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A formação de um mercado de microfinanças no sertão da Bahia

Article  in  Revista Brasileira de Ciências Sociais · January 2005


DOI: 10.1590/S0102-69092007000100009

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Regi Magalhães Ricardo Abramovay


Plural Consulting University of São Paulo
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A FORMAÇÃO DE UM MERCADO
DE MICROFINANÇAS NO SERTÃO
DA BAHIA

Reginaldo Sales Magalhães e


Ricardo Abramovay

Introdução mentos sociais e econômicos até então inexisten-


tes. O trabalho religioso promoveu a emergência
A trajetória histórica das mais importantes de um modo de ver e de se relacionar que possi-
experiências de organização econômica voltadas bilitou a formação de um tipo específico de racio-
para a inserção de populações rurais de baixa nalidade econômica. Isso não quer dizer que as
renda em mercados mostra uma surpreendente decisões tomadas nas assembléias e nos conselhos
revelação: entre os casos bem-sucedidos, é fla- de administração das organizações ou a forma de
grante a participação da maioria de seus dirigen- gestão financeira dos agricultores sejam, a todo o
tes e associados no trabalho político e pastoral momento, guiadas por compromissos religiosos,
mas sim que existe uma predisposição psicológica
das Comunidades Eclesiais de Base.1
que ata cada indivíduo a um compromisso social
Algo inédito foi introduzido pelo trabalho
na vida econômica. E esse compromisso, sim,
pastoral na vida destas comunidades, a saber, a
encontra seus fundamentos no trabalho pastoral.
formação de um novo ethos que se expressa em
Qual o significado cultural desse processo
formas singulares de organização econômica. A
histórico e quais suas conexões com a vida pro-
partir dos anos de 1970, nas catequeses, nas rezas,
priamente econômica? Há nessas experiências
nos círculos bíblicos, nos cânticos e nas festas reli- uma singularidade histórica de enorme importân-
giosas construíram-se os alicerces de comporta- cia: os comportamentos dos indivíduos com rela-
ção ao uso de seus recursos materiais e financei-
Artigo recebido em fevereiro/2006 ros não se formam sobre a base da autonomia da
Aprovado em janeiro/2007 esfera econômica na vida social. Ao contrário, é

RBCS Vol. 22 nº. 63 fevereiro/2007


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sobre a base da preservação dos valores básicos econômicas dos agricultores familiares, por exem-
ligados à doutrina social da Igreja que se erguem plo, oferecem uma alternativa à oposição polar
organizações capazes de nortear a conduta dos tão freqüente nas ciências sociais – e na política
indivíduos que delas participam. Solidariedade, (Abramovay, 2004a). De um lado, a idéia de que
união, organização social e luta não são princí- os mercados são soluções mágicas para todos os
pios desprezados em relação a fatores mais pro- problemas sociais; instâncias, de certa forma a-
priamente econômicos, como eficiência, balanço sociais, que não dependem de qualquer influên-
contábil, sustentabilidade financeira ou sobras das cia advinda de grupos, classes ou relações per-
cooperativas. manentes entre indivíduos e que funcionarão
A compreensão dessas experiências revela tanto melhor para a alocação de recursos quanto
que duas dimensões da vida social – há muito mais pairarem acima da sociedade. De outro lado,
separadas pelas ciências sociais – são componen- a idéia, justamente oposta, de que os mercados,
tes intrinsecamente relacionados na formação das como esfera autônoma da vida social, são incompa-
organizações econômicas e dos mercados: ética e tíveis com o bem-estar e com valores propriamente
economia. Parcela significativa dos estudos sociais humanos e éticos. Este é o ponto de vista, por
contemporâneos procura reunificar aquilo que a exemplo, de Jean-Paul Marechal em Humaniser
história do pensamento econômico, desde seus pri- l’économie (2000). Segundo ele, a economia de
mórdios, tratou como esferas distintas e até autô- mercado não é capaz de conciliar desempenho
nomas da vida social. Para Amartya Sen (1982), por econômico com progresso social.2
exemplo, a abordagem “logística”, “engenheira” da Ora, não são poucas as experiências oriundas
economia (que se ocupa dos aspectos relacionados dos movimentos sociais em que as visões de
à eficiência alocativa), e a abordagem “ética” (vol- mundo formadas a partir da Teologia da Libertação
tada ao tema aristotélico de “como devemos possibilitaram a formação de mercados capazes de
viver?”) podem e devem integrar-se sob o ângulo unificar a racionalidade econômica – expressa em
científico. Albert Hirschmann (1986) segue, em contabilidade racional e na calculabilidade geral
seus trabalhos, essa mesma linha de raciocínio. E das atividades (Weber, 2000) – com a tentativa per-
no campo da sociologia econômica contemporâ- manente de promoção de valores ligados à eqüida-
nea, os mercados, tributários das estruturas sociais de e à participação direta dos indivíduos e grupos
e da regulação pública, não se encontram acima na gestão de seus negócios. Contra a polaridade
da ética, como bem mostra o trabalho tão impor- entre o endeusamento e a diabolização do merca-
tante de Neil Fligstein (2001). do opõe-se um terceiro ponto de vista, segundo o
Nas organizações econômicas que emergiram qual mercados são estruturas sociais e, mais do que
do trabalho popular das Comunidades Eclesiais de isso, constituem campos (no sentido que Pierre
Base, a gestão racional desenvolveu-se em conco- Bourdieu atribui ao termo) e que, portanto, envol-
mitância com a formação de um projeto político e vem, de forma permanente, uma disputa entre dife-
social que orienta suas ações. São dois pesos de rentes grupos sociais em torno de sua dominação.
uma mesma balança, que ora pende para um lado, O que explica esta presença tão forte da ação
ora para outro, num equilíbrio sempre mediado e dos ideais éticos das Comunidades Eclesiais de
por conflitos, mas são duas dimensões levadas em Base na grande maioria das organizações econô-
conta nas decisões dos indivíduos, nas regras das micas voltadas para a valorização do trabalho de
organizações e dos mercados e nas diferentes for- populações rurais de baixa renda? Que elementos
mas de controle social sobre os comportamentos. intrínsecos do trabalho religioso levaram – de
Outra característica particular dessas organi- forma não intencional – a conseqüências impre-
zações econômicas é que elas se assentam na for- vistas – e talvez até indesejadas – de vincular a
mação de mercados que, apesar de seguirem luta pela justiça social a organizações pautadas
padrões de gestão profissional dos negócios seme- pela racionalidade econômica? Como foi possível
lhantes aos das empresas modernas, têm embuti- ligar a ação social movida por valores de nature-
do em suas instituições o compromisso com um za solidária e comunitária com aquela que se
projeto social. Sob esse aspecto, as organizações organiza de maneira impessoal em torno do cál-
A FORMAÇÃO DE UM MERCADO DE MICROFINANÇAS… 109

