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Condé - Fleck - 2005
Condé - Fleck - 2005
ARC;VMENTVM o C A P E S
PRODOC
Scientia
U F M G
~
Betânia Gonçalves Figueiredo
Mauro Lúcio Leitão Condé
Organiza dores
Apoio
o C A P E S
PRODOC
ARC;VME'NTVM
Belo Horizonte
2005
Todos os direitos reservados à
ARC;VME'NTVM Editora Ltda.
© Autores
Vários autores.
Apoio: CAPES
ISBN 85-98885-03-7
05-0561 CDD-509
Scientia/UFMG
www.fafich.ufmg.br/-scientia
ARC;VME'NTVM
EDITORA LTDA.
Rua dos Caetés, 530 sala 1113 - Centro
Belo Horizonte. MG. Brasil
Tel. O(xx) 3134420814
Paradigma versus
Estilo de Pensamento na
História da Ciência I
1- INTRODUÇÃO
1
Este texto foi apresentado no 9° Seminário Nacional de História da Ciência e da
Tecnologia, em 2003, no Rio de Janeiro. •
2 Ludwik Fleck, médico e microbiólogo de origem judia, nasceu em Lvov, Polônia,
em 11 de julho de 1896 e faleceu em Ness-Ziona, Israel, 05 de junho de 1961. Fleck
publicou mais de 150 artigos na área de sua especialidade científica. Com relação à
epistemologia e à história das ciências, além de A Emergência e o Desenvolvimento
de um Fato Científico escreveu mais alguns poucos artigos traduzidos para o inglês e
reunidos em Cognition and Fact: MateriaIs on Ludwik Fleck.
3 Na realidade, embora Kuhn tenha percebido o valor do livro de Fleck, foi Hans Reichenbach
que, também através de uma pequena referência em seu livro Experienceand Prediction, trou-
xe, para Kuhn, o conhecimento da obra de Fleck (Cf. FLECK, 1979:viii).
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circulado precariamente, e sobretudo entre os profissionais da área
médica, até ser "encontrado" por Kuhn, o livro de Fleck não recebeu
nenhuma atenção mais significativa de filósofos ou historiadores da
ciência. Considerado superficialmente, o livro foi compreendido
apenas como mais um "estudo de caso" de uma doença - a sífilis
- aparentemente com poucos atrativos para sua história. Com efei-
to, a "data de nascimento", por assim dizer, da obra de Fleck para
a epistemologia e a história da ciência parece iniciar-se quase três
décadas após a sua publicação, isto é, somente em 1962 com o relato
de Kuhn.
124
lança mão do conceito de Serendipismo' (descobrimento acidental)
para explicar tais semelhanças.
O objetivo deste capítulo é aproximar alguns aspectos do pen-
samento de Kuhn à obra de Fleck. Mais que ressaltar as semelhanças
entre esses dois autores, procuro também ressaltar as diferenças. É
meu objetivo ainda mostrar que a obra de Fleck pode indicar possí-
veis soluções onde as idéias de Kuhn parecem encontrar seus limites,
em especial no que diz respeito aos problemas trazidos pelo conceito
kuhniano de incomensurabilidade. Entretanto, aqui mais que a crítica
a Kuhn, interessa-me a divulgação do pensamento de Fleck. Na me-
dida em que Fleck ainda é relativamente desconhecido entre nós, se
essa "apresentação do autor" for realizada, esse texto terá alcançado
sua finalidade. Com efeito, no que se segue obedecerei à seguinte
estratégia de exposição: em um primeiro momento, abordarei algu-
mas semelhanças entre os dois autores e, na seqüência, algumas das
diferenças mais significativas, em especial, com relação ao conceito
de incomensurabilidade. Em outras palavras, o que Kuhn "assimilou"
de Fleck, mas sobretudo o que "não assimilou" dele.
