Você está na página 1de 18

YVONNE MAGGIE

Uma nova
pedagogia
racial? YVONNE MAGGIE
é professora do
Departamento de
Antropologia Cultural
do Instituto de Filosofia
e Ciências Sociais (IFCS)
da UFRJ.

“BRASIL:
um país de grandes belezas,
de diversas raças e culturas,
misturadas harmoniosamente […]”
(aluna do primeiro ano do ensino médio, 2003).

“MOLEQUE NEGRO
Aquele moleque que sobrevive
Como manda o dia-a-dia
Tá na correria como vive a maioria negra desde a nascença
E escuro se sou eu tô pra ver ali igual
Conhece uma pá de alucinado
Toda raça negra, como eu sou
A meta dele é acabar com o ponto final
A injustiça contra os negros, os pobres e o marginal
Se liga meu irmão no que eu tenho a lhe dizer
O racismo tá com nada, você tem que pagar pra ver
Agora meu irmão eu vou falar eu sou negro com muito orgulho
Cala a oca [boca] chara [cara]”
(aluno do primeiro ano do ensino médio, 2005).
O s dois poemas que abrem este artigo
foram escritos por alunos de uma
escola estadual do Rio de Janeiro. O primeiro,
de 2003, resultou de um concurso promovido
por uma fábrica de automóveis. Já os versos
do segundo, de 2005, foram feitos nas aulas
de Atividade Complementar (Aticom)1 nas quais
estão sendo introduzidas as Diretrizes Nacionais
Curriculares para a Educação das Relações Étni-
1 Atividade Complementar é
co-Raciais e para o Ensino da História e Cultura uma matéria para “preencher”
o horário da grade escolar.
Afro-Brasileira e Africana. A escola faz parte A escola possui 26 turmas
(12 de primeiro ano, 8 do
do universo da pesquisa sobre o impacto de segundo ano e 6 do terceiro
ano) e todas elas possuem ao
menos um tempo de Aticom e
políticas públicas em escolas de ensino médio o que seria o ensino religioso.
Dessa forma, todos os alunos
do Rio de Janeiro que venho realizando desde são contemplados com pelo
menos dois tempos semanais
agosto de 2004. de atividades relacionadas
ao projeto “Mitos e Tabus na
A pesquisa realizada em escolas do Rio de Cultura Afro-Brasileira”. Seja
através das aulas de História
da Cultura Afro-brasileira, seja
Janeiro se insere em um projeto maior – “Acom- através das atividades de
educação artística ou trabalhos
panhando as Ações Afirmativas no Ensino Supe- e leituras feitos nas aulas com a
professora Lídia, que trabalha
rior”2 – e mobilizou 20 estudantes de graduação no tempo do que seria o ensino
religioso. Aticom e ensino reli-
e pós-graduação que empreenderam 16 estudos gioso estão sempre seguidos um
do outro e aparecem na maior
parte das turmas nos dois últimos
de caso em escolas da rede estadual escolhidas tempos da grade horária e antes
do recreio ou nos dois últimos
entre as que foram classificadas com os piores tempos de aula.

indicadores a partir da avaliação do Programa 2 A pesquisa em âmbito nacional


é financiada pela Fundação
Ford, CNPq e Faperj e coor-
Nova Escola3. Além desses casos selecionamos denada por Antonio Sergio
Guimarães (USP), Jocélio dos
duas escolas da rede com bons índices para Santos (UFBA), Peter Fry (UFRJ)
e Yvonne Maggie. A Secretaria
efeito comparativo. Incluímos também uma es- de Educação do Estado do Rio
de Janeiro também financia e
cola da rede federal que tem sido bem avaliada apóia parte desse projeto de
acompanhamento de políticas
públicas implantadas no estado
pelos indicadores de proficiência e repetência desde agosto de 2004.

e uma escola da rede privada considerada uma 3 O Nova Escola é um programa


de avaliação feito pela Secreta-
boa escola. Estas duas últimas localizadas em ria de Educação do Estado do
Rio de Janeiro nas escolas da
rede e mede, por amostragem,
bairros mais abastados da cidade. As escolas a proficiência dos estudantes em
matemática e português, o fluxo
pesquisadas foram escolhidas de forma a re- dos alunos no sistema (repetên-
cia e evasão) e a gestão escolar.
presentarem o universo das escolas urbanas Esses indicadores servem para
hierarquizar as escolas em
do estado e também pela facilidade de acesso. quatro níveis. Os professores
recebem gratificações anuais
conforme o nível em que sua
Muitos dos pesquisadores estudaram nessas escola foi classificada.

escolas localizadas em bairros pobres, em si-


médio das escolas pesquisadas como um
pré-teste para o levantamento iniciado em
novembro de 2005.
Nossa proposta neste artigo é descrever
uma outra dimensão daquilo que foi cha-
mado por Marcos Chor Maio e Ricardo
Ventura Santos (2005) de “uma pedagogia
racial” ao analisarem o vestibular da UnB
de 2004, em que se adotou pela primeira
vez o sistema de cotas raciais no qual se
atribuiu a identidade das pessoas através
de fotografia. “O vestibular da UnB trans-
formou-se em uma espécie de ‘pedagogia
racial’, de conversão indentitária de pardos e
pretos em ‘negros’, culminando no trabalho
4 Esses questionários serviram
de pré-teste e foram aplicados
da comissão encarregada de identificar os
pelos pesquisadores em algu- ‘verdadeiros’ beneficiários das cotas” (Maio
mas das escolas pesquisadas.
Não podemos fazer inferên- & Santos, 2005, p. 193)5.
cias precisas porque não foi Os autores descrevem as etapas desse
feita uma amostra com o rigor
necessário. O questionário processo. A primeira, conduzida por uma
aplicado em 2005 foi feito
em uma amostragem por cota “espécie de equipe de anatomia racial”, ana-
nessas escolas. Mas o pré-teste lisando as fotografias, decide quem é negro
nos ajudou a reformular as
perguntas. A aplicação foi feita e quem não é. A segunda, composta por um
em sala de aula. Os pesquisa-
dores escolheram uma sala do
tipo de comitê de “psicologia racial”, esco-
primeiro ano do ensino médio lhe, a partir de uma entrevista, aqueles que
e distribuíram os questionários
que foram respondidos pelos merecem ter essa identidade reafirmada6.
alunos. Estes estavam estimu- O comitê, ou “tribunal racial”, é composto
lados a respondê-los porque
os pesquisadores estavam ao por uma estudante e três representantes do
longo do semestre em estreito
contato com a escola, com Movimento Negro, além de um sociólogo
sua turma e seus professores. e um antropólogo. Segundo Dione Moura,
De todas as perguntas, a mais
problemática foi a referente professora da UnB, o citado comitê teria
à cor do entrevistado. Os
estudantes ficaram surpresos tuação de risco ou mesmo em bairros ricos, que “olhar com os olhos da sociedade para
com a pergunta, que foi for- mas freqüentadas por jovens moradores beneficiar quem realmente deve participar
mulada como o faz o censo
nacional. Alguns se recusaram de favelas próximas. A pesquisa buscou do sistema [de cotas]” (Afonso, 2004 apud
a respondê-la, outros afirmavam
também, através de um levantamento quan- Santos & Maio, 2005). Mas, além desses
que não existe raça, e final-
mente uma das respondentes, titativo, mapear o universo pesquisado. O “olhos da sociedade” e desse “filtro social”,
negando-se a escolher entre
as respostas possíveis, disse objetivo do levantamento era descrever a a comissão, que julga quem tem o direito
que pertencia à raça humana. relação dos estudantes com a escola; o seu de ser negro no vestibular de cotas da UnB,
Diante disso, no questionário
aplicado em 2005, fizemos percurso na escola e os seus projetos futu- legitima-se através da autoridade da ciência
a mesma pergunta, mas colo-
camos um espaço para que o ros; suas percepções sobre o que é uma boa com a presença de um antropólogo.
entrevistador descrevesse em aula; sobre se tinham sofrido preconceito de O vestibular da UnB, tão bem descrito
poucas palavras a reação do
respondente. algum tipo; sobre se tinham conhecimento pelos autores, e que funciona até hoje nos
5 Agradecemos a Ricardo Ventura das cotas ou reserva de vagas para estudantes mesmos moldes, é um caso limite e tem um
Santos, Peter Fry, Marcos Chor negros, pobres, estudantes de escolas públi- caráter de “exemplaridade” de “vitrine” e
Maio e Lilia Schwarcz pelas
sugestões e comentários que cas e deficientes físicos no ensino superior e uma das peças de engenharia racial que se
fizeram ao texto em sua versão
original, mas me responsabilizo o que achavam dessa política; sobre o perfil implantou no país a partir da participação
integralmente pelas idéias aqui dos estudantes por “raça”, idade, sexo, série do Brasil na III Conferência Mundial das
expostas.
e trabalho; finalmente a posição socioeco- Nações Unidas de Combate ao Racismo,
6 Cada uma dessas comissões é
composta por pessoas distintas. nômica dos respondentes. Os questionários Discriminação Racial, Xenofobia e Into-
Para uma descrição mais acu- foram aplicados em dezembro de 2004 a lerância Correlata em 2001 em Durban
rada de todo o processo ver:
Maio & Ventura, 2005. 1794 estudantes do primeiro ano do ensino (África do Sul).

