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8. Locais traumécicos ~~ a en 3 Introdugéo Auschwia-n no 390 Locais de meméria aconeragosto — A topogafia do teow 35, . . - . ‘Aaura doslocais de memétia eee nnn a9 SEMANY, ASa de Lapages de cceoshan de punceima pane Vporrene c SirmenkerenayGin Be sweat, ARMAZENADORES F adSwel eocgunas ba. Ussiemime, 200) A 0 aT PisSssBacais . tag Wi heres Ik Perssténcia, decadéncia, residwos — Problemas da conseroagio ea ecologia i da cultura. ————$—$$_$_$__-—. nnn ST. i IK Simulagées de meméria na terre perdida do exquecimento — Instalagber de ' GG (C6 se fala tanto de meméria porque ela ji nfo existe mais’ diz a citada PRS EERO ES rs { S= de Pierre Nora', Essa frase atesta a tio conhecida légica segundo 1. Anselm Kiefer a 386 | a qual um fenémeno jé precisa estar perdido, para s6 entio se instalar 2. Sigrid SiguedsSOM convener eee em definitivo na consciéncia. A consciéncia se desenvolve normalmente “no 3. Anne e Patrick Poirier. ne 394 signo do aéabado”, Essa l6gica condiz com o cardter retrospectivo da lembranga, “ acionado somente quando a experiéncia na qual a kembranga se basei LV. Meméria como uo tesoura de s0ffiment05 een 38 consolidada no passado. Tomemos por ora a segunda parce da frase, 1. Christan Boleanski — "A e350 aust" | de que nio existe mais meméria £ assim mesmo? Nao existe mals meméria? E 2. Ciel fotogefico “Evidéncias, de Naomi Terea Salmon 495 i aque tipo de meméria no eristcia mals? " { ‘Quem, por exemplo, associa o saber verdadeiro com o saber de cor tem que All os 9b 05 nn A | admitir que hoje em dia essa arte néo esta nada bem. O curriculo de lingua alema 1. Catadores de farrapos — Sobre a relagdo entre atte € x0 ene 412 | jd ndo prevé que se decorem sequer baladas de quatro estrofes. £ certo que hoje 2. Um pequeno museu para o resto do mundo — Ilya Kabakow —.. 419. ' em dia ainda existem virtuosos memorizadore, que anualmente se rednem em iinionnowse Dane kD._—_— i Lond pa ps nv gun oma Live Pe ate, Recordes com marcas espetaculare? Portm & ineglvel que aera de ouro fee Tat Sa ee ntl Mies Soon 5. Lava elixo — Durs Griinbein——————————— creme BR de Estado ereis uma meméria excepcional; hoje quem é um virtuoso da meméria, Condlusio — A crise da meméria cltural 47 cai no ramo do entretenimento ou até do patolégico: a distancia que separa a Nota bibliog ne a varifc ° * Tradugio: Daniel M: Indice onomdstico — - - oo 445 ' Créditos de imagens + 455, 2 BsPAG# Da RECORDAGKO arte de memorizar da doenga da meméria nao parece mais muito grande. Afinal, por que decorar o que se pode consultar nos livros? © anmento constante da capacidade dos di mente a0 des fos para armazenar conhecimento corresponde direta- jo também crescente do “saber de cor’. Mas, mesmo antes de os ss tomarem o lugar da meméria, 0 valor do saber de cor jé fora ques- 280 jd defendia que conhecimento decorado nao era conhecimento verdadciro. No seu didlogo Fedro [Phaidros] ele eritica nao somente a escrica, mas escarnece também da nova eécnica dos sofistas para memorizar text mediante sua leitura em vor alta. A histdria da arte de memorizar foi acompa- icio por uma critica fundamental a ela, especialmente porque ‘o que se memorizava muito bem nem sempre correspondia 20s padr6es da razio doempirismo."Eutearranco dacabesaessas fabulas queaama de leiterecontou!", consea em uma sitira de Pérsio?. Ena metade do século XVII 0 médico e tedlogo Sir Thomas Browne dissolveu a alianga entre tradigio, conhecimento e meméria ‘quando escreveus “Conhecimento se obtém pelo esquecimento, e se quisermos tum corpo de verdades claro ¢ confidvel, devemos abrir mio do muito que sa- bbemos™, Durante o Renascimento, que experimentou uma recuperagio da arte de memorizat, a critica da meméria também se renovou. Harald Weinrich cha- ‘mou a atengio para essa tradigio, A qual pertencem, entre outros, Montaigne ¢ Cervantes. © romance Dom Quixote pode ser lido como um manifesto pela “dissociagio fundamental entre espirito e meméria’, € nos Ensaios se encontra uma “negagio da pedagogia da meméria de alto desempenho™. Sobretudo nos autores modernos se encontram difamagées da meméria em nome da rezéo, da vvida, da originalidade, da individualidade, da inovagao, do progresso ede quantos ‘oucros nomes renham os deuses da modernidade. Weinrich constata: De qualquer forma é notvel que a inimizade entre ra2t0 e meméria, constarda primeito por Huaree, tena condurido em coda a Europa, desde o lamin: {guerra gencralirada conta a mem, na qual fi vencedoaa rani eiclarecida, Dede entio remor ods uma essa meméra «quer nosenvergonhamos Indo no se vem malts pessoas eclamando deserem fracas d a0. (9.57) uo. Por outro tereres sins ribi de pulmone reuello™ A. Pers ‘Breviqve Adaotatione Critica Denvo Ins 1992 Sarva V, 92/21, ci et D. Ion ovenalis, Satiae 'W. V. Classen, Oxford Univesity Provavelmente Nora entende por “meméria” muito mais a tradigio ‘em geral, ameméria formativa [Bildungrgedichtnis| c menosameméria de apren- dizagem (Lerngediichinis} da mnemotécnica. E através da primeira que 0 indi- ncula a uma nagio ou regido espectfica’. Nos cadernos culturais de contramos regularmente reclamagGes sobre a diminuigéo da ‘em Joachim Fest encontramos a tese de que 0 “e pela destruigio” nao é um fendmeno recente. Na Alemanha dos séculos XIX e XX 05 contextos politicos ¢ culturais foram esfacclados “um apés outro, por tédio ou incompreensio”, e por fim as revoltas da juventude no final dos anos 1960 procuraram apagar, “além de muitos sobreviventes, autoridades e tabus", também linhagens de familia ¢ lembrangas’. Albrecht Schéne, germanista ¢ cestudioso de Goethe, constata nos dias de hoje uma revolugio culcural sub- repticia, um “deslocamento de époce” que afeta um “continente espiritual” inteiro, afastando-o de seu rumo: (© que se sompe no fandamento cultural eo que se perde em relagio as bases de centendimenta ecapacidades de compreensio colevivas, comuns a diversas geragSes, ni de modo algum, somente As grandes obras ancgas. O mesmo se rios de nosso bisav6s ou is cartas de nossas avés! diem resp rambém aos ‘A comunicacio entre épocas € geragées interrompe-se quando um dado repositério de conhecimento partilhado se perde. Da mesma forma que as “grandes obras antigas”, como 0 Fausto de Goethe, 6 sio legiveis nos termos de cextos maiores e mais antigos, como a Biblia — que William Blake chamou de “o grande cédigo da Arte” —, as anotagies de nossos av6s bisavés 36 sio legiveis nos termos das histbrias de familia recontadas oralmente, Hi, entio, um paralelo entre a meméria cultural, que supera épocas e€ guardada em textos normativos, ea membria comunicat s getagbes consecutivas e se baseia nas lembrangas legadas oralmente. Schne diagnostica a diminuigao da que nor -meméria nos dois niveis ~ meméria cultural ¢ comunicativa. Esnagos DA RECORDAGAD Nora descreve a crise da meméria como umn desacoplamento entre passado € presente. Ele fala de uma “queda acelerada em um passado morte cirrecuperiv de um dilaceramento “do que se experienciou e ainda est4 enraizado no calor da no siléncio dos costumes e na reperigio do que é legado por geracoes idade arrasadora’ Tudo que ainda hoje se entend ngcia estd “destinado a0 desaparecimento definitivo no fogo da his Essas afirmagbes poderiam ser relacionadas a uma crise atual da memdria ex: periencial (Erfabrungygedichenis|, que consiste no faro de que, com 0 avango rumo & préxima gerasio, as testemunhas que sobreviveram & maior eatéserofe deste século, a shoah, terio morrido uma a uma. Sobre isso escreve o historiador Reinhart Koselleck: ‘Com a mudanga de gerasio muda também o objeto da obsecvagio. A pesado que & presente impregnado de experitacas dos sobreviventes constr6i-se um par sade puro, depucado das experiéncias. [-] Com 2 recordasio que re era, 0 ‘mento ndo sb aumenta, cambém se altera sua qualidade. Em breve, somente os documen- tos falario, cartegads de imagens, filmes e memée Koselleck descreve a mudanca do passado ainda presente para o passado puro como a substituigio da experiéncia histérica viva pela pesquisa historica cien- tifica. O que isso significa em detalhes? Os ritéios de pesquisa se cornam mais sSbrios, mas talvexserornem também matt ‘lide menos strados de empirismo, ainda que promecam reconhecer 08 objetivar sFangBes de protegio disfargadas, as acusagSes € iografas todas esas técnicasde lidar como passado tificas pontuais e anilizessustentadas por hipétets" (grifo nosto) Palidez, perda, desvanecimento: esses termos sio todos circunscrigées de um que. segundo Koselleck, desemboca de ‘Le opée a lembranga pessoal compérea ea pesquisa hist6rica de abstragio cientifica, Esse modelo sugere que 2 12 Mem, ope iraaDucho: histéria deve primeito estar morta nas nos coragies € nos corpos das pessoas afecadas, para que possa ento se erguer como ciéncia, al qual uma fénix, into houver pessoas afetadas pela lem- a perspectiva x80 cos, mas também de mortificasao, extingso e desva- a partir das cinzas da expé brranga e, com elas, afeego nnecimento da dor ¢ da consternagio, Pode-se afirmar que atualmente ocorre © processo exatamente oposto 20 escrito por Koselleck. O evento do Holocausto nio ficou pilido e descolorido com o passar dos anos, mas, paradoxalmente, esté mais préximo ¢ vivo do que se imaginaria. Formalagées como as seguintes nao sio raras: “Quanto mais nos afaseamos de Auschwitz, tanto mais préximo esse evento est, tanto mais somos acossados pela lembranga desse crime”. Hoje no temos mais que lidar com ‘uma autossuspensio, mas, pelo contririo, com uma intensificagéo do problema da meméria. Isso se deve ao fato de que a meméria experiencial das testemu thas da época, caso nio se deva perder no futuro, deve traduzir-se em uma me rméria cultural da posteridade. Dessa forma, a meméria viva implica uma memé- ria suportada em midias que é protegida por portadores materiais como monu- ‘mentos, memoriais, museus ¢ arquivos. Enquanto os processos de recordagio ‘ocortem espontaneamente no individuo e seguem ségeas gerais dos mecanismos 1uicos, no nivel coletivo e institucional esses processos sio guiados por uma ica especifica de recordagio.e esquecimento. Jé que néo hd auto-organizacio 4c meméra cultural ela depende de mias © de pol ‘meméria individual e viva para a meméria cultural e artifical é certamente pro- blemstico, pois traz consigo 0 risco da deformagio, da redugio e da instru- ‘mentalizagio da recordagio. Tais restrigbes ¢ enrijecimentos s6 podem ser tra- tados se acompanhados de critica, reflexio e discussio abertas. A afirmagio de Nora sobre diminuigio da meméria no presente vai de encontro i tese defendida em um livro feito por nidicos, psicblogos ¢ cientistas culturais norte-americanos. Nesse trabalho fala-sejustamente sobre o crescente papel da recordacio na vida piiblica e de um novo e deseonhecido significado da ‘meméria na culeura contemporinea: Fvemos em um tempo em quea mem a. Apelase & recordagSo para curse, para a discussio reragos 94 nEcORDAGAO individual ecoletivae oferece recotdagio rornou-se parte esseneial dacriagio id palca tanto para conllito quanto paca identiicagio" Enquanto certos tipos de memiria se retraem (como a meméria de apren: dizagem, a formativa c, com referéncia 3 shaah, a meméria experiencial), outras formas ganham claramente imporeincia, como a das midias ou a da politica, pois 0 passado — do qual nos afastamos temporalmente cada vez mai fica completamente sob a custédia de historiadores profisionais. Na forma de reivindicagées ¢ obrigagées tivalizantes, ele também exerce pressio sobre 0 presente. Floje se contrapdem a sintese abstrata de uma historia em particular as ‘uias memérias diferentes e parcialmente conflitantes que tornam efetivo seu ircico de reconhecimento na sociedade. Ninguém pode negar que essas is se tornaram wma parce vital da culeura atual, com suas experiéncias € reivindicagbes tio prépri ‘A primeira parte da frase supracitada de Nora ¢ muito mais facil de validar. Ha mais de uma década se fala muito em meméria, ¢ iso é atestado por uma literatura técnica crescente e cada vez mais densa. O interesse pela meméria transcende as costumeiras fases de “temas da moda” na ciéncia. O fascinio duradouro pelo tema da meméria parece ser uma evidéncia de que diferentes ‘questbes ¢ interesses se cruzam, se estimulam ¢ se condensam, provenientes dos cestudos culeurais, das cigncias naturais ¢ da tecnologia da informasio. © com- putador — conccbido como meméria simulada © armazenada —, da mesma forma que a neurologia com suas novas descobertas sobre a formagéo ¢ 0 des- manche de redes neurais, era um horizonte significativo de questionamentos para a dtea de eseudos euleurais. Essa variedade de abordagens da questo revela que a meméria é um fendmeno que nenhuma disciplina pode monopolizat. (© fendmeno da meméria, na vatiedade de suas ocorténcias, no ¢ transdis- ra univoca por ise apontar novas linhas de desenvolvimento 1 a seguir vamos alternar sempre da meméria quantos forem pos « problemas para trabalhos Facuros. Por is centre as tradigier (mnemotécnica discurso de identidade), as perspectivas (me- mérias coletivae individual) eas midias (textos, imagens, lugares, Tense Past. Culewral Eays in Trauma and Memory. Virginia Wool, Bigraphy, Orlando, Harmondsworth, 1975, p86 srrnopugéo como discursos: literatura, histori icologia etc). Quem procurar uma seoria unificadora nas préximas paginas nio obtera sucesso, pois uma tal teoria ‘mal conseguiria lidar com o eariter contradit6rio das descobertas. Esse cariter contraditério ¢, em si mesmo, uma parte irreducivel do problema. Eu embalsamatia oe do passado / Para Fucura restauragion foi o que escreveu o poeta William Wordsworth, es linhas abaixo de’T.S. Eliot ‘parecem soar como contestagio direra desses versos: Nio hi meméria que voct possa embalsamar em cinfora / Pois as mariposas vio enerae®, ‘Vejamos mais dois exemplos. No comego do século XX Ialo Stevo escreveu: (© passado sempre é novo, Elese alteraconstantemente, Fente, artes davida que parecem ter afundado noesquecimento teaparecem,enquanto, ‘por outro lado, ovtrss afundam por serem menos importantes. O. passado como se ese fosse membro de uma orquestra. Ele precisa des denenbum 3-0 passado parece as vezescurto, As vezes longo a vezes Soa, 8s ‘vers cal. S6 influenciam no presence aquelas partes do passado que tenham a capa eldade de esclarect-lo ou obscureet lo". como avida segue em conduz 9 E quate na mesma época Marcel Proust aponta: “O livro de caracteres figurados, nfo teagados por nés, € nosso tinico livro"™. A descrigéo de Svevo antecipa & posigio da seoria sistémiea da meméria, segundo a qual o passado ¢ uma construgéo livre baseada em s tivo presente. Por outro lado, segundo 0 conceito de meméria de Proust, o presente ¢ influenciado de tal maneira por determinado passado que escapa & disponibilidade subjetiva. Se- sgundo esse ponto de vista, o presente mantém com 0 passado uma relagio mui mais complicada. Proust compara a presenga do passado no presente da cons- ‘iéncia humana com os negativos forogrificos: nio é posstvel prever se algum dia serio revelados ou nio, s894G08 DA RECORDAGAO ‘Virios motivos foram levantados para esclarecer a nova predominancia ¢ a continua faseinagéo do paradigma da meméria: 0 fim da ena plenicude do presente e na expectativa em fim de uma Gilosofia do su ¢ soberano; o fim de um paradigma especializacio. A temética dos estudos culeuraisrelativa s meméria nao se mostra apenas como um novo campo de estudes, mas também como uma maneira especial de processar as amplas malhas de problemas que concernem a0 todo da sociedade. ‘Nio obstante, os esclarecimentos acima mal permiem aprender 0 impulso obsessivo da pesquisa sobre meméria, qual o presente estudo se filia. As movi- mentagées da meméria, a0 contrério da tradigao continuamente perpetuada © propagada, sio esporsdicas ¢ nervosas, como se ligadas & eletricidade. A lembranga sempre exige um gatilho, ou, segundo Heiner Milller, 0 processo de lembranga se dispara por choques. Na verdade no hé nada que tenha man- tido a lembranga tanto tempo em funcionamento quanto a catistrofe da destrui- gio e do esquecimento que teve lugar em meados do século XX. Por isso s6 h4 coeréncia se, no final deste século, os advogados da meméria — como Siménides na lenda romana — motivam-se a visitar os locais da catistrofe, endo em vista que a marca do século — do ponto de vista europeu e especialmente alemso — torna reconhecfvel uma liberasio até entio desconhecida do poder destrutivo, ‘Quem tomar como ponto de partida esse contexto de destruicio ede lembranca iio vai encontrar