a ca- formances nos moldes do Bright Club.
da show. Todos devem passar Um deles foi o climatologista James
por um treinamento de até Ciarlo, pesquisador na Universidade de
duas horas sobre o conteú- Malta, que contou situações em que cos-
do essencial de uma comédia stand up, tuma ser confundido com o “homem da
embora caiba aos pesquisadores pensar previsão do tempo” e se disse frustrado
no roteiro. quando estudos de modelagem do cli-
“A preparação é intencionalmente li- ma são confundidos com adivinhação.
vre para ajudá-los a desenvolver suas “Não olhamos bola de cristal, posso ga-
próprias vozes cômicas”, explica Steven rantir. Em vez disso, sentamos na frente
Cross, comediante e divulgador de ciên- do computador e passamos longas noi-

88  z  setembro DE 2017


gar a 100 atividades feitas por institui-
ções parceiras.
Na Grécia foi também apresentada
aos participantes do curso Science in the
City – Science and Arts Festival, evento
de um dia que acontece anualmente em
Malta, desde 2012. No país de cerca de
450 mil habitantes ao sul da Europa, a
capital Valeta é tomada por instalações
artísticas, peças de teatro, música, dan-
ça, jogos e exposições. Tudo é inspirado
por um tema científico, como “Futuros,
ou como a pesquisa de hoje moldará a
sociedade do amanhã”, título do festival
de 2017 que ocorrerá em 29 de setembro.
De acordo com o geneticista Edward
3 Duca, coordenador do festival maltês,
são selecionados artistas por
Apresentação de meio de uma chamada pú-
James Ciarlo blica, que recebem financia-
(acima), este
mento para as performances.
ano, e estudantes
do projeto O objetivo é dar visibilidade
Creations em peça para pesquisas e pesquisado-
teatral (à dir.) res, além de apresentar deter-
minadas áreas como opção
de carreira. Segundo Duca,
o festival ganhou relevância
social, turística e econômica
para o país.

Avanços necessários
Na América Latina, os even-
4 tos são a maneira mais uti-
lizada para divulgar ciência
(32,9%), seguidos pela inter-
tes estudando, programando, e falando Nesse modelo, laboratórios de pesqui- net (14,6%) e pelos meios de comuni-
palavrões, até chegarmos a algo útil”, sa participam usando sua infraestrutura cação tradicionais, como TV e jornais
relatou em sua apresentação. para criar os chamados “cenários”, ofe- (12,8%). Diferentemente dos casos euro-
Outra iniciativa que pode inspirar recendo atividades práticas para os es- peus apresentados na Grécia, 68,3% das
projetos de divulgação foi o Creations, tudantes. A Organização Europeia para iniciativas são eventuais ou ocasionais, o
que abrange diferentes países e cultu- Pesquisa Nuclear (Cern), em Genebra, que limita seu impacto, segundo estudo
ras promovendo a relação entre ciên- Suíça, é uma das instituições partici- publicado no livro Diagnóstico de la di-
cia e arte por meio de teatro, música, pantes. Lá, os alunos de cursos que cor- vulgación de la ciencia en America Lati-
fotos  1 e 4 DAVID MUNAÒ 2 e 3 AMANDA Mathieson ilustraçãO  SANDRA JAVER

exposições, entre outras atividades. A respondem ao ensino médio brasileiro na, editado pela Rede de Popularização
iniciativa envolve 10 países europeus e conhecem experimentos como colisão da Ciência e da Tecnologia da América
tem como meta chegar a 2 mil profes- de partículas, por exemplo. “A partir da Latina e Caribe (RedPop).
sores, 25 mil estudantes, inclusive de visita, os alunos elaboram músicas, ví- O trabalho foi elaborado a partir de
regiões rurais, até setembro de 2018. O deos, desenhos, fotografias e outros tra- uma enquete on-line respondida em 2016
Creations é financiado pela Comissão balhos artísticos”, conta o matemático por gestores de instituições de pesqui-
Europeia – órgão executivo da União Menelaos Sotiriou, pesquisador asso- sa, jornalistas, divulgadores de ciência,
Europeia – com investimento de € 1,7 ciado da Faculdade de Filosofia, Peda- grupos organizados de pesquisadores e
milhão (cerca de R$ 6,3 milhões) em um gogia e Psicologia da Universidade de comunicadores independentes em que
programa de três anos iniciado em 2016. Atenas, que integra o Creations. Ativida- foram obtidas 123 respostas de 14 países
O projeto tem uma abordagem pedagó- des como a do Cern são documentadas da região. Segundo os autores, apesar
gica que defende o ensino de ciências e disponibilizadas para os professores de ter havido avanços na promoção da
baseado em investigação e solução de em uma plataforma on-line. De forma cultura científica na região, as oscila-
problemas usando atividades artísticas compartilhada, eles utilizam, adaptam ções políticas e econômicas geram des-
de interesse dos jovens para engajá-los ou criam mais conteúdo para aulas de continuidades para o setor. “É mais fá-
no aprendizado. ciências. Até 2018, o projeto prevê che- cil criar iniciativas novas de divulgação

pESQUISA FAPESP 259  z  89


Performance em
praça pública de
Valeta, capital de
Malta, como parte
do Science in the
City – Science and
Arts Festival de
2015