114 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 112-129, dezembro/fevereiro 2005-2006


Nossa hipótese neste trabalho é de que um primeiro parágrafo a tônica ou a ênfase
as Diretrizes Curriculares Nacionais para que estava sendo dada, na época, à questão
a Educação das Relações Étnico-Raciais e do combate ao racismo:
para o Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana7 são uma outra dimen- “A formação cultural do Brasil se carac-
são desse processo de conversão identitária teriza pela fusão de etnias e culturas, pela
de pardos e pretos, morenos, escuros e a contínua ocupação de diferentes regiões
miríade de outras categorias em “negros”. geográficas, pela diversidade de fisionomias
Se o caso do “tribunal racial” da UnB e paisagens e também pela multiplicidade
produziu um debate e o pronunciamento de de visões sobre miscigenação em sentido
várias entidades científicas além de muitos amplo, algumas ainda presas à desinfor-
antropólogos e cientistas8, as Diretrizes, mação e ao preconceito. Esse caldo de
aprovadas por uma comissão de especialistas cultura muitas vezes gera atritos e conflitos
composta por educadores de renome, produ- em casa, na rua, no trabalho e na escola.
ziram pouco debate a não ser por algumas Para preencher o vazio da desinformação e
vozes isoladas como as de José Roberto Pinto corrigir a distorção de valores que encerra,
de Góes (2004) e Peter Fry (2005). o Ministro da Educação publica este Supe-
rando o Racismo na Escola” (in Munanga,
2005, p. 7 – grifos meus).

UMA MICRO-HISTÓRIA DAS O ministro Paulo Renato fala sobre o


país misturado, no “caldo de cultura”, en-
MUDANÇAS PRODUZIDAS NAS fatizando um país miscigenado.
No ano seguinte, em prefácio à segunda
CONCEPÇÕES SOBRE O TEMA E edição, o presidente Fernando Henrique
Cardoso dá continuidade à fala do ministro:
SUAS RELAÇÕES COM O APARATO “Racismo e ignorância caminham sempre
de mãos dadas. Os estereótipos e as idéias
BUROCRÁTICO DO ESTADO preconcebidas vicejam se está ausente a
informação, se falta o diálogo aberto, areja-
Tanto as Diretrizes quanto as chamadas do, transparente” e continua: “É obrigação
ações afirmativas têm uma história na sua do Estado a proteção das manifestações
intrincada relação com o aparato burocrático culturais das culturas populares, indígenas
do Estado. Passamos agora a descrever um e afro-brasileiras, bem como dos demais
dos níveis dessa micro-história. grupos participantes do nosso processo ci-
Em 1999 o Ministério da Educação vilizatório. Essa obrigação deve refletir-se
publicou o livro Superando o Racismo na também na educação”. Também diz que:
Escola, uma coletânea organizada pelo an- “A sociedade brasileira tem razões de sobra
tropólogo Kabengele Munanga (2005) que para se preocupar com estas questões. Nossa
reúne trabalhos de 14 professores, estudiosos formação nacional tem como característica
das relações raciais e ativistas do Movimen- peculiar a convivência e a mescla de diver-
to Negro sobre o racismo nas escolas, seus sas etnias e diferenças raciais”. Termina
efeitos e modos de combatê-lo. O livro visa informando que: “A superação do racismo 7 As Diretrizes foram exara-
a auxiliar mestres e gestores na difícil tarefa ainda presente em nossa sociedade é um das em documento aprovado
pelo Conselho Nacional de
de enfrentar o racismo nas escolas. imperativo. É uma necessidade moral e Educação através do Pare-
cer CP 3/2004, Processo
A primeira edição veio prefaciada pelo uma tarefa política de primeira grandeza. 23001.000215/2002-96
então ministro Paulo Renato Souza, em cuja E a educação é um dos terrenos decisivos aprovado em sessão do CNE
em março de 2003. De agora
gestão foram elaborados os parâmetros cur- para que sejamos vitoriosos nesse esforço” em diante nos referiremos a elas
riculares nacionais que propunham temas (in Munanga, 2005, pp. 9-10). como Diretrizes.

transversais às disciplinas. O prefácio de O presidente Fernando Henrique é am- 8 Ver sobre isso: Horizontes
Antropológicos, ano 11, n.
Paulo Renato, escrito em 1999, define em bíguo na sua mensagem: embora fale de 23, janeiro-junho de 2005.

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 112-129, dezembro/fevereiro 2005-2006 115


mescla de etnias, frisa a multirracialidade leitor a enfrentar “sem nenhum complexo
da nossa sociedade. Assim, seu discurso de culpa […] que somos produtos de uma
indica que o caminho para a superação do educação eurocêntrica”. Logo em seguida
racismo está na admissão de uma sociedade diz que
multirracial e não mais misturada.
Cinco anos depois, em pleno governo “[…] alguns professores, por falta de pre-
Luiz Inácio Lula da Silva, sai a terceira paro ou por preconceitos neles introjetados,
edição do mesmíssimo livro, dessa vez pre- não sabem lançar mão das situações flagran-
faciado por Ricardo Henriques, secretário tes de discriminação no espaço escolar e na
de Educação Continuada, Alfabetização sala de aula como momento pedagógico
e Diversidade, e Eliane Cavalleiro, coor- privilegiado para discutir a diversidade e
denadora geral de Diversidade e Inclusão conscientizar seus alunos sobre a importân-
Educacional do Ministério da Educação. cia e a riqueza que ela traz à nossa cultura
Agora se fala mais de mescla, mas em e à nossa identidade nacional” (Munanga,
“raças” distintas, num novo discurso de 2005, p. 15).
verdade:
A apresentação de Kabengele de 1999
“[…] a escola que superará o racismo há esboça uma formulação que está presente
de ser uma escola que saiba, sobretudo, no discurso que só será instalado por força
aprender e relacionar-se com o mundo de de lei, bem mais tarde, embora já estives-
possibilidades que a sociabilidade negra se presente nos argumentos de Hasenbalg
criou, seja nas mais de quatro mil comu- (1979) nos anos 1970.
nidades quilombolas conhecidas, seja na
música urbana de um compositor como “Não precisamos ser profetas para compre-
Martinho da Vila” (in Munanga, 2005, p. ender que o preconceito incutido na cabeça
12, grifos meus). do professor […] somando-se ao conteúdo
preconceituoso dos livros e materiais didá-
Citando um dos artigos do livro, o pre- ticos e às relações preconceituosas entre
faciador diz: “Os artigos de […] convidam alunos de diferentes ascendências étnico-
professores e professoras a evadir-se do raciais, sociais e outras, desestimulam o
mundo fechado de referências e práticas aluno negro e prejudicam seu aprendizado.
eurocêntricas em que foram (de)formados O que explica o coeficiente de repetência e
e ao qual foram confinados”. E ainda: “A evasão escolar altamente elevado do aluna-
violência racial na escola ainda não é com- do negro, comparativamente ao do alunado
putada como exercício de violência real”. branco” (Munanga, 2005, p. 16).
E mais adiante: “A violência racial escolar
atenta contra o presente, deforma o passado O livro contém artigos de muitos inte-
e corrói o futuro” (in Munanga, 2005, pp. lectuais que cinco anos mais tarde iriam
12 e 13, grifos meus). liderar os discursos que enfatizam as cotas
Os três prefácios reproduzidos na edição como o caminho para enfrentar essas desi-
de 2005 expressam assim a velocidade da gualdades na educação brasileira. Mas não
caminhada que também está presente em se fala de ações afirmativas e a expressão
outras esferas da nossa história recentíssima. “cotas” também não aparece nos textos.
O discurso de verdade que vê a sociedade Como exemplo cito o trabalho de Petronilha
do “caldo de culturas” e de “fusão” ou de Beatriz Gonçalves da Silva, que afirma ser
“mescla” parece estar sendo suplantado por necessário “o estudo das africanidades com
outro que vê uma sociedade de “sociabili- o propósito de que os currículos escolares,
dades” negras onde existem “mais de 400 em todos os níveis de ensino”:
comunidades quilombolas”.
O livro produzido em 1999 tem apresen- • valorizem igualmente as diferentes e
tação de Kabengele Munanga, que exorta o diversificadas raízes das identidades dos