paradoro na frase de Nora citada no inicio deste texto e vai seconhecer também na temndtica da lembranga uma nova forma a partie da qual 0s pésteros herdam os terrores do século XX e sio capazes de lidar com eles. (© presente erabalho esti dividido em trés partes, das quais a primeira & dedicada as Fungées, a segunda, as midias,e a terceira, 0 acimulo da meméria cultural. Uma vez que as diferentes fiungées da meméria se espelham em teorias ¢ dliscursos da meméria igualmente diversos, a primeira parte iniciae termina com fo entre “acumulae” e “recordar” te) e como vis (poréncia), a scursvas vastas¢ inde parcir da qual se definem, como se veri, dua tradigées pendentes entre si. De um lado, ha a conhecida eradigio da mnemoréenica re- ‘rica; do outro, a tradigio psicolégica, que identifica a meméria como uma das trés faculdades da alma, também chamadas de sentidos internos. Enquanto a pprimeica dessas tradigées objetiva a organizagao e ordenagio formal do conhe- segunda del A imaginagio ¢ a trnoDugio ode explorar, além da funcio mneménica ordenadora do conhecimento, algo sobre a variedade de fungées da meméria, Tudo isso gira fundamentalmente em rorno do contexto de lembranca ¢ identidade. ica sto trés Formas de se da era moderna e que se poem ria cultural, Os dois eapfeulos am com exemplos literérios casos de politica da recordagio no seu sentido mais amplo, erratam do significado que as recordagées tém no pro- «cesso de construsio de identidade. Nas Histérias de Shakespeare uma identidade nacional € construida com base em recordagées histbricas, e no Prelidio de ‘Wordsworth uma identidade individual éconstrada com base em rcordagbes ‘rutivamente remodeladora, que sempre inclui 0 esquecimento como parte rnecesséria do processo. © capitulo seguinte, “Caixas de meméria", levanta a questio da escolha e do significado dos contetidos da meméria. O que € im- porcante € 0 que nio é? Como assegurar o que é importante? Aqui se fala nio apenas da meméria como uma area, equipada de forma a abrigar 0 importante .ecimiento cristio em um espago de meméria espiricual, mas também da me- :méria como uma “caixinha” que Heine decantou como um reliedrio que abriga leieuras rclevantes para a vida (¢ a morte); fnalmente, falase também da queda deumacaixa de livros que se estihaga em um abismo, levando consigo o énus de ‘uma meméria culeural hostil& vida. © iltimo capitulo da primeira parte ocupa- se da questio da escolha e da capacidade de armazenamento e introduz uma diferenciagio entre “meméria cumulativa” ¢ “meméria funcional”. Essa tingio tanto faz uma ligagio retrospectiva com a meméria como “arte” e “potén- cia” quanto adianta a discussio proposta na ileima parte deste trabalho. Enquanto se trata de pesquisas sobre 2 memi psicolégica, € mesmo nia das esteuturas ¢ dos processos neuro: sob a perspectiva dos estudos culturais, corna-se inevitivel considerar os meios cculeurais e técnicos da meméria. Os semiéticos culturais russos luri Lotman € Boris Uspenski, da escola Tartu, definiram a cultura como uma “meméria de coletividade que nao se pode legar como heranga’,¢ com isso apontarain para a dependéncia que a meméria cultural tem de certas priticas ¢ médias”. Esse «dé prosseguimento sozinha a si mesma, sempre precisa renegociada, estabelecida e mediada uma vex mais, readquirida, Individuos ¢ logo se toma esse tema de meméri {Lotman ¢ Boris A. Uspentki, The Semi sn Culture Ana Aabor, 1984, p.3 EEPAGOS DA RECORDAGA interativamente através da comunicagio por de imagens ¢ de repetigbes ritualistcas, ¢ organizam suas ‘memérias com 0 auxilio de meios de armazenamento externos ¢ priticas cul rurais, Sem estes nio€ possivel construir uma meméria que transponhha geragoes ¢ épocas ~ o-que significa também que a consticuigio da meméria se modifica juncamente com 0 estado oscilante de desenvolvimento dessas mi dias tecnol6gicas compreendem sistemas de escrita — no rermo — que, desde o século XIX, nao conservamn somente mat mas também imagens ¢, adicionalmente, a parti do sé. Porissoasegunda parte deste crabalhoédedicada as midias, que fundamentam « fanqueiam a meméria culeural como suportes materias dela, e que interagem com a meméria individual de cada umn. Cada meméria individual é hoje em dia cercada de um conjunto de midias tecnol6gicas de meméria que borram a fron- tcira entre os processos intra e extrapsiquicos. Essa fronteira, na verdade, ¢ dificil de ser suscentada, ¢ isso € mostrado pela imagética que os fildsofos, cientistasusaim para desczever a meméria humana. As mais ancigas descrig6es da ‘meméria jf se valiam de metiforas de sistemas tecnologicos de registro, que por sua ver refletem a oscilagio da histéria das m{dias: de tabuinhas de cera e perga- rminhos chegamos & fotografia, 20 filme, 20 computador. Aqui se define an ‘mente uma mudanga de época em que a principal metéfora da meméria, com seus 2.500 anos de existéncia — a eserita —, vé-se rendida pela megatropia da se desenvolve sempre mais na direcio de estabelecer |, no Egito antigo de dois milénios antes de Cristo, até 0 presente século, diversos testemunhos azeseam que aescrita £2 midia preferencial paraa meméria em relacio a todas as demais midias,¢ garantem a ela a fama de dispositive muito confidvel quando se tratade obter perpetuagio. Esse objetivo ccultaral de uma permanéncia supratemporal parece estat i a da excrita no Ocidente. O espitito foi concebido pelo Ocidente supra-historica, e a eserita, de natureza afim, foi encendi- dessa forga. Sob o signo da tecnologia de armazenamento {pio de sobrescrita permanente ¢ de uma possibilidade de reconstrugio das re- cordagées, Tanto na tecnologia de armazenamento quanto na pesquisa da es trutura cerebral vivemos wma mudanga de paradigma, na qual a concepsio de um registro duradouro de informagio ¢ substieuida pelo principio da continua ja descerra um acesso especifico A meméria cultural A eserta, que acompanha Hagua, armazena coisas diferentes ¢ de mancira diferente em inraonugio 40 a0 que as imagens fazem. Estas, por sua vez, contém expresses € cias independentes da lingua. Desde os tempos da mnemotécnica ro- n chamadas imagines agentes wim poder especial de me- morizagio. Mais tarde esse poder foi descoberto em simbolos e arquéripos que alcangam mundos de sonhos individuais ¢ o inconsciente cultural. © corpo 1 medida em que os processos 1 mentais de recordagio sio ancorados de maneira tanto somética também pode funcionar como um meio em si, plc forvalece pelo poder da afecsio. A afecgio como componente corpor Jembrangas possui uma qualidade ambivalente: pode ser vista tanto comoi de autenticidade quanto como motor da falsificagio. Quando uma meméria embutida no corpo é totalmente cortada da consciéncia, estamos falando de um trauma, Esse trauma é entendido como uma experigncia encapsulada corporal- mente, que se expressa por sintomas ¢ bloqueia uma lembranga recuperadora Por fim, as midias externalizadas da meméria incluem localizagdes que sio convertidas em lngares de meméria, devido a algum acontecimento de relevancia religiosa, histérica ou biogréfica. Lugares podem atestar e preservar uma me- ‘métia, mesmo para além de fases de esquecimento coletivo. Apés intervalos de suspensio da tradigio, peregrinos ¢ curistas do passado retornam a locais si nificativos para eles, ¢ ali encontram uma paisagem, monumentos ou ruinas. ‘Com isso ocorrem “reanimagées’, nas quais tanto o lugar reativa a recordacio quanto a recordacio reativa o lugar. A meméria cultural néo se deixa armazenar cem lugares significativos, pois estes 86 podem ativar e suportar processos de lem- branga em conjunto com outras midias de meméria. Onde qualquer tipo de transmissio de conhecimento esteja interrompido surgem locais sagrados que ficam & mercé do jogo livre da imaginaglo ou do retorno de algo que se rec ‘A terceira parte trata de um lugar da meméria de tipo muito especi arquivo, Ao contririo da meméria corporificada sensorialmence nos corpos © thos lugares, 0 arquivo € separado destes e ¢, assim, abstrato e genético. Meios is de armazenamento, que sio empregados como suportes para a memé- rente dependentes das midias teenoldgicas. A “arquivabilidade” de dados ‘aumentou vertiginosamente com as tecnologias de novos sistemas de registro, taiscomo forografia, dedudioede as ‘novos problemas de conservagio dos arquivos. (© arquivo nao é somente um reposit6rio para documentos do passado, mas também um lugar onde o passado é construido ¢ produzido. Essa construsio io depende apenas de interesses socias, politicos e culeurais, mas € essencial- 25 84G08 DA RECORDAGAO _mente codetetminada pelos meios de comunicagio ¢ pelas técnicas de registro. Oarquivo foicriado usilizando- se uma eserita macerialmentefixivel que codifca informagao de modo que ela possa ser lida pelas geragdes vindouras. Com a pas- sagem para uma forma de registro eleer6nica e dindmica, a estrutura do arquivo modifica-se substancialmente, Substituindo os metros de prateleiras com pastas « caixas sobre os quais a pocira dos séculos se assenta, aparecem méquinas de processamento de informacio high-tech com poder cada vez maior de processa- mento de dadose capacidade de armazenamento de informagio. A era digital vai descobrir novas formas para 0 arquivamento de informagio ¢ vai arquivar 0 ‘proprio arquivo como um memorial obsoleto, ‘Contudo, a atual crise da meméria culvural nfo se deve exclusivamente 208 problemas que as novas midias trazem consigo. Testemunhas disso sio quatro artistas, nascidos apésaTI Guerta Mundial, que se vem diante de uma meméria cultural despedacada. Eles colocam sua arte a servigo de um trabalho autorre- feexivo de recordago, a medida que redescobrem o livro € o arquivo como for- mas de criagio artisties. Chama a atengio o fato de que a arte comega a se ‘ocupar mais fortemente da meméria justamente no momento em que a so- ciedade faz pressio para que a meméria se perca ou seja apagada, Nesse contexto, 12 meméria artistica no funciona como armazenador, mas estimula os arma- zenadores, ao cematizar os processos de lembrar e esquecer. Pois para os artistas no strata de usararmazenadores tecnolégicos; eles buscam, sim, am “glossério de sentimentos", em que reconhecem uma fonte de elementos artisticos. Com isso essa arte se torna tanto um espelho do atual estado do esquecimento ¢ re- calque no inconsciente coletivo, como também uma régua graduada para men- suragio desse estado — segundo assinalou Hleiner Miiller. Assim, nio se pode falar de uma perda paca simples da meméria cultural. Hoje é sobretudo a arte que tematiza a crise da meméria e encontra novas formas para a dindmica dx recordasio e do esquecimento culturais. Fora dos arquivos 0s bens circulam eo lixose acumula. A montanha crescente de liso formada pelos residuos cumulativos ¢ néo coletados da civilizagio é facilmente decifrada como um retrato inverso do arquivo, O lixo, entendido como “armazenador negativo", nio é 56 um simbolo do descarte ¢ do esqueci- ‘mento, mas também é uma nova imagem da memoria latente, localizada entre a ‘meméria fancional ¢ a cumulativa, que persiste geragio apés geragéo, em uma terrade ninguém, entre presenga e auséncia. A fronteira entre arquivo ¢lixo nes: se contexto é completamente mével. Krzysttof Pomian demonstrou que 0 imo estigio na vida de alguma coisa nio precisa ser necessariamente o lixo, pois este marca tio somente tima fase de desfuncionalizagao ou inutilizagio em {que 0 objeto ¢retirado de um ciclo de utilidade. Apés essa neutralizagao o objeto mrRonugio pode ganhar uri novo significado, ou seja, adquire novamente o status de um simbolo carregado de significado, Nesse sentido os residuos discretos se trans- formam ein um “semiéforo", ou seja, em um simbolo visivel de algo invisivel e Iimpalpével, como o passado ou a identidade de uma pessoa. "Mesmo que o olhar histérico ou artistico ainda pudesse transformara prosa dos residuos na poesia da recordagio, ainda assim restariam muitas coisas que no se querem resgatar, ou que néo se podem resgatar. O resto é 0 que resta, € com iso pode-se terem mente tanto oarquivo quanto olixo, De qualquer forma, 108 resquicios néo se deixam apagar. O lixo ¢ estruturalmente to importante pata 0 arquivo quanto o esquecimento para a lembranga. Isso € trazido 3 cconsciéncia ex negative pelas instalagoes artisticas ¢ narrativas fantdsticas que ‘camprem 0 experimento intelectual de arquivar o lixo sem restrgées. 20 Keaysutof Pomian, Der Unprung der Museums [A cries dom Sammeln, 1986, p92 Esragos ba neconoacio Amemériada cultura. Assim como Vonnegut Silko partede procestos naceativos lineares e eserutura seu romance em diversos padres que se imbricam de modo associativo, como em uma colager. Além disso, ea também abandona o prin- cipio organizacional da subdivisio em capitulos: em lugar de intervalos -meros, surgem em sua obra pecas cenogeiticas de tradicio indigena, primeico como filamentos de um subtexto, que no decorrer do romance se emaranham sais e mais até formar uma rede. io de Vonnegut, Silko apresenta no apenas a manifestagio, mas rrado trauma,o que confereaseu textoadinamicade uma progressio rnattativa ¢ performativa, a forma de uma histbria cujo decurso certamente no «std predefinido mantém-se aberto até o final. O processo de cura é encenado como procura¢ fabricagio da identidade, sendo que a propria tradigio jé esque- cida, a meméria culeural tribal, € quem presczeve os pontos de orientagio deci- sivos. A renovagio dessa identidade eseé vinculada relagio com a terra, que ndo se pode recuperar por meio da conquista, mas talvez pela narragio e recordasio. Para Silko nao se trata da atc ia, sim de uma expansio en- fisica da consciéncia, que representa essa transigio como processo aberto — no sentido da exploragio — para o heréi — no sentido da participagio — e ambém para os leitores v Locais* ésageado disse le, "Mas quero que nele cresgam mais (Emese Hemingway, Adeus ds armas) Se suprimirmos vox eolhas {que passer despereebidos como mero fendmeno, 0 que sl Que" demeure" subse (Geoffrey H. Har i, ochedo, al an, Saving the text (Salvando o vex ‘Seas pessoas calarem, entio se ouvirio pedea (J.G. Herder, Cartas sabre a promopio da bumantdade) 1. A meméria dos locais juem fala da “meméria dos locais” serve-se de uma formulagéo que é tio conforcivel quanto sugestiva. A expressio é confortivel porque deixa em aberto tratarse ou de um genetious objections, uma memé- que Se tecorda dos locais, ou de um genetivus subjectivus, isto é, uma me- méria que esté por si s6 situada nos locais. E a expressio é sugestiva porque aponta para a possibilidade de que os locais possam tornar-se +» por tadores da recordagio e possivelmente dorados de uma meméria que ultrapassa amplamente a meméria dos seres humanos. A forga sugestiva dessa opacidade um bom ponto de parcida para investigar a seguir 0 que a “meméria dos lo- ais” guarda em si "Grande € a forga da meméria que reside no interior dos locais” — a frase de Cicero pode servir de impulso inicial para quem se questiona a respeito de uma forga especifica da meméria e do poder vinculativo dos locais'. O grande teérico da mnemotécnica romana tinha uma nosio clara do significado dos Vole 12. Trad. ed. Hy tem supremo co plor mn nstagos 94 RECORDAGAO locais para a construséo de uma meméria. Como pegas de construgio da arte da meméria, ee determinou figuras e lugares (imagines et loci), sendo que as figuras exam siceis para a fxagio afetiva de determinados contetidos do saber, © 08 lugares, para a ordenasio desses coneeidos e sua recuperagio. O proprio Cicero ‘a passagem dos lugares da meméria para os locais da recordagdo quando undo sua prépria experiéncia, que as impresses capradas em tim ladas por ouvir falarou pela leicura | Mesmo quando os locais no eém em siuma meméria imanente, ainda assim fazem parte daconstrugiode espagos culturaisda recordagio muito ignificativos. E nio apenas porque solidificam e validam a recordago, na medida em que a ancoram no chéo, mas também por corporificarem uma continuidade da dura- ‘40 que supera a recordagio relativamente breve de individuos, épocas e também cculeuras, que eseé concretizada em artefatos, Uma carta que Gocthe esceeveu Schiller em 16 de agosto de 1797 pode servir como primeira introdugio a0 tema? [Nela, Goethe apresentard ao amigo as primeiras intuig6es do que se associard 20 aque se designard mais tarde sua teoria dos simbolos. No pano de fundo dessa carta estd a dissociagio entre homem € mundo, sujeito € objeto, significado e ser, que Goethe considera dolorosa e que lhe deixa apenas a escolha assustadora entre fancasmas que ele “faz nascer” de seu intimo €a"Hidra do Empirismo, com seus milhées de faces". Na procura por uma ponte aque supere essa valaabjera, Goethe inventa simbolo. O simbolo é uma categoria nio literdria; sio chamados simbélicos os “objetos felizes” que, ao serem obser- vados, devem gerar determinadas sensibilidades. Efeitos como a impressio de generalidade, “unidade e tocalidade”, Goethe afirma haver experimentado em primeiro lugar no contato com determinados objetos. Einsiste na ideia de que os assim chamados objets simbélicos nio receberam do observador os significados que contém, mas que sio significantes por si mesmos'. Inceressam-nos aqui os dois exemplos que Goethe tomou como objeros 10s. Na verdade nio si0 objetos,¢ sim dois locais: “a imediagio onde eu moro” ¢“o espago da casa, do quintal cjardim do meu av6" A forga simbélica ‘que Goethe conferiu a esses locais parece ter algo a ver com a meméria. Os dois 2 Correspondincia om ¢ Goethe Vol. Jena, 1905. pp. 415%. locais corporificam para o observador uma meméria de que cle na verdade parti- ‘ipa como individuo, mas que o transcende amplamente. Nesses locas, amp! sea meméria do individvo na diregio da meméria da familias © aqui a esfera de vida do individuo com a dos que a integram, porém nao est ali. Em ambos os locais, uma recordagio individual dilui-se em uma tecorda- ‘io geral Goethe deixa claro que para ele realmente se trata dos préprios lugares e nao de algo como as coisas que estio ali para serem encontradas na condigio de ob- jetos remanescentes do passado. A casa do av6, da qual s6 restaram montes de entulho, nao é de interesse para ele. Quando ressalta tal coisa, Goethe incide inguagem dos especuladores de iméveis: 0 terreno em que eseava o imével “sucumbiu no bombardeio e agora, em grande parte coberto de ‘montes de entulho, vale 0 dobro em relagio ao que foi pago pelos atuais pro- prietirios aos meus parentes, onze anos atris’.Tal como 0 capital financeiro, também o capital simbélico nio reside no edificio, mas no solo, Para descobrit cessitase de um exercicio especial. Goethe descreve como bruscamente esse capital no sol ele, simbdlicos. Ele inicia com os locais com que estabelecew uma rl scja, os locais que lhe suseitam uma “recordagio repleca de amor". Pouco a pouco cle pretende passar do “notivel” para 0 “significativo’, de modo que diminua a pparcela de lembrangas pessoas ¢ se fortalega a aura propria a0 local, |Quero ex perimentar primeiro aqui o que posso perceber de simbélico, para depois exer arme nos locais estranhos, que vejo pela primeica vez. Se isso desse certo, de qualquer modo ainda seria preciso levar dali espélios suficientes, provenientes de paises e regides conhecid: indo se ampliaria a experiéncia, mas se poderiaira fundo quando se estivesse em cada lugar, a cada momento, conforme se concedesse a cada um. "A teoria dos simbolos de Goethe tem primeiramente o cariter de um expe- simento aberto, Depois que 0s espagos na horizon nizados, ainda cabe descobrir suas profundezas simbdlicas na vertical Espace, i ,, mensurados, colo- ros quais se pode ira 10 a passo e sistematicamente, tenta agugar sua suscetibilidade a locais ‘em cada lugar, a eada moment “espago” se tornou uma categoria net EsrAgos pa nECORDAGAS 2. Locais das geragdes © que dota determinados locais de uma forga de meméria especial €antes de tudo sua ligagio fixa e duradoura com hist6rias de familia. © fendmeno de tais “locais da familia” on “locais de geragées", como quer que os chamemos, foi escrito pelo escritoramericano Nathaniel Hawthorne no esboco autobiogrifico aque ele fez preceder a seu romance A letra excarlate (1850). L& se és B ‘entes humnanos uma amizade que independe complecamene do encanto do cendcio ¢ sas cicunstincias de ordem moral que 0 rodeiam. O novo habitants — vindo de terra ‘strangeira ou cujopaieav6 vieram — tem pouco diteito de se chamado salemita, Nao fazideia da tenacidade da ostracom que um antigo colone, sobre o qual oerceto século vai passando, agarrase ao rincio em que as suas sucessivas geragbes se fixaram. (A atragio persse [Jt onga relagio de urna familia com um lugar, bergo ¢timnlo, cia entte ele e 05, Em um local de geragSes como esse os membros de uma mesma familia nasceram € morreram, em uma corrente inquebrancével de geragdes. Enquanto Hawthorne pinta com cores claras a forga vinculativa do local, 0 mesmo tempo ‘istura tons que mostram que ele julga esse fendmeno como arcaico e antiquado. Formas de vida moderna nao permitem mais determinag6es fechadas como essas, que vinculam as pessoas uma determinada porgio de terra. Seatenacidade dos ancigos mozadores opée resistencia as exigéncias da mobilidade moderna, entio ndo se pode mais toleri-la, Esses locais da familia detém o progresso. Hawthorne salienca o caricer obsolero das formas de vida sedencirias, na medida ‘em quecle ascaracteriza como ligadas 0 nstinto. Oinstinto, nessaargumentacio, faz parte da natureza humana; sinaliza uma forma de vida que ainda nio foi clevada ao nivel da reflexio cultural. Duragio ¢ continuidade — &0 que sugerea forma de expressio de Hawthorne — ainda nio sio, em si mesmas, valores adores. Elas se impGem de maneira naturale nio sio objeto de formagio e cho citado etna p25) claboragio culturais. Do mesmo modo, a magia do local esté associada a algo suspeito: 0 ser humano arcaico, o antigo colono, no é um ser que se aurode- termina, mas que deixa poderes alficiosinfluenciarem seu destino. essa avaliagio negativa do homem arcaico que est ligado 20s locas resulta, como reflexo, 6 programa do homem moderno mével. Este se despede dos intivos e despreza uma estrucura valorativa que se a poderes azeaico isponives, deve ser suspenso o parentesco entre homem local, 0 clo afetivo deve ser cortado, a magia do solo, vencida. A escolha de suas palavras imagens jé ajuda Hawthorne ase livrar das estrururas de pensamentos arcaicos. Ele passa facilmente de uma linguagem do solo edo instinto para uma inguagem de utilizasio rural: “A natureza humana nao progride, como nao viga a bat plancada por um niimero excessivo de geragdes no mesmo solo cansado. Meus filhos tém tido outros bergos e, tanto quanto 0 seu destino estiver sob o meu controle, deverio mergulhar raizes numa terra diferente”. Quem se apropria desea perpectivafancional entende pouco do principio do arraigemento, que se denunciou agui como arcaico ¢ instintivo. Com isso, a América moderna néo apenas se separa de seu passado, mas sim, em suma, de uma conscigncia da tra- dligdo, tipica para a velha Europa, por um lado, ¢ para os indios, por outro, ras io vinculadas 20s locas e culeivam 0 contato com os mortos. Os espf- 10s dos antepassados nio so méveis. A modernizagio, a0 contririo, demands ‘uma consciéncia mével, livre de poderes e forgas ligadas a locais fixos. A forca vyinculativa dos locais carregados de recondagées é substicuida por um espago neutro, dimensio livre da disposigio humana sobre ele. ‘© exemplo do romance Ceremony de Leslie Marmon Silkos, de que falamos quando nos dedicamos a tratamentos contra traumas, mostra que hoje surge nos Estados Unidos uma literatura que revidou profundamente essa postura ¢ que, segundo essa nogio, descobre de uma maneira nova a forga espiritual da terra Essa literatura, que nada tem a ver com 0 movimento local~color, preocupado descrever 0 ambiente local, registra especialmente perdas. Ela acolhe as vozes daqueles a quem a terra percencia antes da colonizagio pelas brancos ¢, dessa ‘maneira, revalida forrmas de vida, valores ¢ mitos que se viram dizimados pela colonizagéo. Pode-se falar aqui da volta a um senso para locas, sufocado sob 0 + nap. 25. BsrAgos DA RECORDAGAO fuxo da modernizagio, ¢ rambém da volta 4 sua forgz simbélica. A meméria cultural do Laguna Pueblo esté inscrita na topografia de sua terra e pode ser reativada, como bem mostra o romance de Silko. Com isso uma nova conscién- cia surgiu do significado daqueles locais que sucumbiram 20 dominio branco sobre 0 espago. oder erst basis m modes ls cu btal com ot ua stem ssbre as funasdevda que o opreor no comprcende Eves eto detec on iocas qu at lecrneness bse do exender& mules nero ope sex modern ‘ore! qu hear para oma dla eer Se vost mc bane doe eal oer misc poder ersinar mew lbs? Eo malber be que sabedoriae sobrevivcs ofewoda donc? 3, Locais sagrados e paisagens miticas ‘So considerados sagrados os locais em que se pode vivenciar a presenga dos deuses. Tal local éassinalado por tabus especiais. A voz de Deus que provém da sarga ardente dirige-se a Moisés com as palavras: “Tira os sapatos de reus pés, porque o lugar em que tu eseés é terra santa” (Ex 3, 3). O local sagrado é uma ‘zona de contato entre Deus ¢o homem. Antes que Deus se revelasse nos livros, os deuses se revelaram no mundo. A morada deles néo era apenas o céu, mas também a montanha, a gruta, o bosque, a fonte e onde mais se erigissem seus locais de culto. Os deuses das celigibes poli- tefstas queriam ser procurados e adorados em seu local. As pessoas tinham que peregrinar até os locais sagrados, os deuses tinham suas moradas fixas. Longe dessa terrae de sua topografa sacramental nio era possivel comunicar-se com 03 eases: anogéo de uma onipresenca supraespacial de Deus estd entre as pressupo- siges do monoteismo (jé anunciada nas religibes politestas). Exemplo espec mente notével para uma topografia sacramental sio as paisagens memori initicas dos aborigines australianos. Suas diversas eribos vive em um espago constantemente marcado pelos ancestrais mortos, para no dizer: em um es- ‘ago inscrivo por eles. Oespaco se torna para esses moradores um rexto sagrado, que ndo é lido e comentado, mas rememorado ¢ recitado. As unidades que com- ‘poem esses textos sagrados sio asassim chamadas songlines. Delas,cadaindividuo ¢ cada grupo possuem e guardam apenas fragmentos do texto integral’ ‘No fluxo das migragbes, guerras e conquistas, apaga-se uma mem: com inscrig6es superpostas,e anova meméria declara-se inextinguivel. Oiltimo refi do drama Assassinato nacatedral,de'T.S. Eliot, tratade uma tal reinsctigao do solo. O seguinte refcio das mulheres de Canterbury lembra a maneira como gens sacramentais da Antiguidade pagi, das quais restaram apenas reliquias despedagadas (che broken imperial column), conservatam wsna meméria nova, esctita com o sangue de mértir cristo: We thank Thee for Thy mercies of blood, for Thy redemption by blood. For the blood of Thy martyrs ans saints ‘Shall enrich the earty shall reat the boy places. ‘For wherever asaint has duel, wherever a martyr as given bis blood. forthe blood of Christ, ‘Thereis oly ground, and the sanctity sall not depart from it “Though armies rample overt, hough sightseers come with guidebooks western eas gnats atthe coas of Tona, ‘To the death in the deers, the prayer in forgotten places by the broken imperial columm, 7 Bruce Chatwin, The Songlines Hatmondeworch, 1968, p.13:"Each totemic ancestor, while traveling through the councy, was thought to ave seatteed a all of words and usical pots along the line oF his fosprint, and [.] these Dreaming ‘way of communication beeween the most far Bungeribes,’A Song. he aid, was both map oviding yo Esragos pa arconDaco Evamsuch ground spring that which forever renews the earth Though itis forever denied. Therefore, O God, we shank Thee Who hast given such blesing to Canterbury. [Nés Te damos gragas por Tuas didivas de sangue, por Tua redengio pelo sangue. Poiro sangue de Tews: Enriquecerta tera, criard os lgares sagrados, ‘onde um santo senha achado pouso, onde um méstic tena lado seu sangue pelo sangue de Esa etea sera santa, © Mesmo que exéreitos marchem sobre ela, mesino que os vistas ‘yenham visi-la com seus guias na mao, Desde os mares acidentais que cortoem as costes jinicas ‘Até odeserto onde habita a morte, ou a prece em lugares remotes junto is colunas imperiais destruldas, De tas lugares brota aquilo que etenamente renova a terra 6 Deus, nds Teagradecemos cidade munca a abandonari Essa amostra de texto aponta para o significado que cabe a locais sagrados ¢ paisagens sacramentais no ambito do eristianismo. A caréncia fundamental hu- ‘mana de locais sagrados de onde provenham milagres, reparagées, curas ¢ reno- vvages espiricuais originou a instituigio dos cultos as reliquias ¢ &s viagens de peregrinagdes?. O poeta inglés medieval Chaucer descreveu a viagem de um gru- po de peregrinagio cujo destino era justamente Canterbury, com a sepuleura do mirtir Thomas Becket, local de memoragio eternizado por Eliot em seu texto. 4, Locais da meméria exemplares — Jerusalém e Tebas No antigo Isracl néo havia local sagrado algum que garantisse a presenga constante de Deus. Lé, 0s locais sagrados eram locais hist6ricos da memorasio de um encontro ‘nico com Deus no passado. Esses locais, que fixavam na me- méria um acontecimento histérico, cornaramtse locais da recordagéo em que a ih. Korper Raum. Rese. Eine medienbie: ria de Deus éom seu povo se concretizavae se validava no espago. Depois da lta de Jacé com o anjo, por exemplo, as cidades onde houve o encontro com Deus foram rebatizadas por Jacé sob a designagio Pri de um sinal — adenominagio — 0 local éinscrito na meméria do geupo". ‘Accidade de Jerusalém é um local exemplar da meméria, particularmente pro- ficuo por dois motivos. Por um lado, revela de que maneira um local da meméria coscila entre ser um local de temor sacro ¢ um local histérico da meméria; por coutzo lado, revela como um local da meméria se torna palco de lua encre co- munidades de recordacio adversiias. ‘Que minha lingua grade sedenta No palaro, ese atroie ‘Minha mao dircis, se ev te esquecer Algom dia, Jer Esta a variagio de Heine para o Salmo 137, No entanto, Jerusalém néo Foi sempre um local da meméria obrigatério. Davi, a0 conquistar esse lugar dos jebuseuse fundar no monte de Sigo a cidade de Davi, é quem transforma a cidade cemumlocal da meméria. No impeto da refundagio de Jerusalém como residéncia € que Davi mandou trazer a Arca da Alianga até a cidade, em uma grande procissio festiva, Até entio cla estava acomodada em uma casa particular. Salomio, seu filho, construiu um templo no monte Morié (“local do olhar”), que se considerava 0 cendtio histérico do sacrificio de Isaque, interrompido por Abrado no tltimo momento, Com o templo como morada de Deus, Israel passou ‘a eer um local sagrado para a presenga fascinante cestremecedora, que deixou de secvir apenas & memorasio: “E habitarei no meio dos filhos de Israel, ¢ no desampararei o meu povo de Israel”, foi a promessa do Senhor em 1 Reis 6,13. ‘Com a centralizacio do culto no templo de Jerusalém, outros locaissagrados do pais perderam o significado. Depois da destruigio do templo, a Tord assumin a fangio de principal objeto de culto sagrado. A revalorizagio da Sagrada Eseritura, agora desvinculada de um local fixo ¢ considerada a partir de entio ‘um templo mével, ou uma “patria porta ce G, Hactman de Gen 52, 123; 33: "The Sruggle for the Text’, in Geoffrey mane Sanford Budick (orgs). Midrash and Literarure. New Haven, Londres, 1986, pp. 3-86 11 Heingick Heine "Jehuda Ben Havely. Hebrasche Melodie’ (Melodias heb in Remanzero. Ba. pot Joachim Bark, Belim, 1988, p. 5, Liveos rapagos Da nxconDaGxO local do alm escatoldgico, um local de ambigio, de tribunal e de expectativa de chegada do messias, Independentemente disso, a histéria eristi de memoragéo desse lager segue seu curso!" Os pais da Igreja nao tinham em grande conta o significado da Jerusalém mundana; no sistema alegérico do sentido da escrita em quatro ddimensées,classficaram a localidade historica no nivel mais baixo, o do sentido cara da Biblia cabia superar esse sentido concreto no salém com a alma, nio com os pés. O interesse cristio por Jerusalém como uma cidade sagrada comegou somente no século IV, depois que Santa Helena, mic de ‘Constantino Magno, fundou ali uma capela sepulcral. Esse interesse topogré- fico esteve limitado primeiro a Bizancio, até que entre os séculos IX e XIT os ce- ‘ndvios histéricos de tradigzo oral de Jesus se tornaram também importantes para a igeeja ocidental. Jerusalém tornou-se o destino das cruzadas, organizadas em, licamente ¢ impés pretensées universalistas proprias. As cruzadas so uma guer rareligiosa por esse local da meméria. O motivo das cruzadas sé deixou de exist lamico e eatélico: desde entéo coexistem a ferra sancta cristi de Israel com a sua “topografialegendaia” de Israel, a lado da paisagem sagrada das comunidades de féislamica ¢ judaica”. ‘As fundagées das cidades na Antiguidade ena Idade Média nfo aconteceram fem um espaco neusro; para isso necessitou-se de “vantagens de centros de referéncia’, que 20 lado da ilidade econémica inclufam a relevincia simbélica dos locais. As fontes mais importantes de tal relevancia eram, 20 lado da loca- lizagao dos mitos, as sepulturas dos herbis*, O romance grego de Alexandre relaca, entre outros fatos, como Alexandre conquistou a cidade de Tebas e pro- moveu Id um derramamento de sangue. Nessa situagio, um poeta da cidade chamado Ismenias, que sabia tocar flauta, colocou-se diante de Alexandre para demové-lo de colocar a cidade abaixo. O poeta leva a sanha destrutiva de Ale- xandre a uma condigio de cegueira c exquecimento e, assim, emprega a recor. 