Como procurarei mostrar, mesmo com todas as inovações apre-
sentadas, ao conceber o avanço do conhecimento científico como
um evento revolucionário, a obra de Kuhn insere-se em uma longa
tradição historiográfica construída em torno do conceito de "revo-
lução científica". Em parte, graças a essa inserção, Kuhn teve difi-
5
Esse termo provém da literatura. Especificamente do conto Os três Príncipes de
Serendip. Em seu "Sinais, Raízes de um paradigma Indiciário", relata-nos Carlos
Ginzburg que essa história é "(. ..) a fábula ou o conto oriental dos três irmãos que
interpretando uma série de indícios logram d~screver um animal que nunca tinham
visto. Esse conto fez sua primeira aparição no ocidente através da recompilação de
Sercambi. Posteriormente, retomou no início de uma recompilação de contos muito
mais ampla, apresentada como tradução do persa para o italiano, aos cuidados de um
armênio de nome Cristoval, que aparece em Veneza em meados do século XVI com
o título Peregrinaggio di tre giovani figliuoli dei re di Serendippo. Dessa forma, o livro
foi muitas vezes reimpresso e traduzido (Primeiro para o alemão, depois, no curso do
século XVIII, sob o efeito da moda orientalizante daquele tempo, às principais línguas
européias). O êxito da história dos filhos do rei de Serendipe foi tal que induziu Horace
Wolpole, em 7754, a cunhar o neologismo serendipidy para designar os 'descobrimen-
tos imprevistos, feitos graças ao acaso e a inteligência.'" (GINZBURG, 1983:86)
125
culdades para superar seu conceito de mudança de paradigma onde
esse alcança seus limites. Diferentemente, Fleck não se inseriu nessa
tradição historiográfica "revolucionária" e apresentou uma nova pers-
pectiva para compreender o desenvolvimento da ciência, elaborando
uma teoria da ciência em torno dos conceitos centrais de estilo de
pensamento (Denkstil) e pensamento coletivo (Denkkollektiv), os
quais não pressupõem a ciência como um evento revolucionário,
mas, sob diversos aspectos, evolucionário no qual o surgimento de
novas idéias e fatos científicos são vistos como uma mutação conti-
nuada e não propriamente uma revolução.
Para Fleck, muito antes de Kuhn, o fato científico não é algo
dado em si, mas uma construção da comunidade científica em um
complexo processo de interações sociais através do tempo. Esse fato
científico é algo que é percebido apenas no interior de um estilo de
pensamento elaborado pela comunidade científica, ou como caracte-
riza Fleck, pelo pensamento coletivo. Esse desenvolvimento da ciên-
cia não cria rupturas abruptas entre os vários estilos de pensamento
ou mesmo entre o não-científico e o científico, mas evolui de um
modelo para outro como uma rede de relações de conhecimento en-
trecruzadas construída coletivamente e sintetizada no estilo de pen-
samento. Com efeito, Fleck evita não apenas a idéia da ciência como
revolução, mas algo que tornou-se extremamente problemático para
Kuhn, isto é, a idéia de que os limites dos paradigmas sejam herméti-
cos ou incomensuráveis.
126
introdução de seu livro, em especial as de caráter filosófico (Quine,
Wittgenstein, Whorf, etc.). Kuhn alega que "(, ..) limitações de espaço
afetaram drasticamente meu tratamento das implicações filosóficas
deste ensaio com uma visão da ciência historicamente orientada //
(KUHN, 1970:x). Naturalmente, essa é, pelo menos em parte, uma re-
tórica para uma estratégia de exposição, uma vez que a obra de Kuhn
não apenas acarreta diversas implicações filosóficas, mas igualmente
pressupõe uma dimensão filosófica. Certamente que A Estrutura das
Revoluções Científicas é um livro de história da ciência, mas está
cercado de filosofia por todos os lados. Pressupõe filosofia e implica
filosofia. Como reconhece Kuhn,
127
••••••••
128
2.2- A obra magna kuhniana é formada por 13 capítulos - e o
importante posfácio da segunda edição. Kuhn parte da idéia de que
a ciência é um empreendimento produzido essencialmente por uma
comunidade científica. O conjunto das idéias e práticas científicas
dessa comunidade caracterizará o que Kuhn chama de paradigma.
