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Hegemonia e imperialismo no sistema

internacional*
Atilio A. Boron**

O tema que nos convoca


O OBJETIVO CENTRAL desta conferência era examinar a problemática da nova hegemonia
mundial, as alternativas de mudança e os movimentos sociais. Sem medo de exagerar, podemos
dizer que, em sua complexa articulação, estes temas identificam os desafios fundamentais com que
se confrontam hoje homens e mulheres de nosso tempo que querem construir um mundo melhor.
Um outro mundo reclamado nos quatro cantos do planeta nos últimos anos, a partir da clara
consciência de que o mundo atual é insuportável por sua injustiça e por sua natureza predatória.
Este mundo é o resultado da civilização capitalista, que, como o monstro das mais espantosas
alegorias, devora seus filhos, esgota seus recursos não-renováveis e destrói irreparavelmente o meio
ambiente de que nossa espécie necessita para sobreviver. Sumamente apropriada parece a reflexão
de William Shakespeare, ao colocar estas palavras na boca de um de seus personagens: “Levas-
me a vida se levas os meios pelos quais vivo”. A natureza predatória do capitalismo, exacerbada em
sua fase atual, conduziu-o justamente a este ponto, à privação dos meios de vida a três quartos da
humanidade e à destruição do meio ambiente que tornou possível o aparecimento e a evolução da
vida humana neste planeta. Uma civilização que, em nome da eficiência, da racionalidade e do
progresso, pratica o maior genocídio conhecido da história da humanidade. A cada ano morrem,
devido à fome ou a doenças curáveis, cerca de quarenta milhões de pessoas, a maioria crianças.
Ou seja, em apenas um ano o capitalismo liquida mais da metade das vítimas ocasionadas pela
Segunda Guerra Mundial em seis anos. Os grandes movimentos sociais que hoje questionam essa
intolerável situação fazem-no com a convicção de que esse outro mundo não é apenas desejável,
mas também necessário e urgente. Tratarei de expor, ao longo das páginas seguintes, uma breve
síntese das discussões realizadas neste evento. A ênfase será posta tanto nas coincidências quanto
nos temas em disputa.

Uma nova fase?