Modita dolore excepti


onsequis earcid minis sit
res et parum re
moluptatur solore doleste
nonsequod ut andigni
enihill

Na Europa, o financiamento da
divulgação científica também depende,
em grande parte, de agências públicas

científica do que manter as existentes, apontada no estudo latino-americano.


por uma questão de visibilidade”, conta a Segundo Gerber, essa lacuna pode ter
fotos  Elisa Von Brockdorff

jornalista Luisa Massarani, pesquisado- relação direta com a falta de formação


ra do Núcleo de Estudos da Divulgação na área. Ele ressalta que muitas vezes as
Científica do Museu da Vida da Funda- práticas não levam em conta o conheci-
ção Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de mento acumulado no campo teórico da
Janeiro, e coautora do estudo. divulgação científica. “Por isso avaliar de
Na Europa, mesmo com as fundações fato o que está acontecendo no intercâm-
privadas ou usando modelos alternati- bio entre ciência e stakeholders (as partes
Escultura de Elisa vos como o financiamento coletivo de interessadas) é algo extremamente com-
von Brockdorff projetos, as experiências indicam que o plexo”, afirma. Isso ocorre inclusive na
para o festival
maltês de 2012:
financiamento da divulgação científica Alemanha, segundo Gerber. “Avaliação
artistas são depende, em grande parte, de agências é uma atividade de pesquisa aplicada e
selecionados por públicas de fomento à pesquisa, segun- deve envolver métodos, expertises para
chamada pública do o especialista em ciência da comu- fazê-la, idealmente em combinação com
nicação Alexander Gerber, professor na alguma participação externa”, conclui. n
Universidade Rhine-Waal, na Alemanha.
Versão atualizada em 28/09/2017

Para ele, os recursos para a divulgação


científica persistem como uma das res- Livro
ponsabilidades dos sistemas públicos de PATIÑO BARVA, M. L., PADILLA GONZÁLEZ, J., MASSA-
pesquisa e educação. RANI, L. Diagnóstico de la divulgación de la ciencia en
America Latina: Una mirada a la práctica en el campo.
Analisar os resultados efetivos das León: Fibonacci – Innovación y Cultura Científica, A. C.,
ações de difusão foi uma necessidade RedPOP, 2017, 144 p.

90  z  setembro DE 2017


memória
reprodução do livro recordações da exposição nacional de 1861

Máquina de
ferro a vapor
para moer e
extrair caldo
de cana

Inovação nos tempos


do Império
A
Primeira lei de patentes vinda da família real em 1808 para o Brasil colocou
o país no centro das decisões políticas da corte
ajudou a estimular a portuguesa, que adotou uma série de medidas de
incentivo ao desenvolvimento industrial e econômico
atividade inventiva no Brasil de sua principal colônia. Entre as ações estava a permissão
no início do século XIX para a instalação de fábricas, manufaturas e empresas,
além de um alvará tratando da questão do privilégio
industrial aos inventores e introdutores de novas máquinas
Rodrigo de Oliveira Andrade no país. O documento, inspirado em leis da Inglaterra e
dos Estados Unidos, fez do Brasil uma das primeiras
nações a conceder direitos a inventores, abrindo caminho
para que mais tarde fosse regulamentada uma legislação
específica sobre patentes.
Promulgada em agosto de 1830, a lei é resultado de
uma articulação encabeçada pelo engenheiro Manoel
Ferreira da Câmara Bittencourt (1762-1835). Nascido em
Santo Antônio de Itacambira, em Minas Gerais, Bittencourt
mudou-se para Portugal em 1783 para estudar leis e filosofia