116 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 112-129, dezembro/fevereiro 2005-2006


distintos grupos que constituem o povo raça cunhado no século XVIII e hoje so-
brasileiro; bejamente superado. Cabe esclarecer que o
• busquem compreender e ensinem a respei- termo ‘raça’ é utilizado com freqüência nas
tar diferentes modos de ser, viver, conviver relações sociais brasileiras para informar
e pensar; como determinadas características físicas,
• discutam as relações étnicas, no Brasil, e como cor de pele, tipo de cabelo, entre ou-
analisem a perversidade da assim designada tras, influenciam, interferem e até mesmo
“democracia racial”; determinam o destino e o lugar social dos
• situem histórica e socialmente as produ- sujeitos no interior da sociedade brasileira.
ções e/ou influência africana no Brasil e Contudo, o termo ganhou novo significado
proponham instrumentos para que sejam com o Movimento Negro que, em várias
analisadas e criticamente valorizadas (in situações, o utiliza com o sentido político
Munanga, 2005, p. 157). de valorização do legado deixado pelos
africanos” (Brasil, 2005, p. 10).
Menos de cinco anos depois de ter es-
crito esse artigo para o livro organizado por O documento, depois de afirmar que a
Kabengele Munanga, Petronilha Beatriz “consciência política e histórica da diver-
Gonçalves da Silva foi relatora do processo9 sidade deve conduzir à igualdade básica de
que estabeleceu as Diretrizes Curriculares pessoa humana como sujeito de direitos”,
para a Educação das Relações Étnico-Ra- constata que o “fortalecimento de identida-
ciais e para o Ensino de História e Cultura des e de direitos deve conduzir para […]
Afro-Brasileira. o esclarecimento a respeito de equívocos
quanto a uma identidade humana universal”.
Mesmo afirmando a luta contra a discrimi-
nação racial e o preconceito, o documento
O QUE DIZEM AS NOVAS instiga as escolas a imaginar e produzir
um país não da mistura, mas como uma
DIRETRIZES CURRICULARES PARA sociedade composta de “raças” e “grupos
étnicos” separados, como bem frisou Fry
A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES (2005, pp. 346-7).
Como diz o parecer, a sociedade brasi-
ÉTNICO-RACIAIS E PARA O leira é formada “por pessoas que pertencem
a grupos étnico-raciais distintos, que pos-
ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA suem cultura e história próprias, igualmente
valiosas e que em conjunto constroem, na
AFRO-BRASILEIRA nação brasileira, a sua história”. Dá ainda
uma dimensão extrema a essa diversidade
O parecer que embasa a nova lei é um entre “grupos étnicos”:
documento e um exemplo de como o Estado
propõe exacerbar a racialização da socie- “[…] o Brasil, país multiétnico e pluricul-
dade em vez de debelá-la como diz Peter tural, de organizações escolares em que
Fry (2005). Embora reconheçam que “raça” todos se vejam incluídos, em que lhes seja
é uma construção social, quase todas as garantido o direito de aprender e de ampliar
propostas, em vez de combater a crença em conhecimentos, sem ser obrigados a negar
“raças” e o racismo, fazem o contrário: a si mesmos, ao grupo étnico/racial a que
pertencem, a adotar costumes, idéias, com-
“É importante destacar que se entende portamentos que lhes são adversos. E estes
por raça a construção forjada nas tensas certamente serão indicadores da qualidade 9 Os outros membros da comissão
foram Carlos Roberto de Jamil
relações entre brancos e negros, muitas da educação que estará sendo oferecida pe- Cury, Francisca Novantino Pinto
vezes simuladas como harmoniosas, nada los estabelecimentos de ensino de diferentes de Ângelo e Marilia Ancona Ló-
pez, e o conselheiro-presidente
tendo a ver com o conceito biológico de níveis” (Brasil, 2005, p. 18). José Carlos Almeida da Silva.

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 112-129, dezembro/fevereiro 2005-2006 117


As Diretrizes encorajam uma educa- ço da marginalização e da desigualdade
ção ou reeducação que faça dos cidadãos impostas a outros. E então decidir que
pessoas orgulhosas de seu “pertencimento sociedade queremos construir daqui para
étnico-racial”. Assim, é preciso valorizar a frente” (Brasil, 2005, p. 11).
“diversidade” a fim de superar as desigual-
dades étnico-raciais. Essas Diretrizes foram criticadas por
José Roberto Pinto de Góes, que se espantou
“Políticas de reparações e de reconheci- com as expressões utilizadas no documento:
mento formarão programas de ações afir- “De que revanche estão falando? E o que
mativas, isto é, conjuntos de ações políticas dizer dessa história de fazer emergir dores
dirigidas à correção de desigualdades raciais e medos?” (Góes, 2004).
e sociais, orientadas para oferta de trata- O que se pode apreender da leitura dessa
mento diferenciado com vistas a corrigir lei estabelecida pelo Conselho Nacional de
desvantagens e marginalização criadas e Educação é que ela apresenta um Brasil
mantidas por estrutura social excludente e radicalmente distinto daquele dos textos
discriminatória. Ações afirmativas atendem anteriores, que falam de mistura, de caldo
ao determinado pelo Programa Nacional de de cultura, etc. e representam uma visão
Direitos Humanos, bem como a compromis- alinhada aos movimentos negros que são
sos internacionais assumidos pelo Brasil, citados nominalmente inúmeras vezes ao
com o objetivo de combate ao racismo e a longo do texto.
discriminações, tais como: a Convenção da As Diretrizes ainda arrolam em seu
Unesco de 1960, direcionada ao combate ao parecer uma lista de atividades a serem
racismo em todas as formas de ensino, bem desenvolvidas pelas instituições de ensino,
como a Conferência Mundial de Combate ao entre elas o diálogo com estudos que anali-
Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia sam e criticam essas realidades bem como
e Intolerância Correlata de 2001” (Brasil, com grupos do Movimento Negro. Listam
2005, p. 12). também uma série de personalidades negras
nacionais e estrangeiras que devem ser es-
Afirmam ainda as Diretrizes que os tudadas e ainda se referem à necessidade
movimentos negros têm comprovado a dura de reconhecimento da “matriz africana” ou
experiência de “fingir ser o que não é para temas que dizem respeito à população negra,
ser reconhecido […] de quão dolorosa pode como a anemia falciforme e a “problemática
ser a experiência de deixar-se assimilar por da pressão alta”. Finalmente afirmam:
uma visão de mundo que pretende impor-se
como superior e por isso universal e que os “[…] cabe lembrar que preto é um dos
obriga a negarem a tradição do seu povo” quesitos utilizados pelo IBGE para classi-
(Brasil, 2005, p. 11). ficar, ao lado dos outros – branco, pardo,
Para finalizar, uma espécie de profecia indígena –, a cor da população brasileira.
ameaçadora: Pesquisadores de diferentes áreas, inclusive
da educação, para fins de seus estudos,
“Se não é fácil ser descendente de seres agregam dados relativos a pretos e pardos
10 Processo que também já co- humanos escravizados e forçados à condi- sob a categoria negros, já que ambos reú-
meçou porque o Ministério da
Educação iniciou um curso de ção de objetos utilitários ou a semoventes, nem, conforme alerta o Movimento Negro,
formação de professores. O
MEC também promoveu ao também é difícil descobrir-se descendente aqueles que reconhecem sua ascendência
longo do ano de 2005 fóruns dos escravizadores, temer, embora velada- africana” (Brasil, 2005, p. 15).
de discussão sobre as Diretrizes
chamando representantes dos mente, revanche dos que, por cinco séculos,
movimentos negros, sociólogos,
educadores e antropólogos
têm sido desprezados e massacrados. Uma das condições para a implantação
para o debate. Há também Para reeducar as relações étnico-raciais no das Diretrizes refere-se à qualificação de
iniciativas de universidades
que estão oferecendo cursos Brasil é necessário fazer emergir as dores professores que “promovam a reeducação
de formação de professores, e medos que têm sido gerados. É preciso das relações entre diferentes grupos étnico-
como a Universidade Federal
de São Carlos. entender que o sucesso de uns tem o pre- raciais”10. O Ministério da Educação, assim,