Uma dentre as muitas definições de paradigma nos diz que eles são
formados por "realizações
científicas universalmente reconhecidas
que por um tempo providencia modelos de problemas e soluções
para uma comunidade de praticantes" (KUHN, 1970:viii). Mudanças
e desenvolvimentos na ciência dão-se a partir do momento em que
um paradigma não mais consegue explicar determinados fenômenos.
Em um complexo processo, antigas idéias, práticas e teorias científi-
cas são substituídas por outras mais adequadas e eficazes na solução
de um ou mais problemas apresentados (KUHN, 1970:92).
Esse processo caracteriza o que Kuhn chama de uma revolução
científica ou mudança de paradigma. Exemplificando com a história
da física - mas estendendo às demais ciências - relata Kuhn "essas
transformações dos paradigmas da física ótica são revoluções cientifi-
cas e a transição sucessiva de um paradigma a outro via revolução é o
padrão usual de desenvolvimento da ciência madura" (KUHN, 1970:
12). Após a mudança de paradigma, o cientista é como que transpor-
tado para outro mundo: "(. ..) depois de uma revolução os cientistas
estão respondendo a um mundo diferente" (KUHN, 1970:111). Esse
será um ponto chave na contraposição com Fleck. Para Kuhn, já no
interior de um novo paradigma, todos os problemas científicos são
analisados e resolvidos pela nova "visão de mundo" ou Cestalt do
cientista. Após a instalação da revolução, segue-se o que Kuhn chama
de "ciência normal", onde todos os problemas são tratados minucio-
samente a partir da percepção (Cestalt) possibilitada pelo paradigma
instalado, até que novos problemas desafiem outra vez esse paradig-
ma e haja outra revolução científica ou mudança de paradigma.
Em síntese, a ciência sempre opera dentro de um paradigma.
Após esgotadas as possibilidades desse paradigma, pela ciência nor-
mal, o seu desenvolvimento caracteriza uma mudança de paradigma
ou revolução científica. A revolução científica mostra como os para-
129
digmas operam em "mundos diferentes" conduzindo Kuhn a assina-
lar, assim, a incomensurabilidade entre os diferentes paradigmas.
130
-0000I
A Historiografia da ciência "revolucionária" estabeleceu-se a
partir da idéia de que a emergência da ciência moderna configura-se
como um evento revolucionário de proporções nunca antes havidas.
Essa idéia consolida-se como marco teórico na história da ciência
com a caracterização, feita por historiadores como A. Koyré, do con-
ceito de revolução cientitice' como uma ruptura radical." E Kuhn é
herdeiro dessa tradição. Ele não apenas pressupõe a idéia de que a ci-
ência moderna foi fundada a partir de um evento revolucionário, mas
incorpora essa dimensão revolucionária na própria dinâmica da ciên-
cia, isto é, a ciência é sempre revolucionária. Todo o esforço teórico
de Kuhn para explicar o funcionamento da ciência em A Estrutura
das Revoluções Científicas, parte desse pressuposto revolucionário.
Ele em nenhum momento questiona se houve ou não uma revolução
científica, mas pressupõe essa idéia herdada da tradição a qual per-
tence e tenta, assim, explicar "a estrutura das revoluções científicas".
Portanto, para Kuhn, a ruptura revolucionária não se estabeleceu
apenas enquanto um evento singular presente na revolução científica
do século XVII, mas ocorre sempre no desenvolvimento da ciência.
Kuhn, assim, "eterniza" a dinâmica do processo revolucionário na
própria dinâmica da ciência.