PESQUISA FAPESP 259 | 91


Modelo de
máquina a vapor
desenvolvido no
arsenal da Marinha

novidade e utilidade.
A patente era concedida
gratuitamente ao primeiro
a inventar algo. Poderia
ter duração de cinco a
20 anos, dependendo de sua
importância, sendo que
o inventor poderia perder
os direitos sobre sua criação
caso não a introduzisse
no mercado em até dois
anos ou se já tivesse obtido
uma patente no exterior
2 pela mesma invenção.
“A lei era bastante
natural na Universidade institucional de proteção exigente em termos de
de Coimbra. Graduou-se de direitos intelectuais.” novidade”, conta a
em 1787, mas não voltou Lei brasileira Apenas Inglaterra, Estados economista Andrea Felippe
imediatamente ao Brasil. Unidos, França, Rússia, Cabello, do Departamento
Permaneceu na Europa,
regulamentou Prússia, Bélgica, Países de Economia da
onde foi eleito membro de os direitos de Baixos e Espanha tinham Universidade de Brasília
associações científicas como leis de patentes em vigor. (UnB). Vários países
a Academia Real das
patentes no país A lei brasileira que dispunham de uma
Ciências de Lisboa e a Real em 1830, antes pretendia promover o lei de patentes concediam
Academia de Ciências de desenvolvimento local direitos de propriedade
Estocolmo, Suécia. Retornou
mesmo de de novas máquinas e industrial para cópias ou
ao Brasil em 1808 para Portugal, que só processos, bem como a adaptações de máquinas
administrar a Real Extração introdução de empresas ou processos patenteados
de Diamantes. Enveredou-se
o fez em 1837 estrangeiras no país. Os em outros países. “No Brasil
pela política, tornou-se pedidos eram depositados isso não era possível”, ela
deputado constituinte e, no Arquivo Público. afirma. Andrea e o também
em 1827, senador. Exigia-se que fossem economista Luciano Costa
É de sua autoria o projeto acompanhados de desenhos, Póvoa, consultor legislativo
de regulamentação da memórias ou modelos que do Senado Federal, fizeram
norma sobre privilégios ajudassem a explicar o uma análise econômica
industriais, apresentado invento. Em seguida, eram da primeira lei de patentes
em julho de 1828. submetidos à análise de brasileira a partir do
O projeto, depois avaliadores da Junta Real estudo de 783 patentes fotos  reprodução do livro recordações da exposição nacional de 1861

transformado em lei, de Comércio, Agricultura, concedidas entre 1830 e


regulamentou os direitos Fábricas e Navegação. Em 1882 no Brasil. A avaliação
de patentes no Brasil antes outros casos, eram enviados desses documentos lhes
mesmo de Portugal, que à Sociedade Auxiliadora permitiu entender como a
só o fez em 1837. “Tratava-se da Indústria Nacional, atividade inventiva reagiu
de uma legislação inovadora sociedade civil de direito à instituição de uma lei
para a época”, comenta o privado fundada em 1831 de patentes no país.
historiador da ciência com o objetivo de fomentar A atividade de
João Carlos Vannucci, do a indústria brasileira. patenteamento teve início
Instituto Nacional de Após uma avaliação inicial, lento, com poucas patentes
Propriedade Industrial as máquinas e processos concedidas nos primeiros
(INPI), no Rio de Janeiro. eram submetidos a 30 anos de vigência
“Poucos países dispunham Máquina taquigráfica criada pelo exames mais detalhados da lei. A situação mudou
de um arcabouço padre Francisco João de Azevedo para comprovação de sua a partir de 1870, com o

92 | setembro DE 2017
início da industrialização,
a expansão da cafeicultura
e a escassez de mão de obra
no campo. “Quase 80% das
patentes do século XIX
foram concedidas após
1870, também em razão
do crescente interesse de
estrangeiros em proteger
suas invenções no Brasil”,
afirma Póvoa.
Segundo ele, a atividade
inventiva estava conectada
à estrutura econômica e
social do Brasil, de modo
que a escassez de mão de
obra estimulou a invenção
de muitas máquinas
e equipamentos para o
setor agrícola, sobretudo Escola Central do Largo São Francisco, sede da Primeira Exposição Nacional de Produtos Naturais e Industriais,
no âmbito da atividade onde hoje funciona o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

cafeicultora, com
equipamentos para limpar, e a ciência se desenvolviam em 1861, no Rio de Janeiro.
descascar e secar os grãos. no Brasil. “Nota-se que os A exposição pretendia
Muitos requerimentos de Escassez de analistas de patentes tinham mostrar ao mundo os
patentes foram publicados amplo conhecimento progressos técnicos e
em O auxiliador da indústria
mão de obra técnico, oferecendo científicos alcançados pelo
nacional, da Sociedade estimulou respostas convincentes, país com sua incipiente
Auxiliadora. Foram baseadas em teorias atividade industrial.
justamente esses os
a invenção de científicas da época, mesmo O evento foi um sucesso
documentos analisados por equipamentos aos pedidos submetidos por de público, segundo a
Vannucci em seu doutorado, estrangeiros”, ele explica. imprensa da época. Durante
defendido em 2016 no
para o setor Muitas invenções foram seus 46 dias de duração,
Programa de Estudos agrícola apresentadas na Primeira cerca de 50 mil pessoas
Pós-graduados em História Exposição Nacional de visitaram a exposição no
da Ciência da Pontifícia Produtos Naturais e prédio da Escola Central
Universidade Católica de Industriais, promovida do Largo São Francisco.
São Paulo (PUC-SP). Dentre as principais
Sob orientação do físico e invenções apresentadas,
historiador da ciência José destaca-se a chamada
Luiz Goldfarb, do Centro máquina de taquigrafia,
Simão Mathias da PUC-SP, concebida pelo padre
Vannucci analisou 62 paraibano Francisco João
requerimentos publicados de Azevedo (1814-1880),
em O auxiliador entre precursora da máquina
1833 e 1862, como carros de escrever moderna (ver
movidos a vapor, máquinas Pesquisa FAPESP nº 66).
para fabricar gelo, extrair Havia também objetos de
caldo de cana, torrar farinha grandes dimensões, como
de mandioca e filtrar água. uma bomba de incêndio,
Por meio da análise desses exposta pela Companhia
documentos é possível ter de Iluminação de Gás do
uma ideia de como a técnica Rio de Janeiro, e um
modelo de locomotiva,
desenvolvida no
Bomba de incêndio Estabelecimento de
concebida pela Fundição e Estaleiros da
Companhia de
Iluminação de Gás
Ponta d’Areia, em Niterói,
do Rio de Janeiro também no Rio. n

