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I.

BERNARD COHEN

o nascimento de
uma nova física

De Copérnico a Newton

EDART - SÃO P AULO - LIVRARIA EDITôlÜ LTDA.


SÃO PAULO
1967
CAPÍTULO I

A FíSICA DE UMA TERRA EM


MOVIMENTO

Por estranho que pareça, as noções da maIOria


das pessoas a respeito do movimento são partes de
um esquema da Física, que foi proposto há mais
de 2 (XX) anos, e experimentalmente demonstrado
inexato e insuficiente, pelo menos há 1 400 anos
atrás. É fato que, mesmo hoje, homens e mulh~res,
presumivelmente bem educados tendem a pensar a
respeito do mundo físico como se a Terra estivesse
em repouso, ao invés de estar em movimento. Com
isto não quero afirmar que tais pessoas acreditem
realmente que a Terra esteja em repouso; se per-
guntadas, responderão que naturalmente sabem que
a Terra dá uma volta por dia em tôrno do seu eixo,
e ao mesmo tempo se move numa grande órbita
anual ao redor do Sol. Todavia, quando se trata
de explicar certos acontecimentos físicos comuns,
tais pessoas são incapazes de dizer como é que êsses
fenômenos cotidianos podem se dar, como vemos
que êles se dão, numa Terra em movimento. Em
particular, êsse mal-entendido da Física tende a
centralizar-se no problema da queda dos objetos, no
conceito geral do movimento. Vemos assim exem-
plificado o velho preceito: "Ignorar o movimento
é ignorar a Natureza".

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Onde cairá êle?
Na sua falta de habilidade ao tratar das questões
do movimento em relação a uma Terra que se mo-
ve, o homem médio está na mesma posição de alguns
dos maiores cientistas do passado, o que lhe pode
ser fonte de grande confôrto; contudo, a maior di-
ferença é que para o cientista do passado a incapa-
cidade para resolver estas questões era um sinal do
seu tempo, ao .passo que para o homem moderno
tal incapacidade é um distintivo de ignorância. Ca-
racterísticas dêstes problemas estão numa gravura
em madeira do século XVII (Gravura I) mostrando
um canhão apontando para o alto. Ob.servem a per-
gunta feita: "Retombera-t-il?" (Cairá de nôvo?).
Se a Terra estivesse em repouso, não haveria dúvi-
das de que a bala do canhão, disparada em linha
reta para cima, no ar, voltaria por fim diretamente
para dentro do canhão. Mas, acontecerá isto numa
Terra em movimento? Caso afirmativo, por quê?
Passemos em revista todos os argumentos. Há
os adeptos da teoria d~ que a Terra pode se mover,
desde que o ar também se mova solidário com ela
e, assim sendo, uma flecha lançada no ar seria
arrastada com êste. Replicariam os adversários:
ErnlJora possamos admitir O' ar em mÜ'vimento -
uma hipótese difícil porque não há causa aparente
para o ar se mover com a Terra - não poderia êle
mover-se muito mais lentamente que a Terra, já
. que é tão diferente em substância e qualidade? E,
mesmo assim, não seria a flecha deixada para trás?
E o que dizer da ventania que seria sentida por
uma pessoa numa tôrre alta?
A fim de examinar êstes problemas de um ponto
de vista mais amplo, ignoremos por um momento a
própria Terra. Nesta altura, a mulher e o homem

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médio podem muito bem replicar: Posso não ser
capaz de explicar como uma bola deixada cair de
:.mIa tôrre atinge o chão ao pé da tôrre, mesmo
com a Terra em movimento. Mas eu sei que uma
hola deixada cair · desce v.erticalmente, e sei que a
Terra está em movimento. Assim, deve haver algu-
:na explicação, embora eu não a conheça.
Consideremos agora uma outra situação. Admi-
amos simplesmente que podemos construir uma
e.,,-pécie de veículo que se mova muito ràpidamen-
e, tão ràpidamente que sua velocidade possa atingir
30 quilômetros por segundo. Um experimentador
está postado na extremidade dêsse veículo, numa
plataforma de observação do último carro, se fôr
um trem. Enquanto o trem se lança para a frente,
à velocidade de 30 quilômetros po'r segundo, êle
ti ra do bôlso uma bola de ferro de cêrca de meio
quilo, e a lança verticalmente no ar, a uma altura
de 5 metros. Ela leva mais ou menos um segun-
do para subir e outro tanto para descer. Até onde
se moveu o homem na extremidade do trem? Se
sua velocidade era de 30 quilômetros por segundo,
êle viajou 60 quilômetros, a partir do ponto em
que lançou a bola ao ar.
Como o homem que desenhou a gravura do
canhão disparando a bola no ar, perguntamos:
Onde cairá ela? Voltará a bola para atingir o trilho
em um ponto muito perto do lugar donde foi
arremessada? Ou conseguirá a bola, de um ou de
outro modo, baixar tão perto das mãos do homem
que a lançou, que êle possa agarrá-la, embora o
trem se mova a uma velocidade de 30 quilômetros
por segundo? Se você responder que a bola atin-
girá a linha férrea vários quilômetros atrás do
trem, então você não entende claramente a Física .
da Terra em movimento. Mas, se você acredita
que o homem na extremidade do trem agarrará a

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bola, então, terá de enfrentar a seguinte pergunta:
Que fôrça faz a bola mover-se para a frente a uma
velocidade de 30 quilômetros por segundo, embora
o homem que a lançou lhe desse uma fôrça verti-
cal e não uma fôrça na direção dos trilhos? (Os
que se preocuparem com a possibilidade de atrito
com o ar, podem imaginar que a experiência foi
realizada dentro de um vagão do trem.)
A crença de que uma bola lançada em linha reta,
para cima, do trem em movimento, continuará a
mover-se em linha reta, para cima e para baixo,
de modo a atingir a linha férrea num ponto bem
para trás, está intimamente ligada a uma outra cren-
ça acêrca de objetos em movimento. Ambas fazem
parte do sistema da Física de há cêrca de 2 000
anos atrás. Examinemos por um momento êste se-
,gundo problema, porque acontece que as mesmas
pessoas que não entendem como objetos parecem
cair verticalmente numa Terra em movimento, tam-
bém não estão inteiramente certas do que acontece
quando caem objetos de pesos diferentes. Todo
mundo sabe, naturalmente, que a queda de um corpo
no ar depende da sua forma. Isto pode ser fàcil-
mente demonstrado se fôr feito um pára-quedas
com um lenço, amarrando-se os quatro cantos do
lenço a quatro cordéis e atando os quatro pedaços
do cordel a um pequeno corpo. Enrole êste pára-
quedas de maneira a formar uma bola, lance-o ao
ar; você observará que êle cai flutuando lentamente.
Faça dêle novamente uma bola, tome um fio de
sêda e amarre-o ao redor do pára-quedas e do
objeto, de modo que o pára-quedas não possa abrir-
se no ar. Você verá que o mesmo objeto cairá
verticalmente para a Terra. Mas o que acontecerá
com objetos de mesmo formato e pesos diferentes?
Suponha que vamos ao tôpo de uma alta tôrre, ou
ao terceiro andar de uma casa, e que deixemos cair

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daquela altura dois objetos de forma idêntica, duas
bolas, pesando uma 10 quilos e a outra 1 quilo.
Qual delas tocaria o solo em primeiro lugar? E
quanto tempo antes da outra o faria? Se a rela-
ção entre os dois pesos, neste caso uma razão de
dez para um tivesse influência, seria observada a
mesma diferença em tempo de queda, se os pesos
fôssem respectivamente 10 quilos e 100 quilos? E
se fôssem 1 miligrama e 10 miligramas?

Respostas alternativas
Em geral, o conhecimento de Física nesse assunto
se desenvolve mais ou menos assim: primeiramente
há uma crença de que, se soltarmos simultânea-
mente uma bola de 1 quilo e outra de 2 quilos, da
mesma altura, a de 2 quilos atinge primeiro o solo;
além disso, supõe-se, em geral, que a de 1 quilo
leva o dôbro do tempo gasto pela de 2 quilos. Se-
gue-se então um estágio de maior sofisticação, no
qual é de presumir-se que o estudante tenha apren-
dido num livro de texto elementar, ser totalmente
insustentável a conclusão acima e que a verdadeira
resposta é que ambas atingirão o solo ao mesmo
tempo, quaisquer que sejam os respectivos pesos.
A primeira resposta pode ser chamada a "opinião
de Aristóteles", porque se ajusta aos princípios
formulados pelo filósofo grego Aristóteles, cêrca de
400 anos antes da Era Cristã. Podemos chamar a
segunda, a do "manual elementar", por ser encon-
trada em muitos dêsses livros. Algumas vêzes se
diz mesmo que esta segunda opinião foi "provada"
no século XVI pelo cientista italiano Galileu Ga1iIei.
Uma versão típica desta história é que Galileu "fez
cair, da Tôrre inclinada de Pisa, bolas de diferentes
tamanhos e materiais, no mesmo instante. ~Ies
(seus auxiliares e amigos) viram as bolas partir
juntas, cair juntas, e ouviram-nas bater juntas no

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solo. Alguns se convenceram, outros voltaram aos
seus aposentos para consultar os livros de Aristóte-
les. a fhn de discutir a evidência."
Tanto a opinião aristotélica quanto a do "ma-
nual elementar" estão erradas, como é sabido por
experiência, pelo menos há 1 400 anos. Voltemos
ao século VI, quando Joannes Philoponus (ou João
o Gramático), um erudito bizantino, andava estu-
dando esta questão. Philoponus argumentava que
a experiência contradiz as opiniões comumente acei-
tas sôbre a queda. Adotando o que poderíamos
chamar uma atitude bastante "moderna", êle dizia
que um argumento baseado na "observação real" é
muito mais convincente que "qualquer espécie de
argumento verbal". Eis o seu argumento, baseado
na experiência:

"Porque, se você deixar cair da mesma


altura dois corpos, um dos quais é muitas
vêzes mais pesado que o outro, verá que a
razão dos tempos gastos no movimento não
depende da razão dos pesos, mas que a dife-
rença em tempo é muito pequena. E, assim,
se a diferença em pesos não é considerável,
a saber, se um é, digamos, o dôbro do outro,
não haverá diferença, ou então uma diferença
imperceptível em tempos, embora a diferença
em pêso não seja de modo algum desprezível,
com um corpo pesando duas vêzes mais que
o outro."