118 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 112-129, dezembro/fevereiro 2005-2006


a partir das Diretrizes, lançou as bases para Norte do Rio de Janeiro. Cerca de 1.029 es-
uma política do que tem sido chamado de tudantes freqüentam essa escola, que fica em
“educação das relações étnico-raciais”. um prédio moderno, com uma bela quadra
Como uma pedagogia de cunho racial, de esportes, um terreno amplo e uma boa
ainda lança mão da ciência justificando biblioteca, como são todos Cieps planejados 11 Sucesso Escolar é um outro
programa implantado em 2004
o uso da nova categoria “negro” a partir por Oscar Niemeyer durante o primeiro go- pela Secretaria de Educação
do uso que é feito por “pesquisadores de verno Brizola e na gestão de Darcy Ribeiro do Estado para melhorar a
proficiência dos estudantes em
diferentes áreas”. à frente da Secretaria de Educação. Ainda matemática e português. Os
alunos que participam desse
As Diretrizes, diferentemente dos li- não podemos afirmar com exatidão o perfil programa estão na iminência de
vros didáticos que estão nas bibliotecas de socioeconômico dos estudantes dessa escola ser reprovados e, em geral, são
considerados maus alunos.
muitas escolas por nós pesquisadas, não porque só agora estamos aplicando os ques-
12 As escolas são avaliadas pelo
descrevem nossa mistura e, ao afirmarem tionários em uma amostra significativa. No Estado, pelo governo federal
e por agências internacionais,
a universalidade da espécie humana, frisam entanto, podemos dizer que é uma escola mas são também avaliadas pela
muito mais as diferenças e divergências típica de bairros pobres da Zona Norte da comunidade. Em cada bairro há
boas e más escolas segundo os
entre etnicidades, culturas e “raças”. cidade. Nela estudam jovens que em sua moradores, pais, professores,
Mas essas Diretrizes não vieram apenas maioria são primeira geração de estudantes etc. Sobre essa questão estão
trabalhando outras pesquisa-
para ficar no papel. Elas estão sendo apli- que chegam ao ensino médio em suas famí- doras da equipe, Encarnação
(2005) e Galeno (2005).
cadas em algumas das 21 escolas do nosso lias. As mães freqüentaram a escola mais
13 A pesquisadora participa das
universo de estudo, e, entre essas escolhe- tempo que os pais e, em sua maioria, têm reuniões semanais de pesquisa
mos um caso para observar e descrever o até a quarta série do ensino fundamental. A realizadas desde agosto de
2004 nas quais a equipe
seu processo de implantação. É uma escola escola tem uma alta taxa de distorção série/ é treinada passo a passo.
de ensino médio do bairro de Irajá, na Zona idade e está classificada no nível mais baixo Além de percorrer uma leitura
especializada sobre educação,
da pontuação do Programa Nova Escola. os pesquisadores leram e de-
bateram clássicos da pesquisa
Também participa do Programa Sucesso antropológica. Foram ainda
Escolar11, que foi desenhado para melhorar discutidas as formas com que
as entrevistas e histórias de
a atuação dos estudantes dessas escolas de vida deveriam ser conduzidas.
Elaborou-se um roteiro de entre-
baixo desempenho. No entanto, a escola foi vistas com estudantes e profes-
recentemente reformada e é considerada sores, diretores e orientadores
pedagógicos. Decidiu-se que
uma ótima escola pelos pais e vizinhança. cada pesquisador escolheria um
Ao lado desse Ciep há outro em péssimas ou dois casos entre professores
e estudantes, que deveriam ser
condições físicas, e que é tido como uma entrevistados a cada ano sobre
os mesmos temas para que
escola ruim pela comunidade12. pudéssemos fazer um follow-up
Ludmila Fernandes de Freitas, pesqui- desses personagens ao longo
da pesquisa. Além disso, os
sadora bolsista da Fundação Ford no pro- pesquisadores participam das
atividades da escola e ainda
jeto “Acompanhando as ações afirmativas seguem de perto alguns eventos
no ensino superior”, foi responsável pela promovidos pelo Ministério da
Educação e pela Secretaria
pesquisa de campo nessa escola estudada. Estadual de Educação. Todos
O estudo de caso foi iniciado em março enviam semanalmente sua
etnografia para um banco de
de 200513. dados para ser lida e analisada
pela equipe.
Há várias experiências de aplicação
14 Assistimos a alguns desses fóruns
dessas Diretrizes sendo feitas em outras promovidos pela Secretaria
escolas e estados da federação, mas vamos de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade,
nos deter nesse caso com a finalidade de chefiada pelo economista
Ricardo Henriques. Nesses
revelar a estrutura e os princípios que a fóruns, diretores, professores e
organizam. Escolhemos essa escola entre as coordenadores pedagógicos
são orientados através de
21 pesquisadas porque foi uma das primei- palestras com representantes
ras escolas da rede a aplicar as Diretrizes dos movimentos negros e es-
pecialistas. Esses fóruns são
citadas e por ter seguido de perto as reco- também paradigmáticos e
explicitam essa pedagogia
mendações feitas nos fóruns promovidos racial de conversão identitária.
pelo Ministério da Educação no sentido de Não trataremos deles no âmbito
deste artigo para não nos alon-
orientar os professores14. garmos ainda mais.

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 112-129, dezembro/fevereiro 2005-2006 119


entre o índio e o negro): “Rompendo as
UM MERGULHO NO UNIVERSO barreiras das diferenças raciais, entrecru-
zando-se a cada nova geração, realizaram
ESCOLAR eles o mais completo fenômeno da mis-
cigenação racial e aculturação que a terra
A biblioteca da escola constitui-se em conhece. Séculos mais tarde os imigrantes
importante local onde pudemos, através trouxeram sua contribuição ao já intenso
de uma pesquisa nos livros de história do caldeamento” (Duarte, 1982, p. 93).
Brasil lá existentes, observar se os mesmos Em um deles discute-se a idéia de
vêm respondendo a essa nova pedagogia “raça”:
reclamada pelo referido parecer. A biblio-
teca possui um acervo relativamente grande “Sabe-se apenas que todos os homens per-
se comparado ao de outras escolas da rede. tencem à mesma espécie – Homo sapiens.
O acervo é relativamento rico, com as últi- Mesmo a divisão clássica em raça branca,
mas edições de livros de Gilberto Freyre, negra e amarela não pode persistir, porque
Vitor Nunes Leal, Roberto DaMatta, Caio os grupos que se classificam nesses três
Prado Junior, Darcy Ribeiro, Celso Furta- grandes ramos não apresentam uniformi-
do, Luís da Câmara Cascudo, José Murilo dade suficiente para se fazer uma catalo-
de Carvalho, Sérgio Buarque de Holanda, gação satisfatória dos seus característicos
Nelson Werneck Sodré, sem contar Sergio básicos. Não se sabe tampouco se essas três
Paulo Rouanet com o seu As Razões do variantes têm uma origem comum, ou se
Iluminismo. É claro que lá estão José de cada uma resulta da evolução autônoma de
Alencar, Machado de Assis, Graciliano seres pré-humanos diferentes” (Carvalho,
Ramos e muitos outros da nossa literatura. 1970, pp. 100-1).
Ao longo do ano a diretora anunciou a com-
pra de alguns novos livros sobre os temas15 Saindo da biblioteca e examinando um
propostos pelas Diretrizes. dos livros utilizados pela rede de ensino esta-
Os livros de ensino médio de história do dual em 2005 (Cabrini, Catelli & Montella-
Brasil nessa biblioteca são, em sua maioria, to, 2005a; 2005b), não vimos aquela antiga
da década de 198016. Falam dos sucessivos cronologia de acontecimentos tão utilizada
“cruzamentos raciais” que deram origem como metodologia para o ensino da história
à formação do povo brasileiro: “Quando nem tampouco o nosso mito de origem das
falamos em origem do homem brasileiro três raças. Agora dá-se maior destaque à
nos referimos ao brasileiro nato, isto é, história da África e à “cultura africana”.
ao indivíduo que nasce no Brasil e que é Também se descrevem as comunidades de
15 Contos e Lendas da África, resultante de intensa miscigenação” (Luc- quilombos como espaços de “resistência
de Yves Pinguilly (2005); O
Rei de Keto, de Antonio Olinto ci, 1984, p. 73). Também descrevem os negra”. Mas há uma diferença mais impor-
(1980); A Luta de Cada Um,
Zumbi – o Último Herói dos “elementos” formadores da etnia brasileira tante na forma de contar a nossa história. A
Palmares, Racismo no Brasil, de e suas contribuições culturais na comida, sociedade brasileira é descrita como o lugar
Carlo Caruso (2005). Além de
oito livros da Série Pensamento hábitos, objetos, música, religião e vocabu- do desencontro entre culturas:
Negro em Educação: As Idéias
lário. Segundo esses manuais de história, os
Racistas, os Negros e a Educa-
ção; Negros e Currículo; Os elementos étnicos foram o índio, o negro “Mas o que acontece quando diferentes
Negros, os Conteúdos Escolares
e a Diversidade Cultural I e II; e o branco (português) e, posteriormente, povos com distintos modos de vida se en-
Educação Popular Afro-Brasi- os imigrantes. Os autores dos livros didá- contram? Com freqüência um desencontro.
leira; Os Negros e a Escola
Brasileira; Negros, Territórios ticos ressaltam também que a colonização Principalmente quando um deles se julga
e Educação; Multiculturalismo
e a Pedagogia Multirracial e do Brasil propiciou o cruzamento entre os no direito de impor sua cultura aos outros
Popular. Segundo a diretora, “três elementos étnicos” dando origem aos ignorando outros conhecimentos, saberes
esse material ficará na sala de
leitura, onde o professor poderá seguintes tipos fundamentais de mestiços: e ‘verdades’.
trabalhar os textos com seus
caboclo ou mameluco (cruzamento entre o Ao longo do tempo, muitos povos con-
alunos.
branco e o índio), mulato (cruzamento entre sideraram a sua própria cultura a medida
16 Entre outros: Cotrim, 1986;
Lucci, 1984; Duarte, 1982. o negro e o branco) e cafuzo (cruzamento para todas as outras. Assim, movidos pelo