Há um consenso sumamente amplo no sentido de que o sistema imperialista mundial entrou
numa nova fase de sua evolução. Esse trânsito não passou despercebido a seus porta-vozes e
representantes ideológicos, que se apressaram em designar esta nova etapa com um nome que
sublinhava os traços mais vistosos de sua aparência, ao mesmo tempo em que ocultava
cuidadosamente sua essência mais profunda: globalização. Os aspectos mais evidentes alentavam
a idéia de uma crescente globalização dos processos produtivos e do funcionamento dos diversos
mercados. Não obstante, os alcances desse fenômeno foram extraordinariamente exagerados, e
hoje as pesquisas disponíveis já demonstram que a tão falada globalização –que os franceses
corretamente denominam “mundialização”, para aludir aos elementos volitivos, nada naturais, que a
impulsionam– é um fenômeno que adquire natureza diversa, de acordo com o que se esteja a falar.
Globalizou-se o sistema financeiro internacional, sem dúvida; mas não ocorreu o mesmo com o
comércio de produtos agrícolas e com uma ampla gama do setor de serviços 1.
Os exegetas do neoliberalismo não tardaram em anunciar que o advento da globalização punha
termo à idade do imperialismo. Este era agora reconhecido, quando antes sua simples existência
era obstinadamente negada, atribuída à febril imaginação dos críticos de esquerda, sempre
dispostos a dar asas a seu ódio visceral contra o sistema com toda espécie de denúncias e
impugnações. Para a direita, a experiência imperialista, já concluída, explicava-se por uma série de
fatores alheios ao capitalismo. Entre eles destacavam-se o militarismo, o nacionalismo e o
protecionismo. Mostrando um olímpico desprezo pelos ensinamentos da história, isolavam estes
fatores da realidade do desenvolvimento capitalista, como se não tivesse sido precisamente este
que os engendrara, e reeditavam as poeirentas teses sobre o “doce comércio” que elaboraram os
primeiros ideólogos da sociedade burguesa no século XVIII. Essa tese, em sua essência, sustentava
que o desenvolvimento do comércio apazigua os espíritos e controla os “instintos belicosos” dos
homens. Se há comércio, diziam, não haverá guerras. E apesar do rotundo desmentido
proporcionado pela história (e pelo presente), essa tese reaparece em nosso tempo pela pena dos
teóricos da globalização.
As aceleradas e profundas mudanças experimentadas desde as últimas décadas do século
passado geraram um grande desconcerto no seio dos movimentos populares e da própria esquerda.
Se os intelectuais orgânicos da direita apressaram-se a saudar as novidades como uma radical
ruptura com o ignominioso passado imperialista, no campo da esquerda a confusão atingiu níveis
insuspeitados quando alguns de seus mais respeitados teóricos manifestaram, em coincidência com
seus supostos adversários, que o neoliberalismo global expressava a superação histórica do
imperialismo, e que estávamos frente a uma nova realidade da política e da economia internacionais
que cabia denominar como “império”. Um império, claro, sem relações imperialistas de dominação.
Império sem imperialismo, dito num jogo de palavras cujo efeito mais importante foi produzir o
desarmamento das forças sociais contestatórias. Dado que examinamos in extenso essas teses –
sustentadas fundamental, mas não unicamente por Michael Hardt e Antonio Negri– em outro lugar,
não tentaremos refutá-las uma vez mais neste texto.2
Entretanto, o que se vem ratificando já há muito tempo e o que surgiu de maneira bastante clara
nas discussões da Conferência é que a globalização podia ser mais bem caracterizada não como a
superação do imperialismo, mas como uma nova fase dentro da etapa imperialista do capitalismo.
Talvez deveríamos perguntar-nos se não se trata de uma nova “fase superior”, para utilizar a
celebrada expressão de Lenin, que coloca sérios problemas de interpretação na hora de identificar
suas características fundamentais. No discurso do neoliberalismo, a globalização não é outra coisa
que a ratificação da inexorável “neutralidade” do capitalismo, exaltado como uma espécie de “ordem
natural do universo”, e a estação final do movimento histórico imposto, finalmente, em toda a
superfície do globo terrestre e que expressa a natureza egoística e aquisitiva do gênero humano. Tal
como o afirmou em vários de seus textos Franz Hinkelammert, o corolário desse raciocínio é a
desumanização de quem se opõe ao domínio mundial do capital. E assim como os povos indígenas
das Américas foram massacrados sem remorsos porque, no final das contas, sua própria condição
de pessoa humana lhes havia sido negada porque apenas uma besta podia opor-se ao avanço da
“civilização”, as vítimas atuais e os opositores do capitalismo terão a mesma sorte. Eles também
constituem uma população excedente, inexplorável e supérflua, que não merece nenhum respeito e
para a qual os direitos humanos constituem uma piedosa mentira. O genocídio segue impávido sua
marcha (Hinkelammert, 2002).
Colocadas as coisas nestes termos, a globalização teria para os ideólogos do neoliberalismo
implicações epistemológicas e políticas inequívocas. Com relação às primeiras, o “pensamento
único”, construído sobre as premissas da economia neoclássica absolutamente capaz de decifrar o
sentido e os traços característicos da nova sociedade; e com relação às segundas, basicamente a
consagração das medidas aconselhadas pelo receituário do Consenso de Washington como única
política econômica possível, e à qual devem subordinar-se todas as demais. Daí que as
problemáticas do social e do político sejam colocadas como meras questões técnicas, à margem de
qualquer postura ideológica. Desnecessário deter-se para refutar essa visão de mundo preparada
pela máquina ideológica do capital. Digamos, simplesmente, que toda essa argumentação não
resiste às evidências fornecidas pela história e pela situação contemporânea. A interpretação que
se obtém das discussões sustentadas demonstra que, longe de diluir o imperialismo numa espécie
de império benévolo, inócuo e inofensivo, a globalização causou, pelo contrário, uma radicalização
dos traços tradicionais do imperialismo, reforçando extraordinariamente sua natureza genocida e
predatória.

