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SILVA, Elvan. O inconcluso debate sobre a brasilidade arquitetônica. Arquitextos, São Paulo, ano 02, n.
021.01, Vitruvius, fev. 2002 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/02.021/807>.

Este periódico publicou, recentemente, o texto de Edson da Cunha Mahfuz intitulado “O sentido da
arquitetura moderna brasileira” (1), no qual, entre outras observações relevantes, o autor alude ao
desconhecimento que os arquitetos revelavam (e ainda revelam) sobre o significado e os verdadeiros
valores da arquitetura modernista brasileira das primeiras décadas do movimento (1930-60), e atribui
esse desconhecimento à “dificuldade histórica que os arquitetos sempre tiveram em considerar a
arquitetura como produção intelectual”. Complementando o raciocínio, Mahfuz chama atenção para o fato
de que, excetuando-se Lúcio Costa, nenhum dos componentes do grupo que produziu a melhor
arquitetura do período 1930-60 se dedicou à teoria. Ou seja, aquela arquitetura era produzida sem que
houvesse preocupação e/ou competência para articular o discurso textual que a explicasse, a
interpretasse, enfim, que a inserisse num sistema teórico-crítico mais amplo, que explicitasse seu sentido.
E sabemos que, entre os detratores da “vanguarda” arquitetônica tupiniquim, havia quem a refutasse
justamente por considerá-la desprovida de qualquer sentido ou vínculo com uma real ou hipotética
identidade nacional.

Não se pode aprofundar o estudo desta problemática sem mencionar José Marianno Carneiro da Cunha
Filho, infatigável batalhador em prol de uma arquitetura erudita de raízes autóctones. Embora não fosse
arquiteto (era médico), José Marianno era um entusiasta e presuntivo connoisseur da arte e da arquitetura
pré-republicana brasileira, e paladino do que designava como arquitetura tradicional brasileira –
duvidosamente chamada arquitetura neocolonial – , que esteve em voga no início do século XX. Aliás,
nosso crítico tinha sido diretor da antiga Escola Nacional de Belas Artes, estabelecimento onde eram
formados os arquitetos brasileiros, antes do advento das da Faculdade Nacional de Arquitetura, das
demais faculdades de arquitetura e dos cursos que preparavam os engenheiros-arquitetos no âmbito
politécnico. Não era um crítico anônimo, e publicou inúmeros artigos sobre arte e arquitetura entre 1920 e
1940.

Ao mesmo tempo em que defendia a arquitetura baseada em precedentes exclusivamente nacionais,


Marianno combatia energicamente, com um furor xenófobo, intolerante e reacionário, o que chamava de
sovietização da arquitetura. E isto provinha, entre outras coisas, pela alegada preocupação com a
redução de custos invocada como virtude da arquitetura modernista. No “estatuto“ da arquitetura
modernista, a economia da construção é tratada como elemento essencial, a partir de considerações tanto
estéticas quanto éticas, pois se cogitava de uma arquitetura de conteúdo social, numa perspectiva
generosa, que via na habitação comum o grande tema da atividade edificatória. Em 1925, Gregori
Warchavchik escrevia que “construir uma casa a mais cômoda e barata possível, eis o que deve
preocupar o arquiteto construtor da nossa época de pequeno capitalismo, onde a questão da economia
predomina sobre todas as demais)” (2). Em 1934, Gropius ainda fazia referência à economia como um
atributo da arquitetura contemporânea: “A libertação da arquitetura do caos decorativo, a ênfase nas
funções de suas partes estruturais, a busca de uma solução concisa e econômica, é apenas o lado
material do processo criativo do qual depende o valor prático da nova obra arquitetônica” (3).

Curiosamente, esta suposta busca da economia foi um dos pontos da arquitetura moderna mais criticados
por seus adversários. No Brasil, José Marianno Filho colocava a preocupação com a economia, atribuída
à teoria modernista, como um defeito:
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“Que razões especiais intervieram em favor daquilo que se chama inexpressiva­mente ‹arquitetura
moderna›, contra os estilos clássicos trabalhados pelos séculos? Razões de ordem exclusivamente
econômica. (...) Sob o pretexto irrisório, de que ela é mais barata, do que todas as outras, que lhe fazem
concorrência, os jovens arquitetos, que por comodismo, abraçaram o estilo caixa d'água, procuram por
todos os meios, empurra-lo ao governo, argumentando que ele é o mais conveniente, o mais útil, o mais
racional de todos os estilos arquitetônicos, vivos, mortos, antigos, e modernos. (...) Aos monumentos
públicos de arte arquitetônica não se exige mais que sejam belos, nobres, harmoniosos, ou grandiosos.
Deles, se exige unicamente que sejam econômicos.(...) O estilo caixa d'água, ou da miséria estilizada, só
tem uma utilidade prática, e essa mesma, contra a nação e a favor dos sabidórios oportunistas. É
baratíssima” (4).