12. Ageadego a WolE Daniel Elarewich peas moines indicagSex, dagio como meio tiltimo de salvagéo. Com isso ele comega a lembrar Alexandre de que cle mesmo pertencia A familia dos filhos heroicos da cidade, Dionisio He fo era possivel que ele quisesse destruit a cidade de seus proprios antepassados, sendo ela uma parte de si mesmo, Nesse ponto a naerativa em pro- sa interrompida por um longo poema em que o cantor associa a topografia da cidade de Tebas com a sua mitica pré-histérica, No poema, 0 pequeno voci- bulo déitico “aqui’, queserve para marcaro ritmo naescansio do texto, aproxima tempo eespaso, Exradacasade Labdaeus. Aguis méciafelie ‘cara de Anfitrion; aqui Zeus dormi ‘uma noite eriplamente longa. [ ExaéacaradeT ‘Aqui viveu profes tiplamentevelho, «que Ana eanaformou em mulher.) aqui cego Eaipo foi banido por ordem de Creont, com sus filha Ismene como énica acompanhante. Este io aqui, que desc de Citeronabaixo, Eoolimeno, nn gua és Aguade Baco Avista guiada a cidade, esivada de informagées mitoldgicas, perde seu efeito, ppois velhas histdrias impressionam Alexandre tio pouco quanto genealogias fabulosas. ‘Voct parece cre que poderia enganar Alexandre ‘om histbras de mitos, bem pensadas e menticosas? Eszou decidido aatearfogo cidade acd que se consusma em cinzas. [-] ‘A.voet, laménias, primeira entre opifaros, ‘ordeno estar aq, onde as casas adem em cham, ‘eacompanhae, com o som agudo de ceu tubo duplo, a agio deseruidora™ “Essa histéria brutal ilumina o nosso tema em miilkiplos aspectos. Alexandre indo se coloca ante o poder da meméria cultural de modo téo indiference quanto 15. Richard Se 16 Idem, op. cit pp 8 rg) The Grech Alexander Romance, 6, Harmondsworth, 191, pp. 812 sconDagho essa cema parece tesremunhar. Ele, que se posiciona de maneita petulante em face da lembranga no passado, de genealogias ¢ mitos, jlga de modo bem di ference quando se trata d recordasio de si mesmo no futuro. Fle tem coisas de sobra para prover a fara ¢ desea para si um poeta, como vimos acima, que possa difundir em versos seu enome imortal. Também aqui estamos lidando com atos imperiais de sobrescrita da meméria cultural; 0 conquistador consegue para si uma tabula rasa, sobre a qual cabe inscrever as historias de seu renome. 5, Locais honorificos — Petrarca em Roma, Cicero em Atenas (significado dos locaisdas geragbes surge do vinculo duradouro que familias ow grupos mantém com um local dererminado. Assim surge uma relagio estreita entre as pessoas 0 local geogrifico: este decermina as formas de vida e as expe- rincias das pessoas, tl como estas impregnam 0 local com sua tradigdo e his- ias.lfsso se da de modo muito diferente com o local honorifico que se nora- biliza pela descontinuidade, ou se, por uma diferenga evidente entre passado presente. No local honorifco, uma decerminada historia néo seguiu adiante, ‘mas foi interrompida de modo mais ou menos violento. Tal hist6ria se matet za em ruinas objetos emanescentes que se destacam nas redondezas. O que foi incerrompido cristalizase nesses restos ¢ nio estabelece qualquer ligagio com 2 vvida local do presente, « qual nio s6 prosseguiu, como também avangou para além dos restos sem nem tomilos em conta.| etre Nora, para explicar essa mudanga de um local em que as formas de vida tradicionais se estabilizam para um outro local que detém somente os vestigios de circunsedncias de vids interrompidas e arruinadas, utilizou um jogo de pa- lavras em francés. Ele fala da transiggo de um milieu de mémoire para um lieu de ‘mémoire?. Um local honerifco &0 que sobra do que nio existe mais ou no vale le se perpetue ¢ se mantenha vilido, é preciso que se a que substitua esse miliew perdido, Locais da re mais, Todavia, para qu meméria cultural. Esse locas, porém, sio carentes de explicagées: seus sig cados precisam: rados complementarmente por meio de tradiges orais. (Ene f: — mario, que guiavam sébios hum: S Lipsio articulou muito precisamente o ponto de vi A continuidade que tenha sido destruida pela conquista, pela perda e pelo esquecimento nao pode ser reconstruida em wm momento posterior, mas pode se restabelecer 0 acess0 a ela no medium da recordacio“Os locais honorificos em que se conservou algo que nao existe mais, mas que pode ser reavivado pela recordagio, marcam uma descontinuidade. Aqui ainda ha algo presente que indies acima de cudo uma auséncia; aqui ainda estd presente algo que sinaliza, ‘em primeira linha, 0 fato de jé haver passado.iA conseiéncia do passado que se detém nur local honorffico tem um caréer muito diferente daquela consciéncia do passado que pertence ao arraigamento em um local vinculado & terra. Aquela em como fundamento 2 experitncia da descontinuidade;'esa, aexperigncia da continuidade,y A pré-historia interrompida e que s6 se pode apreender sob a forma de ves- tigios pode ter grande significado para um momento futuro justamente quando passa a (re)conhecer nesse passado um fundamento normativo para seu préprio rempo, Rutinas ¢ objetos remanescentes que durante muito tempo como um monte deescombros despercebido e que com isso se xornas {_repentinamente podem volear a ser visiveis, caso recaia sobre cles o feixe de aten- ‘80 desse novo interesse.Tipicas desse tipo de interesse sio as viagens de for- 2s da Renascenca 20s locais honorificos da ‘Antiguidade grega ¢ romana, “Sim, tudo tem alma em teus muros sagrados", afirmou Goethe como turista em Roma nas suas Elegias Romanas ¢ com isso seguiu uma indicagio humanista segundo a qual o passado se cornaria nesse local uma experiéncia do presente, Em uma carta de 1578, 0 humanista Juseo jgado a esse turismo de formagio. Ele esereveu essa carta a um amigo que estava pronto para empreendr tuma viagem & Telia: si guia at o saber. V8 afamados em discussos gum, nem direcionards eus olhos 2 lugar algum sem que te depares com algum monumento ou ‘ganhesa recordagio de algum antigo costume, alguna hist ia. (-] Quio grande ¢ misterioss€ = alegria por uma visio como Wo chegam somente a0 “esplrito, mas quase aos olhos, aquelas grandes personalidades, pisamot o solo que elas rmesmas eantas vezes pear asragos Ba RECORDAGKO (© longo caminho da tradigio escrita € vitalizado ¢ ganha forga por melo do 4o pessoal, da “autdpsia’; a heranga intelectual do pas- ‘quais se deparam com objeros ‘Com isso, espera-se, uma centelha do passado deve saltar tem diregao 20 presente — no obstante todas as rupturas ¢ os esquecimentos, Renascenga quer dizer “um novo naseimento”;ess¢ renascimento renovado d-se po medium de uma recordagio em que, 20 lado dos textos originais de aurores da também as cidades histéricas ¢ seus objetos remanescentes ofe- para um novo nascimento™! ‘Algumas geragdes antes de Lipsius e seus amigos, Petrarcajé havia empreen- dido uma viagem de formagio para os lugares honorificos. Em abril do ano de 1341, ele fez um passeio por Roma com seu amigo ¢ patrono Giovanni Co- Jonna”. Perrarca escreveu ao amigo, meio ano depois, uma carta em latim, lem- brando-o do passcio e dos didlogos ocorridos na ocasizo: ‘Percortemos no apenas cidade, mas também as redondezas, cada passo nos oferecia ‘enseo para uma conversa e reflexées: aqui o sitio de Evandro, aqui a construsio de CCarmence, aqui a eaverna de Caco: aqui loba que alimenta e figueia ruminal, que deveriachamarse mesmo romulana, Aqui local da morte de Remo, aqui abaralha eo —p- todas Sabinas, aquia poga das cabras co desaparecimenco de ROmulo.(..] Aqui osriun- fo de César; aqui sua derrocada, lo Augusto contemplou a chegada dos ceis ceaesferacerestralhe pagar donarives (.] Aqui Cristo encontrou seu viciio em fuga: ‘aqui se crucificou Pedro, aqui o lugar onde Paulo foi decapitado, aqui o lugar onde Lat serado deu liga para poder acomodar-se Estévio, que 5 0 tempo se condensa em expago;(o que o tempo torna, invisivel, enquanco pilha e desti6i, 08 locais sempre sustentam de modo mis- terioso [Da cronologia tem-se uma topologia da histéria, que se alcanga em gean- des voltas a pé, que se pode decifrar in loc trecho a trecho. Em sua subscancia ica, acidade de Roma éa garantia da continuidade entre duas a antiga cultura pagd e a nova, cristd. Ambos os mundos se cruzam ¢ se ligam nesse cendtio da historia predilecio de Pecrarca pela Roma antiga € comple- imavera de 1341, dep mentada pela predilegéo que Colonna dedica & Roma crista: as duas perspectivas se furcdem em uma tiniea paisagem sagrada™ Se bem se ajustam a Antiguidade e o cristianismo, isso pouco vale para dois outros mundos: o do passado e o do presente, Um abismo se estende entre os dois, que corta a cidade de Roma de forma im ‘Quem hoje em dia sabe menos sobre os romanos do que os cidadios de Roma, pergunta Petrarca 20 sett destinatirio e prossegue: “Digo com tristeza: Em lugar algum se conhece pior Roma do que em Roma”. A cidade de Roma, pela qual peregrinaram os dois amigos, nio éa mesma dos cidadios contemporincos, que perderam totalmente a relagio com o passado. © lhumanista Petrarca viveu, como Arno Borst expres- sou, “ha busca por um tempo perdido"; enquanto a multidio de contemporincos viveu apenas no presente, ado esquecimento, bem como 0 sonho de um renascimento politico ¢ cultural da Antiguidade, Ele estava convencido de que a perda de identidade pelos romanos de seu tempo poderia curarse pela reconstrugio da meméria: “Pois quem davidariade que Roma retomaria sua posigio quando ela mesmacomegasse ase reconhecer?”™, Para Petrarca, identidade cultural pressupée a meméria cul- tural viva que ele e seu amigo incorporam. Mas serd.que eles esto em condisses de fazer falar 0: locas, restemanhas mudas do passado, ¢ darlhes novamente a ‘voz perdida{Pois s6 pode ler essa paisagem memorial quem jé conhece de an- temio seu conteido; teatase de uma leicura que leva & lembranga, nfo A infor ‘magio, Projeta-se sobre a paisagem das ruinas de Roma um espago da memoria.) Pode-se falar em uma recordagio superposta: “O espago textual da memoria que se di em Roma é projetado no local, em Roma, sobre os restos da cidade”) As ruinas de Roma sio simbolos duplos: codificam tanto o esquecimento quanto a recordagio. Marcam uma vida passada que se extinguiu e foi esquecida, que se tornou estranha e se perdeu na dimensio da historia: € marcam também, 20 incorporou a consciéncia da ruptura com a tradigio Aslendas de méctcese santos. que integeam oslocaishonorifioset i. Trad. R Bena e He Esragos oa axcORDAGAO From such ground springs that which forever renew the earch sever denied. Therefore, O God, we thank Thee sangue.Poisosangue de Tews Enriquecect tera, criard os lagares sagrados. Pois onde um santo tenha schalo pouso, onde um mértic tens «do seu sangue pelo sangue de Cristo, Essa -Mesmo que exércitos marchem sobre ela, mesmo que oF turistas santa, ea santidade nunca aabandonaré vyenham: Ja com seus guias na mio, Derde os mares ocidentais que cortoem as costes jénicas ‘Até odeserto onde habita a morte, ou a prece em lugares remotes juntos colsnas imperiis descruldas, De tas lugares broza aquile que erernamente renova a ters Embora sempre esteja negado. Po 261 Te agradecemos Essa amostra de texto aponta para o significado que cabe a locaissagrados ¢ paisagens sacramentais no Ambito do eristianismo. A caréncia fundamental hu- ‘mana de locais sagrados de onde provenham milagres, reparagSes, curas ¢ reno- ‘ages espiricuais originou a insticuigio dos cultos as reliquias ¢ &s viagens de pperegrinagSes?. O pocta inglés medieval Chaucer descrevew a viagem de um gru- po de peregrinacio cujo destino era justamente Canterbury, com a sepultura do mirtir Thomas Becket, local de memoragio eternizado por Eliot em seu texto. 4, Locais da meméria exemplares — Jerusalém e Tebas No antigo Israel no havia local sagrado algum que gerantisse a presenga constante de Deus. La, 0s locais sageados eram locais historicos da memoragio de um encontro tinico com Deus no passado. Esses locais, que fixavam na me- ‘métia um acontecimento histérico, tornaram-se locais da recordagéo em que a <éria de Deus com seu povo se concretizava ese validava no espaco. Depois da luta de Jacé com 0 anjo, por exemplo, as cidades onde houve 0 encontro com Deus foram rebatizadas por Jacé sob a designagao Priel (face de Deus); por meio de um sinal — adenominagio — 0 local éinscrito na meméria do grupo”. A cidade de Jerusalém é um local exemplar da meméria, particularmente pro- ficuo por dois motivos. Por um lado, revela de gue maneira um local da meméria smor sacto € um local histérico da meméria; por outro lado, revela como um local da meméria se torna palco de luta entre co- munidades de recordagio adversérias. ‘Que minha lingua grade sedenta No palato, ese atrofe Minha mio dire cure esquecer ‘Algom dia, Jerusalém" Esta a yariagio de Heine para o Salmo 137, No entanto, Jerusalém néo foi sempre um local da meméria obrigatério. Davi, a0 conquistar esse lugar dos jebuseuse fundar no monte de Sito cidade de Davi, équem transforma acidade ‘emum local da meméria. No impeto da refundagiode Jerusalém como residéncia € que Davi mandou trazer a Arca da Alianga até a cidade, em uma grande procissio festiva. Aré entio cla estava acomodada em uma casa particular. Salomio, seu filho, construiu um templo no monte Morié (“local do olhar"), que se considerava 0 cendtio histérico do sacrificio de Isaque, 2 ter um local sagrado para a presenga fascinante e eseremecedora, que de servir apenas & memoragio: "E habitarei no meio dos filhos de Israel, desampararei o meu povo de Israel”, foi a promessa do Senhor em 1 Reis 6, 13. ‘Com a centralizacio do culto no templo de Jerusalém, outros locais sagrados do pais perderam o significado. Depois da destruicio do templo, a Toré assumiu a fangio de principal objeto de culto sagrado. A revalorizagio da Sagrada Eseritura, agora desvinculada de um local fixo e considerada a partir de entio um templo mével, ou uma “pitria portatil” (Heineich Hei tarde a sobrevivéncia das comunidades judaicas no exilio. Até 0 sionismo volear -valorsimbélico ao local, Jerusalém permaneceu no judaismo como um. furs de G. Hartman de Gen 52, 1.23; 33: “The Stagge for the Text’, in Geoffrey man e Sanford Budick (orgs), Midrash and Literatare New Haven, Londres, 1986, pp 3-86 11 Heinrich Heine, “Jehuda Ben Harely, Hebe fn Remanzere. Bd. por Joachim Back. Be che Melodien” (Metodias hebracas,Liveo 1988, p. 1, rseacos na nzconDagao local do aléin escatolégico, um local de ambigio, de tribunal ¢ de expectativa de chegada do messias, Independentemente disso, a histéria eristi de memoragio desse lugar segue seu curso, Os pais da Igreja néo tinham em grande conta o significado da Jerusalém mundana; no sistema alegérico do sentido da escrita em quatro ddimensoes, classficaram a localidade histérica no nivel mais baixo, odo sentido ral da escrita. Na lcitura da Biblia, cabia superar esse sentido conereto no spagoe dirigi-sea significados mais elevados eespicituais. Cabia procurar Jeru- salém com a alma, nao com os pés. O interesse cristo por Jerusalém como uma cidade sagrada comesou somente no século IV, depois que Sant Constantino Magno, Fandou ali uma capela sepuleral. Es fico estevelimitado primeito a Bizancio, at que entre os sé conjunto pelo poder eclesidstico e secular, Depois, 0 islé tomou a cidade simbo- licamente e imps pretenses universalstas proprias. As cruzadas so uma guer rareligiosa por esse local da meméria, O motivo das eruzadas 6 deixou de existir ssimbélica desse local em locais de culto is- Himico e catélico; desde entéo coexistem a serra sancta cristé de Israel com a sua “topografia legendacia” de Israel, 20 lado da paisagem sagrada das comunidades de fé islamicae judaica®, ‘As fundagées das cidades na Antiguidade e na Idade Média nio aconteceram em um espago neutro; para isso necessicou-se de “vantagens de centros de referéncia’, que 20 lado da welidade econémicz incluiam # relevincia simbélica dos locais. As fontes mais importantes de tal relevancia eram, 2o lado da loca- lizagio dos mitos, as sepulcuras dos herbis*, O romance grego de Alexandre selata, entre outros fatos, como Alexandre conquistou a cidade de Tebas € pro- moveu [i um detramamenco de sangue. Nessa situagio, um poeta da cidade chamado Ismenias, que sabia tocar flauta, colocou-se diante de Alexandre para demové-lo de colocar a cidade abaixo. O poeta leva a sanha destrutiva de Ale- xandre uma condigéo de cegucira ¢ esquecimento e, assim, emprega a recor 12. Ageadegoa WollDaniel Harewich plas muieas indicagSes, spe ligendaire des évangiles on Tere S fas em Jerusalém encarregadas deat tuecho ctado exté nap. 62. comesa a lembrar Alexandre weroicos da cidade, Dionisio e Hericlito, Nao era possivel que ele quisesse destruir a cidade de seus préprios antepassados, sendo ela uma parte de si mesmo. Nesse ponto a narrativa em pro- sa interrompida por um longo poema em que 0 cantor associa a topografia da cidade de Tebas com a sua mitica pré-ist6rica. No poema, o pequeno vors- bulo déitico “aqui”, que serve para marcaro ritmo naescansio do texto, aproxima ‘tempo e espago. Escada casade Labdacus, Aguiamieinfle de Epo del 0 asasino do pa dele ‘Aqulesteveaarea de Hérules,cem outro tempo ‘casa de Anftrion: aqui Zeus dormiu tama noite triplamente long sca és cas de Tid Aqui viveu profes tri aque Arena eansformou em mulher. (.] Daquioexgo Edipo fi bunido por ordem de Creonte com su filha Ismene como dnicaacompanhante. Esc rio aq que dace de Cteron abso, Eo lameno, sua gua é Agua de Buco. (.)