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Ciência, História e Teoria

Betânia Gonçalves Figueiredo


Mauro Lúcio Leitão Condé
Organizadores

ARC;VMENTVM o C A P E S
PRODOC
Scientia
U F M G

~
Betânia Gonçalves Figueiredo
Mauro Lúcio Leitão Condé
Organiza dores

CIÊNCIA, HISTÓRIA E TEORIA

Apoio

o C A P E S
PRODOC

ARC;VME'NTVM
Belo Horizonte
2005
Todos os direitos reservados à
ARC;VME'NTVM Editora Ltda.
© Autores

Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido


por qualquer meio sem autorização do Editor.

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(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Ciência, história e teoria / Betânia Gonçalves


Figueiredo, Mauro Lúcio Leitão Condé r
organizadores . -- Belo Horizonte : Argvmentvm
Editora, 2005.

Vários autores.
Apoio: CAPES
ISBN 85-98885-03-7

1. Ciência - Filosofia 2. Ciência - História


3. Ciência - História - Brasil 4. Ciência-
Metodologia 5. Metodologia 6. Pesquisa -
Metodologia I. Figueiredo, Betânia Gonçalves.
li. Condé, Mauro Lúcio Leitão.

05-0561 CDD-509

índices para catálogo sistemático:


1. Ciência: História 509

Preparação dos originais


SEGRAC

l' edição: Fevereiro de 2005


ISBN: 85-98885-03-7
Belo Horizonte

Scientia/UFMG
www.fafich.ufmg.br/-scientia

ARC;VME'NTVM
EDITORA LTDA.
Rua dos Caetés, 530 sala 1113 - Centro
Belo Horizonte. MG. Brasil
Tel. O(xx) 3134420814
Paradigma versus
Estilo de Pensamento na
História da Ciência I

Mauro Lúcio Leitão Condé

1- INTRODUÇÃO

Ao fazer referência ao livro de Ludwik Fleck, A Emergência e o


Desenvolvimento de um Fato Científico, Thomas Kuhn (KUHN, 1970:
vi) é responsável, em grande medida, pela introdução desse original
pensador polonês- no debate contemporâneo sobre a epistemologia e
a história das ciências.' A monografia de Fleck, como Kuhn refere-se
à obra, foi publicada em alemão, no ano de 1935, com uma reduzi-
da tiragem de 640 exemplares dos quais, segundo T. J. Trenn, apenas
aproximadamente 200 foram vendidos (FLECK, 1979:xviii). Tendo

1
Este texto foi apresentado no 9° Seminário Nacional de História da Ciência e da
Tecnologia, em 2003, no Rio de Janeiro. •
2 Ludwik Fleck, médico e microbiólogo de origem judia, nasceu em Lvov, Polônia,
em 11 de julho de 1896 e faleceu em Ness-Ziona, Israel, 05 de junho de 1961. Fleck
publicou mais de 150 artigos na área de sua especialidade científica. Com relação à
epistemologia e à história das ciências, além de A Emergência e o Desenvolvimento
de um Fato Científico escreveu mais alguns poucos artigos traduzidos para o inglês e
reunidos em Cognition and Fact: MateriaIs on Ludwik Fleck.
3 Na realidade, embora Kuhn tenha percebido o valor do livro de Fleck, foi Hans Reichenbach
que, também através de uma pequena referência em seu livro Experienceand Prediction, trou-
xe, para Kuhn, o conhecimento da obra de Fleck (Cf. FLECK, 1979:viii).

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circulado precariamente, e sobretudo entre os profissionais da área
médica, até ser "encontrado" por Kuhn, o livro de Fleck não recebeu
nenhuma atenção mais significativa de filósofos ou historiadores da
ciência. Considerado superficialmente, o livro foi compreendido
apenas como mais um "estudo de caso" de uma doença - a sífilis
- aparentemente com poucos atrativos para sua história. Com efei-
to, a "data de nascimento", por assim dizer, da obra de Fleck para
a epistemologia e a história da ciência parece iniciar-se quase três
décadas após a sua publicação, isto é, somente em 1962 com o relato
de Kuhn.

(...) pude encontrar a quase desconhecida monografia de Ludwik


Fleck, Entstehung und Entwicklung einer wissenschaftlichen Tatsache
(Basel, 1935), um ensaio que antecipa muitas de minhas próprias
idéias. (...) a obra de Fleck fez-me perceber que essas idéias pode-
riam requerer ser colocadas na sociologia da comunidade científica
(KUHN, 1970:vi-vii).

Entretanto, apesar da pequena referência no bestseller de Kuhn


ter tornado o nome de Fleck conhecido, até 1979, A Emergência e
o Desenvolvimento de um Fato Científico ainda permaneceu sem
muitos leitores quando, então, foi traduzida para o inglês e teve, no
ano seguinte, uma nova edição do original em alemão." Essa maior
divulgação, a partir da edição inglesa, possibilitou aos leitores a per-
cepção exata da extensão em que Fleck realizou a "antecipação das
idéias" do autor de A Estrutura das Revoluções Científicas, isto é, quão
semelhantes eram muitas das posições de Fleck e Kuhn. Isso trouxe
um certo desconforto para Kuhn que, quase trinta anos mais tarde,

FLECK,L. Entstehung und Entwicklung einer wissenschafliche Tatsache: Einführung


in die Lehre vom Oenkstil und Oenkkal/ektiv. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1980.
Tradução inglesa: FLECK, Ludwik, Cenesis and Oevelapment oi a Scientific Fact.
Chicago: The University of Chicago Press, 1979. Em 1986, apareceu a edição em
espanhol. FLECK,L. La Cénesis y el desarral/o de un fato científico. Madrid: Alianza
Editorial, 1986. Embora não tenha tido acesso, existe uma tradução para o italiano
com um prefácio de Paolo Rossi. Ainda não existe uma edição em português.

