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IV Simpósio Nacional de Grupos Colaborativos e de Aprendizagem do Professor que ensina Matemática

IV Jornada de Estudos do GEEM


25 e 26/04/2018
Vitória da Conquista/Ba
http://2018.geem.mat.br

DESCOLONIZANDO A MATEMÁTICA DO ENSINO FUNDAMENTAL NA


PERSPECTIVA DA LEI 10639/2003
Getúlio Rocha Silva 1

Resumo
O trabalho se assenta numa perspectiva descolonizadora, apresentando a Matemática
como legado de culturas distintas. Pretende colaborar para a efetiva implementação da
Lei 10639/2003 no âmbito da Educação Matemática do nível Fundamental. Apresenta,
inicialmente, duas perspectivas divergentes sobre o que pode ser considerado a gênese
da Matemática. Indica que parte dos historiadores da Matemática oferecem narrativas
totalitárias e escolhem comportamentos desejados para ressaltar a cultura europeia. O
alicerce teórico é a concepção D’Ambrosiana de Etnomatemática que defende a
existências de técnicas distintas de matemáticas e que a Matemática escolar foi
padronizada por meio de normalizações culturais. Por fim, são aprestados
conhecimentos matemáticos africanos registrados em papiros e em ossos. Também são
indicados alguns matemáticos gregos que estudaram na África.
Palavras-chave: Descolonização.Lei10639/2003. Etnomatemática. Matemática africana

Considerações iniciais e justificativa


O escopo deste trabalho é cooperar para a efetiva implementação da Lei
10639/2003 2 no âmbito da Educação Matemática (EM), defendendo que no ensino
Fundamental (EF) os conhecimentos matemáticos sejam retratados como pluriculturais,
como legado de diversas culturas (FORDE, 2008, p. 224). Esta lei motiva docentes de
todas as áreas a investigarem as contribuições dos africanos e dos afrodiaspóricos para
as ciências. Contudo, apesar do Ministério da Educação ter reconhecido que a
pluralidade de etnias que existem no Brasil desafia a EM a contribuir para a valorização
da pluralidade sociocultural, as iniciativas nesse sentido ainda são tímidas (SILVA ET
AL, 2017, p. 178). O alicerce teórico se apoia na perspectiva da descolonização
epistemológica e na concepção D’Ambrosina de Etnomatemática. É inegável que esta
vertente da EM assume um papel político ao fomentar uma sociedade na qual as
diferenças socioculturais entre os indivíduos não produzam processos educacionais
desigualadores e que desvalorizam as identidades dos grupos marginalizados.

1
Mestre em Cultura e Sociedade(UFBA). Membro do NIPEDICMT/UFBA. Professor do IFBA, Campus Brumado.
Sócio da ABPN e da SBEM. Contato: getulio.silva@ifba.edu.br
2
Fruto de lutas antirracistas dos movimentos sociais negros, a Lei 10639, publicada em 10/01/200 alterou o artigo 26
da LDB 9394/1996, tornando obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileiras em todos os componentes
curriculares na Educação Básica pública e privada.

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Geralmente, são apresentados entendimentos distintos sobre a gênese da


