Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Ninguém fala de Deus nas escolas. Maldita foi a hora que deixamos os
professores educarem no lugar de pastores. 1
1
As seções desse texto são precedidas por recortes de respostas de licenciandes em matemática de
instituições públicas fluminenses a um instrumento de produção de dados, desenvolvido no Grupo de
Pesquisa MatematiQueer para investigar suas percepções sobre a importância de oportunizar, em aulas
de matemática na educação básica e na formação docente, discussões sobre diversidade de gênero e
sexual. Mais detalhes sobre esta pesquisa estão em Waise (2021).
62 POR UMA VIRADA SOCIOPOLÍTICA: A IMPORTÂNCIA DA DISCUSSÃO SOBRE GÊNEROS E SEXUALIDADES NAS AULAS E NA PESQUISA EM (EDUCAÇÃO) MATEMÁTICA
de aula. No entanto, a pesquisadora aponta que a maioria ainda resiste e não
está disposta a reconhecer a não neutralidade no ensino e na aprendizagem de
matemática. Desse modo, ela nos diz que:
2
Referimo-nos às minorias tomando como referência às ciências sociais, que as compreendem como
parcelas da sociedade que são sistematicamente marginalizadas. Desse modo, as minorias não são
necessariamente do ponto de vista quantitativo, mas do ponto de vista político.
Apenas o mundo dos gays é gay. O mundo gay não é e nunca será aceito.
É apenas tolerado minimamente. Mas os gays querem destruir o mundo hetero
para que seu mundo gay seja o único. Se os gays querem que o mundo hetero os
aceitem, comecem aprendendo que o mundo hetero é hetero e ser hetero significa
simultaneamente ser normal e rejeitar quem gosta de mesmo sexo.
3
Apresentações transmitidas virtualmente em tempo real, frequentes durante a pandemia da covid-19.
4
Assista em https://www.youtube.com/watch?v=wsDg7HBiqMU.
64 POR UMA VIRADA SOCIOPOLÍTICA: A IMPORTÂNCIA DA DISCUSSÃO SOBRE GÊNEROS E SEXUALIDADES NAS AULAS E NA PESQUISA EM (EDUCAÇÃO) MATEMÁTICA
Desde o início do século XX, as lutas pelos direitos das mulheres se
tornaram presentes nos países ocidentais. A partir do final dos anos 1960, se viu
um início de sistematização de movimentos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis
e transexuais em países como Estados Unidos e Brasil (TREVISAN, 2018). Tais
movimentos ressoaram na educação brasileira, sobretudo a partir do final dos
anos 1990, em que, por meio dos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL,
1998), a educação em gêneros e sexualidades se tornou tema transversal em todo
o currículo da Educação Básica.
Segundo Louro (2000, p. 38), “a(s) sexualidade(s) e o gênero estão, mais
do que nunca, no centro dos discursos; estão a deixar o silêncio e o segredo e,
por bem ou por mal, estão a provocar ruído, a fazer barulho e a fazer falar”. No
entanto, percebemos que esse ímpeto de fala ainda está abafado na Educação
Matemática, ou seja, faz-se necessário um irrompimento de manifestações por
meio da apresentação dessas temáticas em eventos, projetos e linhas de pesquisa
nos programas de pós-graduação, para que se faça frente ao discurso dominante
e vá ao encontro de uma virada sociopolítica.
Pesquisas já têm demonstrado a necessidade de desconstruir ambientes
acadêmicos e educacionais na Educação Matemática em relação ao patriarcalismo
e machismo característico (e.g. BARBOSA, 2016). Contudo, investigações em
Educação Matemática em relação às minorias sociais ainda é um campo em
aberto quando olhamos para o recorte das sexualidades, ou mesmo do gênero,
que não tem considerado pessoas transexuais nas pesquisas da área, por exemplo.
Ou seja, não há um dimensionamento da relação entre orientação sexual e
identidades de gênero outras e os possíveis impactos nos processos de ensino
e de aprendizagem. Em relação à área da Educação, César (2009) nos diz que:
5
Em relação as normas socialmente estabelecidas para gênero e sexualidade, as chamamos de cis-
heteronormas, pois a norma em relação ao gênero, na nossa sociedade, é “ser cis, e não trans” e “ser
heterossexual”.