124
lança mão do conceito de Serendipismo' (descobrimento acidental)
para explicar tais semelhanças.
O objetivo deste capítulo é aproximar alguns aspectos do pen-
samento de Kuhn à obra de Fleck. Mais que ressaltar as semelhanças
entre esses dois autores, procuro também ressaltar as diferenças. É
meu objetivo ainda mostrar que a obra de Fleck pode indicar possí-
veis soluções onde as idéias de Kuhn parecem encontrar seus limites,
em especial no que diz respeito aos problemas trazidos pelo conceito
kuhniano de incomensurabilidade. Entretanto, aqui mais que a crítica
a Kuhn, interessa-me a divulgação do pensamento de Fleck. Na me-
dida em que Fleck ainda é relativamente desconhecido entre nós, se
essa "apresentação do autor" for realizada, esse texto terá alcançado
sua finalidade. Com efeito, no que se segue obedecerei à seguinte
estratégia de exposição: em um primeiro momento, abordarei algu-
mas semelhanças entre os dois autores e, na seqüência, algumas das
diferenças mais significativas, em especial, com relação ao conceito
de incomensurabilidade. Em outras palavras, o que Kuhn "assimilou"
de Fleck, mas sobretudo o que "não assimilou" dele.
Como procurarei mostrar, mesmo com todas as inovações apre-
sentadas, ao conceber o avanço do conhecimento científico como
um evento revolucionário, a obra de Kuhn insere-se em uma longa
tradição historiográfica construída em torno do conceito de "revo-
lução científica". Em parte, graças a essa inserção, Kuhn teve difi-

5
Esse termo provém da literatura. Especificamente do conto Os três Príncipes de
Serendip. Em seu "Sinais, Raízes de um paradigma Indiciário", relata-nos Carlos
Ginzburg que essa história é "(. ..) a fábula ou o conto oriental dos três irmãos que
interpretando uma série de indícios logram d~screver um animal que nunca tinham
visto. Esse conto fez sua primeira aparição no ocidente através da recompilação de
Sercambi. Posteriormente, retomou no início de uma recompilação de contos muito
mais ampla, apresentada como tradução do persa para o italiano, aos cuidados de um
armênio de nome Cristoval, que aparece em Veneza em meados do século XVI com
o título Peregrinaggio di tre giovani figliuoli dei re di Serendippo. Dessa forma, o livro
foi muitas vezes reimpresso e traduzido (Primeiro para o alemão, depois, no curso do
século XVIII, sob o efeito da moda orientalizante daquele tempo, às principais línguas
européias). O êxito da história dos filhos do rei de Serendipe foi tal que induziu Horace
Wolpole, em 7754, a cunhar o neologismo serendipidy para designar os 'descobrimen-
tos imprevistos, feitos graças ao acaso e a inteligência.'" (GINZBURG, 1983:86)

125
culdades para superar seu conceito de mudança de paradigma onde
esse alcança seus limites. Diferentemente, Fleck não se inseriu nessa
tradição historiográfica "revolucionária" e apresentou uma nova pers-
pectiva para compreender o desenvolvimento da ciência, elaborando
uma teoria da ciência em torno dos conceitos centrais de estilo de
pensamento (Denkstil) e pensamento coletivo (Denkkollektiv), os
quais não pressupõem a ciência como um evento revolucionário,
mas, sob diversos aspectos, evolucionário no qual o surgimento de
novas idéias e fatos científicos são vistos como uma mutação conti-
nuada e não propriamente uma revolução.
Para Fleck, muito antes de Kuhn, o fato científico não é algo
dado em si, mas uma construção da comunidade científica em um
complexo processo de interações sociais através do tempo. Esse fato
científico é algo que é percebido apenas no interior de um estilo de
pensamento elaborado pela comunidade científica, ou como caracte-
riza Fleck, pelo pensamento coletivo. Esse desenvolvimento da ciên-
cia não cria rupturas abruptas entre os vários estilos de pensamento
ou mesmo entre o não-científico e o científico, mas evolui de um
modelo para outro como uma rede de relações de conhecimento en-
trecruzadas construída coletivamente e sintetizada no estilo de pen-
samento. Com efeito, Fleck evita não apenas a idéia da ciência como
revolução, mas algo que tornou-se extremamente problemático para
Kuhn, isto é, a idéia de que os limites dos paradigmas sejam herméti-
cos ou incomensuráveis.

2- O QUE KUHN ASSIMILOU DE FLECK

2.1- Após a leitura de A Emergência e o Desenvolvimento de um


Fato Científico, talvez a primeira interrogação que surge com relação
a Kuhn seja: por que o autor de A Estrutura das Revoluções Científicas
não dialogou de forma mais direta com a obra de Fleck, uma vez que
muitas são as semelhanças existentes entre os dois livros? Poderia
ser salientado que Kuhn não estabelece esse diálogo de modo mais
pormenorizado com suas outras influências, igualmente citadas na

126
introdução de seu livro, em especial as de caráter filosófico (Quine,
Wittgenstein, Whorf, etc.). Kuhn alega que "(, ..) limitações de espaço
afetaram drasticamente meu tratamento das implicações filosóficas
deste ensaio com uma visão da ciência historicamente orientada //
(KUHN, 1970:x). Naturalmente, essa é, pelo menos em parte, uma re-
tórica para uma estratégia de exposição, uma vez que a obra de Kuhn
não apenas acarreta diversas implicações filosóficas, mas igualmente
pressupõe uma dimensão filosófica. Certamente que A Estrutura das
Revoluções Científicas é um livro de história da ciência, mas está
cercado de filosofia por todos os lados. Pressupõe filosofia e implica
filosofia. Como reconhece Kuhn,

claramente, existem tais implicações e eu tentei tanto apontar quanto


documentar as principais. Mas assim procedendo eu normalmente
refreei-me de discussões das várias posições tomadas por filósofos
contemporâneos sobre os assuntos correspondentes (KUHN, 1970:x).

Desse modo, aparentemente Kuhn estaria justificado ao inserir


Fleck nessas "bordas filosóficas" de seu livro e, assim, não discuti-
10 detalhadamente. Entretanto, devido à forte influência de Fleck na
obra de Kuhn - muito mais do que o incauto leitor de A Estrutura das
Revoluções Científicas possa apreciar - parece-me que Kuhn deveria
ter dialogado de modo mais direto com o autor de A Emergência e
o Desenvolvimento de um Fato Científico. Se não era possível esse
diálogo, fazia-se necessário, pelo menos, mais referências com rela-
ção aos vários pontos semelhantes. Para amenizar a ausência dessa
discussão detalhada com a obra de Fleck pode-se lembrar que, anos
mais tarde, Kuhn salienta que sua compreensão de A Emergência e
o Desenvolvimento de um Fato Científico à época de sua primeira
leitura foi muito dificultada não apenas pelo alemão "extraordinaria-
mente difícil" no qual o livro foi escrito, mas também por apresentar
um complexo vocabulário da área de medicina e bioquímica (FLECK,
1979:ix). Contudo, o débito para com Fleck parece ser realmente
muito maior do que o espaço reservado a ele em A Estrutura das
Revoluções Científicas.