120 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 112-129, dezembro/fevereiro 2005-2006


HISTÓRIA DA IMPLANTAÇÃO DO
PROJETO
Na escola estudada as novas Diretrizes
estão sendo trabalhadas em forma de pro-
jeto. O projeto-piloto chama-se “Mitos e
tabus na cultura afro-brasileira”. Quatro
professoras17 trabalham diariamente no
projeto através das atividades complemen-
tares (Aticom), como Educação Artística e
História, e com todas as turmas do ensino
médio. Segundo os diretores, este ano o
Aticom privilegia a matéria História e
essa nova “disciplina” é “tratada como
conteúdo programático da escola e não
como uma cadeira à parte”. No entanto, o
projeto ainda não está incluído no Projeto
Político Pedagógico (PPP) da escola, o que
será feito no próximo ano, de acordo com a
diretora. Segundo a professora Lídia, uma
das promotoras do projeto na escola, os pro-
fessores envolvidos fizeram um acordo com
a direção para que os alunos pensassem que
a freqüência às aulas era obrigatória. Lídia
considera a presença de 40% de alunos em
sala um número bem relevante para uma
poder ou por interesses religiosos, políti- escola que possui 26 turmas, 13 nas quais
cos, econômicos, sentiram-se no direito ela trabalha. “Se você pegar esse universo
de dominar outros povos, modificar seus de alunos e pegar 40% eu acho que a gente
hábitos e até escravizá-los, chamando-os está conseguindo um trabalho de peso. Não
de selvagens ou bárbaros. Essa postura é de conseguir atingir o objetivo, mas de fazer
chamada de etnocentrista e ainda hoje é a abordagem num número bem relevante”,
posta em prática, você sabia? diz a professora.
Portanto podemos afirmar que em diferentes Ainda segundo a diretora dessa escola
tempos e espaços coexistem diversos modos pesquisada, o Ministério da Educação
de vida. Neste capítulo, você vai estudar não obrigou a trabalhar com as Diretrizes
alguns casos nos quais a diversidade entre nesse ano. Apesar da não-obrigatoriedade,
os povos não foi respeitada. No entanto o último Conselho de Classe da escola,
são situações históricas bem diferentes no ano de 2004, já tinha discutido a sua
entre si, pois cada uma teve o seu próprio implantação. Quando perguntamos sobre a
contexto sociopolítico” (Cabrini, Catelli & recepção desse novo parecer pelos demais
Montellato, 2005a, pp. 114 e 115). professores, Laura, outra das professoras
responsáveis pelo projeto, disse que eles
Nesses livros vimos, assim, como as Di- ficaram calados, não emitindo opiniões nem
retrizes influenciaram uma revisão do que é contra nem a favor.
escrito e ensinado na escola. São mudanças As duas principais professoras responsá-
que expressam claramente uma nova visão veis pela aplicação das Diretrizes na escola,
do que se diz e do que se pensa sobre a for- Lídia e Rosângela, fizeram especialização/
17 Os nomes das professoras são
mação da nossa identidade nacional. pós-graduação em História da África em fictícios.

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 112-129, dezembro/fevereiro 2005-2006 121


uma universidade particular e chegaram 13 de maio. Também explicou que o que
em 2005 à escola pesquisada. ali viria a acontecer não era uma palestra,
Para a professora Lídia, a noção que os mas um Ciclo de Informações, diferencian-
estudantes têm da África precisa ser modi- do-se pela possibilidade de serem feitas
ficada, pois o aluno não se sente valorizado perguntas ao final.
como descendente africano por causa da Datas significativas, como 20 de novem-
escravidão. “Esse estigma de escravidão bro (Dia Nacional da Consciência Negra)
continua depois que a escravidão acaba e 21 de março (dia Internacional de Luta
porque o negro ainda é lembrado, vincu- pela Eliminação da Discriminação Racial),
lado à escravidão”, diz a professora. Por deverão ser devidamente assinaladas. “O 13
isso nessas aulas são discutidos temas que de maio, Dia Nacional de Denúncia con-
possam fazê-los pensar o negro de outra tra o Racismo, será tratado como o dia de
forma. As professoras estão trabalhando denúncia das repercussões das políticas de
com materiais elaborados por elas porque eliminação física e simbólica da população
não encontraram nenhum livro didático que afro-brasileira no pós-abolição, e de divul-
considerassem bom. gação dos significados da Lei Áurea para
os negros”, como determinam as Diretrizes
(Brasil, 2005, p. 21), o que demonstra que
as professoras as estão seguindo à risca.
COMO ESTÃO SENDO A representante para assuntos afro-bra-
sileiros da Secretaria Estadual de Cultura
APRESENTADAS AS NOVAS falou sobre a questão da modificação que
vem ocorrendo nos livros didáticos tanto em
DIRETRIZES relação à introdução de uma maior presença
de personagens negros como também da
A primeira etapa do projeto foi o Ciclo história da África.
de Informações que aconteceu no auditório O representante do Movimento Ne-
da escola no dia 12 de maio de 2005. Nele gro discorreu sobre as ações afirmativas
estiveram presentes dois palestrantes – um demonstrando que elas são necessárias
membro do Movimento Negro e uma repre- porque vieram para corrigir uma distorção
sentante da Secretaria Estadual de Cultura –, ocasionada pelo racismo, exemplificando-a
que falaram sobre ações afirmativas (cotas, com a seguinte metáfora: um corredor que
principalmente) e também sobre a presença inicia a corrida acorrentado enquanto o outro
do negro nos livros didáticos. corre livremente nunca poderá chegar ao
Nesse dia os trabalhos dos alunos rela- mesmo tempo no final da corrida. Os negros
tivos ao tema também estavam dispostos foram assim acorrentados e para corrigir
sobre as mesas e fixados nas paredes do essa defasagem, esse atraso, é preciso que
corredor da escola. Máscaras africanas, lhes sejam dadas condições especiais para
indumentária africana, pequenos objetos que possam chegar ao final com as mesmas
religiosos, além de outros trabalhos feitos oportunidades. Ou seja, uma aula sobre o
com a técnica do pontilhismo estavam pressuposto da democracia liberal ameri-
também expostos juntamente com poe- cana, que propõe tratar desigualmente os
sias e raps feitos pelos alunos. Eles ex- desiguais, invertendo assim a nossa tradição
punham as várias formas de preconceito republicana de tratar todos como iguais.
tais como: racial, contra gordos, magros, Todos os anos os alunos apresentam
feios, pessoas mais velhas que voltavam trabalhos em uma Feira Cultural Inter-
a estudar, etc. disciplinar. O tema da feira em 2005 foi
Lídia destacou o fato de a data marcada “Brasil e Brasis: uma grande diversidade”
para o Ciclo de Informações – dia 12 de (grifo meu). Como diz o folheto explicati-
maio – “não ser à toa” e disse ser esse um vo distribuído na escola, “A Feira Cultural
“dia de reflexão”, pois o dia seguinte era Interdisciplinar de 2005 está relacionada

122 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 112-129, dezembro/fevereiro 2005-2006