Na realidade, essa arquitetura não era baratíssima. Tomemos como exemplo a construção da sede do
Ministério da Educação e Saúde. A prodigalidade nos gastos foi importante para sua execução. Como
resume Elizabeth Harris, “dois meses após o início da construção, o custo do edifício ultrapassou o
orçamento previsto, que fora subestimado. (...) Mas a astúcia política de [Gustavo] Capanema salvou o
edifício dos inquéritos de orçamento e das acusações de abrigar facções artísticas de esquerda no Brasil
(Harris, 1987:142, 168)” (5). Efetivamente, a obra exigiu gasto de divisas cambiais, pois cerca de 80% do
material de acabamento foram importados. Foi necessária a autoridade de Capanema para neutralizar as
críticas que se faziam à obra, dado o alto custo representado pela inovação. Getúlio Vargas, então ditador,
excluiu a obra do Ministério do sistema de auditoria de custos estabelecido pelo Estado Novo, o que,
obviamente, facilitou a tarefa de Capanema.

A monumentalidade da arquitetura de vanguarda brasileira estabeleceu um padrão, o da opulência, como


sinônimo de excelência. Este padrão foi definitivamente consagrado com Brasília e com a arquitetura da
burocracia estatal produzida durante o regime militar. Mas houve contestação: já em 1954 esta tendência
era criticada por Mário Barata: “O alto custo da arquitetura moderna, as freqüentes queixas de parte dos
que a utilizam; os defeitos quanto à conservação dos prédios, estão entre as causas da necessidade
premente de autocrítica séria e criteriosa” (6). Mas este aspecto é conseqüência da inclinação dos mais
notáveis arquitetos modernistas brasileiros da primeira geração em direção à monumentalidade. Este
atributo não é indispensável à excelência arquitetônica. Uma arquitetura que, em vez da visualidade,
privilegie a instrumentalidade e se preocupe com o baixo custo de execução, poderá ser uma arquitetura
de qualidade.

Mas a crítica de Marianno Filho não se restringia ao componente econômico; havia, em posição de
destaque, o argumento cultural e ideológico: “O aspecto mais grave da campanha comunista exercida por
intermédio da arquitetura judaica que se pretende impertinentemente impor ao Brasil, é que ela tem por
objetivo principal destruir o sentimento de tradição nacional, sob o irrisório pretexto de que o homem
moderno não pode mais suportar a arquitetura do passado” (7). Essa visão de uma ação conspiratória
seria, provavelmente, uma contradição à defesa que Lúcio Costa fazia da inevitabilidade da adesão ao
modernismo: “Deixemos, no entanto, de lado essa pseudo-arquitetura, cujo único interesse é o de
documentar, objetivamente, o incrível grau de imbecilidade a que chegamos – porque, ao lado dela existe,
já perfeitamente constituída em seus elementos fundamentais, em forma, disciplinada, toda uma nova
técnica construtiva, paradoxalmente ainda à espera da sociedade à qual, logicamente, deverá pertencer”
(8).

Marianno militava a favor de uma “brasilidade” arquitetônica, ainda que nutrisse pela expressão certa
reserva: “A expressão ‹brasilidade› entrou na poesia, atravessou a política, envenenou o jornalismo.
Passou depois a funcionar nos cemitérios” (9). Efetivamente, o vocábulo “brasilidade” tem um ranço de
oratória pseudo-cívica, adequada numa ordem-do-dia ou exortação proferida num quartel, durante uma
efeméride militar, sendo fácil compartilhar da resistência de Marianno. Mas, inequivocamente, o tema da
exigibilidade
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efeméride militar, sendo fácil compartilhar da resistênciade Marianno. Mas, inequivocamente, o tema da
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exigibilidade de uma identidade peculiar para a arquitetura de um país continental como o Brasil não é
irrelevante, e deve ser encarado. Mahfuz, no trabalho acima citado, fala do projeto moderno como uma
atividade totalizadora que sintetiza na forma os requisitos do programa, as sugestões do lugar e a
disciplina da construção. Ora, estas sugestões do lugar representaram e ainda representam um desafio
para a proposição arquitetônica. Marianno dizia que “Em arquitetura, ‹brasilidade› significa tradição
brasileira, o que vale dizer, correspondência íntima com os problemas mesológicos e sociais da própria
nacionalidade. Entretanto, só nós outros brasileiros sabemos distinguir a verdadeira ‹brasilidade›
arquitetônica da ‹brasilidade› postiça inventada pelos fazedores de tradição” (10). Esta questão constitui o
núcleo de uma polêmica inconclusa: modernidade arquitetônica é o mesmo que internacionalização
estilística? Muitos responderam e muitos continuam respondendo afirmativamente. A própria
denominação International Style traz este pressuposto. No Brasil, como em quase todos os países do
mundo, há uma considerável produção arquitetônica tendo como referência Chicago e New York, e há
muitos arquitetos learning from Las Vegas.