Embora, para Koyré, a revolução científica moderna seja de fato
um evento extraordinário: "a revolução galileana e cartesiana - que,
apesar de tudo, permanece como uma revolução - , fora preparada
por um longo esforço de pensamento. E não há nada mais interes-
sante, mais instrutivo, nem mais empolgante do que a história desse
esforço" (KOYRÉ, 1982:181). Koyré não parece querer, como Kuhn,
131
"eternizar" a dinâmica do processo revolucionário uma vez que com-
preende a ciência moderna de Galileu a Einstein como uma única
ciência - "A física moderna, isto é, aquela que nasceu nas obras de
Galileu Galilei e se completou nas de Albert Einstein, considera a lei
da inércia sua lei mais fundamental" (KOYRÉ, 1982:182). Ao passo
que Kuhn esforça-se para mostrar a ruptura entre Newton e Einstein,
isto é, entre a física clássica e a moderna como uma revolução cien-
tífica ou mudança de paradigma.
Revolução implica descontinuidade e, por conseguinte, para
Kuhn, incomensurabilidade entre as duas partes da descontinuidade.?
Essa descontinuidade não parece confirmar-se efetivamente quando
voltamos os olhos para os aspectos históricos da ciência. Entretanto,
em Kuhn, a dimensão histórico-social tem uma grande importância
e, se incomensurabilidade e história não se adaptam reciprocamente,
existe aí um grande problema para a teoria da ciência de Kuhn.
Boa parte da tarefa filosófica posterior de Kuhn concentrou-se
em tentar corrigir os problemas trazidos pelos conceitos de inco-
mensurabilidade e revolução científica. Segundo o próprio Kuhn, a
incomensurabilidade irá ocupar o centro de seus pensamentos daí
em diante. Pois esse problema é o epicentro de muitos problemas da
história e filosofia da ciência e sua solução conduz ao esclarecimento
de outras importantes questões como racional idade, relativismo e ver-
dade. Com efeito, Kuhn não apenas reafirma a central idade dos con-
ceitos de revolução científica e incomensurabilidade de A Estrutura
das Revolução Científicas, mas ainda coloca esses conceitos como
os pontos centrais para uma nova teoria da ciência que estava sendo
formulada por ele.
132
Aqueles que dentre vocês, conhecem-me fundamentalmente como o
autor de A Estrutura das Revoluções Científicas. Eis um livro no qual
as noções centrais são, por um lado, "mudança revolucionária", e por
outro, algo chamado "incomensurabilidade". A explicação dessas
noções, especialmente a de incomensurabilidade, está no coração
do meu projeto, do qual as idéias que apresentei aqui são abstraídas.
Mas elas não foram mencionados aqui, e alguns de vocês podem estar
imaginando como elas se encaixariam aí" (KUHN, 2000:119).
133
Para desenvolver sua teoria da ciência, Fleck escolhe narrar a
história da sífilis para mostrar como estabeleceu-se o moderno en-
tendimento dessa doença em seus aspectos históricos desde o século
quinze até a chamada "reação de Wassermann", de início do século
XX. Diferentes épocas e contextos elaboraram explicações variadas
para a sífilis. Para Fleck, o que hoje chamamos sífilis foi compreendi-
do de forma distinta em diferentes pensamentos coletivos - ou co-
munidades científicas situadas historicamente -, que produziram as
teorias e as práticas científicas que determinaram quais os problemas
a pesquisar e como esses foram percebidos.
134
de seu objeto, mas é visto por um estilo de pensamento a partir do
pensamento coletivo. "Porque pertence a uma comunidade, o estilo
de pensamento sofre um reforço social" (FLECK, 1980:130). É nesse
sentido que um conceito, uma teoria ou um fato nunca é algo isolado,
mas "um laço estilístico existe entre muitos, senão todos, conceitos de
uma época baseados em sua influência mútua. Nós podemos, por-
tanto, falar de um estilo de pensamento que determina a formulação
de cada conceito" (FLECK, 1980:15). O pensamento coletivo - com
seu estilo de pensamento - orienta o que deve ser pesquisado, isto
é, o que constitui-se como problema para os cientistas, fornecendo,
assim, o suporte e o sistema de referência (Bezugssystem) para a pro-
dução do conhecimento científico.