127
••••••••

Embora os livros de Kuhn e Fleck tenham igualmente grande pro-


fundidade filosófica, expressa na complexidade conceitual de ambos,
para analisar algumas semelhanças e diferenças entre os dois autores
terei em mente apenas alguns conceitos centrais de cada um. Em par-
ticular, os conceitos kuhnianos de paradigma e revolução científica
(mudança de paradigma), e as noções flecknianas de estilo de pen-
samento e pensamento coletivo. De início, uma primeira dificuldade
mostra-se. De um modo geral, tanto em Kuhn quanto em Fleck, esses
conceitos são polissêmicos. Por exemplo, para o conceito kuhniano
de Paradigma, Margaret Masterman encontrou, em A Estrutura das
Revoluções Científicas, nada menos que 21 definições, embora tenha
afirmado que "é evidente que nenhum desses sentidos de 'peredigme'
sejam inconsistentes uns com os outros: alguns podem mesmo ser
elucidações de outros" (MASTERMAN, 1970:65). Assim, os conceitos
- ou talvez, devido a essa polissemia, as noções - desses dois auto-
res serão elucidados apenas na medida da necessidade de compreen-
der as aproximações e contraposições aqui propostas.
A obra de Kuhn é o livro acadêmico mais divulgado no século
XX, com cerca de um milhão de cópias vendidas e traduzido para
mais de vinte línguas (FULLER, 2000:1). Mais que isso, ele não
apenas modificou de modo decisivo o imaginário científico, mas o
transcendeu. Muitas vezes, nas práticas cotidianas não científicas
qualquer simples mudança já é feita em nome da "mudança de para-
digma". Existe um certo "didatismo" nos conceitos de A Estrutura das
Revoluções Científicas. O entendimento relativamente fácil do con-
ceito de paradigma, e a possibilidade de uso imediato em várias áre-
as, impede, ainda hoje, o seu abandono, embora esse conceito tenha
apresentado profundas dificuldades filosóficas (em especial a questão
da incomensurabilidade). Tentando resolver essas dificuldades o pró-
prio Kuhn "abandona" o conceito de paradigma. Na segunda edição
de A Estrutura das Revoluções Científicas já elabora o conceito de
matriz disciplinar e, finalmente, o de léxico (KUHN, 2000). Contudo,
para além do imaginário científico, paradigma já pertence ao imagi-
nário social.

128
2.2- A obra magna kuhniana é formada por 13 capítulos - e o
importante posfácio da segunda edição. Kuhn parte da idéia de que
a ciência é um empreendimento produzido essencialmente por uma
comunidade científica. O conjunto das idéias e práticas científicas
dessa comunidade caracterizará o que Kuhn chama de paradigma.
Uma dentre as muitas definições de paradigma nos diz que eles são
formados por "realizações
científicas universalmente reconhecidas
que por um tempo providencia modelos de problemas e soluções
para uma comunidade de praticantes" (KUHN, 1970:viii). Mudanças
e desenvolvimentos na ciência dão-se a partir do momento em que
um paradigma não mais consegue explicar determinados fenômenos.
Em um complexo processo, antigas idéias, práticas e teorias científi-
cas são substituídas por outras mais adequadas e eficazes na solução
de um ou mais problemas apresentados (KUHN, 1970:92).
Esse processo caracteriza o que Kuhn chama de uma revolução
científica ou mudança de paradigma. Exemplificando com a história
da física - mas estendendo às demais ciências - relata Kuhn "essas
transformações dos paradigmas da física ótica são revoluções cientifi-
cas e a transição sucessiva de um paradigma a outro via revolução é o
padrão usual de desenvolvimento da ciência madura" (KUHN, 1970:
12). Após a mudança de paradigma, o cientista é como que transpor-
tado para outro mundo: "(. ..) depois de uma revolução os cientistas
estão respondendo a um mundo diferente" (KUHN, 1970:111). Esse
será um ponto chave na contraposição com Fleck. Para Kuhn, já no
interior de um novo paradigma, todos os problemas científicos são
analisados e resolvidos pela nova "visão de mundo" ou Cestalt do
cientista. Após a instalação da revolução, segue-se o que Kuhn chama
de "ciência normal", onde todos os problemas são tratados minucio-
samente a partir da percepção (Cestalt) possibilitada pelo paradigma
instalado, até que novos problemas desafiem outra vez esse paradig-
ma e haja outra revolução científica ou mudança de paradigma.
Em síntese, a ciência sempre opera dentro de um paradigma.
Após esgotadas as possibilidades desse paradigma, pela ciência nor-
mal, o seu desenvolvimento caracteriza uma mudança de paradigma
ou revolução científica. A revolução científica mostra como os para-

129
digmas operam em "mundos diferentes" conduzindo Kuhn a assina-
lar, assim, a incomensurabilidade entre os diferentes paradigmas.

(...) em tempos de revolução, quando a tradição científica normal


muda, a percepção do cientista de seu ambiente deve ser reeduca-
da - em uma situação familiar ele deve aprender a ver uma nova
Cesta/t. Depois que ele assim o fizer o mundo de sua pesquisa será,
aqui e lá, incomensurável com o que ele habitava antes (KUHN,
1970: 112). (Grifo meu).

As idéias de revolução e incomensurabilidade propostas por


Kuhn são dois pontos extremamente caros a ele, mas que trarão mui-
tos problemas para sua teoria da ciência. A origem do conceito de
incomensurabilidade em Kuhn é um pouco ambígua, mas, indepen-
dente dessa ambigüidade, ela certamente está associada ao conceito
de revolução científica. Já se atribuiu ao relativismo de Wittgenstein a
influência para a criação do conceito de incomensurabilidade. Como
procurei mostrar (CONDÉ, 2004), é pouco provável que Wittgenstein
seja um relativista. Na medida em que Kuhn foi um leitor de Whorf
(Cf. KUHN, 1970:vi.), talvez esteja aí a influência inicial para a ela-
boração da idéia de "incomensurabilidade dos paradigmas". Segundo
Whorf, nossos padrões lingüísticos determinam nossas percepções do
mundo e nosso pensamento (Cf. WHORF, 1987). Até aqui isso é algo
que, sob certos aspectos, assemelha-se a Wittgenstein. Contudo, o
ponto de controvérsia é que, segundo Whorf, diferentes linguagens
constituem concepções fundamentalmente diferentes de mundo. A
questão, assim, gira em torno de saber o quão fundamentalmente
diferentes, ou mesmo incompatíveis, são as diversas linguagens. Essa
tese está muito mais próxima de Whorf do que de Wittgenstein. Kuhn
incorpora na incornensurabilidade" o radicalismo de Whorf, além de
associar incomensurabilidade e revolução científica.