culo econômico, do balanço, da obtenção de base da superação de uma visão mágica que mar-
ganhos e da necessidade de se “fechar as contas” cava as relações entre os sertanejo, a sociedade e
da organização? a natureza, assim como de superação das relações
A formação de um mercado de microfinan- tradicionais que asseguravam a permanência dos
ças no sertão da Bahia é um exemplo – entre monopólios nos mercados locais. Essa nova racio-
outros – desta espécie de quadratura do círculo. O nalidade econômica, combinada com os compro-
importante – sob o ângulo sociológico – é com- missos éticos, formou o amálgama das redes de
preender sua particularidade: trata-se de um mer- cooperação e das cooperativas de crédito que tor-
cado que resultou de um longo processo de naram possível o acesso dos agricultores familiares
mudanças culturais e institucionais, numa realida- a um novo mercado financeiro formal. Este é um
de onde o indivíduo e o ambiente típicos da tra- caso em que a valorização da eficiência econômi-
dição sertaneja são profundamente modificados ca se apóia em preceitos de natureza religiosa, mas
na trajetória de formação de uma nova visão de que – contrariamente à situação clássica descrita
mundo, de uma nova racionalidade econômica e por Max Weber – não envolvem, fundamentalmen-
de novas instituições. Na base dessas novas insti- te, ascetismo e ética individualista. Vejamos a ques-
tuições está a formação de um padrão de com- tão mais de perto.
portamento racional, não só orientado por interes-
ses individuais – buscados por meios coerentes e
cada vez mais “calculativos” (Callon, 1998) –, como O indivíduo e o ambiente típicos da
também portadores de uma ética cujos principais tradição sertaneja
fundamentos são a cooperação e o compromisso
com a redução da pobreza. O território do sisal compreende 27 municí-
O clima semi-árido do território sisaleiro da pios, das microrregiões do Nordeste, Piemonte da
Bahia provoca grande instabilidade na vida finan- Diamantina e Paraguaçu do estado da Bahia. A pro-
ceira das famílias, dos mercados e das organiza- dução e o beneficiamento de sisal são a principal
ções. Os mercados caracterizam-se por monopólios fonte de renda da população, como também os ele-
tradicionais, com regras que mantêm os agriculto- mentos basilares da identidade sociocultural e das
res em permanente endividamento e subordinação instituições sociais e econômicas regionais. O clima
aos agentes econômicos que controlam as princi- semi-árido, caracterizado por longos períodos de
pais organizações locais e que gerem um amplo seca e média pluviométrica entre 300 e 550 mm ao
circuito financeiro informal, principalmente os co- ano, define o contexto natural no qual se estrutu-
merciantes de sisal e os ciganos. Em contrapartida, ram as atividades produtivas e as relações sociais.
os próprios agricultores criaram também suas pró- Os traços característicos e primordiais para
prias estratégias de sobrevivência e estruturas autô- a compreensão do universo cultural e econômi-
nomas de financiamento de suas necessidades de co em que vivia a população rural pobre da
produção e consumo. Baseadas em relações histó- região sisaleira há algumas décadas eram a su-
ricas de cooperação, as instituições comunitárias bordinação aos monopólios tradicionais e a
tradicionais – com suas regras próprias de partici- existência de um sistema padronizado de cren-
pação, troca e controle – contribuem para a viabi- ças (Nee, 2003, p. 4), valores religiosos e cultu-
lidade financeira das unidades familiares. Mas elas rais, normas sociais e instituições, interiorizados
não são hábeis o suficiente para estabelecer rela- na mente dos indivíduos (North, 1990) e que
ções externas à comunidade. Esse ambiente natu- orientavam as transações financeiras comunitá-
ral, social e cultural foi aos poucos sendo transfor- rias. Atividades lúdico-religiosas, como festas e
mado, a partir da década de 1970, pelos padres rezas caseiras, criaram vínculos sociais e, junto
missionários da Teologia da Libertação e pelos com o trabalho, configuraram o âmbito e o fun-
militantes comunistas que passaram a dirigir os sin- cionamento de uma unidade de relações sociais
dicatos. A ação da Igreja, via Comunidades Eclesiais básicas.
de Base, e os compromissos políticos, construídos Nas organizações econômicas comunitárias,
em torno dos sindicatos e das associações, foram a típicas do sertão nordestino, os compromissos
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com Deus ou com o grupo de vizinhos nutriam – convenções tradicionais e em coação. A existên-
e em muitos lugares isso ainda ocorre – as rela- cia de instituições tradicionais, como os monopó-
ções de reciprocidade e solidariedade nas trocas. lios e as instituições comunitárias, pressupõe certas
A sobrevivência de cada membro das comunida- disposições psicológicas e culturais nos indivíduos
des rurais da região sisaleira depende não da que sustentam esse padrão mental compartilhado,
busca individual por resultados, mas, sobretudo, herdado de antigos costumes e crenças.
das tradições e dos valores da comunidade, que A “mão de gato”, expressão pela qual é conhe-
garantem coletivamente os meios de sobrevivên- cido o comércio de sisal, exerce um grande poder
cia de todos. O sertanejo típico tem um senso de de controle sobre a vida financeira dos agricultores:
dever com a comunidade e uma vida regrada pelo um controle personalizado e clientelista. A grande
temor a Deus; um modo de ver e agir tradicional concentração de poder na mão dos comerciantes, as
sobre os mercados circunscritos às comunidades. dificuldades de acesso a informações e a falta de
É dessa forma que a realização de trocas financei- possibilidades de escolha por parte dos produtores
ras que atendem aos interesses individuais se con- geraram um forte monopólio nos mercados agríco-
solida a partir do fortalecimento de relações de las e, por associação, no mercado financeiro infor-
cooperação e solidariedade, expressando, assim, o mal local, aquele que garante o financiamento da
sentido social do próprio dinheiro (Zelizer, 1997). produção e da comercialização dos produtos agrí-
As instituições comunitárias tradicionais são colas. É o mercado de “venda na palha”, um meca-
formas de organização da poupança comunitária. nismo tradicional de controle que se dá via o endi-
Mas, para que funcionem com baixos custos de vidamento (Abramovay, 1998 [1992]).
transação, essas instituições orientam-se por dife- Outra importante instituição financeira tradi-
rentes regras, conforme as suas finalidades especí- cional da região sisaleira é o empréstimo de dinhei-
ficas. Os mutirões são atividades obrigatórias, pau- ro a juros, agenciado pelos ciganos. Com tradições
tadas por regras de reciprocidade e baseadas no culturais e regras de comportamento próprias, eles
compromisso com a comunidade. Já as caixinhas vivem em grupos rigidamente fechados, coesos e
e consórcios são práticas orientadas pela participa- governados por uma densa malha de preceitos
ção voluntária e apóiam-se numa relação de con- morais. Medo, desconfiança e preconceito por
fiança e compromisso com o grupo. Os bingos, parte dos não ciganos reforçam sua capacidade de
balaios e campanhas são, por sua vez, instituições controlar operações financeiras com segurança. As
cuja participação também é obrigatória para todos relações são personalizadas e as negociações, rea-
os membros da comunidade que tenham recursos lizadas entre famílias, o que permite controlar de
disponíveis para ajudar aos necessitados, guiados perto o risco dos empréstimos e o limite que pode
pela solidariedade e apoiados num compromisso ser emprestado a cada pessoa. A pressão constan-
religioso. A reciprocidade, muito mais do que o te e, em alguns casos extremos, a violência, garan-
ganho individual, é o princípio organizador des- tem o pagamento.
sas formas de troca, mesmo em instituições onde O fiado – prática comum em todo o comér-
objeto de troca é o dinheiro, como nas caixinhas. cio das pequenas cidades da região – é um recur-
Porém, fora das fronteiras comunitárias, a so financeiro necessário para todos os agricultores,
reciprocidade dá lugar à subordinação, e a soli- especialmente nos períodos de seca. Da mesma
dariedade, à exploração. As relações econômicas forma que nas demais instituições, o conhecimen-
são determinadas pela subordinação personifica- to interpessoal possibilita a avaliação do risco de
da (Abramovay, 2004b) aos monopólios tradicio- crédito e a pressão social necessária para o cum-
nais do mercado de sisal – comerciantes e agentes primento do pagamento. Por outro lado, o endivi-
financeiros informais. O uso freqüente de merca- damento constante torna cada grupo de consumi-
dos imperfeitos (Garcia-Parpet, 2003) que apre- dor dependente de um comerciante, o que lhe
sentam baixos custos de transação e, por isso, têm garante a formação de pequenos monopólios.
fácil acesso aos agricultores pobres criou, porém, Com o objetivo primordial de tentar, a todo
monopólios assegurados ao longo da história por custo, estabilizar a renda, os agricultores usam
uma vigência legítima (Weber, 2000), baseada em esses mercados de altos custos financeiros, perpe-
A FORMAÇÃO DE UM MERCADO DE MICROFINANÇAS… 111