Os limites da teorização clássica do imperialismo


As bases da confusão referida acima são sintomáticas das insuficiências da teorização tradicional
do imperialismo face às transformações sofridas pelo modo de produção capitalista ao longo do
século XX. Como em determinado momento nos lembrou o marxista indiano Prabhat Patnaik em seu
breve ensaio publicado em Monthly Review no início da década de 1990, o termo imperialista
praticamente tinha desaparecido da imprensa, da literatura e dos discursos de comunistas e de
socialistas em igual medida. O mesmo ocorreu com a palavra “dependência”, paradoxalmente na
época em que em nossos países a dependência externa chegava a extremos humilhantes. Quem
pronunciava estas palavras era automaticamente rotulado como um nostálgico incurável ou como
um fanático que teimava em fechar os olhos diante das evidentes transformações que tinham
ocorrido nos anos anteriores. Nenhum intelectual, político ou dirigente “bem-pensante” podia incorrer
em tamanha aberração no capitalismo neoliberal sem ser ridicularizado na aldeia global 3. Em todo
caso, e deixando de lado esta questão, o fato é que o desvanecimento da problemática do
imperialismo e seu desaparecimento do horizonte de visibilidade dos povos eram um sintoma de
duas coisas. Por um lado, da irresistível ascensão do neoliberalismo como ideologia da globalização
capitalista nas últimas duas décadas do século passado; por outro, sintoma das notáveis
transformações ocorridas após o fim da Segunda Guerra Mundial, que punham em questão algumas
das premissas mesmas das teorias clássicas do imperialismo formuladas nas duas décadas do
século por Hobson, Hilferding, Lenin, Bukharin e Rosa Luxemburg, para mencionar apenas suas
principais figuras. Vejamos este último ponto mais detalhadamente.
a)Para começar, digamos que um dado decisivo destas teorias era a estreita associação existente
entre imperialismo e crise do capitalismo nas economias metropolitanas. Aquele era visto
essencialmente como o mecanismo pelo qual o capitalismo maduro resolvia transitoriamente as
crises geradas pelo aumento na composição orgânica do capital e a tendência decrescente na taxa
de lucro. O período iniciado com o término da Segunda Guerra Mundial põe em flagrante crise essa
relação. De fato, a “idade de ouro” do capitalismo, que transcorre entre 1948 e meados dos anos
1970, representa o período de auge mais bem-sucedido da história do capitalismo. Nunca um ciclo
de prosperidade persistiu ao longo de quase três décadas, com taxas de crescimento econômico tão
elevadas e que beneficiaram a quase totalidade das economias capitalistas. Mas, contrariando os
postulados da formulação clássica, esse período foi ao mesmo tempo um dos mais agressivos do
ponto de vista da expansão imperialista, especialmente estadunidense, por toda a face da Terra. A
clássica conexão entre crise capitalista e expansão imperialista ficava assim comprometida,
colocando em perplexidade aos que ainda se aferravam às formulações clássicas do imperialismo.
O capitalismo estava no auge e o imperialismo se estendia cada vez com mais força. A teoria exigia
uma urgente revisão (Panitch e Gindin, 2003: 30-31).
b)Outra constatação que veio agravar a confusão teórica nas filas da esquerda foi a seguinte:
nas formulações clássicas, a corrida pela apropriação das colônias e a repartição do mundo tinha
uma confirmação indiscutível na guerra interimperialista. A rivalidade econômica cedo ou tarde