Nesta afirmação encontramos a prova experi-


mental de que a opinião "aristotélica" é errada
porque objetos que diferem grandemente em pêso
atingirão o solo quase ao mesmo tempo. Mas
observe-se que Philoponus também sugere que a
opinião do "manual elementar" é incorreta porque
êle verificou que corpos de pesos diferentes caem

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da mesma altura em tempos diferentes. Um milê-
nio mais tarde o engenheiro, físico e matemático
flamengo Simon Stevin realizou experiência seme-
lhante. Consta do seu relato:

"A experiência que contradiz Aristóteles é


a seguinte: Tomemos (como o ilustre Sr. Jan
Cornets de Groot, grande investigador dos se-
gredos da Natureza e eu próprio fizemos)
duas esferas de chumbo, uma dez vêzes maior
e mais pesada que a outra e deixemo-Ias cair
juntas, de uma altura de 10 metros numa tábua
ou em alguma coisa sôbre a qual elas produzam
um som perceptível. Verificar-se-á então que
a mais leve não levará dez vêzes mais tempo
no seu caminho do que a mais pesada, mas
que elas caem pràticamente juntas sôbre a tá-
bua, a ponto de seus dois sons par.ecerem uma
única pancada sêca".

Stevin estava obviamente mais inter.essado em


provar o êrro de Aristóteles do que em tentar veri-
ficar se havia uma diferença bastante exígua, a
qual teria sido de certo modo acentuada, se êle
tivesse deixado cair os corpos de maior altura.
Sua informação não é, portanto, tão exata com a
que deu Philoponus no fim do século VI.
Galileu, que tinha realizado esta particular expe-
riência com maior cuidado que Stevin, relatou-a em
forma final:

Mas, eu, Simplício, que fiz a expenencia,


posso lhe assegurar que uma bala de canhão,
pesando cinqüenta ou cem quilos, ou mesmo
mais, não atingirá o solo um palmo à frente
de uma bala de mosquete pesando só meio
quilo, contanto que ambas sejam sôltas de
urna altura de 200 côvados (antiga unidade

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de comprimento) '" a maior se avantaja à
menor de uma distância de dois dedos, isto é,
quando a primeira atinge o solo, a outra está
mais atrás a uma distância de dois dedos".

A Necessidade de uma Nova Física


Que tem a ver, pode-se ainda imaginar, a veloci-
dade r,elativa da queda de objetos leves e pesados
com um universo em que a Terra está em movi-
mento, ou com o sistema anterior em que a Terra
estava em r,epouso? A resposta está no fato de que
o velho esquema da Física, associado ao nome de
Aristóteles, era um sistema completo de Física, de-
senvolvido para um universo em cujo centro a
Terra se achava em repouso; portanto, para derru-
bar aquêle sistema, admitindo-se a Terra em mo-
vimento, houve necessidade de uma nova Física.
Está claro que, se se pudesse mostrar que a velha
Física era inadequada, ou mesmo que ela levava a
conclusões erradas, dever-se-ia ter um argumento
muito poderoso para rejeitar o velho modêlo do
universo. Inversamente, para fazer a gente aceitar
um nôvo sistema, seria necessário fornecer a êste
uma nova Física.
Eu concordo, é natural, que o leitor dêste livro
aceite o ponto de vista "moderno " , o qual admite
que o Sol está em repouso e que os planêtas se
movem ao redor dêle. Não indaguemos, no momen-
to, o que entendemos pela afirmação de que "o
Sol está em repouso " , ou como o podemos provar,
mas concentremo-nos simplesmente no fato de que
a Terra está em movimento. Com que rapidez ela
se move? A Terra dá uma volta em tôrno do seu
eixo uma vez em cada vinte e quatro horas. No
equador, a circunferência da Terra é de aproxima-
damente 38 500 quilômetros e, assim, a velocidade
de rotação de um observador no equador da Terra

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é de 160 quilômetros por hora, isto é, uma velo-
cidade linear de cêrca de 450 metros por segundo.
Imagine-se a seguinte experiência: Uma pedra é
atirada em linha reta para cima, no ar. O tempo
durante o qual ela se eleva é de, digamos, dois se-
gundos, enquanto igual tempo é gasto para a desci-
da. Durante quatro segundos a rotação da Terra
terá movido o ponto do qual o objeto foi lançado a
uma distância de uns 1 800 metros. Mas a pedra não
atinge a Terra a essa distância do ponto inicial;
ela atinge a Terra muito próximo do ponto do qual
foi arremessada. Perguntamo-nos: como pode isto
ser possível? Como pode est.ar aTerra girando
com essa respeitável velocidade de 160 quilômetros
por hora, e todavia não ouvimos o vento assobiar
à medida que a Terra deixa o ar para trás? Ou,
para aceitar uma das outras objeções clássicas à
idéia de uma Terra em movimento, consideremos
um pássaro empoleirado no galho de uma árvore.
O pássaro vê um verme na Terra e deixa a árvore.
Nesse ínterim, a Terra vai girando nessa veloz mar-
cha, e o pássaro, embora batendo as asas tão for-
temente quanto possa, nunca atingirá velocidade su-
ficiente para alcançar o verme, a menos que esteja
êste localizado a oeste. Mas é um fato confirma-
do que os pássaros voam das árvores à terra e co-
mem vermes que se acham tanto a leste como a
oeste.
Você só poderá se considerar realmente familia-
rizado com a Física moderna se fôr capaz de en-
contrar imediatamente solução para êsses problemas;
caso contrário, a afirmação de que a Terra gira
em tôrno de seu eixo, dando uma volta em 24 horas,
na realidade não tem significado para você.
Se a rotação diária apresenta um sérIO problema,
pensemos no movimento anual da Terra em sua ór-
bita. Computemos a velocidade com que a Terra

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se mov.e em sua órbita ao redor do Sol. Há 60
segundos num minuto e 60 minutos numa hora, ou
3 600 segundos numa hora. Multiplique-se êste nú-
mero por 24, para obter 86 400 segundos num dia.
Multiplique-se isto por 365 1/4 dias, e o resultado
é um pouco mais de 30 milhões de segundos num
ano. 'P ara achar a velocidade com que a Terra se
move ao redor do Sol, temos que calcular o tamanho
da órbita terrestre e dividi-lo pelo tempo que a Terra
gasta para descrevê-la. Esta trajetória é, ' aproxi-
madamente um círculo com raio de mais ou menos
150 milhões de quilômetros e circunferência de cêrca
de 928 milhões de quilômetros (a circunferência
do círculo é igual ao raio multiplicado por 2 TC) •
Isto equivale a dizer que a Terra percorre
9OO.000.()(x).OOO de metros cada ano. Assim, a ve-
locidade é

900.000.000.000 metros
30.000 m/sego
30.000.000 segundos

Qualquer das questões levantadas quanto à rota-


ção da Terra, pode ser de nôvo aventada, em rela-
ção ao movimento da Terra ao longo de sua órbita.
Esta velocidade de 30.000 metros por segundo mos-
tra-nos a grande dificuldade encontrada no comêço
do capítulo. Façamos a pergunta: É possível pa,ra
nós, movermo-nos à velocidade de 30 quilômetr s
por segundo e não nos apercebemos disto? Suponha
que deixamos cair um ob j eto de uma altura de 49
metros; êle leva cêrca de 1 segundo para atingir o
solo. De acôrdo com nossos cálculos, enquanto ge
cai, a Terra, abaixo dêle se afasta ràpidamente e
o objeto deveria tocá-la a uns 30 quilômetros ó:
distância do ponto em que êle foi lançado. E qua::-
to aos pássaros nas árvores? Se um pássaro e:n~
poleirado nt1m galho de repente levanta vôo, deyeria

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perder-se para sempre no espaço. Todavia, o fato
é que os pássaros não se perdem no espaço, mas
continuam a habitar a Terra e a voar.
:Bstes exemplos mostram como é realmente difí-
cil encarar as conseqüências de uma Terra em movi-
mento. É perfeitamente claro que nossas observa-
ções comuns são impróprias para explicar os fatos
observados da experiência quotidiana sôbre uma
Terra que tanto se move em sua órbita, como gira
em tôrno do seu eixo. Não deveria, pois, haver
dúvida que a mudança do conceito de uma Terra
estacionária para uma Terra em movimento, impli-
caria necessàriamente no nascimento de uma nova
Física.

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CAPÍTULO 2

A VELHA FíSICA

A velha Física é conhecida às vêzes como a Física


do senso comum, porque é a espécie de Física em
que a maioria das pessoas acredita e pela qual se
guia intuitivamente, ou a espécie de Física que pa-
rece interessar e agradar a qualquer pessoa que use
sua natural inteligência mas não tenha aprendido
os modernos princípios da Dinâmica. Acima de
tudo, é uma espécie de Física particularmente bem
adaptada aos conceitos de uma Terra em repouso.
É algumas vêzes conhecida como Física aristotéli-
ca, porque sua principal exposição, na Antiguida-
de, vem do filósofo e cientista Aristóteles que vi-
veu na Grécia no quarto século antes de Cristo.
Aristóteles foi discípulo de Platão, e foi, por sua
vez, mestre de Alexandre Magno, que, como Aristó-
teles, viera da MacedÔnia.

A Física do Senso Comnm de Aristóteles


Aristóteles foi figura importante no desenvolvi-
mento do pensamento, e não somente pelas suas
contribuições à Ciência. Seus escritos sôbre Polí-
tica e Economia são obras-primas, e seus traba-
lhos sôbre Moral e Metafísica desafiam ainda os fi-
lósofos. Aristóteles é considerado o fundador da
Biologia e há cem anos rendeu-lhe Charles Darwin
esta homenagem: "Cuvier e Lineu, embora tenham

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sido os meus dois deuses, nenhum dêles pode om-
brear com o velho Aristóteles". Foi Aristóteles
quem primeiro introduziu o conceito da classifica-
ção dos animais, e também elevou bem alto o méto-
do da observação controlada nas Ciências biológi-
cas. Um assunto que êle estudou foi a embriolo-
gia do pinto; ambicionava descobrir a seqüência do
desenvolvimento dos órgãos. Metódicamente, a ca-
da dia, abria uns tantos ovos dos que estavam
sendo chocados e fazia comparações cuidadosas para
descobrir a seqüência dos estágios através dos quais
o pinto se desenvolv.e, de um embrião não formado
até um pinto perfeitamente formado. Foi também
Aristóteles o primeiro a formular o processo do ra-
ciocínio dedutivo, na forma do silogismo;
Todos os homens são mortais.
S óc.rates é um homem.
Logo, Sócrates é mortal.