Kuhn assinala que o termo incomensurabilidade foi tomado emprestado da mate-


mática e que, embora Paul Feyerabend tenha usado-o na mesma época, sua concep-
ção de incomensurabilidade tinha um sentido mais amplo do que a de Feyerabend
(KUHN, 2000:33-34). Feyerabend também foi um leitor de Whorf.

130

-0000I
A Historiografia da ciência "revolucionária" estabeleceu-se a
partir da idéia de que a emergência da ciência moderna configura-se
como um evento revolucionário de proporções nunca antes havidas.
Essa idéia consolida-se como marco teórico na história da ciência
com a caracterização, feita por historiadores como A. Koyré, do con-
ceito de revolução cientitice' como uma ruptura radical." E Kuhn é
herdeiro dessa tradição. Ele não apenas pressupõe a idéia de que a ci-
ência moderna foi fundada a partir de um evento revolucionário, mas
incorpora essa dimensão revolucionária na própria dinâmica da ciên-
cia, isto é, a ciência é sempre revolucionária. Todo o esforço teórico
de Kuhn para explicar o funcionamento da ciência em A Estrutura
das Revoluções Científicas, parte desse pressuposto revolucionário.
Ele em nenhum momento questiona se houve ou não uma revolução
científica, mas pressupõe essa idéia herdada da tradição a qual per-
tence e tenta, assim, explicar "a estrutura das revoluções científicas".
Portanto, para Kuhn, a ruptura revolucionária não se estabeleceu
apenas enquanto um evento singular presente na revolução científica
do século XVII, mas ocorre sempre no desenvolvimento da ciência.
Kuhn, assim, "eterniza" a dinâmica do processo revolucionário na
própria dinâmica da ciência.
Embora, para Koyré, a revolução científica moderna seja de fato
um evento extraordinário: "a revolução galileana e cartesiana - que,
apesar de tudo, permanece como uma revolução - , fora preparada
por um longo esforço de pensamento. E não há nada mais interes-
sante, mais instrutivo, nem mais empolgante do que a história desse
esforço" (KOYRÉ, 1982:181). Koyré não parece querer, como Kuhn,

"Revolução científica" e "história da ciência" passam a ser expressõespraticamente


sinônimas. I. B. Cohen lista, como exemplo, um grande número de livros em história
da ciência em que a expressão 'revolução científica' faz parte do título (COHEN,
1989:39).
8 Segundo S. Shapin, Historiadores como Koyré e Butterfield são os responsáveis
por incrustar a expressão 'revolução científica' na tradição da disciplina História
da Ciência. Shapin procura desconstruir a idéia de revolução científica. Em seu The
Scientific Revolution, assevera: "Não existe tal coisa como a revolução científica, e
esse é um livro sobre ela" (SHAPIN, 1996:1).

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"eternizar" a dinâmica do processo revolucionário uma vez que com-
preende a ciência moderna de Galileu a Einstein como uma única
ciência - "A física moderna, isto é, aquela que nasceu nas obras de
Galileu Galilei e se completou nas de Albert Einstein, considera a lei
da inércia sua lei mais fundamental" (KOYRÉ, 1982:182). Ao passo
que Kuhn esforça-se para mostrar a ruptura entre Newton e Einstein,
isto é, entre a física clássica e a moderna como uma revolução cien-
tífica ou mudança de paradigma.
Revolução implica descontinuidade e, por conseguinte, para
Kuhn, incomensurabilidade entre as duas partes da descontinuidade.?
Essa descontinuidade não parece confirmar-se efetivamente quando
voltamos os olhos para os aspectos históricos da ciência. Entretanto,
em Kuhn, a dimensão histórico-social tem uma grande importância
e, se incomensurabilidade e história não se adaptam reciprocamente,
existe aí um grande problema para a teoria da ciência de Kuhn.
Boa parte da tarefa filosófica posterior de Kuhn concentrou-se
em tentar corrigir os problemas trazidos pelos conceitos de inco-
mensurabilidade e revolução científica. Segundo o próprio Kuhn, a
incomensurabilidade irá ocupar o centro de seus pensamentos daí
em diante. Pois esse problema é o epicentro de muitos problemas da
história e filosofia da ciência e sua solução conduz ao esclarecimento
de outras importantes questões como racional idade, relativismo e ver-
dade. Com efeito, Kuhn não apenas reafirma a central idade dos con-
ceitos de revolução científica e incomensurabilidade de A Estrutura
das Revolução Científicas, mas ainda coloca esses conceitos como
os pontos centrais para uma nova teoria da ciência que estava sendo
formulada por ele.

Na realidade, o conceito de revolução inicia-se na história da ciência sem essa


conotação de ruptura ou descontinuidade. Revolução, nas Revoluções das Órbitas
Celestes de Copérnico, significa simplesmente o movimento circular e repetitivo
dos corpos celestes, sem que a idéia de ruptura esteja presente. Porém, ao inserir-se
na história política, revolução passa a designar ruptura. Por exemplo, na Revolução
Francesa como ruptura com o antigo regime. Assim, o conceito volta para a história da
ciência já com esse significado de ruptura (Cf. COHEN, 1989).

132
Aqueles que dentre vocês, conhecem-me fundamentalmente como o
autor de A Estrutura das Revoluções Científicas. Eis um livro no qual
as noções centrais são, por um lado, "mudança revolucionária", e por
outro, algo chamado "incomensurabilidade". A explicação dessas
noções, especialmente a de incomensurabilidade, está no coração
do meu projeto, do qual as idéias que apresentei aqui são abstraídas.
Mas elas não foram mencionados aqui, e alguns de vocês podem estar
imaginando como elas se encaixariam aí" (KUHN, 2000:119).

Entretanto, parece que Kuhn não logrará muito êxito em seu


novo projeto. O livro tantas vezes prometido (KUHN, 2000:58, 90,
228) para apresentar sua "nova" teoria da ciência não veio a lume.
Apesar de seus últimos escritos, ao tratar da questão, apresentarem
um grau de refinamento com análises extremamente bem elaboradas,
algo parece impedir Kuhn de concluir sua nova teoria da ciência. Esse
algo é, em grande medida, seu comprometimento com a "ciência
revolucionária", como abordarei adiante.