traduzia-se em rivalidade militar e em conflitos armados. Aí estavam os antecedentes
proporcionados pelas duas grandes guerras mundiais que agitaram a primeira metade do século XX,
para oferecer uma comprovação irrefutável da verdade contida nessa asserção. A novidade
fornecida a partir da reconstrução capitalista do segundo pós-guerra foi que a exacerbada
competição econômica entre os países metropolitanos jamais se traduziu nos últimos cinqüenta anos
num enfrentamento armado entre os mesmos. Pertence a Kautsky o mérito de ter sido o primeiro a
vislumbrar estas novas realidades, o que não livra sua tese do “ultra-imperialismo” do padecimento
de graves defeitos. Um deles, talvez o principal, é o de ter concluído que a coalizão entre os
monopólios imperialistas das grandes potências inauguraria uma era de paz. Se o mentor ideológico
da Segunda Internacional pôde prever com precisão essa tendência à convergência interimperialista,
seu acentuado eurocentrismo impediu-o de antecipar que tal convergência não traria uma kantiana
“paz perpétua”. A guerra seguiria seu curso, só que desta vez nos cenários do Terceiro Mundo, e
seria travada contra os povos. Em todo caso, e para resumir, esta nova situação colocava um sério
desafio à teoria convencional, mergulhando a esquerda numa paralisante perplexidade.
c)Por último, outro tema que pôs em crise as teorias clássicas do imperialismo foi, na fase atual
de acelerada mundialização da acumulação capitalista, a expansão sem precedentes do capitalismo
aos quatro cantos do planeta. Se, tal como afirmaram Marx e Engels no Manifesto Comunista, o
capitalismo foi desde sempre um regime social de produção caracterizado por suas tendências
expansivas, tanto na geografia física quanto na geografia social, as teorizações clássicas do
imperialismo tinham uma pressuposição que em nosso tempo é inaceitável: a existência de vastas
regiões periféricas (ou regiões “agrárias”, como se costumava dizer à época) nas quais o capitalismo
fosse praticamente desconhecido. Como bem comenta Ellen Meiksins Wood, as teorias clássicas do
imperialismo “assumem, por definição, a existência de uma ambiente ‘não-capitalista’ como condição
de sua própria existência” (2003: 127). Em outras palavras, o capitalismo metropolitano exigia a
presença de um mundo pré-capitalista agrário, primitivo, periférico, que lhe fornecesse o oxigênio
necessário para sobreviver às duras condições impostas pelas crises nas metrópoles. Daí as
violentas lutas pela repartição do mundo e as intermináveis guerras de anexação colonial. No
entanto, nosso tempo é testemunha da acelerada mundialização do capitalismo, sobretudo a partir
da queda do muro de Berlim, da implosão da antiga União Soviética e, quase simultaneamente, a
abertura da China às forças de mercado, todos fatores que fazem supor a existência de um espaço
mundial, global poderíamos dizer, em que o predomínio do capitalismo é incontestável. Apesar do
abarcamento das antigas “regiões agrárias” na lógica do capital, o imperialismo prossegue sua
marcha e, se o faz enfrentando muitos problemas, sobrevive a suas próprias crises. Como bem
afirmou Perry Anderson, quando parecia na década de 1970 e início da de 1980 que o capitalismo
se encontrava em sua mais grave crise desde os tempos da Grande Depressão, a queda da União
Soviética e a abertura chinesa deram novos ares à reprodução capitalista (Anderson, 2003).