PESQUISA FAPESP 259 | 93


resenhas

Diálogo intermitente
Emerson Tin

C
artas se caracterizam por serem textos efê- ticos”. Em “Textos seletos de Gilberto Freyre e
meros, inscritas no tempo de sua produção Manuel Bandeira”, encontram-se reunidas pro-
e escritas, muitas vezes, no papel que se tem duções de ambos os missivistas, produções que
à mão. Por isso, frequentemente, salvo um esforço dialogam com as cartas que as precedem e lhes
dos próprios missivistas ou de terceiros, preocu- completam o sentido. O capítulo 4, “Leituras da
pados em preservá-las, facilmente desaparecem, Província”, por fim, tem o objetivo de alinhavar
seja pelo corriqueiro de seu conteúdo, seja pela sua “dados dispersos nos capítulos 2 e 3” por meio
fragilidade material. Nem sempre é assim, porém. de “ensaios críticos elaborados de modo a res-
Temos assistido, nestas duas décadas do sécu- saltar diversas facetas do diálogo” estabelecido
lo XXI, a um grande interesse pelas chamadas entre Freyre (1900-1987) e Bandeira (1886-1968).
écritures du moi (“escritas do eu”, na expressão O esforço exegético da organizadora se justi-
de Georges Gusdorf ): nunca se estudaram tantas fica: a troca epistolar entre os dois pernambu-
Cartas provincianas: memórias, diários, cartas, quanto nesses últimos canos é não apenas assimétrica (se se leva em
Correspondência entre tempos. Publicações de memórias, diários, car- consideração que existem 14 cartas de Freyre para
Gilberto Freyre e
Manuel Bandeira
tas sempre houve. Estudos, no entanto, que os 54 de Bandeira), mas intermitente, sendo, salvo
Silvana Moreli Vicente enxergassem como objetos de pesquisa, e não em curtos períodos em que se torna um pouco
Dias (org.) como auxiliares para a interpretação da obra mais assídua (como entre os anos de 1934 e 1936),
Global Editora de um es­critor, como protagonistas, e não como amiúde interrompida e retomada meses (ou anos)
472 páginas | R$ 69,00
coadju­vantes, eram raros. depois. Assim, o diálogo estabelecido entre as car-
Nesse sentido, engana-se quem abre o volume tas e demais produções de ambos os escritores,
Cartas provincianas: Correspondência entre Gil- acompanhado de rica iconografia, permite, se não
berto Freyre e Manuel Bandeira, recém-lançado o preenchimento completo do vácuo entre uma
pela Global Editora, e julga deparar-se apenas carta e outra, que a passagem entre elas se faça
com um livro de cartas. Sim, é um livro de car- de maneira menos abrupta. Ao mesmo tempo,
tas, que reúne “68 peças, sendo 14 de autoria de os comentários exegéticos presentes em rodapé,
Gilberto Freyre e 54 de Manuel Bandeira”, mas para além de informações de caráter enciclopédi-
não é só isso. Organizado e exaustivamente ano- co (por exemplo, notas biobibliográficas sobre as
tado por Silvana Moreli Vicente Dias, o livro vai personalidades mencionadas na correspondência),
além de uma mera correspondência anotada (o situam o seu objeto na produção dos missivistas,
que já seria um trabalho e tanto). A organizadora por meio de trechos garimpados na vasta obra de
preocupou-se em contextualizar cada uma das 68 ambos. É o que se vê em notas como a dedicada
cartas, em um trabalho cuidadoso e pormenoriza- a Carlos Drummond de Andrade, em que, após
do de reconstituição das condições de produção informações de caráter biobibliográfico, a orga-
de cada uma delas, um verdadeiro resgate. Fruto nizadora cita ensaio de Bandeira sobre o poeta de
de sua pesquisa de doutorado desenvolvida na Itabira, assim como uma carta inédita de Freyre
Universidade de São Paulo, é exemplo perfeito a a ele endereçada, que “mostra, por sua vez, como
ilustrar o interesse que se tem visto, nos últimos Freyre procurava cultivar esta amizade”.
anos, em relação à produção epistolar brasileira. Cartas provincianas está ao lado, certamente,
O livro vem dividido em quatro grandes blo- dos mais sérios estudos sobre correspondência
cos. Em “Correspondências provincianas: Apro- que têm surgido nos últimos anos. Interessará
ximações”, a organizadora aponta aos leitores não somente aos pesquisadores da obra de am-
as linhas gerais que nortearam a compilação do bos os escritores, mas também aos interessados
volume. No segundo capítulo, “Correspondên- na cultura brasileira e, particularmente, na pes-
cia entre Gilberto Freyre & Manuel Bandeira”, quisa epistolográfica.
explicita os critérios da edição, antes de o leitor
adentrar a correspondência propriamente dita, Emerson Tin é docente das Faculdades de Campinas (Facamp).
Traduziu e analisou os tratados que compõem A arte de escrever
que mereceu mais de 700 notas, que se distribuem cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam, Justo Lípsio (Editora
entre “notas de edição” e “comentários exegé- da Unicamp, 2005).