tuando uma condição de endividamento e de pen- e das suas formas de interação com os mercados:
dência. Vínculos personalizados, compromissos fa- 1) a Igreja promoveu um processo de mudança
miliares, comunitários e senso de dever impõem o no padrão tradicional de relações sociais com os
cumprimento efetivo das regras constituintes des- mercados; 2) posteriormente, a organização das
ses mercados. Em contrapartida, a gestão das uni- associações comunitárias e dos sindicatos possibi-
dades produtivas e domiciliares, por meio de estra- litou a continuidade de relações tradicionais e o
tégias complexas de consumo, poupança e crédito, acesso a novos mercados orientados por uma
é fei-ta num ambiente de profunda incerteza pro- nova cultura política; e 3) o trabalho educativo da
vocada pela condição climática característica do Apaeb, uma organização não governamental for-
semi-árido. A vigência social restrita do cálculo mada no âmbito das Comunidades Eclesiais de
econômico reduz a liquidez dos ativos, especial- Base, ampliou a capacidade de cálculo e de pla-
mente das poupanças monetárias, alte- rando os
nejamento tanto da vida produtiva como da vida
sentidos racionais, com os quais os sertanejos
doméstica dos sertanejos.
administram seus recursos, e fazendo com que a
O sertanejo típico traz de sua tradição caracte-
racionalidade do comportamento sertanejo não
rísticas culturais que apresentam fortes relações com
possa ser orientada exclusivamente por critérios
econômicos. Os compromissos tradicionais, a reci- seu comportamento econômico. Uma delas é sua
procidade nas comunidades e a dependência clien- visão da natureza. Perpetuam-se explicações mági-
telista no mercado governam a vida social e eco- cas, na tentativa de racionalizar e orientar o com-
nômica desse território. portamento, inclusive o planejamento da produção e
Esse ambiente compõe um ethos social que a organização financeira do domicílio, em face dos
não estimula a inovação, não facilita a busca de no- fenômenos físicos. Os dias de santo, com suas res-
vas organizações econômicas e reproduz uma longa pectivas festas, rezas e rituais, têm a mesma impor-
condição precária de acesso a mercados, a finan- tância que os preços para as decisões econômicas.
ciamentos, à produção e à própria sobrevivência. Outra característica determinante para o com- porta-
Como conseqüência, observa-se o endividamento mento econômico – decorrente da pobreza e da
permanente dos agricultores e a manutenção de dependência em que ele se encontra com relação
sua condição de pobreza e de subordinação polí- aos que financiam sua própria subsistência – está no
tica e social. círculo das relações sociais do sertanejo tradicional,
A conquista da autonomia de uma parcela e, sobretudo, na resignação, na subordinação, na
expressiva de agricultores familiares, da sua capa- fidelidade ao compadrio, na expectativa paternalista
cidade de buscar novos mercados, de criar orga- com relação ao Estado e nos vínculos éticos, religio-
nizações que reduzam seus custos e a melhor sos e afetivos que ligam os indivíduos a um mundo
organização da sua vida financeira tornou-se pos- de obrigações sob estrito controle comunitário. Tais
sível, recentemente, graças à formação de divesas visões tradicionais sobre a natureza e a sociedade
organizações, entre elas as que representam o apo- apresentam uma forte influência sobre o comporta-
geu do processo de racionalização, as cooperati- mento dos indivíduos diante de suas decisões eco-
vas de crédito. Tais organizações – como é próprio
nômicas e das regras estabelecidas no mercado.
da racionalidade econômica – são frutos de um
Por que a religião apresenta essa estreita
longo processo de desencantamento. O interes-
relação com a economia? Segundo Flavio Pierucci,
sante é que esse processo foi construído passo a
passo pelas Comunidades Eclesiais de Base, pelos
[…] não é possível explicar nem mesmo a econo-
sindicatos de trabalhadores e pela Associa- ção
mia e seus diversificados desenvolvimentos sem
dos Pequenos Agricultores da Bahia (Apaeb).
levar a sério os aspectos essenciais da história cul-
tural, sobretudo da vida religiosa (2003, p. 179).