2.3- Embora igualmente densa e complexa, a obra de Fleck tem


uma arquitetura de exposição mais simples do que a de Kuhn. A
Emergência e o Desenvolvimento de um Fato científico possui apenas
quatro capítulos através dos quais o autor procura mostrar que o Fato
Científico não é propriamente algo simplesmente dado, mas, mais
do que uma descrição do empírico, estabelece-se e desenvolve-se
através de um complexo processo de interações sociais ao longo de
muito tempo. Portanto, fatores históricos e sociais estão na base de
todo e qualquer fato científico.
Antecipando-se muito à Kuhn, Fleck foi um dos primeiros autores
a perceber essa dimensão psicológica, social e histórica que envolve
a ciência. Para ele, a ciência é colocada em termos de uma ativida-
de coletiva, isto é, constitui-se em uma comunidade de praticantes,
tanto em seus aspectos teóricos quanto práticos. Mais que isso, tais
atividades processam-se no bojo das relações sociais que envolvem o
científico e o não científico. Embora, em última instância, os critérios
de cientificidade sejam legitimados no interior da ciência, eles são
também, em medidas variáveis, influenciados pela não ciência.

133
Para desenvolver sua teoria da ciência, Fleck escolhe narrar a
história da sífilis para mostrar como estabeleceu-se o moderno en-
tendimento dessa doença em seus aspectos históricos desde o século
quinze até a chamada "reação de Wassermann", de início do século
XX. Diferentes épocas e contextos elaboraram explicações variadas
para a sífilis. Para Fleck, o que hoje chamamos sífilis foi compreendi-
do de forma distinta em diferentes pensamentos coletivos - ou co-
munidades científicas situadas historicamente -, que produziram as
teorias e as práticas científicas que determinaram quais os problemas
a pesquisar e como esses foram percebidos.

se definimos "pensamento coletivo" como uma comunidade de pes-


soas (Cemeinschaft der Menschen) trocando idéias ou mantendo inte-
ração intelectual, então, chegaremos, por implicação, que ela possui
o suporte para o desenvolvimento histórico de qualquer campo do
pensamento, como também para o estoque de conhecimento dado e
o nível de cultura, portanto, um Estilo de Pensamento (FLECK, 1980:
54,55).

Uma comunidade científica define, assim, seu estilo de pensa-


mento, isto é, sua capacidade de perceber os problemas e articular
soluções a partir dos valores e práticas que definem o sistema de refe-
rência no qual esse estilo de pensamento é criado.

Nós podemos, portanto, definir estilo de pensamento como o per-


ceber orientado igerichtetes Wahrnehmen), com correspondência
mental e assimilação factual do que foi percebido. Ele é constituído
por características comuns nos problemas de interesse do pensamen-
to coletivo, pelos julgamentos que o pensamento coletivo considera
evidente e pelos métodos que ele aplica como meios de cognição. O
estilo de pensamento pode também ser acompanhado por um estilo
técnico e literário característico do sistema de conhecimento dado
(FLECK, 1980:130).

Entre o sujeito e o objeto da teoria do conhecimento tradicio-


nal, para Fleck, interpõe-se a comunidade científica - pensamento
coletivo - que irá desempenhar um papel extremamente importante
na constituição do conhecimento. Portanto, um fato nunca pode
ser algo como uma pura descrição que o sujeito, isoladamente, faz

134
de seu objeto, mas é visto por um estilo de pensamento a partir do
pensamento coletivo. "Porque pertence a uma comunidade, o estilo
de pensamento sofre um reforço social" (FLECK, 1980:130). É nesse
sentido que um conceito, uma teoria ou um fato nunca é algo isolado,
mas "um laço estilístico existe entre muitos, senão todos, conceitos de
uma época baseados em sua influência mútua. Nós podemos, por-
tanto, falar de um estilo de pensamento que determina a formulação
de cada conceito" (FLECK, 1980:15). O pensamento coletivo - com
seu estilo de pensamento - orienta o que deve ser pesquisado, isto
é, o que constitui-se como problema para os cientistas, fornecendo,
assim, o suporte e o sistema de referência (Bezugssystem) para a pro-
dução do conhecimento científico.
Com essa perspectiva, Fleck posiciona-se de modo contrário à
epistemologia predominante à época, isto é, a do Círculo de Viena,
segundo a qual os dados observacionais descritos pelas sentenças pro-
tocolares remetem-nos à positividade do fato como critério de objeti-
vidade, independente dos aspectos sociais e históricos (Cf. CONDÉ,
1995). Contrariamente a esse postulado, para Fleck, "nada é factual
ou fixo (...) não existe o 'chão (Boden) firme dos tetos" (FLECK, 1980:
121, 122). O fato é uma construção social do pensamento coletivo.

Assim emerge um fato: primeiro há um sinal de resistência no pensa-


mento caótico inicial, então uma certa coação no pensamento, e final-
mente uma Cestalt percebida diretamente. E ele é sempre um evento
no contexto da história do pensamento. Sempre é o resultado de um
determinado estilo de pensamento" (FLECK, 1980:124).

Podemos perceber que os conceitos centrais de Kuhn guardam


muitas semelhanças com os de Heçk, em especial, o conceito de pa-
radigma e o de estilo de pensamento. Embora essa semelhança inicial
esconda diferenças fundamentais, como veremos adiante. Contudo,
antes de entrarmos nas divergências principais, vejamos um pouco
mais de perto algumas outras semelhanças. Talvez, o primeiro ponto
a chamar a atenção nas semelhanças existentes entre esses dois auto-
res - também o primeiro reconhecido por Kuhn - , é o cenário no
qual a ciência desenvolve-se, isto é, os aspectos sociais presentes na

135
produção do conhecimento científico. A partir desse ambiente social,
outras semelhanças vão sendo colocadas como, por exemplo, a idéia
de Fleck de que na ciência "muitas teorias atravessam, por exemplo,
duas épocas: uma clássica durante a qual há um acentuado acordo, e
então uma segunda fase durante a qual as exceções começam a apa-
recer" (FLECK, 1980:15). Essa citação parece ser retirada de um dos
capítulos iniciais de A Estrutura das Revolução Científicas onde Kuhn
trabalha a idéia de ciência normal/revolução científica. Para Kuhn, a
ciência normal desenvolve o que foi estabelecido pelo paradigma até
que apareçam anomalias e instaura-se uma crise (KUHN, 1970, esp.
capítulos VI e VII). Fleck também já havia percebido que as mudanças
ocorrem nessas zonas de turbulências.

Para a sociologia da ciência é importante sustentar que grandes trans-


formações no estilo de pensamento, isto é, importantes descobertas,
freqüentemente ocorrem durante períodos de confusão social geral.
Tais "períodos de inquietação" revela a rivalidade entre as opiniões,
diferenças entre pontos de vista, contradições, falta de clareza e a im-
possibilidade de perceber diretamente uma forma (Cesta/t) ou sentido
(Sinn). Um novo estilo de pensamento nasce de tal situação (FLECK,
1980:124,125).