Aristóteles frisou que o que torna tal sequencia de


três afirmações uma progressão válida, não são os
vocábulos particulares" homem", "Sócrates" e "mor-
tal", e sim a forma. Outro exemplo; todos os mi-
nerais são pesados, o ferro é uni. mineral, logo o
ferro é pesado. É esta uma das muitas formas vá-
lidas de silogismo descritas por Aristóteles no seu
grande tratado sôbre lógica e raciocínio, compreen-
dendo tanto a dedução como a indução.
Aristóteles insistiu na importância da observação
em outras ciências que não a Biologia, notadamente
na Astronomia. Por exemplo, um dos muitoS' argu-
mentos que usou para provar que a Terra é mais
ou menos esférica foi a forma da sombra lançada
pela Terra sôbre a Lua, como se observa durante
um eclipse. Se a Terra é uma esfera, então sua
sombra é um cone; assim, quando a Lua entra na
sombra da Terra, a forma da sombra será aproxi-

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madamente circular. Pode ser observado que um
eclipse da Lua só ocorre quando esta é cheia, e
que o contôrno da sombra não é exatamente um cír-
culo. A explicação dada é que a sombra projetada
da Terra é a intersecção de uma esfera e um cone, o
que não nos aparece como um círculo perfeito. Mas
se a Terra fôsse um disco chato, ao invés de um
corpo aproximadamente esférico, então a sombra
não teria sempre a forma aproximada de um círculo.
Vejamos a descrição de Aristóteles, do arco-íris
lunar:
"O arco-íris é visto de dia, e anteriormente
se pensava que êle nunca aparecia de noite,
como arco-íris lunar. Essa opinião era devida
à raridade da ocorrência; ela não era observa-
da, porque, embora aconteça, é muito rara.
A razão é que não é fácil ver as côres no
escuro, e que muitas outras condições são ne-
cessárias, e tudo isto num só dia do mês.
Para ocorrer um arco-íris lunar, é necessário
que haja lua cheia, e que a lua esteja nascen-
do ou se pondo. Assim, em mais de cinqüen-
ta anos encontramos somente dois casos de
arco-íris lunar."

!stes exemplos são suficientes para mostrar que


Aristóteles não pode ser descrito puramente como
um "filósofo de gabinete". É entretanto verdade
que Aristóteles não submeteu cada afirmação sua ao
teste da experiência. Está fora de dúvida que êle
acreditou no que lhe tinham dito seus mestres, exa-
tamente como gerações sucessivas acreditaram no
que disse Aristóteles. Isto serve muitas vêzes de
base para criticar Aristóteles e também os cientistas
que o sucederam. Mas dever-se-ia ter em vista que
em geral o estudante nunca verifica tôdas as afirma-
ções que lê em livros de texto e manuais. A vida
é curta demais para permitir isso.

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o Movim ento «Natural" dos Objetos
Examinemos agora as afirmações de Aristóteles
sôbre o movimento. Para a discussão de Aristóte-
les, era básico o princípio de que todos os objetos
que encontramos na Natureza são compostos de
"quatro elementos": ar, terra, fogo, água. São
êstes os elementos de que falamos na conversação
ordinária, quando dizemos que alguém numa "tor-
menta "desafiou os elementos". Queremos dizer
que tal pessoa estêve num vendaval, numa temp,es-
tade de areia ou chuva e assim por diante, e não que
êle lutou através de um tornado de puro hidrogênio
ou flúor. Observou Aristóteles que alguns objetos
na Terra são leves e outros pesados. Atribuía êle
a propriedade de ser leve ou pesado segundo a per-
centagem em que nêle figurava cada um dos dife-
rentes elementos, sendo a terra " naturalmente pe-
sada" e o fogo "naturalmente leve", e a água e
o ar intermediários entre os dois extremos. Qual
- perguntou êle, seria o movimento "natural de
tal objeto? Respondeu que, se fôsse pesado, seu
movimento natural seria para baixo, ao passo que,
se fôsse leve, seu movimento natural seria para
cima. A fumaça, sendo leve, sobe em linha reta
a não ser que seja soprada pelo vento, enquanto
que uma pedra, uma, maçã, ou um pedaço de ferro
cai para baixo em linha reta, quando abandonado.
Por conseguinte, para Aristóteles, o "natural" (ou
não impulsionado) movimento de um objeto terres-
tre é uma linha reta para cima ou para baixo, sen-
do o sentido para cima e para baixo determinado
ao longo de uma linha reta passando pelo centro
da Terra e pelo olliervador.
Aristóteles, naturalmente, percebia que muitíssi-
mas vêzes os objetos se movem de outros modos di-
ferentes dos que acabam de ser descritos. Por

15

3 - F.
exemplo, uma seta atirada de um arco começa o
voo aparentemente numa linha reta que é mais ou
menos perpendicular a uma linha tirada do centro
da Terra até o observador. Uma bola na extremi-
dade de um cordel pode ser movida em círculo. Uma
pedra pode ser lançada para cima em linha reta.
Tal movimento, segundo Aristóteles, é "violento" ou
contrário à natureza do corpo. Tal movimento se
verifica somente quando alguma fôrça está atuando
para produzir e conservar o corpo em movimento
contrário à sua natureza. Uma pedra atada a um
cordel pode ser movida para cima, e assim estar
sujeita a um movimento violento, mas, no momento
em que se rompe o cordel, a pedra começará a cair
num movimento natural, procurando seu lugar na-
tural.
Consideremos agora o movimento de objetos ce-
lestes, as estrêlas, planêtas e o próprio Sol. ~sses
corpos parecem mover-se em círculo ao redor da
Terra; o Sol, a Lua, os planêtas e as estrêlas ele-
vando-se a leste, viajando pelos céus e pondo-se a
oeste (exceto as estrêlas circumpolares, que se mo-
vem em pequenos círculos sem nunca ficar abaixo do
horizonte) . Segundo Aristóteles, os corpos celestes
não são constituídos dos mesmos quatro elementos
dos corpos terrestres. São formados de um "quin-
to elemento", ou "éter". O movimento de um cor-
po composto de éter é circular, de modo que o
observado movimento circular dos corpos celestes é
o seu movimento natural, de acôrdo com sua nature-
za, exatamente como o movimento para cima e para
baixo em linha reta é o movimento natural de um
objeto terrestre.

Os Céus ((Incorruptíveis"
Na filosofia aristotélica os corpos celestes têm
uma ou duas propriedades que interessam. O éter

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de que são feitos é material imutável, ou para usar
a velha palavra, "incorruptível". Isto está em con-
traste com os quatro elementos que encontramos na
Terra; - êles estão sujeitos a mudar, ou são "cor-
ruptíveis". Assim, na Terra, encontramos o apa-
recimento, ou "surgimento em ser", a "decadên-
cia" e o "desaparecimento"; o nascer e o mor-
rer das coisas. Mas nos céus nada muda nunca,
tudo continua o mesmo; as mesmas estrêlas, os mes-
mos eternos planêtas, o mesmo Sol, a mesma Lua.
Os planêtas, as estrêlas e o Sol eram considerados
"perfeitos", e através dos séculos eram freqüente-
mente comparados a eternos diamantes ou pedras
preciosas, por causa das suas imutáveis qualidades.
O único objeto celeste em que qualquer espécie de
mudança ou "imperfeição" podia ser descoberta
era a Lua; mas a Lua, afinal, era o corpo celeste
mais próximo da Terra, e uma espécie de marco
divisório entre a região terrestre da mudança (cor-
ruptibilidade) e a região celeste da permanência e
da incorruptibilidade.
Deve ser observado que neste sistema todos os
objetos celestes que circundam a Terra são mais ou
menos semelhantes entre si e todos diferentes da
Terra nas caracte.rísticas físicas, composição e "pro-
priedades essenciais". Assim se podia compreen-
der porque a Terra ficava firme e não se movia, en-
quanto os objetos celestes se moviam. Ainda mais,
a Terra não só não tinha "movimento local", ou
movimento de um lugar para outro, como também
não se supunha que girasse ao redor do seu eixo.
A principal razão física para isto, segundo o velho
sistema, é que não era "natural" que a Terra ti-
vesse um movimento circular; seria contrário à sua
natureza tanto um movimento em órbita ao redor
do Sol, quanto urna rotação diária ao redor do pró-
prio eixo.

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Os Fatôres do Movimento
Examinemos agora um pouco mais de perto a Fí-
sica aristotélica do movimento dos corpos terres-
tres. Em todo movimento, dizia Aristóteles, há
dois fatôres princípais: a fôrça motriz, que desig-
naremos aqui por F e a resistência, que designare-
mos por R. Para que ocorra movimento, segundo
Aristóteles, é necessário que a fôrça motriz seja
maior que a resistência. Por conseguinte, nosso
primeiro princípio do movimento é
(1)

ou, a fôrça deve ser maior que a resistência. Exa-


minaremos agora os efeitos de diferentes resistên-
cias, conservando sempre constante a fôrça motriz.
Nossa experiência será realizada com corpos, cada
um deixado cair livremente, partindo do repouso,
através de um meio resistente diferente. A fim de
considerar as condições constantes, tomaremos es-
feras para todos os corpos que caem, de modo que
o efeito de sua forma sôbre o seu movimento seja
o mesmo. Aristóteles, é natural, sabia perfeitamente
que a velocidade de um objeto, sendo iguais tôdas
as outras condições, geralmente depende de sua for-
ma, fato que já demonstramos com o nosso pára-
quedas.
Em nossa experiência, usaremos duas bolas de
aço idênticas, com a mesma forma, tamanho e
pêso. Deixaremos cair as duas simultâneamente,
uma através do ar, e a outra através da água. Para
fazer esta experiência, é necessário um cilindro
comprido cheio de água; segure as duas bolas uma
ao lado da outra, uma na água, a outra da mesma
altura, mas fora da coluna de água. (Fig. 1). Quan-
do são sôltas simultâneamente, vemos que não há

18
_ ponto de partida ..... .:

agua
!~ >ar

FIG. 1

dúvidas de que a velocidade da que se move através


do ar é muitíssimo maior que a velocidade da que
cai através da água. Para provar que os resulta-
dos da experiência não derivam do material com que
as bolas são feitas ou .do seu determinado pêso,
podemos repetir a experiência usando bolas de aço
menores, um par de bolas de vidro ou de aço, e
assim por diante. Em menor escala, qualquer pes-
soa pode repetir esta experiência com duas "boli-
nhas" de vidro e um copo grande cheio de água até
a borda. O resultado desta experiência pode ser
escrito em forma de uma expressão matemática que
traduz o fato de que, sendo iguais tôdas as outras
condições, a velocidade na água (que resiste ou di-
ficulta o movimento) é menor que a velocidade no
ar (que não dificulta o movimento tanto quanto a
água) :
1
V ex: (2)
R

19
ou a velocidade é inversamente proporcional à re-
sistência do meio através do qual se move o corpo.
É experiência comum que a água dificulta o movi-
mento; qualquer pessoa que tenha tentado correr
através da água à beira da praia, sabe quanto a
água resiste ao seu movimento, em comparação com
o a~ .