* ‘Avista guiada a cidade, erivada de informagées mitoldgicas, perde seu efeito, pois velhas historias impressionam Alexandre tio pouco quanto genealogias fabulosas. ‘Voce parece crer que poderia engana Alexandse com hiseérias de mitos, bem pensadas ¢ mentirosas? Eseou decidido a atear Fogo cidade até que se consuma em cinzss.[-] ‘A.voee, Iaménias, primeira entre os pifaros, fordene estar aqui, onde as casas ardem em chars, «¢acompanhar, com o som agudo de eeu tubo duplo, aagio deseruidora"® Essa histéria brutal lumina o nosso cema em miitiplos aspectos. Alexandre no se coloca ante o poder da meméria cultural de modo tio indiferente quanto 15. Richard Stoneman (org) The Grech Alexander Romance, 46, Harmondsworth, 1991 pp. S12 16. Ter op. cit pp 83:4 .G08 DA RECORDAGKO essa cena parece testemuhat, Ele, que se posiciona de maneira peculante em face da lembranga no passado, de genealogias ¢ mitos, julga de modo bem di- ferente quando se trata da recordagio de si mesmo no futuro. Ele tem coisas de sobra para prover a fama deseja para sium poeta, como vimos acima, que possa difundir em versos seu senome i rambém aqui estamos lidando com atos imperiais de sobreserita da meméria cultural: 0 conquistador consegue para si uma tabula rasa, sobre a qual cabe inscrever as historias de seu renome. 5. Locais honorfficos — Petrarca em Roma, Cicero em Atenas (O significado dos locaisds geragées surge do vinculo duradouro que furni ‘ou grupos mantém com um local determinado. Assim surge uma relagio est centre as pessoas o local geogrifco: este determina as formas de vida eas expe: riéncias das pessoas, tal como estas impregnam o local com sua tradigio ¢ his- térias.lIsso se di de modo muito diferente com 0 local honorifico que se nota- biliza pela descontinuidade, ou sea, por uma diferenga evidente entre passado ¢ 'No local honorifco, uma determinada historia nao seguiu adiante, errompida de modo mais ou menos violento. Tal histéria se material ‘a.m ruinas e objetos remanescentes que se destacam nas redondezas. O que foi se neses restos ¢ nfo estabelece qualquer ligacio com a Pierre Nora paraexplicar essa mudanga de um local em que as formas de vida tradicionais se esabilizam para um outro local que detém somente os vestigios ncias de vida interrompidas e arruinadas, utilizou um jogo de pa- ?. Um local honorifco éo que sobra do que nio existe mais ou nio vale mais. Todavia, para que cle se perpetue e se mantenha vilido, é preciso que se ‘que substieua esse milieu perdido. Locais da re im objetos materiais remanescentes que se wentos de narrativase, com, cais, porém, sio carentes de explicacé surados complementarmente por meio de 17 Pierre the und Geich 1992, p. -magio, que guiavam sibios hum: = local uma experi 4 Lipsio articulou muito precisamente 0 ponto dé |. formagio. Fle esereveu essa carta auum amigo que estava pronto para empreender ‘A continuidade que tenha sido destruida pela conquista, pela perda ¢ pelo «esquecimento néo pode ser reconstruida em wim momento posterior, mas pode se restabelecer 0 acesso a ela no medium da recordasio/Os locais honorificos em {que se conservou algo que nao existe mais, mas que pode ser reavivado pela recordagio, marcam uma descontinuidade. Aqui ainda hé algo presente que indica acima de tudo uma anséncia: aqui ainda esté presente algo que sinaliza, ‘em primeira linha, o fato de jf haver passado.iA conseiéneia do passado que se ddexém num local honorffico tem um carter muito diferente daquela consciéncia do passado que pertence 20 arraigamento em um local vinculado & tetra. Aquela ‘tem como fandamento a experiéncia da descontinuidade;esta, a experitncia da continuidades pré-isedria interrompida e que s6 se pode aprender sob a forma de ves- os pode ter grande significado para um momento Fueuro justamente quando ‘passa a (re)conhecer nesse passado um fundamento normativo para seu préprio tempo. Ruinas ¢ objetos remanescentes que durante mui = como.um monte deescombros despercebido que com isso se tornaram invistveis sepentinamente podem voltaraservisiveis, caso recaia sobre eles o feixe de aten- fo desse novo ineeresse.iTipicas desse tipo de interesse sio as viagens de for: as da Renascenga 20s locais honorificos da Antiguidade grega ¢ romana. “Sim, tudo tem alma em teus muros sagrados", afirmou Goethe como turista em Roma nas suas Elegias Romanas e com isso seguiu uma indicagio humanista segundo a qual 0 passado se tornaria nesse ia do presente. Em uma carta de 1578, 0 humanisea Justo igado a esse turismo de ‘uma viagem & Iedlia: guia até o saber. Vé, ea ¥ afamados em diseutsos dicecionaris ceusolhos sganhes a recordacio de algum antigo co « misrerions ¢ a slegria por uma ig u] Qui grande chegam somente ao cespirto, mas quase aos ob ssragos 94 RECORDAGKO (© Longo caminho da tradigio escrita é vitalizado e ganha forga por meio do breve caminho da inspegao pessoal, da “antépsia" a heranga intelectual do pas- sado torna-se acessivel aos olhos do observador, os quais se deparam com objesos remanescentesvisfveis!\Com isso, espera-se, uma centelha do passado deve saltar ‘em direcio 20 presente — nao obstante todas as rupturas € os esquecimentos. Renascenga quer dizer “am novo nascimento”; esse renascimento renovado dase lado dos textos originais de autores da jetos remanescentes ofe- Algumas geragbes antes de Lip amigos, Pecrarca jé havia empreen- dido uma viagem de formasio para 0s lagares honorificos. Em abril do ano cle fez um passcio por Roma com seu amigo ¢ patrono Giovanni Co- lonna®. Petratca escreveu a0 amigo, meio ano depois, uma carta em latim, lem- brando-o do passeio e dos dislogos ocorrides na ocasiso: Percorremosnio apenas acidade, mas também asredondezas,¢cada passo nos oferecia ensejo para uma conversa ¢ reflexées:aqul o sitio de Evandro, aqui a construsio de CCarmente, aqui a caverna de Cacor aqui loba que alimenta e figuera ruminal, que ‘eaesforaterrererealhe pagae donativos laquise erucficou Pedro, aqui lugar onde Paulo foi decapitado, aqui o lugar onde Law: ‘elo fi incinerado; aqui o enterrada deu hugar para poder acomodarse EstEvlo, que acabava de chegar®. 5 0 tempo se condensa em espagos/o que 0 tempo torna sustentam de modo mis- 2 pé, que se pode decifrar in loc, trecho a trecho. Em sua substncia arquitetOnica, acidade de Roma € agarantia da continuidade entre das culeuras, «antiga culeura pagi e a nova, eristé. Ambos os mundos se cruzam ¢ s nesse cenatio da histériaA predilegio de Petrarca pela Roma antiga é comple- 19) Provavelmence eara-se de pateio Petearca have sido coroad © , Lebemsformen is 1979, pp.A6 mentada pela predilecio que Colonna dedica a Roma crista: as duas perspectivas Se bem se ajustam a Antiguidade e o cristianismo, isso pouco vale para dois outros mundos: 0 do passado e o do presente. Um abismo se estende entre os dois, que corta a cidade de Roma de forma invisivel. “Quem hoje em dia sabe ‘menos sobre os romanos do que 0s cidadios de Roma?” pergunta Petrarca a0 seu destinatirio ¢ prossegue: “Digo com tristeza: Em lugar algum se conhece pior Roma do que em Roma”. A cidade de Roma, pela qual peregrinaram os dois, amigos, no é a mesma dos cidadios contemporineos, que perderam rotalmente com o passado. © humanista Petrarca viveu, como Arno Borst expres- sou, “na busca por um tempo perdido"; enquanto a multidéo de contemporaneos viveu apenas no presente, ee incorporou a consciéncia da ruptura com a tradigio ado esquecimento, bem como o sonho de um renascimento politico ¢ cultural da Antiguidade. Ele estava convencido de que a perda de identidade pelos romanos de seu tempo poderia curar-se pela reconstrugio da meméria: “Pois quem davidaria de que Roma retomaria ua posigio quando ela mesma comegasse ase reconhecer?”®, Para Petrarca, identidade cultural pressupée « mem: tural viva que ele e seu amigo incorporam. Mas seré que eles esto em condigées ,¢ darthes novamente a quem jé conhece de an- ‘temio seu contetdo; trata-se de uma leivura que leva & lembranga, no 3 infor- ‘malo. Projeta-se sobre a paisagem das ruinas de Roma um espaco da memoria. Pode-se falar em uma recordagdo superposta: “O espago textual da memoria que se dé em Roma ¢ projetado no local, em Roma, sobre os restos da cidade™ As ‘ruinas de Roma sio simbolos duplos: codificam tanto o esquecimento quanto a recordagio, Marcam uma vida passada que se extinguiu ¢ foi esquecida, que se tornou estranha e se perdeu na dimensio da histéria: € marcam também, 20 ‘Sobee a hletriasubsequente desis locas honor srofen Stade. Paris als neues Rom und neues Karthago” [A morte da grande cidade. Pais Como nova Roma e nova Cartage, in Manfred Seda (org), Die Grofitade als “Text” [A cidade grande com “tex sspagos pa REecORDAGAO ‘mesmo tempo, a possibilidade de uma zecordagio que, na dimensio da meméria, desperta e refaz com novo vigor © que 0 tempo atrancou c erradicou. Petrarca ¢ Colonna nao s30 os primeitos a vsitar esses locais histéricos com tum senso de piedade em celagio ao passado perdido. Na obra Definibus bonorum et malorum: (65 BCE), também Cicero descreve como visicou Atenas com um grupo de € de lé apreciou as redondezas. Dui conscitneia: "Em todas os lugares que nossos pés tocam pisamos um pedago da hiscéria® (VS). Entre os lugares honorificos auriticos de Atenas, procurados nessa oporcunidade, estava também a Academia, Escolhew-se umm momento em que © local provavelmente estaria vazio, pois quanto menos gente no local, ‘quanto menos vida atual, mais legiveis se tornam os vest encerrados: (Quando chegamos 20 famoto terreno da Academ! desejiramos, Entio Piso falon: "Cabe ex tipo de loucurs 0 fato de que, lidades ilustes eeiveram, ficamos mais impressionados do que a0 ouvit ficos ou lee um escrito seu? E assim que me sinco impressionado; pois nio hi como sacem Platio, que, segundo se diz, costumava sero primeiro 2 discutir Aqui esteve Expessipo, aqui esteve Xenécrates ¢ aqui, seu ouvinte Po- lemone, que se sentou justamente no lugar que eseivamas contemplando. E assim, quando olhava para nossa prefeitura, pensava necessariamente em Cipio, Cato, Lélio, retudo em nosso patriarca, mana & a forya da recordagio que habia cals (tanta vis admonitions ines in loci) no foi sem eazio, portanto, que derivamos deles as mnemocéenicas™ A partir do interesse de Cicero pelo valor memorial dos locais ele fala clara- ‘mente como pragmitico da maemotécnica. Nos escritos correspondentes, ele rnomeou imagens ¢ locais imagines er loci) como pegas para a construgao da arte dda meméria e apontou para a necessidade da colaboragao dos aferos em prol da fixagio sustentivel deimagens nocionais na lembranga". Asimpressbes recebidas zo préprio cenitio sao “algo mais vivas e atentas” (acrius aliquanto et attentius, V.4) que aquelas que resultam do ouvir dizer e da leitura.\Porém a meméria dos Jocais se diferencia claramente dos lugares da meméria. B que, enquanto a meméria dos locais é fixada em uma posigio determinada, da qual ela nio se desprende, os lugares da arte da meméria se distinguem justamente por se poder 24 Cicero, Definibus bonoram et malorum. Ober das hichite Gutund dasgrafie Ubel Vols. 12. ‘Trad. ced. Harald Mesklin. Seurgaee, 1989, pp. 394-96 28. Cf Cicero, De Ostore2,pp. 350-60 “A estrutura espacial da mnemotéenica funciona como uma planta ivee do seu local concreto de origem. Nessa forga local de abstragio, amnemotéenica se aproxima de uma escrita que nio dispée letras em Lin conser6i uma sintaxe espacial com imagens ‘A mais famosa viagem de formagio da Anciguidade foi a de um grego do tempo tomara para si as cidades mais expresivas da culura grega idade de Corinto foraconquistadadestruida pelos romanos, tal como Alexandre fizera quase dois séculos antes a0 conquistar e destruit 4 Tebas bedcia. Tais datas marcam limiares de épocas em que tradigées ¢ cic ‘cunstincias de vida foram interrompidas violentamente. As viagens de Paustnias sguiaram-no a cidades expressivas da cultura grega que entio se encontravam em escombros, onde aestepe crescia eas ovelhas pastavam. Ele voltou ao lugar onde ‘Cadmo fundara Tebas e, com o levantamento que I fez, devolveu a este local cempalidecido uma segunda significancia na recordasio. Ele cegistrou com igual cuidado os rastros histéricos e miticos. Reuniu, como um etnblogo com seu _geavador, as lendas que ainda permaneciam vivasna.culeuralocal. Diferentemente do cantorIsménias, que tentara persuadir Alexandre, Pausinias no ofereceu garantias em relagio ao teor de verdade da tradigéo, “Nao muito distance do portal encontra-se uma vala comum; ali jazem os que tombaram contra Alexan- dre ¢ 05 macedénios. Néo muito distante, mostra-se o lugar onde, segundo eré quem narra, Cadmo semeou os dentes do dragio que ele matou no pogo, dentes ue ele entio semeou, para que a terra fizesse nascer deles homens™. Essa busca e asseguragio incensivas de vestigios fez da cultura grega do pas- sado uma paisagem da meméria em que os locais da vida passada se tornaram topo! mnemotécnicos. Esses ropoi sio locais “em que se fizeram sacrificios, em- preenderam-se fundagbes, mortes ¢ juramentos. Eles localizam ¢ fixam recor- es miticas de morte, sacrificio e agon sangrento e, com isso, ecordagées da ‘rigem de uma sociedade que se une no culto”®. Os objetos remanescentes que Pausinias registrou em seu levantamento etnogrifico tinham 0 significado Trad, Reise durch die griechische ‘A viagem de Paustnias pela passgem geeya Gedachrishunst EsrAGos on RECORDAGAO documental de legados ¢ testamentos: fundiam em si a santidade de templos, ‘ legitimidade de dinastiase a legalidade de reivindicagoes de posse. No século IAC. esses topo’ haviam perdido irremediavelmente esse significado; porém indo haviam se tornado automaticamente irrelevantes. Eles ingressaram, sim, na meméria formativa de um grupo que algou a cultura jé transcortida a condigio de seu passado normativo. O trabalho de recordagao de Pausanias documenta o nnexo ideal-tipico entre desvio e xetorno, ruptura histérica, esquecimento © reativagio no medium da recordagio. A cultura desaparccida na histéria passa [por uma metamorfose: ela se torna “cléssiea’, ou seja, imerge novamente em tm horizonte normativo de referencias na meméria formativa de uma época posterior. 6. Genius Loci — Ruinas ¢ invocagées do espitito Peter Burke apontou para o fato de que na Idade Média se observavam as rrainas de Roma com olhos diferentes do que na Renascenga. “Elas eram observadas como ‘milagres, como mirabilia. Mas ram tomadas como algo cevidente. As pessoas pareciam nio se surpreender com o fato de elas haverem chegado até 4, porterem sido crigidasem algum momento, ou porsuaarquitetura diferenciar-se da eivial.”