As mudanças culturais A chegada à região sisaleira de um grupo de


padres e freiras italianas na década de 1970 é,
Três processos sociais contribuíram para a paradoxalmente, o início de uma importante rup-
transformação do universo cultural dos sertanejos tura com o tradicionalismo. Os “círculos bíblicos”,
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as celebrações coletivas e as festas religiosas segundo Weber esta foi uma tendência nas reli-
foram as primeiras e mais elementares experiên- giões cristãs ocidentais – para o “mundo de baixo”,
cias de construção de uma nova forma de coesão para as soluções de problemas da vida concreta e
social. As práticas religiosas organizadas por lei- menos para os problemas de ordem transcendental.
gos e lideranças comunitárias tinham, além do Dessa forma, o trabalho religioso tornou transpa-
caráter catequizador, a missão de promover dis- rente uma realidade social até então muito obscu-
cussões sobre a realidade local, os problemas dos ra, fazendo com que a visão de mundo tradicional
agricultores, sobre a importância das organiza- fosse, aos poucos, sendo substituída por uma visão
ções, do levantamento e da articulação das suas crítica e racional da realidade. Mudando a visão
reivindicações (Oliveira, 2002). social segundo a qual “o mundo é assim porque
A Teologia da Libertação era o fundamento sempre foi assim” para outra que vê um “mundo
político-religioso da ação das Comunidades Eclesi- que pode e deve mudar”. Mas o método das Co-
ais de Base. A estratégia pedagógica de conscienti- munidades Eclesiais de Base foi ainda além da mu-
zação social por intermédio da fé consistia no uso dança de visão dessa população: promoveu a con-
de um método educativo, normalmente identifica- fluência do aspecto filosófico maior embutido na
do pelo tripé “ver-julgar-agir”, cujo significado tentativa de imprimir sentido aos textos religiosos
compreendia a análise, seguida de uma discussão com as necessidades práticas da luta dos trabalha-
em pequenos grupos, com a população local sobre dores. Dessa nova visão de mundo surgiram novas
seus problemas mais graves. Nesse contexto, reli- organizações.
giosos e leigos, especialmente orientados para O indivíduo formado nas reuniões das
essas funções, aprofundavam a compreensão do Comunidades Eclesiais de Base e nas lutas sindi-
problema sob o ângulo da fé, relacionando as cais crê profundamente que sua sobrevivência de-
questões éticas e práticas ao evangelho e a expli- pende dos laços familiares, comunitários e associa-
cações políticas e sociológicas. Daí resultava a ela- tivos que conseguir formar e conservar. A diferença
boração, junto com as comunidades, de um plano resultante desse processo formativo do trabalho
de ação e luta (Novaes, 1987). Como testemunhou religioso foi estimular laços sociais que antes se
uma liderança local: davam em torno de antigas relações comunitárias,
a partir da adesão consciente a um corpo de idéias,
[…] nessa época era cego, assim não entedia de a uma cultura política (Abramovay, 1981, p. 135).
nada, de sindicato nem de associação e através Em parceria com a paróquia da região, o
deste trabalho com os padres italianos que teve Movimento de Organização Comunitária (MOC)
aqui que a gente […] começou a se organizar e passou a desenvolver um trabalho educativo e de
fazer reunião nas comunidade, formamos uma apoio às organizações comunitárias e às oposições
diretoria e tomamos o sindicato da mão dos polí- sindicais.3 Essas organizações basearam-se não só
tico. E aí pronto o povo se organizando cada vez nas tradicionais relações comunitárias, mas também
mais, formamos a associação aqui na comunida-
numa união de interesses racionalmente motivados,
de em 85. Foi a primeira associação. A gente luta-
fruto do trabalho político-religioso. Uma combina-
va por melhoria de vida na comunidade. Pra rei-
ção de tradição e modernidade passou a caracteri-
vindicar os direitos da gente na prefeitura, o
prefeito em nome das pessoas da comunidade só zar, então, a vida comunitária deste território. A
fica mais difícil da gente conseguir então em modernização da vida rural não provocou – ao con-
nome da associação o povo tem mais força de trário do que ocorrera em outros processos de
conseguir. Nós pedimos aguada, várias coisas a incorporação de comunidades à esfera da economia
gente conseguiu na época (Erenita Leonice de moderna – a desestruturação das relações tradicio-
Oliveira, Valente, 2004). nais, nem o enfraquecimento das relações de coo-
peração. Ao contrário, somou-se ao objetivo das
Isso mostra que a Teologia da Libertação não antigas tradições comunitárias – que era integrar
estava preocupada apenas com a salvação das al- seus membros num tipo de economia semifecha-
mas, mas principalmente com a vida das pessoas. da – o papel das associações comunitárias de
O interesse religioso está muito mais voltado – e constituir elos de conexão entre as comunidades e
A FORMAÇÃO DE UM MERCADO DE MICROFINANÇAS… 113