66 POR UMA VIRADA SOCIOPOLÍTICA: A IMPORTÂNCIA DA DISCUSSÃO SOBRE GÊNEROS E SEXUALIDADES NAS AULAS E NA PESQUISA EM (EDUCAÇÃO) MATEMÁTICA
estabelece uma pedagogia do insulto, na qual:
68 POR UMA VIRADA SOCIOPOLÍTICA: A IMPORTÂNCIA DA DISCUSSÃO SOBRE GÊNEROS E SEXUALIDADES NAS AULAS E NA PESQUISA EM (EDUCAÇÃO) MATEMÁTICA
Observemos o trecho abaixo, que pertence a uma dissertação de
mestrado.
Elabore as resoluções:
1. Marina tem 5 blusas e 2 saias. De quantos modos diferentes ela pode
se vestir com essas roupas?
70 POR UMA VIRADA SOCIOPOLÍTICA: A IMPORTÂNCIA DA DISCUSSÃO SOBRE GÊNEROS E SEXUALIDADES NAS AULAS E NA PESQUISA EM (EDUCAÇÃO) MATEMÁTICA
passo que o próprio currículo de matemática pode exercer esse poder enquanto
violência simbólica ao corroborar as visões homogeneizantes em relação às
minorias sociais que integram as salas de aula. Desse modo, precisamos alinhar
as perspectivas de uma virada sociopolítica na área de pesquisa com uma postura
que abarque as questões de gênero e sexualidades nas atuações docentes nos
diversos níveis de ensino.
Com o objetivo de enfrentar essa situação, defendemos que o primeiro
passo seja o conhecimento e a difusão dos marcos legais que preconizam a
educação em gêneros e sexualidades no Brasil. Para tanto, na próxima seção,
nos ateremos a apresentar alguns desses marcos nos quais as redes de ensino e
professories podem se assegurar para fazer frente ao aparato ideológico em que
o Estado brasileiro se vê atualmente6 no que tange ao Governo. Cada uma dessas
legislações merece um olhar aprofundado, mas nosso interesse nesse trabalho
é apenas demarcar quais são os meios legais que sustentam uma atuação
educacional para a diferença nesse recorte que fazemos.
6
O texto foi escrito em junho de 2021, durante o Governo Bolsonaro e sua pauta conservadora.
72 POR UMA VIRADA SOCIOPOLÍTICA: A IMPORTÂNCIA DA DISCUSSÃO SOBRE GÊNEROS E SEXUALIDADES NAS AULAS E NA PESQUISA EM (EDUCAÇÃO) MATEMÁTICA
outras questões polêmicas. Pretende contribuir para a superação
de tabus e preconceitos ainda arraigados no contexto sociocultural
brasileiro. (BRASIL, 1997, p. 287)
Dessa forma, vemos que uma educação que vise às questões de gêneros
e sexualidades já está demarcada em orientações curriculares nacionais desde a
segunda metade dos anos 1990. Porém, até hoje, consideramos essa educação
um tabu a ser quebrado nos ambientes educacionais e, pensando na Educação
Matemática, isso se torna ainda mais desafiador.
Em 2004, foi criado o Programa Brasil sem Homofobia pelo Conselho
Nacional de Combate à Discriminação.
O programa conta com nove eixos de ações, entre elas está o “Direito
à Educação: promovendo valores de respeito à paz e à não-discriminação por
orientação sexual”, o qual tem como foco
74 POR UMA VIRADA SOCIOPOLÍTICA: A IMPORTÂNCIA DA DISCUSSÃO SOBRE GÊNEROS E SEXUALIDADES NAS AULAS E NA PESQUISA EM (EDUCAÇÃO) MATEMÁTICA
de professores e a criação de materiais de apoio e revisão dos parâmetros de
avaliação dos livros didáticos.