94 | setembro DE 2017
Um exercício de justiça
Omar Ribeiro Thomaz

“… Não vejo necessidade de qualquer povo pro- riográfica rigorosa, como fica claro no verbete
var, a outro povo, que construiu catedrais ou correspondente.
pirâmides para ter direito à paz e à segurança. Nos verbetes referentes a cada uma das regiões
Assim sendo, não é necessário que o povo negro históricas e etnográficas africanas no período que
invente um grandioso e fictício passado para vai do século VII ao século XVI, fica claro que
justificar sua existência e sua dignidade hu- se trata de um continente cujas populações se
mana de hoje. O que os negros precisam fazer é entremesclam como consequência de processos
recuperar o que lhes pertence – sua história – e migratórios e de intercâmbio material e simbó-
narrá-la eles mesmos.” lico. Incorporar um verbete para cada uma das
Chinua Achebe unidades contemporâneas africanas não só evi-
dencia o caráter histórico recente das fronteiras
políticas atuais como conecta a história desses

A
Dicionário de afirmação do nigeriano Chinua Achebe, territórios a momentos anteriores à emergência
história da África – presente no texto “Dizendo nosso verda- do mundo moderno.
Séculos VII a XVI
Nei Lopes e
deiro nome”, está no livro A educação de Os verbetes discorrem, assim, por territórios,
José Rivair Macedo uma criança sob o protetorado britânico – Ensaios regiões, personagens, períodos, povos, etnias,
Autêntica (Companhia das Letras, 2012). Achebe é um dos estados, eventos e não só: enfrentam conceitos
319 páginas | R$ 59,80 grandes escritores do século XX, e aponta pa- como os de “autoridade” ou “Estado”, ou termos
ra a empreitada que se impõe aos africanos e à como “fontes históricas” ou “fronteira”, procuran-
diáspora, a de assegurar sua dignidade presente do enfatizar seu sentido tendo como referência a
recuperando sua história. história da África. Termos cruciais para a com-
No contexto brasileiro, a sentença do autor preensão da história africana, como “presídio”
africano ganha ares de urgência. Por essa razão, ou “griô”, complexificam o universo de verbetes
devemos celebrar a publicação do Dicionário de que faz do dicionário um instrumento importan-
história da África – Séculos VII a XVI, de autoria te para o historiador, o professor ou o estudante
do compositor, intérprete e estudioso das cultu- de história. Uma ampla e útil bibliografia para
ras africanas na África e na diáspora Nei Lopes e todos os interessados na história do continente
do historiador José Rivair Macedo, coordenador africano conclui o volume que se ressente, talvez,
do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, Indíge- da ausência de mapas que, esperamos, venham a
nas e Africanos da Universidade Federal do Rio compor uma próxima edição.
Grande do Sul (UFRGS) . O volume dá continui- Não há propriamente uma tradição de dicioná-
dade ao Dicionário da antiguidade africana, de rios e enciclopédias históricas no campo editorial
Lopes, e cobre o período que vai da expansão brasileiro, na contramão de outros contextos co-
árabe-islâmica no norte do continente à vira- mo o britânico ou o português, onde constituem
da dos séculos XV e XVI entre transformações um gênero que traduz verdadeiros debates histo-
de grandes poderes na África mediterrânea e o riográficos – pensemos apenas na Africana: The
início do tráfico atlântico para o Novo Mundo. encyclopedia of the african and african american
O dicionário enfrenta assim um escopo crono- experience, editada por Anthony Appyah e Henry
lógico outro, aquele que não introduz a África e Louis Gates (2003). A publicação do Dicionário de
os africanos na história como consequência de história da África – séculos VII a XVI revela um
grandes marcos europeus, tais como a conquista momento decisivo de um extraordinário esforço
da América, ou a expansão imperial europeia no daqueles que se dedicam aos processos próprios
continente africano entre finais do século XIX e desse continente entre nós e corresponde ao que
início do século XX. E mais: a África entra aqui se espera da melhor historiografia: erudição, bela
fotos eduardo cesar

toda inteira, superando o branqueamento a que escrita e um exemplo de justiça.


foi submetida a África Mediterrânica em oposi-
ção ao que se popularizou como “África Negra” Omar Ribeiro Thomaz é professor do Instituto de Filosofia e Ciências
– expressão que não resiste a uma análise histo- Humanas da Unicamp e pesquisador da história social da África. 