as redes externas. A partir dessas relações de coo- dições de habitação, de saneamento, de bens
peração, que garantiam condições mínimas de domésticos e da divisão social do trabalho fami-
sobrevivência, foram forjadas relações associativas liar entre os sexos. Com este diagnóstico em
que permitiram novas conexões com o mercado. Às mãos, técnicos e agricultores, em oficinas e visi-
regras informais das relações comunitárias foi incor- tas de campo, fazem o planejamento produtivo e
porado um conjunto de formas modernas de orga- de melhoria das condições de vida. Com base
nização, como a constituição jurídica de associa- nisso, são definidas as atividades a serem finan-
ções, a definição de estatutos e regimentos para o ciadas e implementadas por cada família. Em par-
funcionamento dos grupos, o planejamento racional ceria com a Apaeb, realiza-se um trabalho de
das ações, o uso da contabilidade na gestão dos assistência técnica e difusão de tecnologias por
recursos coletivos e a assinatura de contratos entre meio de “agentes de convivência com o semi-
os indivíduos e as organizações. A mudança na vida árido”, agricultores indicados por sindicatos de
religiosa abriu, assim, o caminho para a formação trabalhadores rurais, Igreja ou outras instituições
de uma nova relação com o mundo secular. locais, que são capacitados e acompanhados por
Uma das organizações mais importantes técnicos da organização.
oriundas desse processo de mudança cultural foi a Essas três instituições, que ajudaram a desen-
Apaeb, que teve um papel determinante na forma- volver, ao longo de quase trinta anos, o senso de
ção da racionalidade econômica dos agricultores. dever, os compromissos políticos e as ferramentas
O trabalho de capacitação e assistência técnica e as de cálculo, passaram a guiar o comportamento
primeiras organizações financeiras desenvolvidas dos indivíduos e constituir novos condicionantes
pela Apaeb levaram a uma importante transforma- da racionalidade econômica. O auge desse proce-
ção na visão dos agricultores sobre o clima e sobre sso de racionalização das organizações econômi-
os recursos naturais do sertão, como também pro- cas dos sertanejos se deu com a constituição das
vocaram importantes mudanças no comportamen- cooperativas de crédito e a formação de um mer-
to econômico dos sertanejos. cado financeiro com características específicas
A principal contribuição da Apaeb foi a intro- para o território do sisal.
dução de uma prática de planejamento e de ino-
vações tecnológicas entre os agricultores, o que
vem ampliando suas habilidades na gestão dos As estruturas sociais do novo
recursos naturais e financeiros. Em 1995, foi lança- mercado financeiro
do o “Programa de Convivência com a Seca”, cujas
diretrizes básicas eram o reordenamento da unida- Quatro experiências de organização financei-
de produtiva familiar, o aproveitamento racional ra foram fundamentais para a aprendizagem orga-
das áreas agrícolas, a preservação do meio ambien- nizacional, que resultou nas cooperativas de crédi-
te, o gerenciamento das atividades tendo como to. A Poupança Apaeb, o Fundo de Investimentos,
parâmetro o mercado, a captação e o armazena- o Fundo Rotativo e o Fundo Solidário, embora
mento de água, inovações tecnológicas para o tendo tido curta duração, pequena abrangência,
armazenamento de alimentos (silos, feno, bancos resultados limitados e, em alguns casos, até mesmo
de proteínas), o rebaixamento da caatinga, o apro- questionáveis, introduziram na vida financeira dos
veitamento da energia solar, o crédito e a assistên- sertanejos da região sisaleira serviços financeiros
cia técnica (Oliveira, 2002). mais acessíveis, mais baratos e mais adequados às
Em 2000, o “Projeto Prosperar” aperfeiçoou demandas locais, bem como mecanismos formais
a metodologia, incorporando métodos ainda mais de controle. A avaliação dos erros e acertos na ges-
racionais de diagnóstico, avaliação e planejamen- tão desses serviços financeiros levou à criação das
to das unidades de produção. Em dois anos, cooperativas de crédito. Em suma, os próprios pro-
1.530 famílias foram atendidas pela assistência tagonistas dessas organizações perceberam que
técnica – diagnóstico das condições sociais, da seu formato institucional conduzia à inadimplên-
ocupação da mão-de-obra familiar, da renda, do cia, à quebra dos compromissos, fazendo com que
consumo familiar, do acesso ao crédito, das con- o desrespeito às regras elementares dos contratos
114 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 22 Nº. 63