ao Projeto Político Pedagógico da Esco- Além dos ciclos de informação, as
la, o qual procura discutir a brasilidade professoras passam trabalhos sobre as influ-
a partir da influência africana no Brasil ências da cultura afro-brasileira. Os alunos
[grifos meus]. Partimos do pressuposto de podem escolher temas como a comida, a
que o Brasil é multicultural e apresenta uma dança, a religião, o vocabulário, etc.
grande diversidade social, econômica e na-
tural”. Pensando assim, uma Feira Cultural
Interdisciplinar sobre o país foi o caminho
encontrado pelo corpo pedagógico, “pois COMO ESTÃO SENDO RECEBIDAS
levaria os alunos a entrar em contato com
AS ATIVIDADES
18
nossas particularidades e conhecer a reali-
dade em que estamos inseridos enquanto
sujeito social”. Conversando com alguns alunos que
As professoras responsáveis pelo proje- participaram dessas atividades pudemos
to afirmam que muitas escolas envolvidas verificar que eles não acham que a matéria
reconhecem a dificuldade de aceitação por seja obrigatória. Sabem que os trabalhos
parte de gestores das unidades escolares contam ponto para a matéria de História e
(sejam elas particulares ou públicas), coor- sabem também que as faltas da Aticom não
denação, orientadores pedagógicos, assim são contabilizadas.
como demais professores, até mesmo em Segundo esses alunos, uma das professo-
saber que essas novas Diretrizes existem e ras, durante as aulas, passa filmes e discute
são obrigatórias. sobre o estereótipo do negro e sobre música.
Como expôs a professora Lídia, o pro- Ela também pediu que cada estudante fizesse 18 A pesquisadora Ludmila Fer-
jeto está sendo implementado através de a árvore genealógica de sua família, o que nandes de Freitas, aluna de
graduação do curso de Ciên-
“conflitos e negociações”. Ainda segundo auxiliaria no censo de cor que foi feito na cias Sociais do IFCS/UFRJ, faz o
trabalho de campo nessa escola
ela, “é muito complicado você fazer o aluno escola19. Outra aluna, também do terceiro e, como já dissemos, produziu
se reconhecer negro enquanto que é tudo ano, disse que as aulas eram chatas, que essa etnografia. Participou
dessas aulas e de atividades
que ele está querendo esquecer. Nós esta- a professora “só fala de negro” e “todo promovidas pelas professoras
responsáveis. Os alunos foram
mos com o espelho na frente dele dizendo: mundo já tá de saco cheio disso”. Suélen, entrevistados tanto nos intervalos
você é negro! E é exatamente o que ele que estuda no turno da manhã, reclamou das aulas, quanto nas atividades
extraclasse e no recreio. Todos
não quer, se ver como negro. Os que têm a também que a professora não escrevia no os alunos entrevistados eram
cútis, a pele, um pouco mais clara se acham quadro20, e ficava quase uma hora explican- estudantes do ensino médio dos
turnos da manhã e da tarde. A
moreninhos, mulatos, marrom-bombons”. do. A turma do terceiro ano, como disse uma escola estudada não tem turno
noturno como outras escolas da
Para ela a maior dificuldade para a implan- das alunas, teve inclusive a idéia de fazer rede.
tação do projeto é em relação ao aluno: “A um abaixo-assinado para tirar a professora 19 O censo escolar de 2005 incluiu
gente está negociando com eles a partir do da Aticom, pois “está todo mundo cansado pela primeira vez o quesito cor, o
que fez com que todos os alunos
momento que a gente está mostrando uma porque ela só fala de negro”. Essa mesma tivessem que se autoclassificar
segundo as categorias do Cen-
realidade que eles não querem ver ou não aluna disse que uma vez a professora deu so Demográfico Nacional.
conhecem. Ou, quando não conhecem, não como exemplo três alunas da sala ao falar 20 Estamos analisando também as
interiorizam”. No entanto, como é um pro- da dificuldade de conseguir um emprego aulas e como são dadas nessas
escolas pesquisadas. Mas não
jeto-piloto, a professora acredita que essa é numa loja no shopping. Apontou para as vamos tratar disso neste artigo.
uma dificuldade que pode ser ultrapassada. três meninas (“uma mais escura, uma média Para uma discussão da sala de
aula ver: Saerp, 2005. Aqui
Segundo ela, daqui a uns dois ou três anos, e uma mais clara”) e disse que por causa vamos apenas indicar que o
mais comum nessas escolas
quando esses alunos alcançarem o terceiro da cor dificilmente as mais escuras seriam são aulas em que os professores
ano, vai haver maior “conscientização” por escolhidas para o emprego por mais expe- passam a maior parte do tempo
escrevendo a matéria no quadro
parte deles. “Através desse processo de riência que tivessem. e esperando que os alunos
reconstrução da identidade, saberão o que No entanto, também há alunos que copiem no caderno. Esse tipo
de aula foi classificado por
significa ser mulato no Brasil, o que significa gostam da aula, apesar de discordarem da uma de nossas pesquisadoras
(Sousa, 2005) como “aula de
ser ‘crioulo’, o que é que é o ‘pardo’, que maneira como ela é dada. O aluno Vinícius, transcrição”. Alguns estudantes
política é essa de desigualdade, o que é o do terceiro ano, turno da manhã, disse gos- preferem esse tipo de aula e
muitas vezes reclamam quando
mito da democracia racial.” tar da aula porque ela promove discussão, isso não é feito.

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 112-129, dezembro/fevereiro 2005-2006 123


mas fica indignado com quem inventou que é “afro-brasileiro”. Então apareceram
essa matéria. Para ele, ela não é coerente: palavras como “origem”, “dignidade”,
“A aula é legal, mas não a forma como “normal”, “honesto” e “humildade”.
é dada”. O aluno deu diversos exemplos Dois outros alunos que participam do
sobre a mistura existente no Brasil citando Programa Sucesso Escolar também não
sua irmã que é “loirinha”, e mais branca gostam das aulas de cultura afro-brasileira.
do que ele, bem como a possibilidade de Não assistem a elas. Fizemos as mesmas
uma pessoa negra ter um filho mais claro e perguntas a esses alunos quando estávamos
vice-versa. Completou sua opinião dizendo observando uma aula do Programa Sucesso
que a professora “reivindicou uma coisa que Escolar pedindo que resumissem em uma
não era para reivindicar: a cor dela. Chega palavra o que é “cultura afro-brasileira”. Os
a um ponto que ela está discriminando ela alunos logo citaram as influências: “África,
mesma”. De tanto falar em discriminação, africanos, comidas,…”; “culturas que os
segundo esse aluno, a professora acaba se negros trouxeram para o Brasil”. Sobre
autodiscriminando. Esse mesmo aluno disse “afro-brasileiro” o aluno respondeu como
ter ficado constrangido nas primeiras aulas se estivesse nos perguntando e duvidando
porque ele não concordava com temas como de sua própria resposta: “Uma pessoa ne-
cotas para negros e preconceito racial da gra?”. Já o outro disse: “O modo de agir é
forma que eram colocados pela professora. diferente, candomblé, comidas típicas, da
“Não concordo com as instituições levan- Bahia, olodum …”.
tarem coisas para os negros.” Uma frase da Para as professoras responsáveis pela
professora que marcou Vinícius foi: “Negro aplicação das Diretrizes nessa escola, os
não é cor, é raça!”. alunos dizem tais coisas porque resistem.
Um outro aluno do terceiro ano diurno Elas consideram esse posicionamento con-
disse ver a professora como afro-brasileira. trário dos alunos como falta de “educação”
E se apressou em dizer que não tem nenhum e de “consciência”. Sobre isso Lídia disse
preconceito porque também se considera o seguinte:
afro-brasileiro. Perguntado se estava gos-
tando dessas aulas, disse: “mais ou menos”. “Numa família que já tenha essa auto-es-
Sua crítica refere-se ao posicionamento da tima, ela vai criar o seu filho dentro da ne-
professora, ao jeito pelo qual ela se expressa gritude e é muito mais fácil. Alunos ligados
durante as aulas: “Ela fala de um jeito que a algum tipo de movimento como hip-hop
parece que se alguém falar algo contra ela ou bandas ligadas a algum tipo de movi-
é capaz de dar um soco. Ela defende os mento negro assimilam melhor. Eles acham
afro-brasileiros de um jeito que parece que muito legal o que a gente está tratando; em
os brancos é que são os escravos. Ela fala contrapartida você tem um outro grupo que
de um jeito como se estivesse ofendendo eu chamo de ‘grupo de esconde’ é o ‘grupo
ela”; “Ela explicou que o afro-brasileiro é do Michael Jackson’. Estou me vestindo de
aquela pessoa mais escura de pele e também fantasma, estou ficando ridicularizado mas
explicou sobre a árvore genealógica, porque é melhor do que ser negro”.
tem sempre uma pessoa na nossa família
que é afro-brasileira”. Também vêem essa mesma dificuldade
Propusemos uma conversa com sete por parte dos outros professores, que não
alunos do primeiro ano do turno da manhã se interessaram muito em contribuir com
e pedimos que cada um deles resumisse em o debate em questão. Segundo Lídia, “o
uma palavra o que significa “cultura afro- que acontece com o professor é o mesmo
brasileira”. De início eles demoraram a res- que acontece com o aluno. Ele está sendo
ponder, mas logo disseram: “consciência” reprodutor de estereótipo. Ele também está
(“saber que isso é importante”), “respeito”, reproduzindo tudo aquilo que nós também
“vida”, “dignidade”, “injustiça”. Pedimos escutamos e aprendemos na sala de aula.
então que resumissem em uma palavra o Então, se ele aprendeu errado, está repro-

124 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 112-129, dezembro/fevereiro 2005-2006


duzindo errado. Então a gente tem que No entanto, muitos professores acataram
construir não só para o aluno, mas também o projeto das Diretrizes e estão fazendo
para o próprio professor”. esforços para unir-se às professoras res-
ponsáveis em incluir suas disciplinas nas
atividades propostas.