A experiência será agora r.ealizada com dois ci-


lindros, um cheio de água e outro cheio de óleo
(Fig. 2). O óleo resiste ao movimento ainda mais

() -ponto de partida

agua

FIG. 2

que a água; quando as duas esferas idênticas de


aço são largadas simultâneamente, a da água atinge
o fundo muito antes da que cai através do óleo.
Como a resistência Ro do óleo é maior que a resis-
tência Ra da água, podemos agora predizer que se
deixarmos cair qualquer par de objetos idênticos
através dêstes líquidos, o que cair através da água
atingirá uma determinada altura, mais depressa que

20
o que cai através do óleo. Esta previsão pode fà-
cilmente ser verificada. A seguir, já que se achou
que a resistência Ra, da água é maior que a resis-
tência Rar do ar,

(3)

a resistência do óleo deve necessàriamente ser maior


que a do ar,
(4 )

Isto pode ser também verificado, repetindo-se a


experiência inicial, com um cilindro cheio de ar em
, vez de água.
Examinemos em seguida os efeitos de diferentes
fôrças motrizes. Nesta experiência usamos de nôvo
um cilindro comprido cheio de água. Deixamos
cair nêle uma bola de aço pequena e uma grande,
simultâneamente. V eri ficamos que a bola grande
de aço, a mais pesada das duas, alcança o fundo
antes da mais leve. Pode-se alegar aqui que o ta-
manho poderia produzir algum efeito, mas se algum
efeito se verificasse, a bola maior deveria encontrar
uma resistência maior do que a pequena. Não obs-
tante, o resultado é válido. Evidentemente, quanto
maior a fôrça para vencer uma resistência determi-
nada, tanto maior a velocidade. Esta experiência
pode ser repetida, desta vez com uma bola de aço
e outra de vidro, de maneira que as duas tenham
exatamente o mesmo tamanho mas pesos diferentes.
Uma vez mais se verifica que a bola mais pesada pa-
rece muito mais apta a vencer a resistência do meio;
e assim chega ao fundo em primeiro lugar, ou atinge
a maior velocidade. A experiência também pode
ser feita em óleo e vários outros líquidos: álcool,

21
leite e assim por diante produzindo o mesmo re-
sultado geral. Em forma de expressões matemáti-
cas podemos afirmar as conclusões desta experiên-
cia, como segue:
V a: F (5).
ou, sendo iguais tôdas as outras condições, quanto
maior a fôrça, maior a velocidade.
Podemos agora combinar as Expressões (2) e
(5) numa só, da seguinte maneira:

F
V a: (6)
R

ou seja, a velocidade é proporcional à fôrça motriz


e inversamente proporcional à resistência do meio;
ou, a velocidade é proporcional à fôrça dividida pela
resistência. Esta expressão é freqüentemente co-
nhecida como a lei aristotélica do movimento. De-
ver-se-ia notar que o próprio Aristóteles não escre-
veu seus resultados sob a forma de equações, meio
moderno de expressar tais relações. Aristóteles e a
maior parte dos antigos cientistas, inclusive Galileu,
preferiam comparar velocidades com velocidad.es,
fôrças com fôrças e resistências com resistências.
Assim, ao invés de escrever a Expressão (5) como
fizemos, teriam êles preferido a proposição:

V vidro V aço F vidro Faço

A razão das velocidades das bolas de vidro e de aço


é comparada com a razão das fôrças com as quais
essas bolas se movem para baixo. Isto equivale à
proposição geral de que a velocidade da bola de
vidro está para a velocidade da bola de aço assim

22
como a fôrça motriz da bola de vidro está para a
fôrça motriz da bola de aço.
Estudemos agora a expressão (6 ) , a fim de des-
cobrir algumas das suas limitações. É claro que
esta expressão não pode ser aplicada de um modo
geral, porque, se a fôrça motriz igualasse a resistên-
cia, a equação não daria o resultado de que a velo- ?t
cidade V seria igual a zero; nem dá um resultado V'p I I
igual a zero quando a fôrça F é menor que a re3is- \ -
tência R. Por conseguinte, a expressão (6) está
sujeita à limitação imposta pela expressão (1), e ] ~1 J)
só é verdadeira quando a fôrça é maior que a
resistência. Mas isto equivale a dizer que aquela
expressão não é uma afirmação universal das con-
dições do movimento.
Sustenta-se algumas vêzes que esta expressão
pode ter surgido do estudo de uma balança de bra-
ços desiguais, digamos, com pesos iguais nas extremi-
dades dos dois braços, ou talvez de uma balança de
braços iguais com pesos desiguais nas extremidades
dos dois braços. Neste caso é impossível que F
seja menor que R, porque o maior pêso é sempre a
fôrça motriz, ao passo que o menor pêso é sempre
a resistência. Mais ainda, na balança de braços
iguais, se F = R não não haverá movimento.
Rá dois últimos aspectos da lei do movimento
que devemos apré:oentar, antes de deixar o assunto.
O primeiro é que a própria lei nada nos diz a res-
peito dos estágios pelos quais um objeto que cai, a
partir de uma posição de repouso, adquire a veloci-
dade V. A lei só nos diz alguma coisa sôbre a pró-
pria velocidade, obviamente algo sôbre velocidade
"média", ou velocidade " final", já que ela é ava-
liada pelo tempo gasto para percorrer determinada
distância
D
V cc (7)
T
23
que é válida para a velocidade média ou para mo-
vimento com velocidade constante, mas não para
movimento em que haja aceleração, isto é, que te-
nha velocidade em constante mud\l.nça. Não era
do conhecimento de Aristóteles que a velocidade
de um corpo que cai partindo do repouso atinge,
por estágios gradativos, seu valor final?

Movimento dos Corpos que caem através do Ar


Talvez tenha para nós maior significação do que
qualquer dos argumentos anteriores, o resultado de
uma outra experiência. Até aqui temos dado tipos
de experiências positivas que nos fariam confiar
na lei aristotélica do movimento, mas omitimos uma
experiência verdadeiramente crucial. Voltemos a
considerar dois objetos do mesmo tamanho, da mes-
ma forma, mas de pesos diferentes, ou de diferentes
fôrças motrizes F. Dissemos que, se fôssem deixa-
dos cair simultâneamente através da água ou do óleo,
seria observado que o mais pesado desceria mais
ràpidamente. (O leitor - antes de continuar a ler
o resto dêste capítulo e dêste livro - deverá parar,
e fazer por si mesmo essas experiências). Chegamos
agora à última experiência daquela seqüência ante-
rior: consiste ela em deixar cair dois objetos do
mesmo tamanho mas de pêso desigual, no mesmo
meio, mas tomando o ar para meio. Admitamos
que o pêso de um dos nossos objetos é exatamente
o dôbro do pêso do outro, o que implicaria, na ve-
lha opinião, em que a velocidade do obj eto mais
pesado seria exatamente o dôbro da velocidade do
mais leve. Para uma distância constante de queda,
a velocidade é inversamente proporcional ao tempo,
de modo que
1
v o: (8)
T
ou
24
(~)

isto é, as velocidades são inversamente proporcionais


aos tempos de queda. Conseqüentemente, o tempo
de queda da bola mais pesada deveria ser exata-
mente metade do tempo de queda da menor. Para
realizar a experiência, fique de pé -sôbre uma cadeira
e deixe cair juntamente os dois objetos de modo
que batam no chão nu. Uma boa maneira de os
deixar cair é segurá-los horizontalmente entre o
primeiro e o segundo dedos de uma das mãos;
abrindo então bruscamente os dois dedos, as duas
bolas começarão a cair juntas. Qual o resultado
desta experiência?
Ao invés de descrever os resultados da mesma,
permita-me sugerir que a faça por si mesmo. Com-
pare então o seu resultado com os obtidos por João,
o Gramático, com a descrição dada por Stevin no
século XVI, e finalmente com a que foi dada por
Galileu no seu famoso livro Duas Novas Ciências,
há pouco mais de 300 anos.
Uma pergunta que, neste ponto, você deveria fa-
zer a si mesmo é a seguinte: Evidentemente a ex-
pressão (6) não é válida para o ar, mas vale real-
mente para os outros meios que exploramos? A
fim de ver se a expressão (6) é uma afirmação
quantitativa exata, pergunte a si meSilllO se ela era
meramente uma definição de "resistência", ou se
há algum outro meio de medir a "resistência", como
-s ão medidas as velocidades. É suficiente, para me-
dir a velocidade, usar a expressão (8), e medir o
tempo de queda?
Em todo caso, a maioria das pessoas, creio, terá
achado que, com exceção da experiência de dois ob-
jetos desiguais caindo através do ar, o sistema aris-

25
totélico parece bastante razoável e pode ser aceito.
Não há para nós motivo para condenar indevida-
mente, seja Aristóteles, seja qualquer físico aristo-
télico que nunca tivesse realizado a experiência de
soltar no ar dois objetos de pesos desiguais.

A Impossibilidade de uma Terra e.m M ovWnento


Mas, podemos ainda perguntar - o que tem a ver
tudo isto com o fato de estar a Terra em repouso ao
invés de em movimento? Para obter a resposta,
voltemo-nos agora para o livro de Aristóteles Nos
Céus. Ali se acha a afirmação de que alguns con-
sideram que a Terra está em repouso, enquanto ou-
tros consideram que ela se move. Há, contudo,
muitas razões pelas quais a Terra não se pode mo-
ver. A fim de ter uma rotação ao redor de um
eixo, cada parte da Terra teria de se mover num
círculo, diz Aristóteles; mas o estudo do comporta-
mento real de suas partes mostra que o movimento
terrestre natural é ao longo de uma linha reta, em
direção ao centro. "O movimento, portanto, sendo
forçado (violento) e antinatural, não poderia ser
eterno; mas a ordem do mundo é eterna". O mo-
vimento natural de tôdas as partículas da matéria
terrestre é em direção ao centro do universo, que
coincide com o centro da Terra. Como "prova" de
que os corpos terrestres se movem de fato em di-
reção ao c.entro da Terra, diz Aristóteles, "vemos
que os corpos que se movem em direção à Terra
não se movem em linhas paralelas", mas aparente-
mente sob algum ângulo, uns em relação aos outros.
"Às nossas razões anteriores", nota êle então, "po-
demos acrescentar que objetos pesados, se lançados
para cima em linha reta, com ,emprêgo da fôrça, vol-
tam ao seu ponto de partida, mesmo que a fôrça os
arremesse a uma distância ilimitada". Assim, se
um corpo fôsse lançado para cima em linha reta, e

26
depois caísse em linha reta, estas direções determina-
das em relação ao centro do universo, êle não tocaria
a Terra exatamente no ponto em que foi lançado,
se a Terra se movesse, se se afastasse durante °
intervalo de tempo. É isto uma conseqüência direta
da qualidade "natural" do movimento em linha reta
para objetos terrestres.
Os. argumentos precedentes mostram como os
princípios aristotélicos de movimento natural e vio-
lento (antinatural), podem ser aplicados para pro-
var a impossibilidade de movimento terrestre. E a
respeito da "lei de movimento" aristotélica, dada na
expressão (6) ou na equação (9)? Como se rela-
ciona isso especificamente com o fato de estar a
Terra em repouso? A resposta é dada Claramente
no comêço do "Almagesto" de Ptolomeu, o antigo
trabalho padrão sôbre Astronomia geocêntrica.
Ptolomeu escreveu, seguindo os princípios de Aris-
tóteles, que, se a Terra tivesse movimento, "ela se
adiantaria em relação a qualquer outro corpo que
caísse, em virtude da sua enorme diferença de tama-
nho, e os animais e todos os pesos separados seriam
deixados para trás flutuando no ar, enquanto a
Terra, por sua vez, com a sua grande velocidade,
cairia fora do próprio universo". Isto decorre ple-
namente da noção de que os corpos caem com velo-
cidades proporcionais aos seus respectivos pesos. E
muito cientista dev,e ter concordado com o comentá-
rio final de Ptolomeu: "Na verdade, basta pensar
um pouco nessa possibilidade, para ver que ela é
completamente ridícula".