Contudo, a questão está impregnada de um paradoxo: Lúcio Costa, alvo preferencial de Marianno, que o
acusava de ter renegado sua antiga filiação à corrente nacionalista em prol de uma arquitetura douta com
raízes brasileiras, foi, na verdade, um prócer do esforço em conciliar os preceitos vanguardistas com as
sugestões do lugar; Na Enciclopédia GG de la arquitecura del siglo XX, no verbete “Brasil”, se lê:

“No âmbito local, [Lucio] Costa se destacava como o principal teórico do movimento brasileiro (…). Seu
ensaio Razões da nova arquitetura (1934-5) é considerado o manifesto inicial do Movimento Moderno no
Rio de Janeiro, inspirado no ideário de Le Corbusier. Porém, antes de ser somente um divulgador das
idéias do mestre, Costa foi sobretudo o autor intelectual de uma peculiar síntese entre o racionalismo
típico dos anos vinte e trinta de índole corbuseriana e as lições arquitetônicas insinuadas pela arquitetura
colonial brasileira. A formulação de uma arquitetura concebida com a dialética entre o passado
(arquitetura tradicional) e o presente (movimento moderno europeu), inspirou e modelou algumas
gerações de arquitetos brasileiros” (11).

Costa demonstrou, na teoria e na prática, que os ditames da modernidade arquitetônica alienígena não
eram incompatíveis com a identidade nacional. Sua adesão à doutrina modernista não significou
submissão ignóbil á um modismo estrangeiro. Quando estudamos a produção arquitetônica da fase
heróica do modernismo brasileiro, é impossível não ficarmos comovidos com aquela mescla de
ingenuidade com a coragem de ousar e de rejeitar uma fácil atitude de passividade provinciana. Mahfuz
observa que Costa foi o único naquele pugilo de atrevidos arquitetos a empreender um esforço teórico; se
houvesse outros, e se esses outros tivessem a necessária competência, é possível que as ações visando
outorgar sentido à arquitetura brasileira lograssem êxito mais ostensivo.

Ora, se a qualidade arquitetônica, como produto e testemunho da cultura, derivar daquele conteúdo
temático abstrato que identificamos como sentido, é forçoso constatar que o debate sobre o assunto está
inconcluso. O sentido da arquitetura não é o resultado da aplicação de um algoritmo. A fórmula “se atende
ao programa, é esteticamente válido” (utilitas+firmitas=venustas) é insuficiente para a produção de uma
arquitetura que não se contente em ser um modesto simulacro de máquina. A dimensão afetiva da
arquitetura, nos planos individual e social, implica no reconhecimento de uma identidade que, por ser
identidade, tem traços diferenciadores sugeridos pelo lugar, pela personalidade, pela história e pela
cultura.

Se retrocedermos a quarenta ou sessenta anos atrás, veremos que as ambigüidades da querela entre
Marianno Filho e Costa ainda não se dissolveram. Marianno opunha-se à vanguarda, não por ser
vanguarda, mas por ser o que reputava intromissão estrangeira indevida:

“Se
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“Se a nossa arquitetura serviu às gerações passadas, porque não a preparamos para servir à nossa
própria geração? O seu caráter tradicional vale por uma brilhante folha de serviços prestados à
nacionalidade. (…) As tentativas que se estão fazendo no Rio, e em São Paulo, no sentido de inventar, ou
descobrir uma fórmula arquitetônica sucedânea do nosso estilo tradicional, falharão fragorosamente,
porque os artistas empenhados nesse movimento se abstraem ingenuamente das verdadeiras
necessidades nacionais” (12).