™4 Na Renascenga, agugou-se a percepgio das ruinas. O olhar que recafa sobre os fésseis de uma época passada podia percebé-las de modo realmente muito diferenciado, Para Petrarca, as ruinas de Roma se ‘metamorfoseavaim numa paisagem da meméria.em que a historia que se ligava a esses locais voleava rapidamente & lembranga do observador, de mancira vivaz4 ‘As rainas testemunham — como sugere uma bela formulagio de Walter Benjamin — a maneira pela qual “a histria se de Na medida em que essa histria continua a ser transmitida e lembrada, as rafnas permanecem como sustento ¢ garantia da meméria; isso também vale para as historias queseinventam para lase que asenvolvem, como aheranosescombros. Porém, na medida em que as ruinas, sem contexto nem saber, imbricam-se em tum mundo que se cornou estranho, tornam-se monumentos do esquecimento. Em um segundo plano, ruinas que foram separadas de suas historias © abandonadas 20 esquecimento podem parecer pitorescas™. Em uma época 1963, p. 197, ing des Genie Begrif (0 srgimento do conceito de genio} Plearure of Ruins. Nova York, 1966. em constante: do século XVI uum romantismo das ruinas estetizou os restos dos edificios de culeuras passadas. Foi entéo que se diferen- ciaram ruinas gregas € géticas. Ruinas gétieas, segundo esse cédigo es sinalizam o triunfo do tempo sobre a forga humana, o que vale como um pensamento melancélico, mas néo doloroso: ruinas gregas, por outro lado, fo da barbatie sobre o gosto, o que se considera um pensamento , desenvolveu-se na ‘William Gilpin, em seus ensaios sobre a arte elevada do “viajar pitoresco”, define as ruinas como um ponto de entrecruzamento entre arte € nacureza: “a torre decaida, 0 arco gético, as ruinas de um burgo ou de um mosteiro (..} io 2 hheranga mais valiosa da arte. Eles foram consagrados pelo tempo ¢ merecerm ‘quase a mesma veneragio que as obras da natureza"™. Para Wordsworth, as ‘ruinas séo cendtios para os quais néo 2 histéria, masa exernidade se desloca. Em sua descrisio de uma abadia decafda, os restos da edificagio se unem 4 natureza phe ancique walls Ofthat large abbey which within the Vale Of Nightshade, to St. Marys honour built, ‘Stands yer a moldering pile wich fractured arch, Belfiy and images and living eres, Aboly scene! asparedes ancigas dagrande abadiaerigida no Vale de Nightshade em honra Santa Mati, 4 decaldo com 0 arco alquebrado, vores vvas, Em meio & natureza vegetal — que fermenta depois de uma chuva, pinga. sussurra e suspira: em outras ruinas abertas da nave da ige anuncia a dueacio supracemporal do local: avras, vive —, elevs-se 0 canto da carriga nas ima dos ciclos do tornarse deixar de ser, ¢ pi say om Piturergue Tr: Prelit 9p. Londees 1792, p46 8 ar4g0s BA RECORDAGAO that ingle Wren Whi one day sang sect nthe Wave Of the old church x tha there could have made 24 dling place and ved or ever there Tote inh i aquela pequena cariga cantou tio docemente na nave Jque eu poderia ter feito inka morada, e viver para sempre ‘souvic cal misica, ‘A ruina pitoresca romantica remete menos ao passado que a uma duragdo smporal. No estado de raina a euleura se aproxima da nacureza. Para que jo um olhar estético, mas sim o olhar curioso do antiquario, Nesse con- texto, faz-seiluminadora a observacio feita por um membro do grupo da viagem de Cicero, em meio 20 passeio em comum. Ele distinguiu um olhar legitimo ¢ tum olharilegitimo sobre o passado: 6 apeesentam envergadua inte: incos, do contririo no despeream Entio disse Piso: "Claro, Cleero, esses inte Jeceaal quando se prestam a imitasio de homens mais que mera curiosidade, quando se trea de reconhecer os vestigios de eras parsadas (tude ingeniosorur... sie curisoruon, V6) Nilo se considera legitimo um estudo do passado que tencione obter mero saber; do abismo do esquecimento 6 se deve resgatar algo passado quando se ‘enciona vitalizat tal coisa e darlhe continuidade. Piedade ¢ a atieude com que cabe voltar-se ao passado, A mera curiosidade de antiquitio distingue-se clara- mente de uma conscitncia viva da tradigéo. Petrarea e Colon curidade crescente dos tempos, aprenderam a ler 0s sinais das ruinas com essa devida piedade, ¢ reviealizaram o passado em sua recordacio. Ambos corporifi- cam a pretensio classicista de uma cultura que constréi, por sobre os tempos obscures do esquecimento, uma ponte da eradigio eda recordagio. ‘Quando desaba esse nexo da recordagao ¢ transmissio de uma tradigéo que se rmantém viva, também os locais da meméria se tornam ilegiveis. Com isso, no cntanto, também podem vir @ tona novos modos de leicura. A cusiosidade as- sume a atitude piedosa. Locais honorificos tornam-se cenérios arqueolSgicos caja decodificagéo demands a competéncia de 2s. Onde antes com pareciam peregrinos, amontoanvse agora epigrafos, arquedlogos ¢ historiadores eassumem 0 negocio laborioso da protegio dos vestigios em nome da sanha por saber a que Cicero se opés. O espiito historico de pesquisador se desenvolve is, custas de romper coma tradigio de passados normativos eesquecé-la."A medicio wal do tempo”, desereve George Kubler em seu Zeit (A forma do tempo}, “baseia-se principalmente em fragy Fragmentos destruidos provenient abandonadas ¢ vilarejos soterrados". Is transfere para os locais? Ainda € possivel aleangar indireramente, por meio de remanescentes, 0 que nio mais se aleanga por meio das recordagées? O principio da asseguragio metédica dos vestigios baseia-se na confianga de que scja assim. Ela constitu, para além do gradual declino temporal, uma conscién- «ia hist6rica em relagao 20 passado que jé nada tem a ver com a conseiéncia viva ‘que Cicero ou Petrarea cultivaram em face da tradigic ‘Quando se observa a Arqucologia nos seus primérdios, no entanto, borra-se sidade, Como exemplo norével cabe considerar a obra do pintor arquiterénico italiano Giovanni Bactista Piranesi. Em 1756 foram publicados quatro volumes em félio sob o tieulo Le Antichita Romane, O autor inha nada menos que 2 pretensio de haver resgatado “os rastrosda cidade eterna dos danos e das feridas do tempo” (YRBISAETERNA /VESTIGIA /E RV DERIBUS / TEMPORVMQUE INIVRUS / VINDICATA).No titulo em latim, as palavras “vestigios” e “salvat” séo especialmente destacadas pelo posicionamento isolado e sinalizam do modo mais compacto possivel um projeto de antiquério extremamente ambicioso. O artista, com mais de 250 Aguas-forees, quis fazer retroagie a obra destruidora do tempo e fazer Roma ressuscicar na fantasia. O empreendimento foi movido por uma forte experién- cia de desteuigio ¢ perda, Piranesi constatou o répido declinio a que escavam ‘expostos os sitios de escavagio amplos, mas bastante destruidos, cindidos pelas vias de acesso a Roma. A Erinea do desaparecimento desencadeou nele uma notdvel energia de conservacio, Tudo que apresentasse uma materialidade tridi- mensional e se revelasse exposto a um deelinio irrefredvel podia ao menos ser registrado pela escrita ¢ pela imagem — gracas a téenicas modernas de repro- dusio, como livros impressos ¢ Agua-forte — e, desse modo, conservarse para a posterioridade. Aqui, escrita ¢ imagem, monumento ¢ livro no competem mais como diferentes media de meméria; € muito mais o livro que possibilica escinda por completo de sua ‘uma vida péstera ao monumento, mesmo que es ‘io, Piranesi explica a intencio de seu projeto visto como 53. George Kublee, Die Form der Zl, p 47 rapacos 94 RECORDAGAO| 1c em grande parce EEneéo percebi que 0s restos das anigas edificagdes de Roma, stéo dispersos sobre os jadins¢outras dress usadas para plantagées, ncolhem dia apés asi pelo empo, em parce por svacera dos renga bérbara trata d tinamentee vender as pedras para uso em conserugdes novas: assim, assumi para mim tarefu de preserva na prensa o que ainda rest. (.] Foi por isso que, com redo ocuidado. retratei not volumes que ors apresento os objet sionados; em muitos dels erate ndo apenas de reproduzir sua figura exterior, mas também a plants baixa eo interior por meto de cortese perfisdistingui cada umadesuas parceseindiquet matetiais ce construsio, ocasionalmente também as técnicas empregudas em cada senico, ex 0 adguiri no decorver de muitos anos de nas clandes remanescentes aqui i, Esse disceroi observas es, esavagescinvestigagSes minuciosas¢ incansivel Piranesi observou as ruinas de Roma de um jeito diferente de Petrarca ¢ Co- Jonna; enquanco cls se reférem a um circulo estreito de abjeros histricos€ le- sgendirios remanescentes, cle estende sua atengio também aos monumentos ané- himos e ndo aparentes, cuja fragilidade e desprotegio ele conheceu. No olhar de Piranesi as cainas perderam a consisténcia robusta como portadoras alegéricas ddesignos ese cornaram um objeto voldel. A ruina néo ¢ niais um sustento seguro da recordagio para um passado invisivel, mas 0 proprio objeto da recordacio, da conservagio, do levantamento e da reconstrugao. Seja qual for a avaliagio que hoje prevalea ante a facanha anviquaria de Piranesi, a precisio pedante com que ele reuniu € avaliou a tradigéo oral escrita e, 20 fazé-lo, acolheu medidas, planos, deralhes e opiniées, nio deixa divvida de que sua documentagao dos memoriais estava mesmo baseada em uma érica da publicagio arqueologica (© que diferencia Piranesi dos arquedlogos madernos, no entanto,€ 0 fato de cle atribuir A imaginagio tanta importincia quanto & recordacio. £ na obra que mais tarde lhe garantiré fama que ele logra fundir cincia fantasia, Trata-se da ‘versio expandida de Vedute di Roma, que ele publicou por sua propria editora em 1760. Nessa obra, adota 0 antigo ciclo dos Careeri projetos fantasticos de casas de derengio que tanto avivaram a fantasia romantica. Na nova ediglo, ppordi, esses esbogos foram profundamente retrabalhados em seu estilo; 0 ele mento hidico e o carérer de improviso dio lugar @ uma maior clareza ¢ intensi ficagio do peso da forga impressivos. A mudangs mais importante consiste em que as construges de cdzceres, antes projecadas no espago livre da fantasia, ga- ‘nham agora uma indicagio hiseériea, dacadas no antigo império romano, Com isso elas aleangam o status de um matco lendavio da imaginagio histérics, © co- ‘mo tal foram admiradas pelos romanticos. As construg6es dos circezes apresei~ tam uma “arqueologia do sonho” (Norbert Miller), tanto na condigio de ar ‘quitecura lbirintica vical da alma humana quanto na condigio de substrugio culta, mas duradours, do império romano, como vios ¢ abbada subterrineos que permanecem subtraidos 4 consciéneia histérica ¢ se descortinam somente ante a imaginagao histérica. Em sua nova versio, as Carcerid'Invenzione sao am exemplo grandioso da investigagio “de uma contrarrealidade sorerrada sob a superficie do mundo vi ‘Quando Edgar Allan Poe, um sécalo depois, deserevew a expesiéncia do tu~ rismo histdrico romano, o contato com 0 passado condensava-se sobre aaura dos bjetos remanescentes. No Coliseu, nao é mais a curiosidade que move 0 visi tance ¢ também lhe € estranho um fervor por preservar os objetos. Entre pedras, escombros de colunas e alicerces, ele se concentra unicamente em sua imagina~ ‘$40. Abandona-se, para tanto, a um grande niimero de sensibilidades bastante vagas. Abstragéo ¢ énfase sio as caracteristicas indubitéveis de uma pocsia que tenta fixar essas emogoes: EstAGOS DA RECORDAGAO grandeur, gloom, and gory! Vastmest anal Age! and Memories of Eli Silencel and Desolation! and dim Night! grandes, melancoli glériat ‘Vast! eIdade! e Memérias Origindeiast Silencio! e Detespetole noite atocmentadal™ ‘Ao longo do poema, as vozes do passado dirigem-se a essa consciéneia, em transe pelo tremor e sustos amenos. As testemunhas de pedra nao ficam caladas. (© poema desereve a vivéncia da Renascenga sob a perspectiva do espirito do século XIX, em que nao sio mais o classicismo e a filologia que determinam 0 contato com o passado, mas sim uma fantasia morbidamente necromante. A ‘mensagem das pedras no & especialmente informativa, nesse contextor na invo- sportante que o que ela tem a dizer: cagio dos espiricos a voz como tal é mai npotent — we pallid tones. power is gone — not all our fame — riteres that nn lie Notall he memories thar hang upon And ding around us asa garment.) [Nio somos impotentes —~ nds, pedeas pélidas [io se foi code nosso poder — toda nossa fama — ‘Nem toda magica de nossa boa reputagio — ‘Nem todo 0 milagre que nos cerca ‘Nem todos 0s mstérios que rsidem em nds — [Nem todas at memérias que tmios apensss E nos envolvem como vestido I © poema de Poe ilustra como no século XIX se separam os dois lados do historicismo, flologia ¢ fantasia, que Piranesi soubera manter unidos de modo tio virtuoso. Quanto mais i «enquanto algo decorrido para assegurar, por outta 36 Edgar Al se uma esfera importante dos poetas, dentre os quais cabe mencionar em primeiro lugar Walter Scott, criador do romance histbrico™. Nos seus romances, assim como em sua chécara Abbotsford, na Eseéeia, e em sua colesio de livros ¢ 3s [4 reunidos, ele agia como antiquario imaginativo e reconstruiu de referéncia para uma moderna de um espago abstrato foi 0 requisito mais imporeante da geopolitica colonial™. Antes de se poder mensurar 0 espago de ‘maneira abstrata, oi preciso deixar de sacralizivlo e demonizi-lo, Enquanto os velhos mapas-miindi estayam concentricamente focados sobre Jerusalém, local sagrado, e todos os outros locais se espalhavam sobre a drea dis partir daquele ponto central, os novos mapas-miindi, pela primeira vez, trataram de especificar os espagos intermedifrios de um modo exato ¢ significativo. A nova ordenagio do espago sobre o fundamento abstrato de uma rede de coordenadas tornouse 0 fundamento para mapas-miindi que pudessem servic & corientagio no espago”. Contra essas tendéncias, a meméria dos locais recebew novas honrarias no Romantismo. Certamence no havia mais deuses nas suas antiges moradas, nas grutas, fontes, florestas ¢ cumes de montanhas, onde também haviam sido crigidos seus templos e capelas. Mais que isso, os locais volearam a ter sua aura como cenarios em que, de modo surpreendente,ressurgiu um tempo pregresso ja desaparecido. O Romantismo, que rompera com uma culeura determinada pela tradigéo, aleangou um modelo de esquecimento ¢ de retorno ieruptivo do que desaparecera que deslocou o processo da cultura ao Ambito inconsciente. [Nesse contexto é instrutivo o género do romance gético, no qual as vozes dos tos vindas do passado, como a do pai de Hamlet, irrompem de modo surpreendente em um presente determinado pelo esquecimento ¢ pelo recalque. 37. Sobre sso, er Stephen Bana, The Cloching of Clie. Camm lcade pedra da qual se apagam antigos: paradaclugar ‘tid on which ‘ocupacse a obra: ALi Critical Anthropology. Duke Uni Sobre o expaco colonial, esereve David Harvey, The Urban Experience ‘of space fist requiced chat t be conceived oF asso sragos on RECORDAGAO ‘Os aucores desse género interessam-se pelas ruinas goticas como testemunhas de tum rempo feudal que eles fazer reviver em seus romances. Em uma de suas acepgées a palavra “romantico” significava a presentificagdo imaginéria de um tempo antigo que desapazeceu, isso para nio dizer: um passado galvanizado. Naquilo que jé constitula um passado irrecuperivel, voltava-se a “infundir a vids™®, Em secido, 0 romance gético tornou-se bilhere de e tempo antigo". Quanto mais as pessoas esquecem, mais sein locais e seus objetos remanescentes. Nos romances ¢ contos Poe, os edificios tornam-se locais de uma meméria que envolve as pessoas que a perderam,tornam-sepalcos nos quais se encenao etorno do queestara recalcado. 