Com essa perspectiva, Fleck posiciona-se de modo contrário à
epistemologia predominante à época, isto é, a do Círculo de Viena,
segundo a qual os dados observacionais descritos pelas sentenças pro-
tocolares remetem-nos à positividade do fato como critério de objeti-
vidade, independente dos aspectos sociais e históricos (Cf. CONDÉ,
1995). Contrariamente a esse postulado, para Fleck, "nada é factual
ou fixo (...) não existe o 'chão (Boden) firme dos tetos" (FLECK, 1980:
121, 122). O fato é uma construção social do pensamento coletivo.
135
produção do conhecimento científico. A partir desse ambiente social,
outras semelhanças vão sendo colocadas como, por exemplo, a idéia
de Fleck de que na ciência "muitas teorias atravessam, por exemplo,
duas épocas: uma clássica durante a qual há um acentuado acordo, e
então uma segunda fase durante a qual as exceções começam a apa-
recer" (FLECK, 1980:15). Essa citação parece ser retirada de um dos
capítulos iniciais de A Estrutura das Revolução Científicas onde Kuhn
trabalha a idéia de ciência normal/revolução científica. Para Kuhn, a
ciência normal desenvolve o que foi estabelecido pelo paradigma até
que apareçam anomalias e instaura-se uma crise (KUHN, 1970, esp.
capítulos VI e VII). Fleck também já havia percebido que as mudanças
ocorrem nessas zonas de turbulências.
136
Ver imediatamente uma Cestalt requer ser experiente em um deter-
minado campo de pensamento: apenas depois de muitas vivências,
eventualmente depois de uma formação prévia (Vorbildung), se ad-
quire a habilidade de perceber diretamente o sentido e a forma como
uma unidade. Certamente, perde-se, ao mesmo tempo, a habilidade
de ver algo que contradiz a forma (Cestalt widersprechendes). Mas
tal disposição para a percepção orientada (Bereitschaft für gerichte-
tes Wahrnehmen) é o principal constituinte do estilo de pensamento
(FLECK, 1980: 121).
137
para muitas descobertas" (Paradigma sehr vieler Entdeckungen)
(FLECK, 1980:101). Enfim, uma descoberta como a reação de
Wassermann como paradigma para se fazer ciência. A noção de pa-
radigma de Fleck, em certo sentido, está próxima da noção de matriz
disciplinar desenvolvida posteriormente no posfácio de A Estrutura
das Revoluções científicas, curiosamente, para corrigir o próprio con-
ceito kuhniano de paradigma.
Essase muitas outras semelhanças entre Kuhn e Fleck aparecem
ao longo de A Emergência e o Desenvolvimento de um Fato Científico.
Entretanto, o mais importante não é tanto o que Kuhn "assimilou" de
Fleck, mas as ricas possibilidades colocadas pelo pensador polonês
e ignoradas pelo autor de A Estrutura das Revoluções Científicas. Em
outras palavras, o que Kuhn ignorou na obra de Fleck. É o que abor-
darei a seguir.
138
experiência como cientista, forma-se a partir de quatro pilares: 1- a
crítica ao Positivismo Lógico; 2- a influência recebida pela Escola de
Filosofia e História da Medicina Polonesa; 3- a Sociologia, sobretudo
de K. Mannhein de quem Fleck extrai o conceito de estilo de pensa-
mento; 4- pelo darwinismo.