PESQUISA FAPESP 259 | 95


carreiras

Qualificação Profissional

Impactos de uma nova realidade de trabalho


Expansão da Indústria 4.0 deverá criar novas demandas de formação no Brasil

A chamada Indústria 4.0 engloba do governo para promover a (Poli-USP). Ele explica que a nova
uma ampla variedade de automatização da manufatura e realidade de trabalho que desponta
inovações tecnológicas aplicadas à aumentar a produtividade das com a evolução da Indústria 4.0
manufatura. Estima-se que nos linhas de produção. Espera-se que, – ou manufatura avançada, como é
próximos anos essa tendência atue com a incorporação desse conceito, conhecida fora da Alemanha –
na criação de novos modelos de os trabalhos manuais e repetitivos demandará profissionais com senso
negócios, com fábricas inteligentes, sejam progressivamente de urgência, flexibilidade e
baseadas na automação e substituídos por mão de obra capacidade de desenvolver soluções
digitalização dos processos de automatizada. As máquinas serão inovadoras a partir da convergência
produção e no uso e análise equipadas com sistemas e sensores de conhecimentos diversos.
de grandes quantidades de dados inteligentes que irão informar Ainda segundo Miyagi, a
(ver reportagem na página 24). como elas devem operar em cada formação específica continuará
A incorporação desse conceito estágio do processo de manufatura, sendo valorizada. No entanto,
como parte dos processos transmitindo os dados às centrais os futuros profissionais terão
industriais no Brasil deverá exigir de análise das empresas. de ser capazes de integrar conceitos
a formação de indivíduos com “Esse fenômeno criará novas de outras áreas em sua atividade
habilidades técnicas e interpessoais demandas de pesquisa e profissional. Também a
específicas. Estar atento aos desenvolvimento, oferecendo disseminação de sistemas
impactos dessas mudanças pode oportunidades para profissionais inteligentes instalados nas
ajudar os atuais e futuros tecnicamente capacitados, capazes máquinas permitirá aos
profissionais a se antecipar às de trabalhar com diferentes funcionários interferir a distância
demandas dessa nova realidade. tipos de tecnologias”, afirma o no andamento dos processos
O conceito de Indústria 4.0 engenheiro de sistemas Paulo Eigi de produção. “Os sistemas de
surgiu na Alemanha em 2011 como Miyagi, da Escola Politécnica da controles industriais serão
um projeto de iniciativa estratégica Universidade de São Paulo descentralizados, de modo que será

96 | setembro DE 2017
comum um grupo de profissionais
ser responsável por todo o processo
de manufatura, e não por apenas
uma parte específica da linha de
montagem”, diz. Isso desencadeará
mudanças nas dinâmicas de
trabalho. Para Miyagi, à medida que
o acesso às informações sobre esses
processos seja feito por dispositivos
móveis, a qualquer hora e em
qualquer lugar, a tendência é de que
os funcionários sejam notificados
para fazer o acompanhamento e
modificar esses processos sempre
que necessário, o que lhes
demandará mais flexibilidade em
relação à sua jornada de trabalho.
Na avaliação do engenheiro
mecânico Marcosiris Amorim de
Oliveira Pessoa, também da que irão vender”, diz Clemente debruçam sobre a Indústria 4.0 e
Poli-USP, todas as áreas do Hungria, da empresa AGR estão familiarizados com o tema.
conhecimento serão impactadas Consultores. Para quem deseja fazer graduação,
com a expansão da Indústria 4.0. Para Miyagi, os indivíduos o ideal seria procurar instituições
No entanto, as engenharias se preocupados em se antecipar a que, como o IFSP e o Senai, tenham
destacam. Algumas universidades essas e outras novas demandas de experiência prévia em áreas
já trabalham na readequação de trabalho podem recorrer à associadas à Indústria 4.0. Para
seus currículos. A própria formação acadêmica nas áreas achá-las, Pessoa cruzou informações
Poli-USP pretende criar um novo de engenharia mecatrônica e de trabalhos científicos que
curso, chamado engenharia da computação, que proporcionam o tratam de aspectos da manufatura
complexidade, para formar domínio teórico e prático de avançada na base de dados Scopus
profissionais capazes de operação de sistemas fundamentais com a de pesquisadores e
desenvolver estratégias voltadas à na Indústria 4.0. Já estudantes que universidades ou institutos de
concepção de produtos, processos pretendem ingressar no ensino pesquisa aos quais estavam ligados.
produtivos e atividades de técnico podem procurar os cursos Verificou que os cursos mais
inovação e de pesquisa a partir de do Instituto Federal de Educação, indicados são os de engenharia
abordagens multidisciplinares Ciência e Tecnologia de São Paulo mecatrônica da Poli-USP, de
(ver Pesquisa FAPESP nº 253). (IFSP) e do Serviço Nacional engenharia de produção da
De acordo com o relatório Future de Aprendizagem Industrial Universidade Tecnológica Federal
of Jobs and Skills, do Fórum (Senai), que já há alguns anos se do Paraná (UTFPR) e de
Econômico Mundial, outras áreas tecnologia em análise e
também deverão se tornar mais desenvolvimento de sistemas
importantes nos próximos anos. do Instituto Federal de Santa
Uma delas é a de analista de dados, Catarina (IFSC), entre outros.
que ajudará as empresas a avaliar Os que não têm como ingressar
a enorme quantidade de em alguma dessas instituições
informações e, assim, oferecer podem procurar outras, menos
suporte à gestão de suas estratégias tradicionais, desde que ofereçam
de negócios. Já os coordenadores cursos ligados à Indústria 4.0.
de robótica serão responsáveis por Segundo Miyagi, o impacto
supervisionar o funcionamento da manufatura avançada também
dos robôs, atuando na manutenção alcançará as humanidades,
preventiva dessas máquinas. abrindo caminho para novos
Também os representantes de campos de pesquisa voltados à
ilustrações  Bárbara Malagoli