27
CAPÍTULO 3

A TERRA E O UNIVERSO

Muito freqüentemente considera-se o ano de 1543


como o ano de nascimento da Ciência moderna.
Nesse ano foram publicados dois livros de grande
importância, que levaram a mudanças significativas
no conceito humano da Natureza e do mundo: um
foi uSôbre a Revolução das Esferas Celestes", do
clérigo polonês Nicolau Copérnico e outro « Sôbre
a pstrutura do Corpo HUtltUlno", do flamengo An-
dré Vasalius. O último tratou do corpo humano
sob o ponto de vista da exata observação anatômica,
e assim reintroduziu na Fisiologia e na Medicina o
esprito de experimentação que tinha caracterizado
os escritos dos anatomistas e fisiologistas gregos, dos
quais o último e o maior tinha sido Galeno. O li-
vro de Copérnico introduziu um nôvo sistema de
Astronomia, que se chocava com as noções geral-
mente aceitas de que a Terra estava em repouso.
Será nosso propósito aqui discutir somente alguns
aspectos escolhidos do sistema de Copérnico, nota-
damente algumas conseqüências de considerar a
Terra, animada de movimento. Não consideraremos
com qualquer pormenor as vantagens ou desvanta-
gens do sistema como um todo, nem mesmo compa-
raremos os seus méritos, passo a passo, com os do
sistema mais antigo. Nossa primeira consideração é
explorar que conseqüências teve o conceito de uma
Terra em movimento, para o desenvolvimento de
uma nova ciência - a Dinâmica.

28
CoPérnico e o Nascimento da Ciência Moderna
Mesmo na antiga Grécia foi sugerido que a Ter-
ra poderia ter uma rotação diária em tôrno do seu
eixo e fazer uma revolução anual numa vasta órbita
ao redor do Sol.
Proposto por Aristarco no século III A.c., êste
sistema do universo foi vencido por outro, segun-
do o qual a Terra estava em repouso. Mesmo quan-
do, quase 2000 anos depois, Copérnico publicou sua
explicação de um sistema do universo baseado nes-
ses dois movimentos terrestres, não houve assenti-
mento geral. Por fim, naturalmente, o livro de
Copérnico provou ser a semente de tôda a revolução
científica que culminou na magnífica fundamenta-
ção da Física de Isaac Newton. Olhando para trás,
podemos ver como a aceitação do conceito formula-
do por Copérnico, de uma Terra em movimento im-
plicava necessàriamente numa Física não-aristotéli-
ca. Por que nenhuma destas conseqüências apare-
ceu diante dos olhos dos contemporâneos de Copér-
nico? E por que o próprio Copérnico não propor-
cionou essa revolução científica, que a tal ponto
alterou o mundo, que ainda não percebemos comple-
tamente tôdas as suas conseqüências? Vamos expli-
car neste capítulo estas questões e em particular
veremos porque a proposição de Copérníco, de um
sistema do mundo em que se sustentava estar a
Terra em movimento e o Sol em repouso não era
por si só suficiente para a rejeição da velha Física.
De início devemos deixar bem claro que Copérni-
co (1473-1543) era, sob vários aspectos, mais um
conservador que um revolucionário. Muitas das
idéias que êle introduziu já existiam na literatura, e
repetidamente seu avanço foi tolhido pelo fato de
que êle era incapaz de ir além dos principios bási-
cos d~ Física aristotélica. Quando hoje falamos
do "Sistema de Copérnico", entendemos comum ente

29
um sistema do universo completamente diferente do
que vem descrito na sua obra «De revolutionibus
orbium caelestium", para dar o título original la-
tino do livro. A razão de tal procedimento está
em que desejamos honrar Copérnico pelas suas ino-
vações, e o fazemos à custa da exatidão, referin-
do-nos ao sistema heliocêntrico como "Sistema de
Copérnico".

o Sistema das Esferas Concêntricas


Porém, antes de descrever o sistema de Copérni-
co, estabeleçamos alguns aspectos básicos dos dois
principais sistemas anteriores. Um, atribuído a Eu-
dóxio, foi melhorado por um outro astrônomo gre-
go, Callipus, e recebeu de Aristóteles os retoques fi-
nais. ".É êste o sistema conhecido como o das "esfe-
ras concêntricas". - Nesse sistema, cada planêta, o
Sol e a Lua, eram considerados como fixos aos
equadores de esferas separadas, que giravam em
tôrno de seus eixos, ficando a Terra estacionária no
centro. Enquanto cada esfera girava, as extremida-
des do eixo de rotação estavam fixas em outra es-
fera, que também girava com um período diferente
e em tôrno de um eixo que não tinha a mesma
orientação que o eixo da esfera interior.
Para alguns planêtas poderia haver até quatro es-
feras, cada uma envolvida na seguinte, com o resul-
tado de que haveria vários tipos de movimento. Por
exemplo, uma dessas esferas poderia ser responsável
pelo fato de que, qualquer que fôsse a posição do
planêta entre as estrêlas, êle seria levado a dar uma
volta ao redor da Terra em cada 24 horas. Have-
ria outra esfera idêntica para mover o Sol na sua
aparente revolução diária, outra para a Lua, e ou-
tra para as estrêlas fixas. O conjunto de esferas
interiores para cada planêta explicaria o fato de
que um planêta não parece mover-se através dos

30
céus sQmente com um movimento diário, mas tam-
bém muda sua posição dia a dia, relativamente às
estrêlas fixas. "Assim, um planêta é visto algu-
mas vêzes, ora numa constelação, ora em outra.
Como êles viam os planêtas a vagar entre as estrê-
las fixas, · de noite para noite, .a tribuíram a origem
db nome "planêta" ao vocábulo grego que significa
"vagar". Uma das características observadas dêsse
"vagar" é que a direção não é constante. A dire-
ção habitual do movimento é progredir lentamente
em direção leste, mas, uma vez ou outra, o pla-
nêta interrompe o seu movimento para leste (che-
gando a um ponto estacionário) e então (Fig. 3)

FIG. 3

se move num curto espaço de tempo em direÇão


oeste, até atingir outro ponto estacionário, após o
qual retoma a originária direção para leste através
.dos céus. O movimento para leste é conhecido
como "direto" e o movimento para oeste, "retr.á-

31

4 - F.
grado". Por uma conveniente combinação de es-
feras, Eudoxio pôde construir um modêlo para
mostrar como combinações de movimentos circula-
res podiam produzir o movimento obServado dos
planêtas, direto e retrógrado. É o mesmo con-
junto de "esferas" que aparece no título do livro de
Copérnico.
Após o declínio da Grécia, a Ciência caiu nas mãos
dos astrônomos islâmicos ou árabes. Alguns apu-
raram os trabalhos de Eudóxio e Aristóteles, e in-
troduziram muitas outras esferas, a fim de fazer com
que as previsões do sistema concordassem mais exa-
tamente com a observação. Essas esferas, ganhan-
do realidade, acreditava-se que fôssem de cristal; o
sistema recebeu o título de "esferas cristalinas".
Como se sustentava que a orientação das estrêlas e
planêtas tinha influência considerável nos negócios
dos homens, acreditou-se que a influência do pla-
nêta emanava, não do próprio objeto, mas da esfera
a que estava ligado. Nesta crença podemos ver a
origem da expressão "esfera de influência", ainda
hoje usada em sentido político e econômico.

Ptolomeu e o Sistema de Epiciclos e Deferentes


O outro grande sistema rival da Antiguidade foi
elaborado por Cláudio Ptolomeu, um dos maiores
astrônomos do mundo antigo, e era baseado, de cer-
to modo, em conceitos que tinham sido introduzidos
pelo geômetra Apolônio de Perga e o astrônomo
Hiparco. O produto acabado, geralmente conhecido
como sistema de Ptolomeu, ou ptolomaico, em con-
traste com o sistema de esferas homocêntricas (de
centro comum) de Eudóxio-Aristóteles tinha enor-
me flexibilidade e, em conseqüência, enorme com-
plexidade. Os dispositivos básicos eram usados em
várias combinações. Antes de tudo, consideremos
um ponto P movendo-se uniformemente em círculo,

32
perigeu

~E op 1C
I
I
I
I

A apogeu
8
FIG. 4

ao redor do ponto E, como na Fig. 4A. Aqui está


uma ilustração de movimento circular uniforme que
não permite pontos estacionários nem de retroação.
Nem explica o fato de que os planêtas não têm velo-
cidade constante, quando parecem mover-se em tôr-
no da Terra. Quando muito, tal movimento só po-
dia ser observado no comportamento das estrêlas fi-
xas, porque Hiparco tinha visto o próprio Sol mo-
ver-se com velocidade variável, observação esta liga-
gada ao fato de que as estações não têm a mesma
duração. Na Fig. bB, a Terra não está exatamen-
te no centro C do círculo, mas excêntrica, no ponto
E. É então claro que, se o ponto P corresponde a
um planêta (ou ao Sol), não parecerá mover-se uni-
formemente em relação às estrêlas fixas quando vis-
to da Terra, embora seu movimento ao longo do
círculo seja de fato uniforme.
Se a Terra e os corpos celestes formassem um tal
sistema excêntrico, ao invés de um sistema homo-
cêntrico, haveria períodos em que o Solou o planêta
estariam muito perto da Terra (perigeu), e perío-
dos em que o Solou o planêta estariam muito longe
da Terra (apogeu). Assim, devemos esperar uma

33
variação no . brilho dos planêtas, o que de fato é
observado:
A 'seguir, . apresentaremos um dos principais arti- L
fíc~ós de Ptolomeu para explicar o movimento dos
planêtas. Vamos admitir que, enquanto o ponto P
se move uniformemente nU111 círculo, ao redor do
centro C (Fig. 5), um segundo ponto Q se move

' "~ . / " \ deferente


"----"
FIG. 5. o esquema de Ptolomeu para e~plicar os d~svios
dos 'Planêtas admitia uma complicada combinação de movi-
mentos. O planêt'l: Q viajava ao redor de P num círculo
(linhas pontilhadas), ao passo que P se movia em círçulo
ao redor de C. A linha cheia com laços. é o caminh9 que
seguiria Q no movimento combinado. " ,
,
n1,1m círculo ao redor do ponto P. O resultado será
gerar uma .curva, com uma série de laços ou cúspi- .
des. O grande círculo em que se move P é chama-
do o círculo de referência. ou .0 deferente, e o ·pe- .
queno círculQ em que se . move Q é chamadoepici-:·