As principais diferenças entre Kuhn e Fleck têm uma relação
com as diferentes influências por eles recebidas, além das divergên-
cias existentes entre as comunidades científicas às quais eles perten-
ceram. Não apenas os conceitos centrais kuhnianos são construídos
a partir de sua comunidade, mas também os problemas que esses
conceitos enfrentam. Em outras palavras, a tradição da ciência re-
volucionária acabou por desaguar na idéia de incomensurabilidade,
e essa tornou-se o principal problema para Kuhn. Em um de seus
últimos textos, Kuhn afirma que ainda pretende destacar as idéias
de revolução científica e de incomensurabilidade no novo livro que
estaria escrevendo, e continua procurando desenvolver tais idéias de
modo mais satisfatório.
10
Nessa passagem, como será visto adiante, Kuhn dá um importante passo para
abandonar a tradição "revolucionária" ao afirmar que uma visão histórica da ciência
é "evolucionária".
139
fora desse cenário. No ano de 1935, quando seu livro é publicado,
a historiografia da ciência ainda não havia canonizado a expressão
revolução científica, menos ainda o conceito que ela exprime. Fleck
ficou, assim, imune a essa tradição. Entretanto, a sua teoria da ciência
tem um lugar para explicar porque a ciência desenvolve-se, amplian-
do-se e modificando-se. Isso porque, no tempo 2, podemos saber
mais do que no tempo 1, ainda que a passagem do conhecimento
científico de um tempo ao outro não seja necessariamente "revolu-
cionária". Em outras palavras, para Fleck, não há propriamente uma
"revolução científica", ou o mundo não é inteiramente outro abrupta-
mente, como repetidas vezes relata Kuhn, mas, ao contrário, a ciência
apresenta um "desenvolvimento" gradual, onde a construção do fato
científico estabelece-se em um processo lento e cheio de percalços,
com avanços e retrocessos, mas que não envolve propriamente uma
abrupta descontinuidade.
No lugar da incomensurabilidade, Fleck reconhece a "dificul-
dade de comunicação" entre diferentes estilos de pensamento, es-
tabelecendo mesmo que, a relação entre eles, processa-se de forma
indireta, pois, a "comunicação direta entre os aderentes de diferentes
estilos de pensamento é impossível" (FLECK, 1980:51). Entretanto,
isso não significa que um estilo de pensamento seja algo estático e
hermético, fechado a outros, impossibilitando o desenvolvimento da
ciência. Contrariamente,
140
esse novo estilo de pensamento, contrariamente ao que postulou
Kuhn com a idéia de mudança de paradigma, não é um operar em
outro planeta (KUHN, 1979:111), pois, para Fleck, "se um estilo de
pensamento é muito diferente, seu isolamento (Abgeschlossenheit)
pode ser preservado mesmo em um único indivíduo, mas se eles
estão relacionados tal isolamento não é bem possível" (FLECK, 1980:
144). Ainda que Fleck tenha procurado mostrar que o l/conhecimento
especializado não simplesmente aumenta (vermehrt), mas modifica-se
(verândert) " (FLECK, 1980:85), essa modificação dificilmente é uma
ruptura abrupta, pois
141
.....
142
com o crescimento da ciência por prova é compatível com a visão
evolucionária da ciência desenvolvida aqui" (KUHN, 1970:173),
essa perspectiva não foi efetivamente explorada nem pelo próprio
Kuhn, nem por seus leitores, pois a Gestalt que orienta a leitura de
A Estrutura das Revoluções Científicas é, sem dúvida, revolucionária
e não evolucionária. A imagem da obra de Kuhn continuou sendo
associada à idéia de ruptura, isto é, de revolução científica e, por con-
seqüência, de incomensurabilidade entre os diferentes paradigmas. O
próprio Kuhn afirmará que, apesar de ter sugerido nas páginas finais
de A Estrutura das Revoluções Científicas (KUHN, 2000:96), que o
desenvolvimento científico dever ser visto como evolução, "apenas
nos últimos anos comecei a ver seu significado para os paralelos entre
evolução biológica e desenvolvimento científico" (KUHN, 2000:97).