Outra idéia de Fleck e presente em Kuhn, que ao reler o livro


alega estar impressionado, (FLECK, 1979:ix) é o papel dos manuais
na formação dos cientistas. Fleck analisa esse aspecto longamente no
capítulo IV de seu livro. Também está presente em Fleck - e utilizado
por Kuhn - o conceito de Cestalt como parte importante na consti-
tuição do pensamento coletivo. Em certo sentido, este uso da noção
de Cestalt é radicalizado por Kuhn. Fleck já tinha dado a essa noção
um uso semelhante ao de Kuhn, porém sem superestimá-Ia. A Cestalt
é importante na formação do pensamento coletivo porque cabe a ela
dar forma ao resultado produzido pelas interações (FLECK, 1980:60).
Embora não haja propriamente uma observação sem pressupostos,
para Fleck, pode-se estabelecer uma escala entre uma visão vaga e
uma visão desenvolvida como uma Cestalt. Essa Cestalt do cientista
é adquirida pela experiência e pelo treino.

136
Ver imediatamente uma Cestalt requer ser experiente em um deter-
minado campo de pensamento: apenas depois de muitas vivências,
eventualmente depois de uma formação prévia (Vorbildung), se ad-
quire a habilidade de perceber diretamente o sentido e a forma como
uma unidade. Certamente, perde-se, ao mesmo tempo, a habilidade
de ver algo que contradiz a forma (Cestalt widersprechendes). Mas
tal disposição para a percepção orientada (Bereitschaft für gerichte-
tes Wahrnehmen) é o principal constituinte do estilo de pensamento
(FLECK, 1980: 121).

A Cestalt da alteridade ou do outro estilo de pensamento impe-


de-nos de ver algo que contradiz nossa própria Cestalt. Como conse-
qüência, há uma rivalidade entre os "campos visuais de pensamento"
(gedanklichen Cesichtsfelder) (FLECK, 1980: 121). No entanto, dife-
rentemente do modo radical de Kuhn de compreender o conceito
de Cestalt, para Fleck, essa rivalidade entre os campos visuais de
pensamento não parece ser um processo absolutamente incomensu-
rável. Se a Cestalt nos impede de ver o que o outro vê imediatamente
a partir de seus pressupostos (FLECK, 1980:175), não significa dizer
que impede radicalmente. Essa radical idade, em Kuhn, é expressa
pela metáfora pato!coelho, "patos no mundo do cientista antes da
revolução, são coelhos depois dela" (KUHN, 1970:111). Kuhn toma a
metáfora como expressão de todo o paradigma, e não apenas como
partes ou aspectos dele. Embora a metáfora pato/coelho concentre a
força explicativa do conceito de mudança do paradigma, ela admite
nuanças não percebidas por Kuhn. Anos mais tarde, Kuhn reco-
nhecerá que era necessário um uso mais comedido do conceito de
Cestalt (KUHN, 2000:87). No entanto, em A Estrutura das Revoluções
Científicas a metáfora pato!coelho é uma síntese não apenas do con-
ceito de incomensurabilidade entre QS dois paradigmas, mas também
da ruptura revolucionária.
Outro conceito que não é desconhecido de Fleck é o de para-
digma. Entretanto, ele não é demasiadamente valorizado como em
Kuhn. Fleck usa a palavra paradigma como exemplo de descoberta.
E embora não privilegie excessivamente a expressão, ele já prefigura
a idéia kuhniana do paradigma como algo exemplar. Para Fleck, uma
forma específica de produção científica pode tornar-se "peredigme

137
para muitas descobertas" (Paradigma sehr vieler Entdeckungen)
(FLECK, 1980:101). Enfim, uma descoberta como a reação de
Wassermann como paradigma para se fazer ciência. A noção de pa-
radigma de Fleck, em certo sentido, está próxima da noção de matriz
disciplinar desenvolvida posteriormente no posfácio de A Estrutura
das Revoluções científicas, curiosamente, para corrigir o próprio con-
ceito kuhniano de paradigma.
Essase muitas outras semelhanças entre Kuhn e Fleck aparecem
ao longo de A Emergência e o Desenvolvimento de um Fato Científico.
Entretanto, o mais importante não é tanto o que Kuhn "assimilou" de
Fleck, mas as ricas possibilidades colocadas pelo pensador polonês
e ignoradas pelo autor de A Estrutura das Revoluções Científicas. Em
outras palavras, o que Kuhn ignorou na obra de Fleck. É o que abor-
darei a seguir.

3- O QUE KUHN NÃO ASSIMILOU DE FLECK

3.1- O que Kuhn teve dificuldades de assimilar em A Emergência


e o Desenvolvimento de um Fato Científico parece ser algo que está
relacionado com a própria comunidade científica - paradigma ou
estilo de pensamento - a qual Kuhn pertencia, isto é, a dos historia-
dores da ciência que constituiu-se ao longo do século XX. Em grande
medida, o próprio Kuhn muito ajudou na formação dessa comunida-
de da qual A Estrutura das Revoluções Científicas é uma espécie de
síntese. Com efeito, por mais originais e relevantes que possam ser
as contribuições de Kuhn, elas inserem-se nos marcos da tradição
dessa comunidade. Fleck, por sua vez, passou ao largo de qualquer
comunidade de historiadores da ciência. Nunca foi um historiador ou
filósofo profissional. Não abandonou efetivamente o campo de atua-
ção de sua formação científica inicial- a medicina e a microbiologia
- como o fez Kuhn com a física. As poucas resenhas escritas sobre
o livro de Fleck apareceram em periódicos voltados para a comuni-
dade dos médicos e não da dos historiadores ou filósofos da ciência.
Podemos dizer que a teoria da ciência de Fleck, além de sua própria

138
experiência como cientista, forma-se a partir de quatro pilares: 1- a
crítica ao Positivismo Lógico; 2- a influência recebida pela Escola de
Filosofia e História da Medicina Polonesa; 3- a Sociologia, sobretudo
de K. Mannhein de quem Fleck extrai o conceito de estilo de pensa-
mento; 4- pelo darwinismo.
As principais diferenças entre Kuhn e Fleck têm uma relação
com as diferentes influências por eles recebidas, além das divergên-
cias existentes entre as comunidades científicas às quais eles perten-
ceram. Não apenas os conceitos centrais kuhnianos são construídos
a partir de sua comunidade, mas também os problemas que esses
conceitos enfrentam. Em outras palavras, a tradição da ciência re-
volucionária acabou por desaguar na idéia de incomensurabilidade,
e essa tornou-se o principal problema para Kuhn. Em um de seus
últimos textos, Kuhn afirma que ainda pretende destacar as idéias
de revolução científica e de incomensurabilidade no novo livro que
estaria escrevendo, e continua procurando desenvolver tais idéias de
modo mais satisfatório.