7. Sepulturas e lipides [No Romantismo, o local especifico néo se torna relevante apenas enquaneo cendrio do que acontece, mas ganh também um novo significado enquanto ce- vio do conceberliterario, do escrever e da leitura. Sob o signo de uma nova, ca da natureza, caminhat livremente e conceber literatura tornam-se ativi- dades complementares; 0s poemas voltam-se a conservar de modo auténtico a lista de elementos de um local. Assim se origina uma literatura in sit, cajo principio escé resumido nas palavras de Thomas Gray: “Meia palavra sobre um. lugar ou perto dele vale uma carga inteira de rememoragoes” [Half'a Word fixed upon or near the spot is worth a cart-load of recolletion|*, Algo patecido vale paraaleitura, especialmente quando se trata da lirica morwuaria, to popular no século XVIIL, Em uma carta, Gellere dé testemunho minucioso disso, Nessa pineura miseuram-se todas as cores da “meméria dos loais" Lamentagies de Young e 38 Sepulturas de Crewzen defo sons da alma quanto em certasnoites de verao sob um céu estread inho que dava para o cemitério de umaigeeja,no qual 40 Now Archiologie des Traum p 1m in the I8th Century, Nova York. 1899, 4. Hleney A. Beers, History of English Roms ps end Tories ch forthe Phtureague, Landieape, Ate velhas ine pelo sopeo da noi ins eaidigas de um paliciocavaleicesco, alg losica emitia seus sons acos, Desse modo € que al empestades de pensamentos se aca .calmo na noite de verio, ¢ come que ouve asvozes das sepulcuras dos mortos, 2s grava no mais intimo de si ddavam arrepios na alma, Das ‘ede suas morads eda esse contexto também cabe o testemunho autobiogrifico de Johann Jakob Bachofen que jé tivemos ocasiio de citar. Bachofen passou 2 ocupar a cadcira de docente de Direito Romano na Universidade de Basel em 1841, no entanto dei- x0u seu cargo trés anos depois e viveu como erudito auténomo. Ele se aproximou de sua especialidade por um interesse claramente histérico: “A Antiguidade foi ‘encantamento que me cativou, néo 0 que é aplicdvel hoje: eeu realmente queria ‘escudar 0 antigo direito romano, de forma alguma o direito romano de hoje™ [A veracidade tera, como ele definin, nfo € apenas assunto de erudigio filolégica, ras também de uma intuigao intensiva ¢ sentimental da arte. Sobre 0 pano de fundo da “pobreza e sequidio de nosso mundo atu ‘guidade “uma profunda ineerioridade do sentimento”. O que ele chama de para cle seu ponto de partida reais, Para ele esto acima de se pensa, sente, reza em siléncio junto a uma ldpide, palavra alguma pode ex pressar; tio somente o simbolo que repousa sobre uma seriedade sempre estdvel pode sugerir rai coisas de maneira perspicaz” (p. 11). A clareza eli palavra contrapée-se essa perspicécia do s{mbolo: aquela conduz 4 perrence & eternidade, 20s “povos mais antigos", dois media cottesponde um eaminho do conheciment ‘caminho longo e arduo & 0 da filologiae das ciéncias hi método disciplinaram o entendimento ¢ 0 distanciaram de seu objeto. O minho curso direto éo da fantasia, que apreende o que permanece fundamental: mente inacessivel & erudigio histérica a ligagio imediata e viva. Piranesi co- rnheceu os dois caminhos, desenvolveu-os em separado e entio entrelagou-os um 20 outro: 0 caminho ascético do colecionar com paciéncia, da anotagio fel a Fsragos oA RECORDAGAO 6 caminho da proximidade ilusio- ‘todos os detalhes e da reconstrugio preci ‘nista na iluminagio especcral de uma subjetividade exaltada. (O genius loci que Cicero ¢ Pevrarca visicaram nio teria sido coisa alguma sem sua ancoragem na recordagio viva de um passado normativo. As ruinas mudass6 ppuderam set levadas a falar com a ajuda da tradigéo conservada na meméria. A Inscrigio que reveste de escritao local, de modo a elucidé-to, pode vir em auxilio dessa recordagio. Sua forma bisica é 2 sepulcral com seus imusiveis “aqui jax" hic jacet, po tamun. Uma escrita como essa no apenas nio pode ser desvinculada de um local especifico, mas ela mesma é 0 simbolo de fixidex espacial. A ago de grafar taisinscrig6es arcicula o mesmo “aqui” que escande caminho a pé em forma de litania, tanto em Isménias quanto em Cicero, Pau- sinias e Petrarca, Aqui estava Xendcrates ¢ aqui o seu ouvinte Pélemon, aqui Pedro foi pregado & cruz, aqui Paulo foi decapitado. No gesto sumariador de ‘apontar conclui-se oato da recordagio dos locais da meméria. Também as rutnas 0s remanescentes sio apenas dedos indicadores apontados 20 lugar concreto onde antes transcorriam a vida ¢ as agbes. Enquanto as ruinas ¢ os cobjetos apontam para algo ausente, a sepultura mantém-se como lugar de des- canso do morto, um local de presenga nurminose (tal como os ocais que guardam. em si objetos remanescentes). Em um capitulo das Afinidades elesivas de Goethe sto discutidas detalha- damente as questbes da fixidex © da mobilidade dos memoriais, bem como da presenga ou austncia. No comego do Segundo Livro terse 0 segui ‘Todos se lembram daquela modificagio que Charlotte se propusera a fazer no cemieério. Os monumentos haviam sido tirados de seu hugare se encontravam junto & pparede e aoalicerce da igreja. O espago live fora entdoaplainado, (Com excegio de um ‘camino largo que conduzia 3 igrejae depois portinha do outro lado) tado tinh sido semeado de crevos de vriasespécies, ue veedjavam efloreciam da forma mais bela. As snovas seu segundo tims certa ordem, a comegat do Gna, _maso terreno tera de ser constantementenivelado e emeada. Nao se podia negar que ssa disposigdo dava um aspecto digno e sereno 20 eaminko que levava igrej [1 ras deviam ser di 45 Johana Wolfgang von Goet Semtliche Were in wieder vergichen und cbenfalls besiet ‘Mesmo no cemhitério, Charlotte nio concede 4 morte prioridade em relagio & vida; perspectivas como a visio alegre para o frequencador da igteja, que, “em vez desepulturas de ido™, £0 us0 do terreno pelo sacerdote encontram-se no pi reorganizacio, Com suas medidas, no entan istncia de alguns 1 das Iépides nada menos que wim ato oriae. Eles desaprovam “o fato de se terem retirado 0s marcos aque indicavam os lugares onde descansavam os antepassados, apagando, de certo modo, a lembranga deles. Na verdade, os monumentos bem conservados indi- ‘cam quem, mas nio onde a pessoa esté enterrada, justamence o onde é 0 mais NOs prs ¢contras de uma petia honorifics com local fxo sto estados cexaustivamente logo em seguida. De um lado, est ressesde uma memoria dos mortos que persistentemente se prende a um local esse local da meméria se torna, em certo sentido, um local sagrado, inseaurado pela presenga do morto. De outro lado, encontram-se as exigéncias da modernidade, que se desvincula dessa atitude piedosa em face dos mortos, na medida em que liveralmente exuma do solo a lembranga nele ancorada ¢ a transfere para memoriais em locais nio especificos. O apego ao arcaico € aqui fixidez, 0 vineulo 20 pequeno pedaco de chao que garante a presenga das pessoas amadas. Importa ala presenga e no 0 monumento; nem a cruz de madeira, nem a de ferro, nem mesmo a lépide, werden. Niemand konnee leugnen, da diese Anatale beim sona- und fsteisigigen Kirchgang eine heicece und wirdige Ansiche gowahree (." Ed. bras: Johann Wlfgang Vou Govthe, As afnidedes letias.Tead. Erion Joré Paschoal, Sto Paulo, Nova Alexandria, 1992; 0 wecho citado est na p. 140. Agradego a Eva Horn por importantes impulics scporto-mes sua ese de dourorado: "Traser schreiben, Die Toren im Text det Goet 0 luo. Os moetos no texzo da Era goethisns). Mor Wordsworth sja movido pelo mesmo tema das lipides nstagos DA RECORDAGAO vvez, aos locais de deporeagio © massacre. Duas geragSes apés a deportagio & 0 assassinato dos judeus da Europa oriental, a regito transformou-se numa pais- gem memorial, visitada por viajantes de Israel, da América ¢ da Europa oci- dental: “Esses monumentos se tornaram grandes pontos turisticos, que atraem. centenas de visitantes ocidentais, na sua maioria judeus, até pouco mais a oferecer que a lembranga de uma auséncia. Em. comunidades vivas, sio os monumentos,construidos paraos «por cles mesmos, que movem os sobreviventes a retornar como turistas™, “Para abragar um ente querido que se foi prefiro bem mais estar junto a seu ttimalo quea um monumento”,afirma Goethe em Asafinidades eletivas. Quan- do nio se podem mais vsitar 0s eimulos, por conca da deportacio de um povo, do assassinato das familias ou porque exsas pessoas ficaram dispersas pelo mundo afore, entio também a meméria do local se dissolve com eles. Ficam apenas objetos remanescentes que, agregados a um monumento, fixam uma nova me- ‘méria do local. Em Kazimierz, um pequeno vilarejo na Poldnia, cuja metade da poptlacio antes da guerra era de origem judaica, as foram “transladadas” a um monumenco — “traduzi ‘monumento!. Na parte de fora do aleura¢ 25 metros de comprimento, di fixou-se com gesso um friso feiro com as lipides das sepuleuras judaicas. As lipides ndo foram retiradas apenas do c mas também das pedras da rua de um antigo mosteiro franciscano, onde os nazistas haviam sediado o quartel- general da Gestapo. Naquela reutilizagio sddica pelos nazistas, as pedras feitas com as lipides haviam sido colocadas com a superficie lisa para cima, de modo {que anova destinagio, por si mesma, tratasse de apagar a meméria. Com sso, no entanto, as inscrigSes foram procegidas do desgaste e da desteuigio, conforme se constatou com a nova escavasio. ido por uma fenda. Sobre esse muro, 8. Locais traumaticos Locais memorativos sio aqueles onde se cumpriam atos admiriveis ou em que o softimento assumin cariter exemplar. Registros feitos com sangue — como perseguigio, humilhaglo, derrora e morte — tém wm valor de deseaque na 50 James E. Young, “Jewish Memory in Poland’ in G. H. Hartman (org). Holocaust Remem- brane. The Shapes 51 Idem, op. ci, p.2 ‘meméria mitica, nacional e histérics. Ples sto inesqueciveis, na medida em que los por um grupo em recordagéo positivamente vinculadora. Locais raumiticos diferenciam-se de locais memorativos, na medida em que se fecham uma form: sangue € conoragio normativa ese prestam & fixagio de sentido pessoal ou coleciva [Nese momento, eu gostaria de citar mais uma vez 0 autor Hawthorne e um outro exemplo de seu romance, desta vez em vista do local traumitico. Trata-se agora de uma variante da proverbial conexio entre o criminoso e 0 local do crime. A heroina do romance A letra escarlate, em quem a sociedade puritana estampou, como estigma de seu crime, a letra A (de adultery), néo recorre & possibilidade de uma mudanca de local que a libertasse da onerosa popularidade « pudesse ajudé-la a comntruir uma nova identidade. sranho que Hester Prynne continuasse considerando sua moradia aquele lugar, 0 nico em que ers obrigada a encarar a infimia. Mas existe uma {alidade, sentimento ieesiscivel como & forga de um destino, que quase sempre ‘compele os seres humans rodearem emal-assombrarem (si) como Faneasias, o lugar conde algum grande e marcante acontecimento color as suas vidas. E, de um modo ‘cor que a tingia, O pecado.ea desonracram Pode parece tanto mais obstinado quanto mi arralzes que a chumbavam iguele solo Enguanto o local da recordagio se estabiliza por meio da histéria que se conta sobre ele (sendo que, de sua parte, olocal sustém e confere veracidade narrativa), local traumitico se vé assinalado pela impossibilidade dese narrar a narragio da histéria esté bloqueada pela pressio psicolégica do indi pelos tabus sociais da comunidade. Expresses como pecado, vergonha, coagio, poder do destino, sombras sio palavras tabus, conceitos velados que no rmanifestam, mas afastam o que no pode ser dito, encerrando tal coisa em sua prépria condigéo inacessivel Para Hawthorne, culpa ¢ trauma sio sintomas de uma doenga social ¢ estio baseados em hipocrisia ejulgamentos erréneos. O evento que subjaz arudo, uma tsvagos DA RECORDAGAO crianga ilegitima, s6 se torna “crime” por meio da estigmatizagzo da herofna ¢ também do recalque e do cédigo moral da sociedade puricana. Hester é obrigada a permanecerligada ao local de sua vergonha, onde © adultésio nao se torna pas- sado, mas continua sendo um presente vieulento ¢ perene. O local traumético preserva a viruléncia de um acontecimenco que permanece, como um passado que nio se esvai, que nao logra guardar distancia. Auschwitz (© nome Auschwitz tornou-se 20 longo do tempo uma abreviagio com que se cdesigna a méquina nazista de aniquilagio em massa dejudeus ede outras cxcluidas ¢ indefesas. Se 0 significado linguistico desse nome & evidente e ine quivoco, tanto mais vago é 0 significado desse local. Auschwitz, como local, escxeve Jonathan Webber, do é um museu, mesmo que no primeico momento parega ser; nio é um cemitérlo, mesmo que apresente requisitossubstancials para slo; no éum local erisico, mesmo {que com frequéncia sea tomado por um rurbilhio de visitantes. Eleé tudo issoem uma coisas [x] Nao temos em nosto idioma uma categoria com a qual possamos expressar que tipo de local é Auschwie 4o & atividade quesevineulaa rraumitico nfo se origina, em siltima inscancia, da heterogeneidade das recordagées ¢ perspectivas dos que o visicam. Para os poloneses, que administram o campo de concentrasz0 em seu proprio pais e fizeram dele um centro de memoragio da prépria histéria nacional marcada por uma condigio de vicima, ele significa algo diferente q paras prisioneirosjudeus que sobreviveram: para osalemaes seus descendentes, ppor sua vez, ele significa algo diferente do que para as pessoas ligadas is vicimas. [A palavra “comogao”, bastante genérica, ora revela, ora encobre toda uma palcta odos que vvivem nos paises ocidentais depois de Auschwitz tém Auschwitz em sua ‘historia, No entanto, sabemos que esses afetos tem conalidades muito diversas, Para esquadrinhar o significado formular do nome ¢ rest The Firs Frank Green 1s DarFman den cordagio: possvel tio diversas quanto as his esse local Esses diversos afetos, ancorados no mesmo local, perfazem a con de dele. Para alguns grupos de prsioneiros daquela época, para os quaiso local esti saturado com a experiéncia do softimento vivido, cle & 0 sustentéculo de uma experiéncia concreta partilhada. Para os sobreviventes ¢ seus filhos, que aqui pranteiam seus parentes mortos, ele & sobrecudo um cemitério. Para 0s que no ‘rém ligagdo pessoal com os milhées de vicimas, fica em primeizo plano o muse, aque apresenta o local do crime, conservado, em exposigoese visitas uiadas, Para {grupos religiosos ¢ politicos, prevalece o local de peregrinagio como sede da via ‘rucis de martires Famosos. Para chefes de Estado, o cendrio historico torna-se 0 ccenivio para pronunciamentos piblicos, admoestacées, declaragées, exigencias, Para o historiador, o local continua sendo um cendrio arqueolégico da procura jos ede sua asseguragio. O local & tudo isso que nele se procura, que se Je, que se associa a ele. Se ¢ objecivamente concreo, eambém ¢igual- ‘mente miltiplo, sob as perspectivagSes miltiplas. Parece ter chegedo ao fim a fase em que os respectivos governos procuram transformar lugates traumsticos como Auschwitz ou Buchenwald em memorials com ama mensagem po lisica inequivoca. Sob 0 verniz das significagées oficiais, hoje vém cada vez mais Atonaamultiplicidadede vozese,emboapartedoscasos,aincompatibilidade das diferentes lembrangas. ‘A conservagio © musealizagio de locais traumaticos é orientada pela convie gio de que as atrocidads em massa perpetradas pelo nacional-socialismo — Gianee das quais ndo ha distancia hist6rica sufciente, cas quais tampouco pres- cerevem, do ponto de vista moral — devem ser ancoradas de forma duradoura na ca. Espera-se dos locais da recordagio, para além do valor informativo que lugares memorativos e documentias proporcionam, onde quer gue se localizem, um aumento daintensidade da recordagio por meio da conters- plagio sensorial. O palco dos acontecimentos histéricos deve rornatacessivel Visitante o que 2s midias escritas ou visuais nfo conseguem transmit: a aura do local que nio é reproducivel em medium algum. Essa abordagem coresponde ‘do s6 a uma disposigio incerna muito antiga de peregrinos ¢ ruristas em busca de formagéo culeural, mas também a uma nova tendéncia na pedagogia museolégica que procura veicular a historia como experiéncia. Cone e colorido afetivo devem aprofundar a apreensi ccoletivas que as pessoas associam a Kraysztof Pomian, que pesqui Janga mao de um exemplo pa pasta aré que se the atribua valor museologico. Seu exemplo ¢ 0 de uma fibrica sPAGos D4 RECORDAGAD ‘que, depois de haver sido parte de de suas méquinas, gue se torn cartadas, “depois de se retirar delas tudo de a .n prossegue com seu exemplo, gasisquer objeros fou embravecido, v8 capities da indseia, da hues de classes empregedos, um memorial sobre aexploragdo do trabalhador pela alta bueguesiae sobre 2 acumalagio do capital, 08, 0 contrério, uma imagem do esptico empreendedor, do _progresso da técnica eda conquisea de mercados. Nossa fabriea cornouse um objero de Giscussbes ¢ das aticudes, expressdo de divers posturas em face do passado que ela corporifica. De agora em diante ela fancionard em um circuito semiérico. [Algo do que Pomian diz sobre a fabrica desativada vale também paraafabrica dda morte em Auschwitz. Enquanto residuo, ela € conservada sob a condiglo de ‘que se tome portadora de novas significagdes ¢ sumério de narrativas. Um local dda meméria, tal como uma colegio de objetos, também funciona em um ciclo semidtico. “A fungio da fabrica consiste apenas em remeter a um passado desa- parecido. Ela aponta para algo que nao esté mais disponivel, ela se refere a uma realidad invisivel”, Assim como os objetos de uma colegio, também os locais, so “mediadores entre passado e presente’; também podemos dizer: so midias dda meméria; apontam para um passado invisivel e preservam o contato com ele. ‘Quando Peter Weiss visicou Auschwitz nos anos 1960, ele tentou associar 20 territério 0 saber de que dispunha, assim como Cicero ou Petrarca a0 visitarem. seus locais de formacio, Mesmo que a distancia temporal seja muito menor, 0 acoplamento entre outrora e agora em um “aqui” indexador representou para Weiss uma dificuldade imensamente mais intensa, pois ela, apesar da recons- ‘trucio conscienciosa, transcendeu a faculdade imaginativa daquele que chega 20 local do crime em um momento posterior. Hier snd se gegangen, im langramen Zug, ommend aus allen Teilen Europes, dies