Já em 2007, foi dado outro passo muito importante com a criação do
Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH), o qual abrange a
educação básica, superior, não formal e a dos profissionais dos sistemas de justiça
e segurança. O PNEDH corrobora os termos firmados anteriormente no Programa
Mundial de Educação em Direitos Humanos, o qual afirma que a educação
contribui para:
Contudo, fazemos uma crítica à forma como a Lei pode ser implementada,
ao utilizar o bullying como meio para não adentrar nas discussões de forma mais
profunda em relação às especificidades de cada caso, por exemplo, racismo,
homofobia, misoginia, transfobia, gordofobia, capacitismo, entre outros.
Em 2015, foi publicada a Resolução nº 12 pelo Conselho Nacional de
Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT), na qual, se amparando no Programa Brasil
sem Homofobia, no Plano Nacional de Promoção da Cidadania e dos Direitos
Humanos de LGBT, no Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH3 e no
Plano Nacional de Políticas paras as Mulheres, se diz que:
[...]
Art. 6° Deve ser garantido o uso de banheiros, vestiários e demais espaços
segregados por gênero, quando houver, de acordo com a identidade
de gênero de cada sujeito. (CONSELHO NACIONAL DE COMBATE À
DISCRIMINAÇÃO E PROMOÇÕES DOS DIREITOS DE LÉSBICAS, GAYS,
TRAVESTIS E TRANSEXUAIS, 2015, p. 2)
76 POR UMA VIRADA SOCIOPOLÍTICA: A IMPORTÂNCIA DA DISCUSSÃO SOBRE GÊNEROS E SEXUALIDADES NAS AULAS E NA PESQUISA EM (EDUCAÇÃO) MATEMÁTICA
estabelecer no poder em 2019.
Foi nesse ambiente de retrocesso social em que foi lançada a Base Nacional
Comum Curricular (BNCC) em 2018, documento que passa a orientar o currículo
da Educação Básica do país. Entendemos que esse retrocesso afetou o texto da
BNCC, ao passo que esta não mais evidencia situações e termos envolvendo
gêneros, orientação sexual ou identidade de gênero, não especificando questões
a serem enfrentadas, de forma contundente, dentro do currículo.
No entanto, percebemos pontos com os quais é possível trabalhar as
questões de gênero dentro da BNCC, uma vez que, em suas competências gerais
para a Educação Básica, é colocada a necessidade de:
[...]
7
Ver mais em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5206806.
8
Leia em https://www.manualdedefesadasescolas.org.br/
78 POR UMA VIRADA SOCIOPOLÍTICA: A IMPORTÂNCIA DA DISCUSSÃO SOBRE GÊNEROS E SEXUALIDADES NAS AULAS E NA PESQUISA EM (EDUCAÇÃO) MATEMÁTICA
Esperamos que, com essa breve explanação de alguns meios legais que
nos asseguram enquanto defensories das diversas subjetividades presentes nas
escolas, nos fortaleçamos como agentes de uma virada sociopolítica na Educação
Matemática.
Toda forma de respeito deve ser abordada nas salas de aulas. Pouca
coisa a gente carrega de fato para a vida. Se você chegar e perguntar para uma
pessoa mais velha, hoje, o que ela lembra de MMC e MDC, por exemplo, ela não
vai se recordar. Mas acredito que valores são eternos.
80 POR UMA VIRADA SOCIOPOLÍTICA: A IMPORTÂNCIA DA DISCUSSÃO SOBRE GÊNEROS E SEXUALIDADES NAS AULAS E NA PESQUISA EM (EDUCAÇÃO) MATEMÁTICA
CONSELHO NACIONAL DE COMBATE À DISCRIMINAÇÃO. Brasil Sem Homofobia:
Programa de combate à violência e à discriminação contra GLTB e promoção da
cidadania homossexual. Brasília: Ministério da Saúde, 2004.
GONÇALVES, E.; PINTO, J. P.; BORGES, L. S. Imagens que falam, silêncios que
organizam: sexualidade e marcas de homofobia em livros didáticos brasileiros.
Currículo sem Fronteiras, [s. l.], v. 13, n. 2, p. 35-61, jan./abr. 2013.
82 POR UMA VIRADA SOCIOPOLÍTICA: A IMPORTÂNCIA DA DISCUSSÃO SOBRE GÊNEROS E SEXUALIDADES NAS AULAS E NA PESQUISA EM (EDUCAÇÃO) MATEMÁTICA