O QUE DIZEM OS PROFESSORES


Confirmando o que disse Lídia sobre SOBRE A RELAÇÃO DAS
o não envolvimento de outros professores
no projeto, assistimos a um fato relevante DIRETRIZES COM AS AÇÕES
no dia do Conselho de Classe do segundo
bimestre. Lídia propôs que cada professor AFIRMATIVAS
trabalhasse com a inserção das novas Di-
retrizes em sua disciplina, enfatizando que O parecer que embasa as Diretrizes,
esta é a primeira escola do estado com esse como foi dito, “procura oferecer uma res-
projeto: “Precisamos que a escola toda fale posta, entre outras, na área da educação, à
o mesmo idioma”. Apenas duas professoras, demanda da população afrodescendente, no
de português e literatura, se manifestaram, sentido de políticas de ações afirmativas, isto
lembrando da possibilidade de auxiliarem é, de políticas de reparações, e de reconheci-
na discussão trazendo a influência de mento e valorização de sua história, cultura,
escritores negros na literatura brasileira, identidade” (Brasil, 2005, p. 10).
como Machado de Assis, Cruz e Sousa, Como já dissemos logo no início deste
Luís Gama, etc. trabalho, no final de 2004 fizemos um pré-
No terceiro Conselho de Classe a pro- teste com 179 questionários, que foram
fessora responsável pelo projeto das Dire- respondidos por alunos do primeiro ano do
trizes Curriculares na escola propôs que ensino médio. Perguntados sobre as cotas
os alunos fizessem suas apresentações para negros, a maioria dos respondentes
dispostos em forma de uma roda, “porque (51%) não concordou com tal política.
esse é o princípio da sociedade africana: a Alguns disseram que, apesar de não con-
coletividade. Por isso as apresentações terão cordarem, aproveitariam a oportunidade
essa noção de coletividade”. No meio da por serem negros ou pardos. Um aluno do
conversa, em tom sereno, uma professora terceiro ano, quando perguntado por sua cor
disse: “Não interessa a cor, mas o respeito e pelas cotas, respondeu: “Eu acho chato
de uns com os outros”. E completou: “[…] esse negócio da cor, mas isso da pessoa
todos nós somos humanos, filhos do mesmo ter pouco dinheiro e ser deficiente eu acho
pai: Deus. Seria melhor juntar todos”. Pouco legal. Independente da cor ou não a pessoa
depois uma professora de português, que é inteligente”. O aluno se definiu como
é evangélica, posicionou-se contra a idéia negro e disse que apesar de não concordar
da disposição da roda. Disse que, se assim com as cotas para negros ele participaria
fosse feito, não participaria do projeto. delas porque, “já que tem essa política da
Lídia e Rosângela tentaram então explicar cor, vou aproveitar”.
por várias vezes que aquela “roda” não era Pudemos perceber melhor esse posicio-
“roda de ponto”21, mas uma “influência namento dos alunos em relação à política de
da cultura afro-brasileira”. Não satisfeita, cotas quando da presença de alguns deles
a professora pareceu não prestar muita (a maioria, do terceiro ano) no Ciclo de
atenção na explicação. Outros professores Informações. Nas perguntas referidas ao pa-
comentavam paralelamente sobre esse lestrante, os alunos pareciam contrários ao
“conflito” de opiniões, como o professor colocarem a questão do “mérito”, “do aluno
de sociologia, que citou o fato de a religião que é branco e pobre ter os mesmos direitos” 21 “Roda de ponto” é uma expres-
são que designa um ritual das
ser uma das partes da cultura. e se “o problema não é a educação básica de religiões afro-brasileiras.

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 112-129, dezembro/fevereiro 2005-2006 125


baixa qualidade”. Outros posicionamentos elas, a necessidade desse processo de des-
contrários estavam fundamentados no fato construção de identidade para a construção
de a pobreza e o ensino público de baixa de uma nova identidade. “A construção da
qualidade não garantirem o acesso desses tua identidade está muito ligada a tua auto-
estudantes ao ensino superior. estima, valorização enquanto indivíduo,
Entrevistamos alunos do primeiro e ter- pessoa, enquanto um eu. Personalidades
ceiro anos do ensino médio sobre aspectos ou identidades estando em contato vão se
gerais da escola e, quando indagávamos fortificando, seja da forma que for, positi-
sobre suas cores (sem fazer menção às ca- vamente ou negativamente”, disse Lídia.
tegorias usadas pelo IBGE: branca, preta, E continuou:
parda, amarela ou indígena), eles preocupa-
vam-se em responder prontamente que não “[…] ser afro-brasileiro no Brasil é ser bra-
eram racistas, que não tinham preconceitos. sileiro porque a formação da nacionalidade
Quando a entrevista era feita com mais de brasileira foi em cima do afro muito mais
um aluno ao mesmo tempo, estes tomavam do que se pensa. Ela está muito entranhada,
como parâmetro a cor do outro (o colega) e enraizada. É muito difícil você encontrar no
até mesmo a de seus parentes, como os pais Brasil alguém que não seja afrodescendente.
e os irmãos, tentando se definir em termos A não ser que seja um imigrante de 50 anos
de gradações de cores: atrás. Quando você vê a família brasileira
você é afrodescendente. Não tem como.
“Minha cor? Acho que eu sou morena, Você querendo ou não querendo. Você não
branca. Branca. Meus pais são da minha pode separar o afro-brasileiro só por um
cor também, brancos”. hífen. Se você é brasileiro você é afrodes-
cendente. Você não tem outro caminho. Não
“Branca amarela. Minha mãe fala isso. Acho há uma separação. Eu acho que o nível, o
que não sou totalmente branca. Defino-me parâmetro, é generalizado”.
como branca porque meu olho é claro. Mas
eu não acho que eu seja branca. Branco
pra mim é aquela pessoa muito branca. Eu
me defino como amarela, mas as minhas O QUE DIZEM SOBRE O RACISMO
características são mais pro branco. Só a
cor da pele que eu acho diferente. Meu pai Perguntados sobre o assunto do racismo,
e minha mãe são mais morenos do que eu. os alunos que participaram dessas aulas de
Morenos claros. Meus irmãos são da minha Aticom não acham que ele ocorra dentro
cor, só que mais claros do que eu”. da escola. Um aluno deu o exemplo de um
colega de sua sala, de nome Emerson, o
As professoras envolvidas no projeto da qual eles chamam carinhosamente, desde
implantação das Diretrizes afirmaram con- o primeiro ano, de “Negão”. “O chamamos
cordar com a política de cotas e incentivar assim como amigo”, explicou o aluno. Ou-
seus alunos (principalmente os que estão tras alunas lembraram que os meninos têm
no terceiro ano) a delas participar. Isso é mania de pôr apelidos um nos outros como
feito através de discussões em sala sobre “gordo”, “preto”, “branco”, mas não vêem
o assunto e mostrando as repercussões do isso como um preconceito ou “racismo”.
racismo e das cotas. Só que essa mudança Vêem como “brincadeiras”, formas de
de postura dos alunos com relação às co- tratamento cordiais, amistosas.
tas, segundo as professoras, “faz parte da Já as professoras envolvidas no projeto
necessidade de reconstrução, formação de têm opiniões diferentes. Lídia disse que há
identidade, construção de nacionalidade”. muito racismo na escola:
Essa falta de conhecimento (seja porque o
aluno não quer ou porque não tem) gera a “Há muito racismo. Pouco não. Muito.
“baixa auto-estima do aluno”. Daí, segundo Inclusive eu fiz um trabalho com os alunos

126 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 112-129, dezembro/fevereiro 2005-2006


sobre preconceito e um aluno do segundo e “filtros” para definir quem é negro, e os
ano contou no trabalho que estava comen- professores resvalam para um discurso
do chocolate e a colega falou que ele não científico semelhante ao do “tribunal racial”
poderia comer aquele chocolate porque era estudado por Maio e Santos (2005). Os alu-
branco. Ele só podia comer ‘diamante ne- nos que criticam o projeto de implantação
gro’. Eles não têm consciência, na maioria são vistos como não tendo consciência,
dos casos, de que estão sofrendo racismo. como “Michael Jackson”, e há um apelo
Eles acham que é brincadeira. Essas dis- para que todos os professores falem um
criminações raciais são fruto da falta de mesmo “idioma racial” apesar de alguns
consciência dos alunos”. se manifestarem contrários.
A nova proposta de idioma identitário
Isso está interiorizado de tal forma que feita pelas professoras tenta desfazer a
mesmo o aluno negro que é ofendido não identidade construída a partir da marca e
sabe como agir e considera isso uma “brin- das gradações de cor tão bem descritas por
cadeira”. Daí a importância de trabalhar a Nogueira (1985), definindo-a como falta de
auto-estima desse aluno para que ele comece consciência, e o novo idioma agora deve ser
a ter essa “conscientização” que deriva de aquele adotado pelos movimentos negros.
um trabalho realizado cotidianamente. Desse No entender de uma das professoras, não
modo, segundo Lídia, “à medida que essa há espaço para essas gradações porque,
auto-estima começa a ser intensa, ele começa “se você tem um aluno que é mulato entre
realmente a se sentir negro, em saber que aspas, se ele for um pouquinho mais claro,
negro é bom, é bonito, ou seja, é normal”. ele não vai botar que é preto. Ele vai botar
Sendo uma das principais propostas das [no formulário do vestibular] que é branco.
novas Diretrizes o combate ao racismo e Por isso esse trabalho de reconstrução da
a todo e qualquer tipo de discriminação, identidade que nós estamos fazendo na
o documento lembra que essa tarefa de escola é importante”.
reeducação das relações étnico-raciais Assim, essas Diretrizes apontam um ca-
não é exclusiva da escola. “As formas de minho para o combate ao racismo afirmando
discriminação de qualquer natureza não uma saída de reforço de uma identidade
têm o seu nascedouro na escola, porém o bipolar e étnica e o abandono das muitas
racismo, as desigualdades e discriminações maneiras relacionais de pensar a cor das
correntes na sociedade perpassam por ali.” pessoas, como mostra o caso relatado.
Contudo, “a escola tem papel preponderante A hipótese que impulsionou a criação
para a eliminação das discriminações e para desse mecanismo de combate ao racismo,
a emancipação dos grupos discriminados” que está sendo implantado no Brasil e se
(Brasil, 2005, p. 14). impõe com força de lei pelo Estado vi-
sando à conversão identitária de pretos e
pardos em negros, ou de morenos e uma
miríade de cores em brancos e negros, foi
CONSIDERAÇÕES FINAIS a de que o racismo produz a disparidade
nos resultados de repetência e proficiência
A implantação das Diretrizes pode assim entre brancos e negros (pretos e pardos)
ser considerada uma outra dimensão do (Munanga, 2005).
que Maio e Santos (2005) chamaram de Nos últimos anos temos visto crescer
“pedagogia racial” de conversão identitá- as pesquisas sobre o tema do racismo na
ria. Com isso, podemos agora listar alguns escola com trabalhos mais etnográficos
dos passos que estão sendo tomados para e muitos estudos de caso em que há uma
redefinir esse universo das identidades nas relativa perplexidade diante dos dados.
escolas do estado do Rio de Janeiro. Fazzi (2004), em estudo em escolas do
Representantes dos movimentos negros ensino fundamental em Minas Gerais, nos
são chamados a ser “olhos da sociedade” apresenta o que chamou de drama racial