34
clo. Assim, o sistema ptolomaico é muitas vêzes
descrito como baseado no deferente e no epiciclo. É
claro que a curva resultante da combinação de epi-
ciclo e deferente é unia curva em que o planêta algu-
mas vêzes está mais perto do centro do que outras;
nela há também pontos estacionários e quando
o planêta está na parte interior de cada arco, um
observador em C vê-Io-á mover-se com movimento
retrógrado. Para que o movimento concorde com
o que se observa, basta escolher os tamanhos rela-
tivos do epiciclo e deferente, e as relativas veloci-
dades de rotação dos dois círculos, de modo a tor-
ná-los concordes com as aparências.
Resulta claramente do livro, que Ptolomeu nunca
se empenhou na questão de saber se havia "r.eal-
mente" ver·dadeiros epiciclos e verdadeiros deferen-
tes nos céus. Como podemos concluir da leitura,
parece muito mais provável que para êle o sistema
que descreveu era um "modêlo" do universo, e não
necessàriamente a "verdadeira" descrição -- seja
o que fôr que estas palavras possam significar.
Isto é, era o ideal grego, atingindo seu ponto mais
alto nos escritos de Ptolomeu, de construir um mo-
dêlo que habilitasse o astrônomo a predizer as
observações ou -- para usar a expressão grega --
"salvar as aparências".
Embora freqüentemente menos el3!borada, esta
maneira de encarar a Ciência é muito semelhante à
do físico do século XX, cuja ambição é também
produzir um modêlo que resulta em equação capa-
zês de predizer os resultados da experiência -- e
muitas vêzes êle é obrigado a se contentar com
equações, na ausência de um "modêlo", que possa
ser construído.
Alguns outros aspectos do velho sistema de Pto-
lomeu podem ser . abreviadamente ressaLtados. A
Terra não precisa estar no centro do círculo deferen-
te ou, em outras palavras, o círculo deferente (Fig.

35
p

FIG. 6. Com epiciclo e deferente (e engenho) os as-


trónomos podiam descrever quase todos os movimentos
observados nos planêtas, sem sair dos limites do sistema
ptolomaiC{). Em (A) o ponto P se move num círculo com
centro em C, o qual se move num círculo menor, com
centro em X. Em (B) o efeito da combinação de deferente
e epiciclo é mudar o centro a.parente da órbita de P , de C
para C'. Em (C) a combinação gera uma curva elíptica.
A figura em (D) é o caminho de P, movendo-se ao longo
de um epiciclo ; o centro do círculô de f é R , que se move
num círculo, cujo centro Q está num círculo cuj o centro
é C.

36
6A) poderia ser excêntrico em vez de homocêntrico,
isto é, com um centro diferente do centro da Terra.
Mais ainda, embora o ponto P se mova no grande
círculo de referência, ou deferente (Fig. 6B), seu
centro C podia estar se movendo num pequeno cír-
culo, combinação que não precisa produzir retroação,
mas que poderia ter o efeito de deslocar o círculo ou
mudá-lo de posição, ou produzir movimento elíptico
(Fig. 6C). Finalmente, havia um artifício chama-
do "equante" (Fig. 7) . Era êste um ponto, não

FIG. í. O equante era um artifício ptolomaico para e~plicar


aparentes mudanças na velocidade de um planêta. Embora
o movimento de P, de A para A', de B a B' e de C a C'
não ~eja ·u niforme relativamente ao centro do círculo, C,
sê-lo-ia relativamente a um outro -ponto, T, o equante,
ipOrque os ângulos a,{i;y são iguais. O planêta percorre
os arcos AA', BB', CC', em intervalos de tempos iguais,
porém, obviamentt, com diferentes velocidades.

37
no centro do círculo, ao redor do qual o movimento
podia ser "uniformizado". Isto é, considere-se um
ponto P, movendo-se num círculo com centro em C.
O ponto P move-se de tal modo que uma reta de P
ao enquante varre angulos iguais em tempos iguais;
isto é equivalente a dizer que P só parece se mover
uniformemente aO longo do seu caminho circular
para um observador que esteja localizado no equan-
te. ~stes artifícios podiam ser usados em muitas
combinações diferentes. O resultado era um siste-
ma de muita complexidade. Muito homem de saber
não podia crer que um sistema de quarenta ou mais
"rodas dentro de rodas" poderia talvez estar rodan-
do no céu, que o mundo fô sse tão complicado. Con-
ta-se que Afonso X, rei de Leão e Castela, chamado
Afonso o Sábio, que manteve um famoso grupo de
astrônomos, não podia acr.editar que o sistema do
universo fôsse tão intrincado. Quando a princípio
lhe ensinaram o sistema ptolomaico, comentou êle,
segundo a lenda "Se o Senhor Todo Poderoso me
tivesse consultado antes de começar a criação, eu
teria r.ecomendado alguma coisa mais simples.
Em parte alguma foram tão claramente expressas
as dificuldades de entender o sistema de .Ptolomeu,
como aconteceu com o poeta John Milton no seu
famoso poema "O Paraíso Perdido".
Milton tinha sido professor, tinha ensinado real-
mente o sistema de Ptolomeu, e conhecia portanto
aquilo sôbre o que escr.evia. N estes seus versos o
anjo Rafael está respondendo às perguntas de Adão
sôbre a construção do universo e dizendo que Deus
certamente deve achar graça nas atividades dos ho-
mens:

38
· .. quando quiserem construir um modêlo do
céti
E estudar as estrêlas, como irão tratar
O grandioso sistema, como irão construir,
demolir, maquinar
Para salvar as aparências, como irão cingir
o tf.niverso,
Com traçados de círculos concêntricos e
excêntricos,
Ciclo e Epiciclo, 6rbita em 6rbita . ..

Antes de abordarmos as inovações de Copérnico,


faremos algumas observações finais sôbre o velho
sistema de Astronomia. Em primeiro lugar, é claro
que parte da complexidade surge do fato de que as
curvas que representam os movimentos aparentes
dos planêtas (Fig. 5) são combinações de círculos.
Se se pudesse ter usado uma equação para uma
curva com cúspide, tal como a lemniscata, o trabalho
teria sido grandemente simplificado. Deve-se con-
tudo ter em mente que nos dias de Ptolomeu não
havia Geometria analítica nem se usavam equações
para representar curvas e que se tinha criado uma
tradição, sancionada tanto por Aristóteles como por
Platão, de que o movimento dos corpos celestes deve
ser explicado em têrmos de um sistema natural de
movimento, talvez pelo argumento de que um movi-
mento circular não tinha comêço nem fim, e era
portanto mais adequado para os imutáveis, incor-
ruptíveis planêtas, eternamente em movimento-o Em
todo caso, como veremos, a idéia de explicar o mo-
vimento planetário somente por combinações de
círculos, continuou em Astronomia por longo tempo.
À parte o fato de que o sistema ptolomaico fun-
cionou ou poderia ter funcionado, não é desprezível
a circunstância de que êle se ajustava perfeitamente
também ao sistema da Física aristotélica. As es-
tréIas, planêtas, Sol e Lua, moviam-se em círculos
ou em combinações de círculos, seu "movimento na-

39
tural", enquanto a Terra não participava do movi-
mento, estando no seu "lugar natural", no centro do
universo, e em repouso. No sistema ptolomaico não .t'
havia assim necessidade de procurar um nôvo sistema
de Física, diferente daquêle que se ajustava ao sis-
tema de esferas homocêntricas. ~stes dois siste-
mas são algumas vêzes descritos como ' " geostáti-
cos", porque em ambos a Terra está em repouso;
a expressão mais comum é "geocêntricos", porque
em ambos os sistemas a Terra está no centro do
universo.

o
Sol
O.. Venus
9
Mercu fi O
EB
Terra
) Ó
Lua Morte

~ FtI 'ti g
Júpiter Saturno Urano Netuno Plutão
FIG. 8. As origens dos mais velhos símbolos -p lanetários se
perdem na antiguidade, mas as derivações comumente
aceitas são originárias das Mitologias latina e grega. O
símbolo do Sol representava provàvelmente um escudo com
saliência central O símbolo de Mercúrio representava o seu
caduceu, ~eu bastão, ou o seu barrete alado. O símbolo
de Vênus era o espelho, associado à deusa do Amor e da
Beleza. Para o símbolo de Marte, deus da Guerra, foi
tomada uma reprodução, ou da cabeça de um guerreiro com
o elmo e a pluma ondeante, ou um dardo e escudo. O
símbolo de Júpiter também tem derivações alternadas, ou
um grosseiro hieróglifo da águia, "ave de Jove", ou a
primeira letra de Zeus, o nome grego de Júpiter. O símbolo
de Saturno é uma antiga foice, emblema do deus do Tempo.
O símbolo de Urano é a primeira letra de seu descobridor,
Sir William Herschel (1738-1822), com o planêta suspenso 1
da barra transversal. O tridente foi sempre carregado por
Netuno, deus do Mar. O símbolo de Plutão é obviamente
um monograma. É interessante notar que os alquimistas
usavam o símbolo de Mercúrio para o metal mercúrio, e o
simbúlo de Vênus para o cobre. Hoje, os genetícistas
designam a fêmea com o símbolo de Vênus e o macho com
o símbolo de Marte.

40
Inovações de CoPérnico
O sistema de Copérnico, de acôrd'o com a descri-
ção do próprio autor, tem muitas semelhanças com
o sistema de Ptolomeu. Copérnico admirava enor-
memente Ptolomeu; na organização do seu livro,
na ordenação dos capítulos e na escolha da seqüên-
cia em que são apresentados os vários tópicos êle
seguiu o Almagesto de Ptolomeu.
A transferência de um sistema geostático para um
sistema he1iostático (Sol imóvel ) envolvia eertas ex-
planações novas (Fig. 8A) . Para verificá-las, come-

.....
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FIG. 8-A. ~ste diagrama do sistema de Copérnico foi


extraído de " A Perfit Description of the Caelestial Orbes"
de Thomas Digges, (1576), que dá uma tradução em inglês
de uma parte do De Revolutioll4blls de Copérnico. Digges
acrescentou ao sistema mais uma característica, tornando
infinita a esfera das estrêlas fixas.