(...) vocês não ficarão surpresos em ouvir que os objetivos principais


que ele almeja são assuntos tais como racional idade, relativismo e,
mais particularmente, realismo e verdade. Mas o livro não é primaria-
mente sobre eles, o que ocupa mais espaço nele. Em vez disso, esse
papel é tomado pela incomensurabilidade. Nenhum outro aspecto de
A Estrutura preocupou-me tão profundamente nos trinta anos desde
que o livro foi escrito, e eu saio desses anos sentindo mais fortemente
1,1
do que nunca que a incomensurabilidade tem de ser um componente
essencial de qualquer visão histórica, desenvolvementista ou evolu-
cionária'" do conhecimento científico (KUHN, 2000:91).

Fleck não se inseriu nessa tradição historiográfica revolucioná-


ria inaugurada por autores como Koyré e da qual Kuhn fazia parte.
Nesse sentido, Fleck não possui a mesma Cestalt da comunidade de
historiadores "revolucionários". Ele produz sua concepção de ciência

10
Nessa passagem, como será visto adiante, Kuhn dá um importante passo para
abandonar a tradição "revolucionária" ao afirmar que uma visão histórica da ciência
é "evolucionária".

139
fora desse cenário. No ano de 1935, quando seu livro é publicado,
a historiografia da ciência ainda não havia canonizado a expressão
revolução científica, menos ainda o conceito que ela exprime. Fleck
ficou, assim, imune a essa tradição. Entretanto, a sua teoria da ciência
tem um lugar para explicar porque a ciência desenvolve-se, amplian-
do-se e modificando-se. Isso porque, no tempo 2, podemos saber
mais do que no tempo 1, ainda que a passagem do conhecimento
científico de um tempo ao outro não seja necessariamente "revolu-
cionária". Em outras palavras, para Fleck, não há propriamente uma
"revolução científica", ou o mundo não é inteiramente outro abrupta-
mente, como repetidas vezes relata Kuhn, mas, ao contrário, a ciência
apresenta um "desenvolvimento" gradual, onde a construção do fato
científico estabelece-se em um processo lento e cheio de percalços,
com avanços e retrocessos, mas que não envolve propriamente uma
abrupta descontinuidade.
No lugar da incomensurabilidade, Fleck reconhece a "dificul-
dade de comunicação" entre diferentes estilos de pensamento, es-
tabelecendo mesmo que, a relação entre eles, processa-se de forma
indireta, pois, a "comunicação direta entre os aderentes de diferentes
estilos de pensamento é impossível" (FLECK, 1980:51). Entretanto,
isso não significa que um estilo de pensamento seja algo estático e
hermético, fechado a outros, impossibilitando o desenvolvimento da
ciência. Contrariamente,

essa mudança no estilo de pensamento, isto é, mudança na disposição


para a percepção dirigida, oferece novas possibilidades para descobrir
e criar novos fatos. Este é o significado mais importante para a teoria
do conhecimento da circulação entre pensamentos intercoletivos
Unterkollektiven Oenkverkehrs) (FLECK, 1980: 144).

Embora não haja propriamente uma "revolução científica", te-


mos mudanças, aumento ou ampliação do conhecimento científico,
o que Fleck denomina "mutação do estilo de pensamento" (mutatio-
nen des Denkstit; (FLECK, 1980:38). Essa mutação não é uma ruptura
completa, mas uma "reorganização" das práticas e teorias científicas
constituindo um novo estilo de pensamento. No entanto, mesmo

140
esse novo estilo de pensamento, contrariamente ao que postulou
Kuhn com a idéia de mudança de paradigma, não é um operar em
outro planeta (KUHN, 1979:111), pois, para Fleck, "se um estilo de
pensamento é muito diferente, seu isolamento (Abgeschlossenheit)
pode ser preservado mesmo em um único indivíduo, mas se eles
estão relacionados tal isolamento não é bem possível" (FLECK, 1980:
144). Ainda que Fleck tenha procurado mostrar que o l/conhecimento
especializado não simplesmente aumenta (vermehrt), mas modifica-se
(verândert) " (FLECK, 1980:85), essa modificação dificilmente é uma
ruptura abrupta, pois

alguma coisa de cada estilo de pensamento permanece. (...) todo esti-


lo de pensamento contém descendente do desenvolvimento histórico
de vários elementos de outros estilos. Provavelmente muito poucos
conceitos completamente novos são formados sem relação qualquer
a um estilo de pensamento anterior. Normalmente, apenas muda seu
colorido (Farbung), como o conceito científico de força originou do
conceito cotidiano de força, assim, também o novo conceito de sífilis
origina do místico. Desse modo, nasce uma conexão histórica (ges-
chichtlicher Zusammenhang) entre os estilos de pensamento (FLECK,
1980:130).

No que diz respeito ao desenvolvimento científico, Fleck é, em


muitos aspectos, um darwinista que entende esse desenvolvimento
como "evolução" ou "mutação" da ciência. A ciência opera analoga-
mente a um sistema biológico. O conhecimento evolui de um estilo
de pensamento ao outro. Podemos, assim, ver em um determinado
estilo de pensamento os remanescentes de um antigo estilo, da mes-
ma forma que também um estilo de pensamento pode conter as pro-
to-idéias (Urideen) (FLECK, 1980:35 et seq.) que prefiguram futuras
idéias, conceitos e teorias de um novo "estilo de pensamento. A idéia
de átomo da física contemporânea teve sua proto-idéia entre os gre-
gos. Da mesma forma que outros conceitos como o de sífilis também
tiveram suas proto-idéias em estilos de pensamento anteriores.
Ao inserir-se em uma tradição na qual a descontinuidade - re-
volução - era ponto importante, Kuhn distanciou-se da possibilidade
de perceber, no darwinismo, um modelo de explicação para o com-

141
.....