Matemática. Historiadores como Boyer e Eves, por exemplo, relatam a existência de
técnicas matemáticas desde os primórdios da humanidade, destacando sobretudo, a
importância de regiões como a China, a Índia, o Egito e a Mesopotâmia para o início do
desenvolvimento do raciocínio matemático. Contudo, corroborando Fossa (2004), esses
historiadores classificam esta fase inicial como proto-matemática 3, como
conhecimentos utilitários que se assemelham à Matemática, mas que, efetivamente não
os são. O próprio Fossa indica que os etnomatemáticos e os historiadores
contemporâneos desta ciência contestam esse posicionamento argumentando que a
matemática nasceu com o homem e que existem diversos artefatos pré-históricos que
indicam usos de contagens (FOSSA, 2004, p. 01).
Em vista disso, os etnomatemáticos defendem que, na instituição escolar, o que
se considera como Matemática é apenas uma parte de um amplo e heterogênico grupo
de estratégias matemáticas que foi imposta por meio de processos de normalização
cultural4, como a Matemática padrão. Para D’Ambrosio essa Matemática que foi
padronizada é também uma Etnomatemática que se desenvolveu na Europa
mediterrânea e que chegou à forma atual nos séculos XVI e XVII e a partir de então,
adquiriu caráter de universalidade, devido ao predomínio da ciência e tecnologia
modernas (D’AMBROSIO, 2005(b), p. 114). Assim, os etnomatemáticos têm uma visão
diferente do papel desempenhado pela Ciência Ocidental na estruturação da visão
dominante do mundo e defendem que a Matemática escolar possui marcas de
eurocentrismo, de branquidade, da classe média, de masculidade (WALKDERDINE;
FRANKENSTEIN e ARTHUR POWELL APUD KNIJNIK, 2000, p. 18). Tais
características apontam para a valorização da identidade do sujeito universal e normal:
homem, adulto, ocidental, branco, heterossexual, urbano e cristão (LOURO, 2000, p. 9).
Fossa afirmou ainda, que apesar das evidências apresentadas pelos
etnomatemáticos e pelos historiadores, muitos matemáticos, inclusive ele, rejeitam essas
teorias (FOSSA, 2004, p. 02). Não obstante, é necessário advertir que existem narrativas
históricas concebidas como verdades únicas e totalitárias. Escolhem comportamentos
matemáticos desejados e produzidos por uma civilização que que se apresenta como

3
Atividades práticas que possibilitaram o surgimento da Matemática, mantendo com esta ciência, relações estritas,
mas que, não são essencialmente Matemática por não gozarem de estrutura axiomática (FOSSA, 2004, p.03).
4
Normalizar significa eleger – arbitrariamente - uma identidade específica como o parâmetro em relação ao qual as
outras identidades são avaliadas e hierarquizadas. (SILVA, 2009)

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superior às demais (FORDE, 2008, p. 220). Igualmente, é preciso ressaltar que o


desenvolvimento social e cultural dos diversos grupos humanos ocorreu de formas
distintas 5, assim,
Desde os tempos pré-históricos, os humanos acumularam conhecimentos
para responder a suas necessidades e seus desejos. Essas respostas
dependiam, em grande medida, das regiões e das culturas. Assim, os povos
das florestas elaboraram meios de medir terrenos diferentes daqueles povos
das pradarias, e, portanto, desenvolveram geo-metrias (medida da terra)
diferentes. Aqueles que viviam nas proximidades da linha do equador
percebiam dias e noites de mesma duração durante todo o ano, enquanto os
que viviam além dos trópicos eram testemunhas do efeito das estações sobre
a duração dos dias e das noites (D’AMBROSIO, 2005, p.06).

Dessa perspectiva, os posicionamentos de Fossa e dos historiadores


mencionados reforçam o discurso da normalização cultural e valorizam a identidade do
sujeito universal e normal. Tal postura não contribui para uma adequada apresentação
das técnicas matemáticas africanas aos estudantes porque se colocam sob a ótica da
cultura europeia. É preciso compreender que o colonialismo europeu tenta destituir a
integridade, a racionalidade e até mesmo a humanidade dos africanos. No processo de
colonização mundial eles trataram de modo arrogante todas as culturas e consideraram a
modernidade e a racionalidade como produtos exclusivamente seus (QUIJANO, 2005,
p. 122). Também é importante destacar que no processo histórico houve um esforço
epistemológico que urdiu um discurso que separou, no terreno cultural, o Egito e os
demais países norte-africanos da África (GORDON, 2016, p. 454). As representações
televisivas reforçam isso, contudo, o polímata senegalês Cheikh Anta Diop provou que
os antigos faraós egípcios eram negros (MACHADO ET AL, 2017, p. 119).