de empréstimo ameaçasse a coesão buscada pelo pelo menor preço e a vender a quem oferecer a
trabalho comunitário. A criação de organizações melhor cotação. Esta visão não leva em conta que
formais com regras estritas, então, tornou-se um a mais importante preocupação dos protagonistas
meio prático de fazer da racionalidade econômica de um mercado é estabilizar suas relações uns
um meio de fortalecimento da própria luta por soli- com os outros de forma a reduzir os impactos des-
dariedade social. É interessante observar a ambi- trutivos que a imprevisibilidade do funcionamento
güidade da própria Igreja nesse sentido, ainda mais dos mecanismos de preços lhes traz. Isso não se
porque a experiência dos fundos rotativos se mul- faz necessariamente – como bem mostra o traba-
tiplicou por outras regiões do país: de um lado, lho pioneiro de Granovetter (1985) – por meio de
estimula o acesso ao crédito; de outro, imprime-lhe contratos formais. Mas Fligstein avança teorica-
uma forma organizacional de natureza comunitária mente em relação à contribuição de Granovetter
em que não existem mecanismos coercitivos que porque não caracteriza de forma genérica os mer-
garantam o pagamento das dívidas contraídas. O cados como redes, mas os concebe a partir de
resultado é, evidentemente, a inadimplência gene- uma teoria da ação, na qual os indivíduos estão
ralizada e a desmoralização da própria organização procurando, permanentemente, obter cooperação
coletiva. As cooperativas de crédito originárias de alheia e estabilizar os vínculos sociais que lhes
iniciativas de movimentos sociais no Brasil – tanto permitem dominar ou, ao menos, sobreviver num
as do sertão da Bahia como as do Sistema Cresol determinado campo (Fligstein, 2001).
de Crédito Solidário, no Sul do Brasil (Bittencourt Ora, neste campo específico que são os mer-
e Abramovay, 2001; Junqueira e Abramovay, 2005) cados, a cooperação se estabiliza com base na
– são respostas a essas insuficiências das formas de resolução de quatro questões centrais: a) os direi-
compromisso comunitário diante das exigências tos de propriedade, que determinam a quem per-
próprias à formação de um mercado de crédito. tencem os resultados econômicos das atividades
De fato, mais que uma organização, o que se levadas adiante nos mercados; b) as estruturas de
criou foi um novo mercado que passa por uma governança, que estabelecem as modalidades de
complexa rede de organizações, fluxos de infor- operação e os acordos aceitos como legítimos
mações e intensa movimentação financeira por numa determinada situação; c) as regras de troca,
meio de variados serviços de crédito e de pou- que definem, por exemplo, a moeda e as taxas de
pança. Até 2004 eram nove cooperativas de cré- câmbio a serem utilizadas num determinado mer-
dito, integrantes de uma associação chamada cado; e d) as concepções de controle, que expri-
Ascoob (atualmente uma federação de nome mem expectativas e práticas consagradas por
Fenasccob) com 14 mil associados e um desem- parte não só dos gestores, mas também dos acio-
penho econômico, na média, comparável aos nistas das empresas. Nenhum mercado se estabi-
bancos e um resultado social bastante superior. liza sem contemplar esses fatores fundamentais.
Em dois municípios, Araci e Valente, segundo No caso das cooperativas de crédito, os
dados do Banco Central (2001), o volume das direitos de propriedade são claramente definidos e
operações de empréstimos das cooperativas supe- diferem daqueles que caracterizavam os mercados
ra as operações dos bancos locais. dos quais dependiam tradicionalmente os agricul-
Como lideranças sociais de uma base social tores, que agora possuem cotas que lhes dão direi-
de baixa renda conseguiram formar uma organi- to a determinados montantes de empréstimos. A
zação financeira desse tipo? A resposta pode ser estrutura de governança desses novos mercados
encontrada na organização social que garante as passa pela submissão das cooperativas às regras
condições para a sustentabilidade desse mercado. formais de controle do Banco Central, tornando-
As categorias analíticas oferecidas no trabalho as concorrentes dos bancos comerciais neste seg-
decisivo de Neil Fligstein (2001) ajudam a com- mento – muito pequeno, é verdade, mas, local-
preender o fenômeno. Ele mostra que, contraria- mente expressivo – do mercado de crédito. Além
mente à visão convencional, os mercados não fun- disso, é uma governança que exige transparência
cionam sobre a base de um leilão permanente em em relação ao Banco Central e aos associados
que os atores estão sempre dispostos a comprar –valor decisivo na própria história cultural dessas
A FORMAÇÃO DE UM MERCADO DE MICROFINANÇAS… 115