A ambigüidade estava em ambos os lados. A despeito da síntese exitosa que Costa operou,
demonstrando ser inquestionavelmente viável uma arquitetura contemporânea com fisionomia brasileira, a
insistência em atribuir a Le Corbusier todo o mérito pela modernização da arquitetura cria uma irreal
aparência de subalterno servilismo: “E para levar a bom termo essa tarefa urgente, dever-se-á eleger –
sem desmerecimento para a contribuição de cada um dos mestres aos quais se deve decisivamente (da
pureza do Bauhaus e da elegância de Tugendhat, aos caprichos de Taliensin) a conquista do estilo da
nossa época – , a obra genial de Le Corbusier como fundamento doutrinário definitivo para a formação
profissional do arquiteto contemporâneo” (13).

Fundamento doutrinário definitivo? Convenhamos! A própria idéia de que a arquitetura é uma instituição
cultural e, ipso facto, modernizável, repele este conceito de fundamento doutrinário definitivo. A partir de
1930, arquitetos brasileiros têm aportado contributos para modernização da arquitetura – façanha difícil de
admitir em muitos círculos, porque nosso secular e colonial espírito de inferioridade crê que caipiras não
são capazes de inovar, estando condenados a copiar o que nos exportam do hemisfério norte.

Por outro lado, a propagação do dogma da infalibilidade de Le Corbusier certamente não facilitou a
formação de um genuíno espírito crítico, sem o qual a tarefa de perceber o sentido da arquitetura não se
consuma. Com isto, legitima-se a precedência concedida às “exigências do mercado” e à vulgaridade
decorativa.

Abstenho-me de demonizar os profissionais que, por todo o Brasil, revestem com a cosmetologia
pós-moderna edifícios de concepção dolorosamente banal. Aliás, a chamada “fachada compensatória”,
também a devemos à incapacidade atual de interpretar a “contribuição” que nos chega através dos
periódicos estrangeiros. Não obstante, na minha opinião, continua sendo o desafio principal das
faculdades de arquitetura a definição dos instrumentos e dos insumos da caracterização do sentido da
arquitetura contemporânea brasileira. Temos quase uma centena e meia de cursos de arquitetura, no
Brasil. Em tese, há uma abundância de cérebros aptos a se ocuparem do tema e discuti-lo em
profundidade. Nessas circunstâncias, aceitemos a proposta de Mahfuz e voltemos a olhar intensamente
para a produção da arquitetura brasileira realizada entre 1930 e 1960, e com esse olhar retomar o
caminho que nos leve outra vez a possuir uma arquitetura autêntica própria, forte o suficiente para
absorver as influências externas sem se deixar dominar por elas.

notas

1
MAHFUZ, Edson da Cunha. "O sentido da arquitetura moderna brasileira". Arquitextos n° 20.01. São
Paulo, Portal Vitruvius, janeiro de 2002 <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq020/arq020_01.asp>.

2
WARCHAWCHIK, Gregori. In XAVIER, Alberto. Depoimento de uma geração. São Paulo, Projeto, 1987, p.
25-6.

3
GROPIUS, Walter. Bauhaus: novarquitetura. São Paulo, Perspectiva, 1972, p. 98.
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GROPIUS, Walter. Bauhaus: novarquitetura. São
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/02.021/807 Paulo, Perspectiva, 1972, p. 98.

4
MARIANNO FILHO, José. À margem do problema arquitetônico nacional. Rio de Janeiro, Artes Gráficas,
1943, p. 16.

5
HARRIS, Elizabeth. Le Corbusier: riscos brasileiros. São Paulo, Projeto, 1987, p. 142; 168.

6
BARATA, Mario. in XAVIER, op. cit., p. 143.

7
MARIANNO FILHO, op. cit., p. 23.

8
COSTA, Lucio. Sobre arquitetura. Porto Alegre, Centro de Estudantes Universitários de Arquitetura, 1962,
p. 18.

9
MARIANNO FILHO, op. cit., p. 20.

10
Idem, ibidem.

11
LAMPUGNANI, Vittorio Magnano. Enciclopédia GG de la arquitectura del siglo XX. Barcelona, Gustavo
Gili. 1989, p. 83.

12
MARIANNO FILHO, op. cit., p. 67.

sobre o autor

Elvan Silva é arquiteto e professor de Teoria e Estética da Arquitetura da Faculdade de Arquitetura da


UFRGS.

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