portamento da ciência. A compreensão dessa perspectiva revolucio-


nária, na obra de Kuhn, como uma contraposição ao darwinismo, foi
assinalada por S. Toulmin em "Does the Distinction between Normal
and Revolucionary Science Hold Water?". Toulmin tem como um de
seus principais propósitos criticar a idéia de revolução. Segundo ele,
não há propriamente revoluções, mas micro-revoluções. Revolução
significa uma grande ruptura ou um grande salto que a produção do
conhecimento científico, com seus avanços e retrocessos, não parece
sustentar. Na prática, um olhar histórico acurado sobre a ciência re-
vela-nos muito mais processos transitórios do que grandes rupturas,
como quer fazer crer a historiografia revolucionária.
Com essa perspectiva, Toulmin elabora uma interessante ana-
logia para contrapor Kuhn a uma concepção darwinista. Da mesma
forma que na paleontologia do século XIX, Louis Agassiz não aceitou
as idéias de Darwin presentes em A Origem das Espécies - pois
Agassiz, como um bom cientista criado na tradição do catastrofismo,
afirmava a descontinuidade -, Kuhn também é um tipo de anti-da-
rwinista, uma espécie de "catastrofista epistemológico", pois não
aceita o desenvolvimento do conhecimento por continuidade ou de
modo "evolutivo". Poderíamos completar a analogia de Toulmin com
a aproximação entre Kuhn e Fleck. O catastrofista Agassiz está para
Darwin, assim como o "catastrofista epistemológico" Kuhn está para
Fleck, o "evolucionista epistemológico".
Entretanto, se o Kuhn de A Estrutura das Revoluções Científicas
contrapõe-se a Fleck - sobretudo, por afirmar a tradição revolucio-
nária -, quanto mais Kuhn procura resolver os problemas enfrenta-
dos por sua teoria da ciência, mais aproxima-se de Fleck. Essaaproxi-
mação tem na trilha da biologia, em especial no darwinismo, o "real
caminho".
A referência ao evolucionismo já aparece no final de A Estrutura
das Revoluções Científicas. Contudo, a forte concepção revolucioná-
ria da ciência presente ali dificultou, em muito, a exploração de todos
os matizes que a idéia de uma ciência evolucionária permite. Ainda
que Kuhn tenha dito sustentar já, ali, uma visão de ciência evolucio-
nária ao afirmar que "qualquer concepção de natureza compatível

142
com o crescimento da ciência por prova é compatível com a visão
evolucionária da ciência desenvolvida aqui" (KUHN, 1970:173),
essa perspectiva não foi efetivamente explorada nem pelo próprio
Kuhn, nem por seus leitores, pois a Gestalt que orienta a leitura de
A Estrutura das Revoluções Científicas é, sem dúvida, revolucionária
e não evolucionária. A imagem da obra de Kuhn continuou sendo
associada à idéia de ruptura, isto é, de revolução científica e, por con-
seqüência, de incomensurabilidade entre os diferentes paradigmas. O
próprio Kuhn afirmará que, apesar de ter sugerido nas páginas finais
de A Estrutura das Revoluções Científicas (KUHN, 2000:96), que o
desenvolvimento científico dever ser visto como evolução, "apenas
nos últimos anos comecei a ver seu significado para os paralelos entre
evolução biológica e desenvolvimento científico" (KUHN, 2000:97).
Procurando seguir de perto essa "nova" orientação evolucioná-
ria, Kuhn estabelece um paralelo com a árvore da evolução biológica,
em que o desenvolvimento do conhecimento é visto não mais como
uma ruptura, mas, de modo semelhante a Fleck, como uma especia-
lização. Para Kuhn, a especialização é a evolução de um novo ramo,
uma nova espécie que constitui-se diferenciando-se de sua origem.
/10 desenvolvimento científico é como a evolução darwinista, um
progresso vindo de trás e não algo impulsionado em direção a algum
objetivo fixo ao qual sempre se aproxima mais" (KUHN, 2000:115).
Kuhn parece, assim, deixar de ser o catastrofista epistemológico para
tornar-se, como Fleck, um evolucionista epistemológico.
Enfim, mais que usar a expressão "evolução", Kuhn procura
explorar o conceito de evolução em sua "nova" teoria da ciência,
delineando o que ele próprio chama de uma "epistemologia evolu-
cionária". "Eu estarei tentando esboçar-e forma que eu penso que
qualquer epistemologia evolucionária viável tem que ter" (KUHN,
2000:94). Para Kuhn, "revoluções. as quais produzem novas divisões
entre campos de desenvolvimento científico, são muito mais como
episódios de especialização na evolução biológica" (KUHN, 2000:
98). Vemos, assim, que Kuhn procura, finalmente, assumir sua reo-
rientação rumo ao darwinismo, apenas anunciada em A Estrutura das
Revoluções Científicas. Entretanto, essa reorientação dificilmente será

143

l
plenamente consumada. Kuhn guarda ainda resquícios da tradição
revolucionária e, talvez isso tenha o impedido de avançar plenamente
sua nova teoria da ciência.
Se, por um lado, a aproximação do pensamento de Kuhn com o
de Fleck torna-se clara quando o autor de A Estrutura das Revoluções
Científicas sustenta que as revoluções são produtoras de novas divi-
sões nos campos científicos (pois elas não significam o fim de uma
espécie, mas o surgimento de um novo ramo), por outro lado, seguin-
do sua tradição revolucionária, Kuhn irá dizer que essas especializa-
ções são como "mutações revolucionárias" do conhecimento. Temos
aqui o vocabulário darwinista - mutações - expresso lado a lado
com o revolucionário. No entanto, esse vocabulário "revolucionário"
parece perder sua força conceitual. Kuhn, ainda que não tenha se
desvencilhado completamente de sua tradição, irá progressivamente
assumindo uma posição evolucionária. É nesse sentido que, para ele,
no âmbito da biologia, a unidade de uma nova espécie é uma varia-
ção parcial de certas características genéticas comuns na origem. Em
determinadas condições ambientais, essas características asseguram a
auto-perpetuação da espécie, ainda que isolada do tronco do qual se
originara. No campo da história da ciência, a unidade é a comunida-
de de especialistas que intercomunicam-se, isto é, a unidade comum
está na linguagem, envolve o cultivo de
em um sentido amplo que
determinados objetivos, valores.
termos, protocolos,
Enfim, podemos perceber que, ao procurar resolver os proble-
mas trazidos pelos conceitos de revolução científica e incomensu-
rabilidade, Kuhn, ao voltar-se para a matriz darwinista, aproxima-se
mais e mais de Fleck. A partir do exposto, podemos concluir que a
obra de Fleck, além de contribuir para a compreensão de importantes
aspectos da epistemologia de Kuhn, fornece-nos ricas possibilidades
- muitas ainda inexploradas - para a elucidação de difíceis proble-
mas da história e da filosofia da ciência.

144
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