Procurando seguir de perto essa "nova" orientação evolucioná-
ria, Kuhn estabelece um paralelo com a árvore da evolução biológica,
em que o desenvolvimento do conhecimento é visto não mais como
uma ruptura, mas, de modo semelhante a Fleck, como uma especia-
lização. Para Kuhn, a especialização é a evolução de um novo ramo,
uma nova espécie que constitui-se diferenciando-se de sua origem.
/10 desenvolvimento científico é como a evolução darwinista, um
progresso vindo de trás e não algo impulsionado em direção a algum
objetivo fixo ao qual sempre se aproxima mais" (KUHN, 2000:115).
Kuhn parece, assim, deixar de ser o catastrofista epistemológico para
tornar-se, como Fleck, um evolucionista epistemológico.
Enfim, mais que usar a expressão "evolução", Kuhn procura
explorar o conceito de evolução em sua "nova" teoria da ciência,
delineando o que ele próprio chama de uma "epistemologia evolu-
cionária". "Eu estarei tentando esboçar-e forma que eu penso que
qualquer epistemologia evolucionária viável tem que ter" (KUHN,
2000:94). Para Kuhn, "revoluções. as quais produzem novas divisões
entre campos de desenvolvimento científico, são muito mais como
episódios de especialização na evolução biológica" (KUHN, 2000:
98). Vemos, assim, que Kuhn procura, finalmente, assumir sua reo-
rientação rumo ao darwinismo, apenas anunciada em A Estrutura das
Revoluções Científicas. Entretanto, essa reorientação dificilmente será
143
l
plenamente consumada. Kuhn guarda ainda resquícios da tradição
revolucionária e, talvez isso tenha o impedido de avançar plenamente
sua nova teoria da ciência.
Se, por um lado, a aproximação do pensamento de Kuhn com o
de Fleck torna-se clara quando o autor de A Estrutura das Revoluções
Científicas sustenta que as revoluções são produtoras de novas divi-
sões nos campos científicos (pois elas não significam o fim de uma
espécie, mas o surgimento de um novo ramo), por outro lado, seguin-
do sua tradição revolucionária, Kuhn irá dizer que essas especializa-
ções são como "mutações revolucionárias" do conhecimento. Temos
aqui o vocabulário darwinista - mutações - expresso lado a lado
com o revolucionário. No entanto, esse vocabulário "revolucionário"
parece perder sua força conceitual. Kuhn, ainda que não tenha se
desvencilhado completamente de sua tradição, irá progressivamente
assumindo uma posição evolucionária. É nesse sentido que, para ele,
no âmbito da biologia, a unidade de uma nova espécie é uma varia-
ção parcial de certas características genéticas comuns na origem. Em
determinadas condições ambientais, essas características asseguram a
auto-perpetuação da espécie, ainda que isolada do tronco do qual se
originara. No campo da história da ciência, a unidade é a comunida-
de de especialistas que intercomunicam-se, isto é, a unidade comum
está na linguagem, envolve o cultivo de
em um sentido amplo que
determinados objetivos, valores.
termos, protocolos,
Enfim, podemos perceber que, ao procurar resolver os proble-
mas trazidos pelos conceitos de revolução científica e incomensu-
rabilidade, Kuhn, ao voltar-se para a matriz darwinista, aproxima-se
mais e mais de Fleck. A partir do exposto, podemos concluir que a
obra de Fleck, além de contribuir para a compreensão de importantes
aspectos da epistemologia de Kuhn, fornece-nos ricas possibilidades
- muitas ainda inexploradas - para a elucidação de difíceis proble-
mas da história e da filosofia da ciência.
144
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
KUHN, Thomas, The Structure of Scientific Revolution. Chicago: The Uni-
versity of Chicago Press, 2ed., 1970.
145
MASTERMAN, Margaret, "The Nature of a Paradigrna". In: LAKATOS, 1.;
MUSGRAVE, A. (Ed.), Criticism and the Crowth of Knowledge. Cam-
bridge: Cambridge University Press, 1970.
146