Algumas estratégias matemáticas africanas


Grande parte do que sabemos sobre a Matemática egípcia foi preservada
devido aos papiros. O papiro de Ahmes (ou de Rhind) apresenta 85 problemas; o de
Moscou, 25; e o de Cairo, 40. Os problemas envolvem multiplicação; divisão;
proporção; resolução de problemas pelo método da falsa posição; semelhanças de
triângulos; cotangente de ângulo diedro; problemas de progressões aritmética e
geométrica; teorema de Pitágoras (EVES, 2004, 75-87); volume do tronco de pirâmides,
etc. Além dos papiros, a Matemática africana foi revelada por dois ossos. O osso de

5
A defesa de que as culturas se desenvolveram de formas distintas não implica em defender o relativismo cultural.

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Ishango (c. de 25000 anos. Descoberto em 1950) tem 10 cm de comprimento e


apresenta sistemas numéricos distintos e demonstra a perspicácia matemática dos
africanos (HUYLEBROUCK, 2005, p. 42-45). O osso de Lebombo (c. 35000 a.C.,
encontrado em 1970) é considerado o artefato matemático mais antigo (MACHADO ET
AL, 2017, p. 37). Os ossos ratificam argumentos da existência de atividades
matemáticas de povos africanos antigos também na África subsaariana, permitindo-nos
afirmar que a África é o berço da Matemática (HUYLEBROUCK, 2005, p. 42-45).
Também na África, surgiram os primeiros calendários e foram inventados os fractais e o
sistema numérico binário (MACHADO ET AL, 2017, p. 40). Lá existem centenas de
outros sistemas de numeração com bases 5, 10, 20, etc. Alguns dos sistemas são
simbólicos, outros falados. Os egípcios criaram as pirâmides, ainda consideradas
importantes obras arquitetônicas. Eles possuíam símbolos matemáticos para a adição,
para a subtração, para a incógnita e para a igualdade (EVES, 2004, p. 74) e também
representavam frações (GERDES, 2014, p. 111). O triângulo de Pascal já era popular na
África 4 séculos antes de Blaise Pascal (1623-1662) (Ibidem, p. 113). Os africanos
também inventaram os primeiros jogos de tabuleiro do mundo: mancala e o senet. Sabe-
se também que 1700 anos antes de Arquimedes, calcularam a área de superfície de um
hemisfério e volumes de cilindros com um valor bastante preciso de Pi. A forma egípcia
de calcular a área do círculo foi um dos maiores sucessos da época (BOYER, 1991, p.
17).
Apesar dos registros sobre Pitágoras serem pouco confiáveis e baseados na
tradição (BOYER, 2002, p. 31), autores defendem que ele morou e estou no Egito por
22 anos. Além dele, outros matemáticos gregos estudaram na África: Arquimedes (287–
212 a.C.), Aristóteles (384 -322 a.C.), Platão (427- 347 a. C.), Tales de Mileto (c. 546
a.C.), Euclides (c. 300 a.C.), Apolônio (262 -190 a.C.) e Hiparco (180 -125 a. C.). Esses
filósofos estudaram em Alexandria, considerada uma colônia grega no Egito. Contudo,
não se pode desconsiderar que lá “se encontravam condições preexistentes para o bom
aprimoramento intelectual e científico na época” (FORDE, 2008, p. 19).

Considerações finais
Espera-se que o texto suscite debates e que estes contribuam tanto com a
formação continuada dos professores da Educação Básica que estarão presentes no IV
SNGC bem como para a qualificação deste projeto e que seja um motivador para que os

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docentes implementem a Lei 10639/2003 em suas aulas e reconheçam que “muito mais
que incluir trazendo de fora, urge problematizar os silêncios e as ausências produzidas”
(FORDE, 2008, p. 76) pelo colonialismo sobre os conhecimentos matemáticos
africanos.

Referências
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Trad. Elza F. Gomide. São Paulo: Edgard Blücher, 2002. 4ª reimpressão.
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