organizações. As regras de troca vigentes são cla- caso, se refere explicitamente a dois grandes obje-
ramente estabelecidas e vinculam ao compromis- tivos convivência com o semi-árido e redução da
so tradicional com a honra a obrigação assumida pobreza –, anuncia, para usar a expressão de Karl
com os instrumentos de coerção para a recupera- Polanyi, uma racionalidade substantiva na gestão
ção dos recursos emprestados. O fato de tais ins- desse mercado. Contudo, seria fundamental haver
trumentos (protesto de título, por exemplo) não um mecanismo de controle social autônomo e
serem quase nunca empregados mostra a força que não fizesse parte diretamente do sistema eco-
dos vínculos comunitários na base do funciona- nômico. A existência de constantes conflitos de
mento das cooperativas. A concepção de controle interesse entre diferentes grupos sociais – asso-
sobre a cooperativa envolve a fusão entre a sus- ciados versus diretorias, diretorias versus gerentes,
tentabilidade financeira das operações e a necessi- agricultores mais pobres versus comerciantes –
dade de se atender a um público excluído do sis- mostra que os resultados auto-regulados que
tema financeiro formal. Contrariamente, por poderiam ser alcançados no funcionamento desse
exemplo, ao Sistema Cresol de Crédito Solidário, mercado não correspondem aos interesses parti-
do Sul do Brasil – composto exclusivamente por culares de cada grupo social. Em outras palavras,
agricultores familiares –, as cooperativas de crédi- a auto-regulação gerada exclusivamente pelo
to da Ascoob estimulam a associação de comer- mecanismo de preços – neste caso, as taxas de
ciantes e mesmo de agricultores não familiares, juros – não seria suficiente para promover uma
numa lógica batizada como “Robin Hood”: sem a melhor alocação do crédito e da poupança entre
presença de agricultores maiores e comerciantes, os cooperados. Somente a existência de um espa-
jamais as cooperativas poderiam ganhar a susten- ço político de mediação de conflitos de interesses
tabilidade financeira necessária para ampliar seus é capaz de integrar numa mesma organização
serviços financeiros aos mais pobres. diferentes interesses econômicos.
A gestão das cooperativas de crédito depen- Tal mecanismo político convive com formas
de, pois, da manutenção de relações estáveis – e, de gestão centradas na observação da eficiência
nesse sentido, foi aberto um mercado inexistente econômica, da legalidade e do controle rigoroso da
até então – entre seus cooperados e de informa- inadimplência. As cooperativas de crédito estão
ções confiáveis para, de um lado, avaliar os riscos integradas num sistema (neste caso, o Sistema
de crédito e, de outro, transmitir credibilidade, ou Sicoob) que possui regras para estimular sua segu-
seja, criar uma base de confiança para que os rança e sua rentabilidade financeira. São subordina-
cooperados depositem suas poupanças. das também à regulamentação e à fiscalização do
A viabilidade da poupança entre as popula- Banco Central. Mantêm, ainda, estruturas adminis-
ções de baixa renda tem sido alvo de diversas pes- trativas com o uso de contabilidade padronizada e
quisas recentes (Abramovay et al., 2004). A exis- transparente, auditorias regulares, sistemas de con-
tência de recursos monetários nas mãos dos troladoria, métodos formais de controle de risco,
agricultores da região sisaleira é claramente perce- contratos formais para controle de transações, pru-
bida na observação do grande fluxo financeiro do dência nas aplicações financeiras, parecer de con-
mercado informal ou no surpreendente volume de selhos fiscais e prestação de contas em assembléia.
depósitos nas cooperativas. Em muitas delas, os O interessante é que a adesão a esse tipo de racio-
depósitos aproximam-se ou até superam os depó- nalidade não levou ao abandono dos valores em
sitos bancários. Com efeito, redução da assimetria torno dos quais a comunidade construiu historica-
de informação e dos custos de transação, median- mente a sua coesão. Os processos sociais descritos
te a formação de relações de proximidade, é resul- nesse trabalho mostram que a eficiência econômica
tado da formação de uma densa rede de organi- e social das cooperativas de crédito da região sisa-
zações e de relações sociais (Magalhães, 2003). leira se explica, justamente, pelo vínculo forte
A organização social cumpre ainda uma entre a racionalidade econômica e a cultura políti-
outra função, além de garantir as transações ca das organizações sociais da região.
financeiras entre as cooperativas e os agricultores. Diferentes mercados integram-se numa mesma
A existência de um projeto político, que, nesse rede de relações econômicas e sociais (Granovetter,
116 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 22 Nº. 63

2002). A produção de sisal, a fábrica de tapetes, a (Cohn, 2003), que no “mundo encantado”, perfa-
produção de caprinos, as fábricas de laticínios e ziam um amálgama de valores, confundindo os
couros e os artesãos que manufaturam seus pro- meios e os fins que orientavam as ações. Com o
dutos integram-se, todos, numa rede com dois processo de racionalização, os fins econômicos
pontos principais de articulação: o trabalho políti- tornaram-se mais nítidos, separados, regulamenta-
co e educativo conduzido pelo MOC, pela Apaeb dos e formalizados, possibilitando o cálculo e a
e por sindicatos dos trabalhadores rurais, de um avaliação dos resultados da produção sem, contu-
lado, e os serviços financeiros coordenados pelas do, desestruturar os valores e as tradições de soli-
cooperativas de crédito, de outro. Uma rede dariedade e cooperação.
interssetorial, mas com forte identidade territorial, A ação das comunidades eclesiais de base
é um campo fértil para o enraizamento das coo- promoveu uma mudança cultural com forte impac-
perativas de crédito nos sistemas de produção to na organização econômica da população da
local. O conhecimento das condições comerciais, região sisaleira. Com a racionalização, os agriculto-
climáticas, tecnológicas e gerenciais dos empreen- res familiares passaram a experimentar o aumento
dimentos e dos agricultores familiares permite às do uso de regras formais para a regulamentação
cooperativas oferecer serviços financeiros mais das transações financeiras. A racionalidade econô-
adequados às suas demandas específicas. A proxi- mica dos produtores adquiriu, então, um novo
midade abre caminho para uma troca informal de padrão, pois, com o acesso ao crédito, sua produ-
informações imprescindível para a redução da ção passou a ser mais diretamente influenciada
assimetria de informações e dos riscos de crédito. pelos preços. A monetarização da vida financeira
Essa rede de relações sociais, mediadas dos sertanejos levou a uma maior racionalidade na
pelas transações financeiras, permite uma troca gestão dos recursos, ao promover o aumento do
constante de informações que contribui para redu- uso do dinheiro, principalmente para a poupança.
zir incertezas e fortalecer laços de confiança. Além Simultaneamente, o pagamento dos empréstimos
das próprias cooperativas de crédito, sindicatos, passou a ser um parâmetro para a gestão da pro-
associações, comerciantes, representantes de co- dução. Os agricultores começaram, mediante um
munidades, organizações de mulheres etc. intera- trabalho de capacitação e assistência técnica no
gem com grande proximidade e freqüência, tro- planejamento das unidades de produção, a desen-
cando informações sobre os riscos morais e as volver uma nova capacidade de gestão dos recur-
condições financeiras de cada ator. Forma-se, as- sos. Dessa forma, as decisões das famílias em rela-
sim, um mecanismo social de redução dos riscos ção à gestão financeira – quanto e como poupar,
(Ferrary, 1999), que contribui para reduzir as assi- quando vender ou quanto e onde tomar emprésti-
metrias de informação e os custos de transação. mos – tornaram-se mais orientadas por parâmetros
Seus resultados são taxas de juros mais baixas e de mercado.
acesso mais amplo da população aos serviços A criação das cooperativas de crédito provo-
financeiros. cou um rompimento do mercado financeiro local
com o ambiente institucional tradicional, baseado
em vínculos personalizados e clientelistas. Porém,
Conclusão isso não significou uma autonomização da vida
econômica com relação aos laços sociais e seus
Um longo processo de mudanças culturais substratos culturais. Novos vínculos, de novos
criou as condições para a emergência de novas tipos, sobrepuseram-se aos antigos. Não se for-
estruturas sociais e as bases institucionais para a mou um mercado auto-regulável, mas sim um
formação de um mercado de microfinanças na mercado orientado por determinados princípios
região sisaleira. As crenças religiosas, as tradições éticos, como a inclusão social e a sustentabilida-
e o modo específico de o sertanejo se relacionar de ambiental.
com a natureza adquiriram novo significado pela A compreensão sociológica sobre a forma-
ação política e religiosa. Houve um processo de ção do mercado de microfinanças da região do
diferenciação dos diversos significados da ação sisal tem importância crucial para o debate sobre
A FORMAÇÃO DE UM MERCADO DE MICROFINANÇAS… 117