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 112-129, dezembro/fevereiro 2005-2006 127


de crianças entre 6 e 8 anos que vivem a que a variável que mais afeta a avaliação
experiência dolorosa de ter que lutar para das professoras não é nem a posição so-
sair da identificação com a categoria preto cial, nem a “raça”, mas o gênero. Meninas
para assim se esquivar do tratamento desi- tendem a ser avaliadas mais positivamente
gual por parte de seus pares. Outros estudos do que meninos.
têm tentado demonstrar que o racismo, O remédio encontrado para combater o
embora não percebido por professores, racismo nas escolas e que se impõe por força
pais, estudantes, diretores e pessoal técnico de lei – ou seja, as Diretrizes Curriculares
nas escolas, é evidente nos números, como Nacionais para a Educação das Relações
faz, por exemplo, Cavalleiro (2005). Há Étnico-Raciais e para o Ensino de História
estudos que buscam perceber se o racismo e Cultura Afro-Brasileira e Africana – deve
afeta a percepção dos professores sobre a ser aplicado em todo o território nacional.
disciplina e o desempenho dos estudantes, Narramos apenas um caso de aplicação desse
como o de Carvalho (2005). Nesse último, remédio em uma escola de ensino médio
a autora descobre que o comportamento das no Rio de Janeiro na qual os alunos estão
professoras em relação às crianças não varia sendo expostos a essa nova pedagogia racial
segundo a cor dos alunos, mas parece que alinhada à visão dos movimentos negros.
interfere na avaliação do desempenho es- Nossa pesquisa ainda está no seu começo,
colar. Já Barbosa (2004), estudando escolas há muitas experiências em curso e temos, até
também de ensino fundamental, descobre aqui, mais perguntas do que respostas.

BIBLIOGRAFIA

AGUILLERA, Sandra Mara et al. Os Negros, os Conteúdos Escolares e a Diversidade Cultural. 2a ed. Florianópolis,
Atlende, 2002.
BARBOSA, Maria Ligia. “Diferencias de Género y Color”, in R. Donald Winkler & Santiago Cueto (orgs.). Las Escuelas
de Brasil: los Maestros y la Evaluación de los Alumnos en Etnicidade, Raza, Género y Educación en America Latina.
Santiago, Preal, 2004
BRASIL, Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, MEC/Secad, 2005.
CABRINI, Conceição; CATELLI JR., Roberto & MONTELLATO, Andrea. História Temática. Diversidade Cultural e conflitos.
6a série do Ensino Fundamental. São Paulo, Scipione, 2005a.
________. História Temática. O Mundo dos Cidadãos. 8a série do Ensino Fundamental. São Paulo, Scipione, 2005b.
CARVALHO, Irene Mello. Introdução aos Estudos Sociais. 9a ed. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1970, pp. 100-1.
CARUSO, Carla. Zumbi, o Último Herói dos Palmares. São Paulo, Instituto Callis, 2005.
CAVALLEIRO, Eliane. “Discriminação Racial e Pluralismo nas Escolas Públicas da Cidade de São Paulo”, in Educação
Anti-racista: Caminhos Abertos pela Lei Federal 10639/03. Brasília, Secretaria de Educação Continuada, Alfabeti-
zação e Diversidade, 2005.
COTRIM, Gilberto. Educação Moral & Cívica para uma Geração Consciente. 2o grau. São Paulo, Saraiva, 1986.
CUNHA JUNIOR, Henrique et al. Os Negros e a Escola Brasileira. Florianópolis, Atlende, 1999.
DUARTE, Gleuso Damaceno. Conjuntura Atual em OSPB. Belo Horizonte, Lê, 1982.
ENCARNAÇÃO, Marisa. “Bons Índices, Boa Escola?”. Texto apresentado na Jornada dos Estudantes do PPGSA/IFCS/
UFRJ, 2005 (mimeo.).

128 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 112-129, dezembro/fevereiro 2005-2006


FAZZI, Rita de Cássia. O Drama Racial de Crianças Brasileiras: Socialização entre Pares e Preconceito. Belo Horizonte,
Autêntica, 2004.
FRY, Peter Henry. A Persistência da Raça: Ensaios Antropológicos sobre o Brasil e a África Austral. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 2005.
GALENO, Sabrina. “O que É uma Boa Escola?”. Texto apresentado na Jornada dos Estudantes do PPGSA/IFCS/UFRJ,
2005 (mimeo.).
GÓES, José Roberto Pinto de. “O Racismo Vira Lei”, in O Globo, 16/8/2004.
HASENBALG, Carlos. Discriminação e Desigualdades Raciais no Brasil. Rio de Janeiro, Graal, 1979.
LUCCI, Elian Alabi. OSPB – Organização Social e Política do Brasil. São Paulo, Saraiva, 1984
MAIO, Marcos Chor & SANTOS, Ricardo Ventura. “Política de Cotas Raciais, ‘os Olhos da Sociedade’ e os Usos da
Antropologia: o Caso do Vestibular da Universidade de Brasília (UnB)”, in Horizontes Antropológicos, ano 11, n.
23, janeiro/junho de 2005.
MULLER, Ricardo G. et al. Educação Popular Afro-Brasileira. 2a ed. Florianópolis, Atlende, 2002.
MUNANGA, Kabengele (org.). Superando o Racismo na Escola. Brasília, Secretaria de Ação Continuada, Alfabetização e
Diversidade, MEC/BID /Unesco, 2005 [1999, 2000].
NASCIMENTO, Elisa Larkin et al. Negros, Território e Educação. Florianópolis, Atlende, 2000.
NEVES, Yasmin Poltronieri et al. As Idéias Racistas, os Negros e a Educação. 2a ed. Florianópolis, Atlende, 2002.
NOGUEIRA, Oracy. “Preconceito Racial de Marca e Preconceito Racial de Origem”, in Tanto Preto Quanto Branco:
Estudos de Relações Raciais. São Paulo, T. A. Queiroz, 1985.
OLINTO, Antonio. O Rei de Keto. 2a ed. Rio de Janeiro, Nórdica, 1980.
OLTAMARI, Leandro Castro et al. Os Negros, os Conteúdos Escolares e a Diversidade Cultural II. 2a ed. Florianópolis,
Atlende, 2002.
PASSOS, Joana Célia dos et al. Multiculturalismo e a Pedagogia Multirracial e Popular. Florianópolis, Atlende, 2002.
ROUANET, Sergio Paulo. As Razões do Iluminismo. São Paulo, Companhia das Letras, 1992.
PINGUILLY, Yves. Contos e Lendas da África. São Paulo, Companhia das Letras, 2005.
SAERP, Malu. “Centro e Periferia: um Estudo sobre a Sala de Aula”. Texto apresentado na Jornada dos Estudantes do
PPGSA/IFCS/UFRJ, 2005 (mimeo.).
SILVA, Ana Célia et al. As Idéias Racistas, os Negros e a Educação. 2a ed. Florianópolis, Atlende, 2002.
SOUSA, Michele Sousa. “Uma Aula de Transcrição?”. Texto apresentado na Jornada de Iniciação Científica da UFRJ,
2005 (mimeo.).

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 112-129, dezembro/fevereiro 2005-2006 129

Você também pode gostar