41
cemos como o fêz Corpérnico, por considerar a mais
simples forma do universo heliostático.
O Sol está no centro, fixo e imóvel, e ao seu
redor, movendo-se em círculo, nesta ordem: Mer-
cúrio, Vênus, a Terra com sua lua, Marte, Júpiter,
Saturno. Corpérnico explicou os movimentos diá-
rios aparentes do Sol, Lua, estrêlas e planêtas com·
fundamento no giro da Terra em tôrno do seu eixo,
uma vez por dia. .outros fatos mais importantes
derivavam, dizia êle, de um segundo movimento da
Terra, que era uma revolução orbital ao redor do
Sol, exatamente como as órbitas dos outros planêtas.
Cada planêta tem um período diferente de revolu-
ção, sendo tanto maior o período quanto mais afas-
tado o planêta está do Sol. Assim, o movimento
retrógrado é fàcilmente explicável. Consideremos
Marte (Fig. 9), que se move mais lentamente que
a Terra ao redor do Sol. Sete posições da Terra
e de Marte são mostradas, numa situação em que
a Terra está passando Marte, estando Marte em
oposição, isto é, quando uma linha do Sol a Marte
passa através da Terra. Ver-se-á que uma linha
tirada da Terra a Marte, em cada uma das suces-
sivas posições mover-se-á primeiro para a frente,
depois para trás, e de nôvo para a frente. As.im,
Copérnico não só podia explicar "naturalmente" de
que maneira ocorre o movimento retrógrado, como
também mostrar porque esta retroação é observada
sOmente quando Marte está em oposição, o que é
equivalente ao fato de que o planêta transpõe o
meridiano, à meia-noite. Em oposição, o planêta
está no lado oposto ao da Terra em relação ao Sol.
É por isso que êle atingirá a posição mais alta no
céu à meia-noite, ou atravessará o meridiano à meia-
-noite. De maneira semelhante (Fig. 10) pode-se
ver que, para um planêta inferior (Mercúrio ou
Vênus), a retroação só ocorreria numa conjunção

42
7
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FIG. 9. No sistema de Copérnico, o movimento retrógrado aparente dos planêtas tem


uma explicação siII11lles: é uma questão de velocidades relativas. Aqui as linhas de
.~
.u.. visada mostram porque }.1m planêta superior, mais afastado do Sol do que. a Terra, parece in-
verter o sentido do seu movimento. ~Ie viaja ao redor do Sol mais lentamente que a Terra·.
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FIG. 10. O movimento retrógrado de um planéta inferior, cuja órbita se acha entre a
Terra e o Sol, é também prontamente eXiplicado com as linhas de visada. Vénus viaja
ao redor do Sol mais rà.pidamente que a Terra.

........ --- -- .-'-


inferior, o que corresponde à travessia do meridiano
pelo planêta ao meio-dia. (Quando Vênus ou Mer-
cúrio se encontra numa linha reta entre a Terra
e o Sol, a posição se chama conjunção. ~sses pla-
nêtas estão no centro de retroações em conjunção
inferior quando se encontram entre a Terra e o
Sol. Atravessam então o meridiano juntamente
com o Sol ao meio-dia). ~stes dois fatos fazem
sentido perfeito num sistema heliocêntrico ou he-
liostático, mas se a Terra fôsse o centro do movi-
mento, como no sistema ptolomaico, por que de-
penderia a retroação dos planêtas da sua orientação
relativamente ao SoU
Atendo-nos ainda ao modêlo simplificado de
órbitas circulares, observemos, a seguir, que Co-
pérnico pôde determinar a escala do sistema solar.
Consideremos Vênus (Fig. 11). Vênus é visto
sOmente como estrêla da tarde ou estrêla da manhã,
porque está um pouco adiante ou um pouco atrás
do Sol, mas nunca 180 graus afastado do Sol, como
pode estar um planêta superior. O sistema de Ptolo-
meu (Fig. ] IA) levara isto em conta somente pela
hipótese arbitrária de que os centros dos epiciclos
de Vênus e Mercúrio estavam permanentemente
fixados numa linha da Terra ao Sol; o que equi-
vale a dizer que as deferentes de Mercúrio e Vê-
nus, exatamente como o Sol, moviam-se ao redor
da Terra uma vez em cada ano. No sistema de
Copérnico, tínhamos meramente que admitir que as
órbitas de Vênus e Mercúrio (Fig. llB) estives-
sem dentro da órbita da Terra.
N o sistema de Copérnico, além disso, poderíamos
computar a distância de Vênus ao Sol. Observações
feitas noite após noite indicariam quando Vênus
podia ser vista na sua mais afastada elongação
(distância angular) do Sol. Quando ocorresse êste

45
__0 - I
I

O'eB irA DO SOL.

.-
\
\
\

FIG. 11

evento, a separação angular podia ser determinada.


Como se pode ver na Fig. 12, ocorre a elongação
máxima quando uma linha da Terra a Vênus é
tangente à ór1::Jita de Vênus e, assim, perpendicular
a uma linha do Sol a Vênus. Por simples trigono-
metria podemos escrever esta equação e, de uma
tábua de tang.entes, calcular fàcilmente o compri-
mento TS.
VS
seno a (1)
TS

46
-
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I V'
I I /7r .........
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I
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I Sol I
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orbitade
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",/ vênus
"",---..,.."

T
"-
"-
'''-,órbita da
Terra
FIG. 12. Calcular a distância de Vênus ao Sol, tornou-se
possível no sistema de Copérnico. Quando a distância
angular (isto é, o ângulo (l de Vênus a partir do Sol)
atin~ o máximo, a linha de visada da Terra a Vênus
(TV) é tangente à órbita de Vênus e, portanto, per-
pendicular ao raio V S. Calcular V S é um problema
fácil de trigonometria elementar. Em qualquer outra
orientação, digamos V', a distância angular não é máxima.

A distância TS, ou o tamanho médio do raio da


órbita da Terra, no sistema de Copérnico é conhe-
cida como "unidade astronômica". Assim, a Equa-
ção (1) pode ser reescrita como

VS = (seno de a) X 1 UA (2)

Pelo uso dêste método simples, Copérnico podia


determinar as distâncias planetárias (em unidades

47
5-F.
astronômicas) com grande exatidão, como podemos
ver na tabela seguinte, que mostra os valores de
Copérnico e os valores atualmente aceitos para as
distâncias dos planêtas ao Sol.

COMPARAÇAO DOS VALORES DE COPÉRNICO E


MODERNOS PARA OS ELEMENT OS DO
SISTEMA SOLAR ~

Período Si- Distância


nódico ( *) Período Média ao
Planêta Médio Sideral Sol ( **)

c M c M c M

Mercúrio .. . 116d 116d 88d 87,91d 0,36 0,391


Vênus 584d 584d 225d 225,OOd 0,72 0,721
Terra .. . ... 365 1/4d 365,26d 1,0· 1,000
Marte . . .. . . 780d 780d 687d 686,98d 1,5 1,52
J úpiter .. .. . 399d 399d lZa 1l,86a 5 5,2
Saturno . .. . 378d 378d 30a 29,51a 9 9,5

Além disso, Copérnico pôde determinar com igual


exatidão o tempo necessário a cada planêta para
completar uma revolução de 360 graus ao redor do
Sol, ou o seu período sideral. Como Copérnico
conhecia os tamanhos relativos das órbitas planetá-
rias e os períodos siderais dos planêtas, êle era ca-
paz de predizer com êrro tolerável as posições
futuras dos planêtas. No sistema de Ptolomeu, as
distâncias dos planêtas não representavam papel
algum, uma vez que não havia meio de determiná-
las por observações. Desde que os tamanhos rela-.
(*) P eríodos sinódicos são os tempos entre conjunções dos
mesmos corpos.
(**) Expresso em unidades astronômicas.

48
tivos e períodos relativos de movimento sôbre a
deferente e o epiciclo fôssem os mesmos, as obser-
vações ou aparências seriam idênticas, como pode-
mos ver na Fig. 13.

2
FIG. 13. No sistema de Ptolomeu, as previsões das posições
planetárias se assentavam na medida dos ângulos, não nas
distâncias. Esta ilustração mostra que as observações seriam
as mesmas independentemente da distância, se os períodos
relativos de movimento fôssem os mesmos.

Que o sistema ptolomaico tratava principalmente


com ângulos ao invés de distâncias, pode ser visto
muito claramente no exemplo da Lua. Era um dos
principais aspectos do sistema ptolomaico, que a
posição aparente da Lua podia ser descrita com grau
relativamente alto de exatidão. Mas isto requeria
um artifício especial, e se a Lua tivesse realmente

49
seguido tal caminho, deveria sofrer uma enorme
variação no seu tamanho aparente, muito maior do
que o observado.
Dissemos antes que o sistema de um só círculo
para cada planêta, com um único círculo para a
Lua, e dois movimentos diferentes para a Terra,
constituía uma versão simplificada do sistema de
Copérnico. O fato é que tal sistema não está de
acôrdo com a observação, a não ser de um modo
grosseiro. A fim de tornar seu sistema mais exato,
Copérnico achou necessário introduzir um certo
número de complexidades, muitas das quais recor-
dam os artifcios do sistema ptolomaico. Por exem-
pio, era óbvio para Copérnico (como o inverso
tinha sido óbvio para Hiparco) que a Terra não
se pode mover uniformemente segundo um círculo,
tendo o Sol no centro. Assim, Copérnico colocou
o Sol, não no centro da órbita da Terra, mas afasta-
do, a certa distância. O centro do sistema solar e
do universo, no sistema de Copérnico, não era assim
o Sol, e sim um "sol médio", ou o centro da órbita
da Terra. Daí ser preferível chamar ao sistema
de Copérnico, sistema heliostático ao invés de sis-
tema heliocêntrico. Copérnico fêz sérias objeções
ao sistema do equante, introduzido por Ptolomeu.
Para o seu sistema era necessário, como o tinha
sido para os antigos astrônomos gregos, que os
planêtas se movessem uniformemente ao longo de
círculos. A fim de imaginar órbitas planetárias ao
redor do Sol, que dessem resultados conformes com
a observação real, Copérnico acabou por introduzir
círculos movendo-se em círculos, de modo muito se-
melhante ao que Ptolomeu tinha feito. A principal
diferença aqui, é que Ptolomeu tinha introduzido
tal combinação de círculos também para levar em
conta o movimento retrógrado, enquanto que Co- ,
pérnico (Fig. 14) levava em conta o movimento J.

<50
...

B
FIG. 14. O sistema de PtolQmeu (A) e o sistema de Copérnico (B) eram de complexiuade
quase igual, como pode 'ier visto nesta comparação. Os pontos nas extremidades interiores
dos raios dos deferentes dos planêtas (grandes círculos) indicam os centros das órbitas
relativamente ao centro da órbita do Sol no sistema de Ptolomeu e relativamente ao Sol,
~ no sistema de Copérnico. Note-se o uso de epiciclos nos dois sistemas. (Segundo Wil-
liam D. Stahlman).
retrógrado, pelo fato de que os planêtas se movem
em suas respectivas órbitas com velocidades dife-
rentes (*). Uma comparação das duas figuras re-
presentando os sistemas de Ptolomeu e de Copérnico
não mostra que um era, à primeira vista, "mais
simples" que o outro.