a vida econômica de populações de baixa renda, (Alves, 2004); e Organização dos Agricultores Fami-
com implicações tanto para a formulação de polí- liares na Paraíba (Novaes, 1997).
ticas como para o próprio debate teórico sobre os 2 Perret e Roustang (1993) compartilham também
mercados. Este estudo mostra que as políticas de essa visão. Nessa mesma linha, o livro de Ferrester
promoção do desenvolvimento de regiões e de (1996) talvez seja a expressão mais emblemática.
populações pobres devem levar em conta os
3 Fundado em 1967, com sede no município de Feira
recursos de que as próprias populações dispõem de Santana, o MOC é uma das mais ativas organiza-
e as condições institucionais que os grupos ções brasileiras voltadas para a luta contra a pobreza
sociais precisam desenvolver para ter acesso aos rural e, mais recentemente, urbana. A partir desse tra-
mercados. Ou seja, tal acesso não pode ser pen- balho, criou-se a Associação dos Pequenos Agri-cul-
sado apenas como o resultado de políticas públi- tores do Estado da Bahia, responsável pela gestão de
cas e da formação de novas organizações, mas, uma das mais notáveis iniciativas de economia popu-
sobretudo, como o resultado de processos de lar da América Latina: a fábrica de tapetes de sisal de
desenvolvimento cultural e institucional. Valente, que emprega mais de seiscentas pessoas,
Quanto ao debate teórico, discutimos, em pri- tem importância na exportação brasileira do produto
e é de propriedade comunitária. É do trabalho da
meiro lugar, os limites dos pressupostos individua-
Apaeb também que se originaram as cooperativas de
listas da economia neoclássica e a importância de
crédito da região. Ver site www.moc.org.br/.
análises históricas e empíricas para se compreender
o comportamento real dos mercados. As institui-
ções são condicionantes básicos do comportamen-
to individual e do funcionamento do mercado. A BIBLIOGRAFIA
racionalidade econômica é fruto da conjunção de
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2000); Organização Econômica em Gurupá, na Universidade Federal do Rio Grande do
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Seringueiros no Acre (Costa Sobrinho, 1992); Forma- envolvimento Rural.
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172 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 22 Nº. 63

A FORMAÇÃO DE UM MERCADO MICROFINANCE’S MARKET LA FORMATION D’UN MARCHÉ


DE MICROFINANÇAS NO SER- FORMATION IN THE SERTÃO OF DE MICROFINANCES DANS LE
TÃO DA BAHIA BAHIA SERTÃO DE BAHIA

Reginaldo Sales Magalhães e Reginaldo Sales Magalhães e Reginaldo Sales Magalhães et


Ricardo Abramovay Ricardo Abramovay Ricardo Abramovay

Palavras-chave: Mercados; Microfi- Keywords: Markets; Microfinances; Mots-clés: Marchés; Microfinances;


nanças; Microcrédito; Racionalidade; Microcredit; Rationality; Economic Microcrédit; Rationalité; Sociologie
Sociologia econômica. sociology. économique.

Este artigo analisa as bases culturais This paper analyses the organiza- Cet article analyse les fondements
e organizacionais subjacentes à for- tional and cultural basis over which culturels et organisationnels sous-
mação de mercados financeiros for- financial markets in poor regions are jacents à la formation de marchés
mais em regiões de baixa-renda. A built. The action of grassroots organ- financiers formels dans les régions à
ação das Comunidades Eclesiais de izations (as the basis of communities bas revenu. L’action des Commu-
Base e dos sindicatos de trabalhado- of the Catholic Church) has been nautés Ecclésiales de Base et des
res rurais, a partir dos anos de 1970, especially important in the promo- syndicats de travailleurs ruraux à
foi decisiva para promover um pro- tion of a cultural change process and partir des années 1970, a été décisi-
cesso de mudança cultural e a for- in the formation of a thick network ve pour promouvoir un processus
mação de uma densa rede de orga- of organizations which enlarged the de changement culturel et de forma-
nizações que possibilitaram ampliar access of farmers both to financial tion d’un important réseau d’organi-
o acesso dos agricultores ao merca- markets and new channels of com- sations qui ont permis d’élargir l’ac-
do financeiro e a novos canais de mercialization. This paper recon- cès des agriculteurs au marché
comercialização. Procuramos recons- structs the historical processes of financier et aux nouvelles issues de
truir os processos históricos que constitution of credit unions, show- commercialisation. Nous tentons de
levaram à formação das cooperati- ing especially the influence of natu- reconstruire les processus histo-
vas, revelando-se como fatores fun- ral factors (as the climate, for riques qui ont mené à la formation
damentais a influência do clima instance) over the “sertanejo’s” de coopératives et révélés, comme
sobre os mercados, a racionalidade rationality and the social structures facteurs fondamentaux, l’influence
econômica do sertanejo e as estrutu- of the new economic organizations. du climat sur les marchés, la ratio-
ras sociais das novas organizações nalité économique du paysan et les
econômicas. structures sociales des nouvelles
organisations économiques.

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