vendas deverão ganhar destaque. análise das novas relações sociais


“Como as empresas estarão com e de trabalho. Para Pessoa, o
ofertas de produtos e serviços mais importante é o indivíduo identificar
especializados, seus profissionais o campo que mais lhe atrai e depois
terão de conhecer a natureza se aprofundar no assunto. n
técnica e inovadora dos produtos Rodrigo de Oliveira Andrade

PESQUISA FAPESP 259 | 97


Projeto estimula perfil

uso do Instagram
Afinação concluída
por cientistas
Gabriel Victora deixou a carreira de pianista para se dedicar
Aos olhos de muitas pessoas, à imunologia e hoje lidera equipe na Universidade Rockefeller
os cientistas são indivíduos
sérios e pouco sociáveis.
Na tentativa de desconstruir Gabriel Victora e colega dos tempos de graduação na
essa imagem, a neurocientista estava prestes a Universidade Federal do Rio Grande
Samantha Yammine, da terminar o do Sul (UFRGS). Desse contato
Universidade de Toronto, ensino médio veio o convite para fazer um estágio
no Canadá, e a engenheira quando seu pai, no Laboratório de Imunologia
agrícola Paige Jarreau, da Cesar Victora, do Instituto do Coração (InCor) do
Universidade de Louisiana, destacado Hospital das Clínicas da FM-USP.
nos Estados Unidos, lançaram epidemiologista O estágio o levou a um novo
um projeto para humanizar da Universidade mestrado, em imunologia, no
os cientistas por meio de fotos Federal de Instituto de Ciências Biomédicas
publicadas no Instagram, Pelotas (UFPel), (ICB) da USP, iniciado em 2004.
arquivo pessoal

uma popular rede social. no Rio Grande do Sul, foi trabalhar Próximo de concluir o mestrado,
A ideia do Scientist Selfies! no Fundo das Nações Unidas para Gabriel participou de um congresso
é que pesquisadores postem a Infância (Unicef ), em Nova York, da Sociedade Brasileira de
fotos amigáveis em diferentes Estados Unidos. Gabriel tinha 16 Imunologia, onde conheceu Anjana
contextos científicos, de modo anos e decidiu acompanhar o pai. Rao, do Instituto de La Jolla para
a mudar a percepção que Como havia estudado piano em Alergia e Imunologia, em San Diego,
se tem sobre a ciência. Pelotas e Porto Alegre, tentou a sorte Califórnia. “Conversamos sobre eu
Com base na experiência, as nos conservatórios de música de fazer o doutorado nos Estados
pesquisadoras reuniram dicas Nova York. Foi aceito em vários, Unidos”, conta. “Inscrevi-me em
de como usar o Instagram mas resolveu entrar no conceituado vários programas, mas só a
para divulgar suas pesquisas. Mannes College of Music. Universidade de Nova York (NYU)
Segundo elas, é importante Iniciou a graduação em música em teve coragem de oferecer uma vaga
investir em conteúdos 1994, concluindo-a em 1998, mesmo a um músico, sem formação em
originais para atrair pessoas ano em que ingressou no mestrado, biologia ou medicina”, brinca.
que talvez não tenham também no Mannes. Tornou-se Em 2006, Gabriel iniciou o
interesse por assuntos de pianista profissional. “Fiz alguns doutorado no laboratório de Mike
ciência. Fotos criativas, em recitais no Carnegie Hall, em Nova Dustin, da NYU. “Estudei como os
ambientes instigantes, com York, e no Teatro Municipal de linfócitos B amadureciam e geravam
uma boa descrição na legenda, São Paulo, além de apresentações anticorpos mais efetivos à medida
chamam mais a atenção e com a Orquestra Sinfônica de Porto que a infecção progridia.” Um dos
favorecem uma melhor Alegre”, lembra. Com o tempo, resultados da tese foi um artigo
compreensão de informações no entanto, a rotina de concertista publicado na revista Cell. A partir daí
por parte dos seguidores. começou a desestimulá-lo. Gabriel passou a receber ofertas para
Elas também sugerem Resolveu procurar outra atividade. criar seu próprio laboratório. Uma
publicar fotos com pessoas, Começou a trabalhar como delas veio do Instituto Whitehead,
mesmo que a pesquisa não as tradutor de artigos de epidemiologia do Instituto de Tecnologia de
envolva diretamente, fazendo para o grupo do pai na UFPel e, mais Massachusetts (MIT). Ele aceitou,
com que as histórias sobre as tarde, também para outros grupos e trabalhou por quatro anos como
pesquisas se tornem também de pesquisa do Brasil. Com o tempo, chefe de um grupo de pesquisa por
histórias sobre indivíduos. ganhou experiência, tornando-se um lá. Em 2016 recebeu outras duas
Além de aumentar as chances dos tradutores oficiais da edição propostas: do Instituto de Tecnologia
de a foto ser compartilhada, bilíngue da Revista de Saúde Pública, da Califórnia (Caltech) e da
isso ajuda a aproximar da Universidade de São Paulo (USP). Universidade Rockefeller. “Escolhi
os seguidores de suas Como o interesse pela área de voltar para a Rockefeller, onde eu
jornadas, à medida que as imunologia crescia, seu pai sugeriu sempre quis estar”, afirma. Aos 40
vivenciam, no laboratório e uma conversa com o imunologista anos, ele hoje lidera uma equipe de
no campo. Para saber mais, Jorge Kalil, pesquisador da 11 pesquisadores no Laboratório
acesse o perfil oficial do Faculdade de Medicina (FM) da USP de Dinâmica de Linfócitos. n R.O.A.
projeto @scientistselfies. nR.O.A.