C opérn-ico versus Ptolom eu


Quais eram as vantagens e desvantagens do sis-
tema de Copérnico, comparado ao de Ptolomeu?
Em primeiro lugar, uma decidida vantagem do
sistema de Copérnico era a relativa facilidade com
que explicava o movimento retrógrado dos planê-
tas e mostrava porque suas posições, relativamen-
te ao Sol, determinavam o movimento retrógrado.
Uma segunda vantagem do sistema de Copérnico era
que êle forneceu uma base para determinar as dis-
tâncias dos planêtas ao Sol, bem como à Terra.
Diz-se algumas vêz.es que o sistema de Copérnico
foi uma grande simplificação, mas isto é baseado
num mal-entendido. Se o sistema de Copérnico for
considerado sob a forma rudimentar de um só
círculo para cada planêta ao r.e dor do Sol, então
a suposição será válida, mas quando consideramos
que êle teve que usar círculo sôbre círculo, exata-
. mente como o fêz Ptolomeu, então a simplificação
maior é que os círculos necessários para as rotações
diárias aparentes do Sol, estrêlas, planêtas e Lua,
no sistema de Ptolomeu, podiam ser eliminados
admitindo-se que a Terra gire diàriamente ao re-
(*) Uma complexidade final do sistema do Copérnico surgiu
das dificuldades que êle experimentou ao levar em conta o fato
de que o eixo da Terra girante permanece fi xo na sua orientação
com relação às estrêlas, embora a Terra se mova na sua órbita.
O "movimento" introduzido por Copérnico, veri ficou-se que era
desnecessário. Galileu mostrou, posteriormente, j á que nenhuma
fõrça está atuando para f azer girar o eix o da T erra, que êle não
se move, mas permanece sempre paralelo a si mesmo.

52
dor do seu eixo - mas quase todos os outros cír-
culos permaneciam. E quais eram as desvantagens
. do sistema de Copérnico? A primeira, era a au-
sência de qualquer paralaxe anual das estrêlas fi-
xas. O fenômeno da paralaxe se refere ao des-
vio que ocorre quando um mesmo objeto é visto
de duas posições diferentes. É êste o princípio
sôbre o qual são construídas as alças de mira para
artilharia e câmaras fotográficas. Consideremos o
movimento da Terra no sistema de Copérnico. Se
as estrêlas forem examinadas com seis meses de
intervalo, isto equivale a fazer observações das
extremidades de uma linha de base de comprimento
igual a 320 milhões de quilômetros (Fig. 15), por-

FIG. 15. A paralaxe anual de uma estrêla é o ângulo p,


por meio do qual a distância do Sol à Terra ,pode ser
calculada. As posições da Terra, com intervalos de seis
meses, são indicadas por T , e T.. A distância T , T. dá
uma linha de base de 320.000 .000 de quilômetros de com-
primento, de onde se pode observar a estrêla P sob o
ângulo T1PT. ou 2p.

que o raio ,da órbita da Terra ao redor do Sol é de


cerca de 148 milhões de quilômetros. Já que Co-
pérnico e os astrônomos do seu tempo não podiam
determinar nenhuma paralaxe das estrêlas fixas, por

53
meio dessas observações semestrais, tinha-se que
admitir que as estrêlas estavam enormemente afas-
tadas, se em verdade a Terra se movesse ao redor
do Sol. Era muito mais simples dizer que a au-
sência de qualquer paralaxe anual das estrêlas fixas
observada, tendia a contradizer tôda a base do sis-
tema de Copérnico.
Da falha da observação astronômica passemos,
a seguir, para a falha da Mecânica. Como explicou
Copérnico o movimento dos corpos em uma Terra
em movimento? Foram êstes os problemas que dis-
cutimos no primeiro capítulo, nenhum dos quais foi
adequadamente explicado por Copérnico. Admitiu
êle que, de um modo ou de outro, o ar ao redor da
Terra com esta se movia, e que êste ar era de
algum modo ligado à Terra. Foi admitindo isto
que êle pensou que os objetos no ar eram levados
enquanto a Terra se movia, uma espécie de teoria
da gravitação bastante grosseira, mas de modo al-
gum adequada aO' problema.
Mas havia outra situação, de certo modo ainda
mais difícil de levar em conta - a natureza do
próprio sistema solar. Já que Copérnico ainda se
atinha aos principios da Física aristotélica - e
nunca inventou uma nova Física para tomar o lu-
gar da aristotélica - como podia êle explicar o
movimento de rotação diária da Terra e uma órbita
circular anual, ambas contrárias à sua natureza? De
fato, Copérnico foi forçado a dizer que a Terra,
movendo-se ao redor do Sol era "meramente um
outro planêta", mas, dizer que a Terra era "mera-
mente um outro planêta", era negar o princípio
aristototélico de que a Terra e os planêtas eram
constituídos de matérias diferentes, sujeitos a dife-
rentes tipos de leis físicas, comportando-se de ma-
neiras diferentes. Dizer que a Terra descrevia uma
órbita ao redor do Sol significava dizer que a Terra

54
estava sofrendo movimento violento. Evidentemen-
te, Copérnico tinha um sentimento instintivo de que
alguma espécie de raios de fôrça, emanando do Sol,
fazia a Terra e os planêtas mover-se juntos, mas
êle nunca elaborou êsse conceito de fôrça num siste-
ma de Física que" funcionasse".
Os que leram Copérnico, sem dúvida ficaram in-
trigados com a sua afirmação de que a Terra dev e
ter uma rotação em tôrno do seu eixo, como tam-
bém um movimento num grande círculo ao redor do
Sol, decorrente do fato de ter ela, forma esférica.
Como então podia Corpérnico afirmar também que
o Sol, que tem forma esférica, fica firme, não gira
em tôrno do seu eixo, nem se move numa revolução
anual?
Um problema final, de natureza mecânica, que
Copérnico não pôde resolver, envolvia a Lua. Se
a Terra se move ao redor do Sol como o fazem os
outros planêtas, e se por qualqu.er motivo os objetos
que caem podem continuar a cair diretamente para
baixo, e se os passáros não se perdem porque o ar
está de certo modo vinculado à Terra, como é pos-
sível que a Lua continue a mover-se ao redor da
Terra enquanto esta se lança tão ràpidamente
através do espaço? Aqui não era uma questão do
ar ligado à Terra, mas sim de alguma espécie de
laço que impede que a Lua se desprenda.
Até aqui restringimos nossa atenção a dois as-
pectos do sistema de Copérnico: o fato de que era
pelo menos tão complexo como o sistema ptolomaico
e o fato de problemas de Física, aparentem.ente
insolúveis, surgirem, se aceitarmos o seu sistema.
Se acrescentarmos a estas objeções algumas dificul-
dades gerais no sistema de Copérnico, podemos ime-
ditamente verificar que a publicação do seu livro em
1543 não constituiu uma revolução no pensamento
físico ou astronômico.

55
Vantagens e Desvantagens d.e um Universo de
Copérnico
Deixando de lado os problemas puramente cien-
tíficos, o conceito de uma Terra em movimento
suscitou dúvidas terrivelmente sérias para o pensa-
mento dos dias de Copérnico. Convenhamos que
é bem mais confortador pensar que a nossa morada
está fixa no espaço e tem um lugar de destaque no
esquema das coisas, ao invés de uma insignificante
partícula girando, provàvelmente sem destino, num
vasto, e talvez mesmo infinito, universo. A singu-
laridade aristotélica da Terra. baseada na sua su-
posta posição fixa, dava ao homem um senso de
orgulho, que dificilmente podia emergir do fato
de estar êle num planêta bastante pequeno (com-
parado a Júpiter ou Saturno), numa posição bem
insignificante (posição 3 ou 4 em 7 órbitas plane-
tárias sucessivas). Dizer que a Terra é "simples-
mente um outro planêta" sugere que ela pode não
ter mesmo a distinção de ser o único globo habitado,
o que implica em não ser único o próprio homem
terreno. Talvez outras estrêlas sejam sóis com
outros planêtas, e em cada um dêles haja outras
espécies de homens. A maioria dos homens do século
XVI não estava preparada para tais perspectivas, e
as provas dadas por seus sentidos não eram de mol-
de a provocar uma mudança de atitude. Planêta,
simplesmente! Qualquer um que olhe para um
planêta - Vênus, Marte, Júpiter ou Saturno -
"verá" imediatamente que êle é "outra estrêla" e
não "outra Terra"! O fato de que essas "estrêlas"
. planetárias são mais brilhantes que as outras, va-
gueiam umas em relação às outras, e podem ter
um ·ocasional movimento retrógrado, não as torna
de modo algum semelhante a esta Terra em que
nos achamos. E se não fôsse bastante todo o "sen-

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50 comum" rebelar-se à idéia de ser a Terra "sim-
plesmente um outro planêta" há a prova da Escri-
tura. A Escritura Sagrada repetidamente menciona
um Sol em movimento e uma Terra fixa. Mesmo
antes da publicação do De revolutionibus, Martinho
Lutero ouviu falar a respeito das idéias de Copér-
nico e as condenou violentamente, por contradize-
rem a Bíblia. E todos bem sabem que Galileu, por
defender o nôvo sistema foi levado a um conflito
com a Inquisição Romana.
Deveria estar claro, portanto, que a alteração do
mo dê lo do universo, proposta por Copérnico não
se podia reali zar sem abalar tôda a estrutura da
Ciência e do pensamento do homem a respeito de si
mesmo. Mas havia uma curiosidade que acompanha-
va o pensamento humano, sôbre a natureza do uni-
verso, e a respeito da Terra, que afinal levaria a
uma profunda transformação no pensamento da-
queles dias. É nesse sentido que podemos datar de
1543 a revolução científica. Os problemas levanta-
dos e suas conseqüências penetraram nos próprios
alicerces da Física e da Astronomia. Do que até
aqui foi dito, o modo como as mudanças numa
parte da Ciência Física afetam todo o corpo da
Ciência deve ter ficado claro. Os cientistas estão
hoje familiari zados com êste fenômeno, tendo tes-
temunhado o crescimento da moderna Ciência Atô-
mica e da teoria dos "quanta". Todavia, em parte
alguma pode ser melhor vista a unidade da Ciência,
do que no fato de o sistema de Copérnico, em sua
forma simples ou complexa, não ter podido susten-
tar-se por si mesmo, tal como foi exposto por êle.
Necessitou modificação das idéias comumente acei-
tas a respeito da natureza da matéria, natureza dos
planêtas, do Sol, da Lua, das estrêlas, e da natureza
e ações da fôrça em relação ao movimento. Foi

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afirmado que a grandeza de Copérnico está, não
tátltóno sistema que propôs, como no fato de que
o sistema que propôs pôde gerar a grande revolu-
ção na Física que nós associamos a nomes como
os de Galileu, Johannes Kepler e Isaac Newton.

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