lst der Horizont, den se noch saben, dies ind die Pappeln, dies die Wachtirme, mit den Sonnenrefleen ins Fensterglas, dis ist die Tr, durch diese gingen, in die Raum, die in agreller Licht getaucht waren und sn denen es keine Duschen gab, sondern nur diese vierechigen Sdulen aus Blech, dis sind die Grundmauern, awischen denen se verendeten sn der pleclichen Dunkelheit, im Gas, das aus den Lacherm entsrinite, Und diese Wort, diese Erkenntnisse sagen nichts, rkléven nichts. Nur Steimhaufin bleiben, vom Gras berwuchert \Vieram aqui, em peregrinasio lent vindos de todas as pat exeéo as devores, estas as torres de sentinela com reflexos horizante que ainda do sol na raga da janela,estaa porta pela qual leser ‘em luz ofuscante e nos quais nio havi duchas, somente esas colunas quadradas de metal si estas as muralhas fendamentais entre a3 ) sepentina, no gis que fluia dos buracos.E essas pala dizem, nada explicam. Restam somente montes de pede, fam nosebmodosmergulhados Para Peter Weiss, a diferenga absolura entre meméria de aprendizagem ¢ “meméria experiencial nfo se revela a quem visita esse local na posteridade: “o vivente que chega aqui, vindo de um outro mundo, nada possui sengo seu co- _nhecimento de nimeros, de relatos escritos e de depoimentos de testemunhas; [essas coisas sio parte de sua vida, pesam sobre ele, mas compreender de fato, isso E _ ele s6.consegue, diante de algo que acontece com ele mesmo", Auschwitz acon- > receu para Ruth Kliger. Em seu romance autobiogrifico weiter leben (seguir vvivendo], ela refletia sobre 0 valor ¢ as desvantagens dos memoriais erigidos a partir dos campos de concentragio. Em primeiro lugar, ela vé nesses locais da recordagio um suporte terapéutico para os sobreviventes. A sobreviventes se fixam insistentemente 20 local, as pedras es cinzas no vem em, beneficio dos mortos, mas sobretudo em beneficio dos préprios sobreviventes: “ond cego deixado pela violagio de um cabu como esse — genocidio, infant de patria onde cle possa assombrar™, Ela nio acrediea que “se possam banit swammengetll: son Esragos oA RECORDAGAE la discorre sobre fantasmas em muscus"®, Como contraponto a Auschi “Theresienstade, onde pode colher em paz os vestigios de sua recordagio, sem o umulto de turistase medidas rigorosas de preservagao. A pequena cidade tcheca de Teredin absorveu nela mesina as proprias recordagées: "Entio perambulei jes ruas, onde as criangas brincavam, ¢ vi meus fantasmas entre clas, com Ihuetas muito definidas e claras, mas transparentes, como sio ¢ devem set os cespititos, ¢ as eriancas vivas eram corpulent ‘seg tranguila meu caminho. Theresienstadt nao se omnara um museu! ‘A respeito dos que viajaram a Auschwitz, Ruth Kliiger escreve: "Quem pensa encontrar alguma coisa por ld provavelmente jé a traz na bagagem"®. Os sobre- viventes ue retornam aos palcos histéricos do terror rém na bagagem algo muito diferente do que os que adquiriram seus conhecimentos sobre Auschivitz através delivrose imagens apenas. A bagagem dos que nao foram diretamente atingidos inegavelmente mais leve do que a dos que tém aqui suas lembrangas ¢ vinculos ppessoais. Pode-se imaginar que, na medida em que a bagagem dos visitantes 3¢ torna mais eve, cresce neles a expectativa da forga impressiva do local. O que no se traz mais consigo, j que se ext muito longe do acontecido, deve ser com- ppensado por uma fora memorativa imanente 20 local, por seu carder apelativo cextraordindtio. (Oslocais da recordagio remodelados em memorials ¢ museus esto sujeitos a um paradoxo profundo; a conservagio desses locais em favor da autenticidade significa inegavelmente uma perda de autenticidade. Enquanto se preserva 0 local, também nio se pode evitar oculti-lo ¢ substituélo. Apenas pparte do acervo pode ser preservada como representativa, ¢ também neste tipo de prédio ¢ preciso reformar e substituir as partes em ruinas. Com o tempo, a autenticidade se retraird, passaré dos elementos remanescentes 20 “aqui” daloca- lidade. Quem dé muita importincia 8 forga memorativa do local corte 0 risco de confundir 0 local memorativo remodelado, 0 local dos visitantes, com o local hist6rico, o local dos pisioneiros. “Eu vistei Dachau uma ver", diz Ruth Kliges, ar i, Tad estavalimpo e pote alguns amigos precisa ter mais fs as tem para poder imaginar 0 que 60 Mem, op. cits p75 aren fee, aut und stimmig: DS ‘Maseurs geworden” « finden mein, hat es wohl schon im Gepick rmirgebeache hnaviaaconcecido Id 40 a imadeirach sobrea praga de operagies passiva um ve « of barracées exam quase convidativos. O que pode Pensa-se antes em colbnia de férias do que na vida sendo ava fescor pela cabega iada®. Para a cestemunha que eraz em si um vislumbre vivo da vida eoreurada, no bastasse eses locais néo terem forga memorativa algumma, eles ainda desfiguram. a recordagéo. Precisa-se de fantasia para passar ileso por eles, escapar de sua forga 3 Os locais memorativos musealizados tornaram-se para ela lembrangas cencobertas, Para nao se tornarem locais de vivéncia aduleerados, preciso, por 30 mesmo, destruir a ilusio de um vislumbre imediato, Para evitar que © potencial de afecgio que mobiliza o local memorative leve a uma “Fusio de ho- rizontes” ¢ a uma identificagio iluséria, € preciso evidenciar o hiato entre o local das vitimas ¢ 0 local dos visitantes. “Nos nao temos em nossa lingua uma cate- gotia com a qual possamos expressar que tipo de local foi Auschwitz", esereveu Jonathan Webber. Kliger pés-se 4 procura de uma palavra nova. Ela propée 0 seguinte, quanto ao lugar traumético Auschwitz: “O campo de concentragio como local? Localidade, paisagem, landscape, seascape — deveria havera palavra ‘cronidade’ (Zeitschaft] para indicar 0 que ¢0 local em um tempo, em um tempo especifco, nem antes nem depois". Locais de membria a contragosto — A topografia do terror ‘No pats dos criminosos as cidades sio,eacima de tudo Berlim, “um depésito de Jembrangas tinico™. A jornalista americana Jane Kramer, depois de observar Ber- ,esceeveu: “Na arqueologia ser a capital alema, de repente o passado subs 6 Idem, op. cit, p. 77 "Dachau abe ich einmal besacht. Weil amerikanische Freunde es wwnschten, Da war alle sauber und orden feriomigen Appellplae weht ein belebender Wind, und finladend. Was kann einem da cinfallen, man assoziereeventuell eher Fe iefleertes Leben. 6 Salzburg, 1998, p. 22: idem, Klagenfurs, 1994 Estagos pa necomDagio beim onde colocar © passado, nem como lidar com ele, nem o que fazer com tan- ‘aslembrangas, eenquanto isso vao falecendoas pessoas que aindase recordam”, Dé 0 que pensar essa tese de que em lugar do muro, que cortava a cidade na horizontal, agora se encontra uma sombra que, na vertical, langa sobre a cidade uma linha que separanela seu presente eseu pas locais carregados de lembrangas da -socialista nfo eraalgo ébvio até 05 anos 1980: algumas placas em edificios com indicagées de sua fungio durante a administragao nacional-socialista, como fruto de iniciativas locais, de repente foram retiradas ¢ descartadas™. As antigas instalagSes da Gestapo em ‘meio’ cidade de Berlim sio exemplo esclarecedor de um desseslocais da meméria a contragosto.®. Depois da guerra, foram demolidos os edificios que entre 1933 ¢ 1945 aco- modaram a policia central da Policia Secreta do Estado, da SS e do Servigo de Seguranga do Reich. Uma localizagio precisa da rua Prinz-Albrecht, n* 8, endereso oficial desse quartel-general, deixou de ser pe tanto no local «quanto nos mapas da cidade, No lado oriental da cidade, essa rua foi rebatizada como NiederkirchnerstraBe, em homenagem & costureira ¢ combatente comu- nista da resistencia Kathe Niederkitchner, que havia sido assassinada no campo de concentracéo Ravensbriick. No lado ocidental, parte desse eerreno (depois de aplainado) serviu por muitos anos como central de reciclagem para caliga de construgio; “recuperagio de entulho” era o terminus technicus que se usava. Em 1981, quando Bazon Brock incluiu essa 4rea em um guia cultural didético ¢ adaptou-a para servir imaginagao histérica ele aproveitou o conceito, econhe- cendo nele uma metéfora viva para a transformagio histérica: “Ali foram continuam sendo armazenados, separados ¢ reaproveitados os escombros do que aconteceu”®. Um resultado dessa recuperagio de entulho foi a reutilizasio dos escombros dessas ruinas como material de aterro para a rea do aeroporto de ‘Tegel. Essa constelagio de demoligio, arrasamento ¢ aterragem com cal 66 Jane Keamer, or Deutihen. Briefe aus einem Kleinen Land in Europa (Entzealemies ‘Manique, 1995, pp (CE camber Pe p. 196-202 mo diferengs no assume clevada significancia simbélica, como se evidencia depois. Brock ainda destaca que uma parte desse terreno foi utilizada durante décadas por mororiseas sem earteira (Fibrerschein, em alemio: carteira de condutor|s ele nio se contém econelui com o seguinte desfecho: "Mas quanto isso nao ha citvida: pelo m desde de 1938, 0 Kitbrer ¢ seus subchefes [Unterfihrer] dispunham todos de de cond projeto laureado com o primeiro prémio, que nio foi realizado, teria vedado o acesso aquele terreno histérico com uma construgio imponente de ago. O passo do esquecimento 4 memoragio simbéliea € essencialmente mais curto do que 0 que leva a.um trabalho ativo de recordagio. Insistiu-se diversas vezes em ignorar 0 status desse terreno como local de recordagio histérica; ainda em 31 de janeico de 1985, um pedido da bancada do Partido Social-Democrata para escavar as fe ia da cmara de deputados de Berlim, Poucos meses dep de Bitburg, quando Hlelmut Kohl e Ronald Reagan realizaram ato politico em comemoragio pelo dia 8 de maio de 1945, realizou-se 20 mesmo tempo, em Berlim, um ato simbélico cor respondente, de oposigio 20 primeiro. Uma multidéo cavou com pas 0 men- cionadlo terreno, opondo-se & opiniéo corrente de que, “no local central da SS € ruinas presentes no local [No verdo de 1985, uma assegurasiosistematica de vestigios coordenada pelo historiador berlinense Reinhard Rirup trouxe a piblico 0s estos de um andar subtersneo com salas de lavanderia e cozinha. Com isso rompeu-se simbolica- mente uma barreira que reinstaurou no coragio de Berlim o contato material com um passado préximo: pode-se visitar esse ponto de contato, ora coberto EsPagos DA RECORDAGAO no pais dos que perpetram o crime esté 20 mesmo tempo muito préximo do corpo, mas @ anos-luz de distincia da conscitncia, Esses vestigios sio “pedras do repiidio que, & revelia de uma grande resisténcia, sio desterradas ¢ expostas A visitagio"”. Diferentemente dos locais memorativos demarcados pelas vitimas, ino caso do terreno da Gestapo, eratase de uma mémioire involontaire, uma ‘re. cordagio rumorosa’ que traz A luz uma descoberta cardia tepentina. A recor dagio evidentemente ngo é somente uma questio de conservaso prolongadora ou de reconstituigao artificial do que hi muito passou ou se perdeu, sendo uma orga que prevalece contra o desejo de esquecimento ¢ recalque. Para Heiner Miller, os traumas sio explosives mneménicos que eclodem com efeito retar- dado: *O trabalho de memoragio ou de luto parte de choques’, ele declarou em. tuma entrevista’, De modo semelhante a Nietzsche, Warburg ¢ Freud, Heiner Miller defende uma teoria da meméria que vineula de maneira duradoca vestigios da recordagio a cenas antigas de violencia. Para ele, assim como para Benjamin, a recordagéo , ademais, uma forga revolucionéria que traz 4 tona 0 “rastro de sangue dos antepassados esquecidos” e as arestas probleméticas que ainda nio se apararam. Tal recordacio revolucionitia ¢ © principal recurso que se pode interpor 20 sofrimento ¢& injustiga da histéria. ‘Se Hitler tivesse prevalecido, tetia feito suceder ao genocidio judeu um mnemocidio, Entio, a cena dos memoriais de hoje teria uma aparéncia bem distinta — a central da Gestapo ainda estaria no mesmo local e nao haveria mais rastros de campos de exterminio, Depois do colapso de um regime e do sistema de valores ligados a ele, os s{mbolos se organizam de maneira diferente —o que ‘outrora era o centro desloca-se para tris, vice-versa, mensagem oficial silencia, «as vozes condenadas ao siléncio tornam-se audives, perseguidores e perseguidos trocam de reputagio. Porém, diferentemente de monumentos, memoriais ¢ ricuais honorificos, 0s loc: “ da recordagio nio se dissolvern nas "construgées de identidade dos sobreviventes””*. Enquanto cenarios historicos, a despeito dos tine des AnstoBes — Denkmnalein Einnerungan den Nationalsozs publik Deweschland” [Pedeas da repulse — Monumencos em me sno na Republica Federal da Alemanhs), Kritche Berichte 816 + produsieren keine Erinnenungen lida por Heinee Maller a Hendrik Werner, 7 mio, 1995, (©, Macquarde KH. Seieee lind Hermencutik§) A fora vinculativa dos lugares esté fandamentada de modo maito di os elementos materiais que ainda conservam e, née obstante toda a explo- iro c iperincerpretagio simbdlica, eles diferem de merossimbolos, ou sj Continuam sendo eles mesmos. Ao pasto que signifiagées culeuras vio sendo trigidas e derrabadas, a persisténcia dos locais — que nio desaparecer, mesmo ‘Teoncragosto de uma nova configuraséo geopolitiea — torna obrigatério o esta - felecimento de uma meméria de longa duragio que mantém em vista ao lado dos pontos de referéncia normativos para o presente, a maneira como estes S0- « frem deslocamentos na meméria histérica, = Aaura dos locais de meméria ‘A meméria nfo conhece a norma corpulenta ¢ incorruptivel da medida E_ remporal cronol6gica. Pode mover o que ha de mais proximo até uma distancia indeterminada e trazer 0 que est distante até muito préximo, is vezes préximo \0 passo que os livros de histéria ordenados cronologicamente sio ites = quan lar a consciéncia histérica de uma nagio, a meméria de Fuma nagio se materializa na paisagem memorativa de seus locais de recordagio. © vinculo peculiar entre proximidade e distancia confere aura a esses locais © © neles se procura um contato direto com 0 passado. A magia atribuida aos locais © da recotdagio se explica por conta de seu status de zona de contato. Em toda cultura ha registcos de locais sagrados que possbilitam uma ligagéo com os © deuses. Os locais memorativos podem ser vistos como a insticuigio que 0s su- ‘eedeu; deles se espera que produzam um contato com os fantasmas do passado, icado: no caso do local geracional, essa forsa repousa sobre uma cadeia de parentesco entre viventesefalecidos; no caso dos locais memorativos, ela repousa sobre uma narrativa resgatada c legada adiante; no caso de locais da recordagéo, sobre um mero interesse historico de caries antiquatios © no caso de locas trauméticos, sobre uma ferida que nao quer cicattizar, ‘Walker Benjamin, que adocou 0 conceito de aura ¢ 0 desenvolveu em suas técnica e cultura de massa, usou-o, porém, em i: “Uma tecitara incomum de reflextes sobre 0 nexo entre art diregio inversa, Ele descreve a aura como sragos BA RECORDAGKO mente, em uma sugestiva condigéo imediata, mas sim, muito pelo contrétio, em discancia e inacessibilidade. O que se supunha estar préximo most pente sob outra uz, que afastae priva, O sagrado contido na aura nao se fundava, para Benja rento de proximidade, mas sim de distancia ¢ estranhera. Nesse sentido, um local dotado de aura nfo traz promessa de algo imediaco; mais que isso, é um local em que se podem perceber sensorialmente 0 afastamento ¢ a distancia irrecuperivel do passado, © local da recordagio & de fato uma “eecitura incomum de espago e tempo”, que entretece presenga € at séncia, 0 presente sensorial eo passado histérico. Se a marca da autenticidade éa igagio entre 0 aqui e 0 agors, entio o local da recordagéo como aqui sem um agora, ndo passa de autentiidade parcial. Longe de wn as duas metades, local da recordagio insiste em manté-as sepatadas como aqui ¢ outrora, Para Benja- mim, a dimensio de aura atribuida ao local da recordagao reside justamente em sua estranheza, em uma ruptura categérica que é mais dificil evitar quando se ‘esti no proprio local do que em meio & recepsao imaginativa de um livro ou de um filme. ‘O passo que vai do local memorativo ¢ da recordagio, que vai do miliew de mémoire 20 lieu de mémoire, dé-se com a interrupsio, com a ruprura em relagio ti parimetros de significagio culeueal ea contextos socilgicos definidos. Assim. ‘como of objetos utilicérios que, ao se rornarem pegas de museu, perdem as fun- ‘goes originais e seu nexo com a vida prética, também a formas de vida, ariudes, ages ¢ experiéncias estdo sujeitas a uma metamorfose parecida, quando saem do contexto de uma atualidade viva e se tornam recordagées. Objetos que per

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