98 | setembro DE 2017
Pesquisa Brasil
Toda sexta-feira, das 13 às 14h, você tem
um encontro marcado com a ciência na
Rádio USP FM. Com reprise no sábado
às 18h e quinta-feira às 2h.

Pesquisa Brasil traz notícias


e entrevistas sobre
ciência, tecnologia, meio
ambiente e humanidades.
Os temas são selecionados
entre as reportagens
da revista Pesquisa FAPESP

A cada programa, três pesquisadores


falam sobre o desenvolvimento
de seus trabalhos recentes e ajudam Sintonize em
a escolher a programação musical
São Paulo
93,7 mHz

Ribeirão Preto
Você também pode baixar 107,9 mHz
e ouvir o programa da semana
e os anteriores na página de
Pesquisa FAPESP na internet
(www.revistapesquisa.fapesp.br)
ASENTREVISTAS
AS ENTREVISTASICÔNICAS
ICÔNICAS
QUE
QUEMARCARAM
MARCARAMOS OS2020ANOS
ANOS
DE
DEHISTÓRIA DACULT
HISTÓRIADA CULTREUNIDAS
REUNIDAS
EM UMLIVRO
EMUM LIVROIMPERDÍVEL
IMPERDÍVEL

DÉCIO
DÉCIODE DEALMEIDA
ALMEIDAPRADO
PRADO
HILDAHILST
HILDA HILST
HAROLDO
HAROLDODE DECAMPOS
CAMPOS
JOSÉSARAMAGO
JOSÉ SARAMAGO
JOSÉPAULO
JOSÉ PAULOPAESPAES
LYGIAFAGUNDES
LYGIA FAGUNDESTELLES
TELLES
SEBASTIÃOUCHOA
SEBASTIÃO UCHOALEITE
LEITE
ROBERTOPIVA
ROBERTO PIVA
WALYSALOMÃO
WALY SALOMÃO
FERREIRAGULLAR
FERREIRA GULLAR
LARSVON
LARS VONTRIER
TRIER
CLAUDELÉVI-STRAUSS
CLAUDE LÉVI-STRAUSS
NOAMCHOMSKY
NOAM CHOMSKY
ISTVÁNMÉSZÁROS
ISTVÁN MÉSZÁROS
NAOMIKLEIN
NAOMI KLEIN
ANDRÉCOMTE-SPONVILLE
ANDRÉ COMTE-SPONVILLE
ZYGMUNTBAUMAN
ZYGMUNT BAUMAN
NICOLAUSEVCENKO
NICOLAU SEVCENKO
EDUARDOVIVEIROS
EDUARDO VIVEIROSDE DECASTRO
CASTRO
MANOEL
MANOELDE DEBARROS
BARROS
MARILENACHAUI
MARILENA CHAUI
JUDITHBUTLER
JUDITH BUTLER
VLADIMIRSAFATLE
VLADIMIR SAFATLE
ANTONIONEGRI
ANTONIO NEGRI
MANOBROWN
MANO BROWN
JACQUESRANCIÈRE
JACQUES RANCIÈRE
FREIBETTO
FREI BETTO
CELSOLAFER
CELSO LAFER
MARIARITA
MARIA RITAKEHL
KEHL
PAULOMENDES
PAULO MENDESDA DAROCHA
ROCHA

A N OASN O S

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