Respostas aos novos desafios


Pois bem, a transcendência destas mudanças –que certamente não são as únicas, mas
certamente são as mais importantes– deu lugar a três distintas atitudes. De um lado estão os que,
na esquerda dogmática, se negam a aceitar sua realidade e importância, argumentando que se trata
apenas de transformações superficiais que carecem de importância. Nada mudou, e portanto nada
há que mudar. O “essencialismo” impede a construção de políticas porque é incapaz de estabelecer
as diferenças: o capitalismo escandinavo representa a mesma coisa que os governos capitalistas da
América Latina. Como o capitalismo continua sendo capitalista, o imperialismo é o mesmo. Suas
mudanças são meramente superficiais. A teoria mantém-se incólume e nela nada há que modificar,
porque nada mudou.
O segundo grupo corresponde aos que, a partir do reconhecimento de tais mudanças, passam a
defender teses opostas das que tradicionalmente defenderam. Em alguns casos, como nas obras
de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, para reconhecer –implícita e vergonhosamente– o triunfo final
do capitalismo e consolar-se com uma proposta de “radicalização democrática” que tanto nos fatos
quanto na teoria se limita a arredondar as arestas mais irritantes da dominação burguesa sem propor
sua abolição (Boron, 2001). No que se refere ao tema de que estamos tratando, os que adotam essa
atitude derrotista anunciam “o fim da era imperialista” e o advento de uma nova organização
internacional, o “império”, supostamente livre dos vícios mais terríveis de seu antecessor. O locus
classicus dessa postura é, logicamente, o livro de Michael Hardt e de Antonio Negri (2000), ao qual
nos referimos acima (Boron, 2002).
Finalmente, estamos nós: os que, reconhecendo a enorme importância das mudanças referidas,
insistimos em que o imperialismo não se transformou em seu contrário, nem se diluiu num vaporoso
“sistema internacional” ou nas vaguezas de um “novo regime global de dominação”. Transformou-
se, mas continua sendo imperialista. Assim como os anos não transformaram o jovem Adam Smith
no velho Karl Marx, nem a identidade de um sujeito se esfuma com a simples passagem do tempo,
as mutações pelas quais passou o imperialismo nem remotamente deram lugar à construção de uma
economia internacional não-imperialista4. É inegável que existe uma continuidade entre a
supostamente “nova” lógica global do império –seus atores fundamentais, suas instituições, normas,
regras e procedimentos– e a que existia na fase supostamente defunta do imperialismo. Exceto por
certas modificações em sua morfologia, os atores estratégicos de ambos os períodos são os
mesmos: os grandes monopólios de alcance transnacional e base nacional e os governos dos países
metropolitanos; as instituições que ordenam os fluxos econômicos e políticos transnacionais
continuam sendo as que caracterizaram nefastamente a fase imperialista que alguns dão já por
terminada, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM), a Organização
Mundial do Comércio (OMC) e outras desse estilo; e as regras do jogo do sistema internacional são
principalmente as que ditam os Estados Unidos e o neoliberalismo global, impostas coercitivamente
durante o apogeu da contra-revolução neoliberal dos anos 1980 e inicio dos anos 1990 através de
uma combinação de pressões, “condicionalidades” e manipulações de todo tipo. Por sua estrutura,
propósito e funções, estas regras do jogo não fazem outra coisa senão reproduzir e perpetuar a
velha estrutura imperialista da qual, como se diria em O Leopardo, “algo tem que mudar para que
tudo continue como está”. Parafraseando Lenin, poderíamos dizer que o império imaginado por Hardt
e Negri ou pelos teóricos da globalização é a “etapa superior” do imperialismo, e nada mais. Sua
lógica de funcionamento, como são os mesmos a ideologia que justifica sua existência, os atores
que a dinamizam e os injustos resultados que revelam a obstinada persistência das relações de
opressão e exploração.
Mas, tal como dizíamos acima, um modo de produção tão dinâmico como o capitalismo –“que se
revoluciona incessantemente a si mesmo”, como nos lembram Marx e Engels no Manifesto
Comunista– e uma estrutura tão cambiante como a do imperialismo –sua estrutura, sua lógica de
funcionamento, suas conseqüências e suas contradições– não podem ser cabalmente
compreendidas através de uma leitura talmúdica dos textos clássicos. É óbvio que o imperialismo
de hoje não é o mesmo de antes. A “diplomacia das canhoneiras” de Theodore Roosevelt é hoje
substituída por uma arma muito mais letal: o exército de economistas e “especialistas” do FMI, do
BM e da OMC. O endividamento externo e as condições da banca multilateral controlada pelo
imperialismo são instrumentos de dominação muito mais eficazes que os empregados no passado.
Os exércitos de ocupação são necessários em circunstâncias muito pontuais –como no Iraque, por
exemplo–, mas a rotina da opressão imperialista pode prescindir deles no dia-a-dia. Governos
dóceis, meios de comunicação controlados pelos monopólios e transformados em meras usinas
propagandísticas, sociedades civis desmobilizadas e desmoralizadas e políticos corruptos são muito
mais úteis que os marines ou os helicópteros Apache. Se no passado eram necessários golpes de
Estado e ditaduras militares para impor as políticas imperialistas, na América Latina de hoje esta
tarefa cabe a governos “democráticos” surgidos do voto popular e que cultuam a traição e a perfídia.
Por último, a ocupação territorial tornou-se redundante, já que, através dos processos de abertura
comercial, privatizações e desregulamentação, as economias submetidas ao imperialismo são mais
submetidas que nunca, e isso sem a necessidade de disparar um único tiro ou mover de seu lugar
um só soldado.
É por esta razão que dizíamos que o imperialismo mudou, e em alguns aspectos a mudança foi
importante. Mas nunca será demasiado insistir que, apesar de tudo, não se transformou em seu
contrário, como nos propõe a mistificação neoliberal, dando lugar a uma economia “global” onde
todas as nações são interdependentes. Continua existindo e oprimindo a povos e nações, e
semeando dor, destruição e morte com sua passagem. Apesar das mudanças, conserva sua
identidade e estrutura, e continua desempenhando sua função histórica na lógica da acumulação
mundial do capital. Suas mutações, sua volátil e perigosa mescla de persistência e inovação exigem
a elaboração de uma nova abordagem que nos permita captar sua natureza atual. Este não é o lugar
para realizar um exame das diversas teorias sobre o imperialismo. Digamos, a título de resumo, que,
para além das transformações mencionadas acima, os atributos fundamentais do imperialismo
assinalados pelos autores clássicos na época da Primeira Guerra Mundial continuam vigentes, uma
vez que o imperialismo não é um traço acessório nem uma política perseguida por alguns Estados,
e sim uma nova etapa no desenvolvimento do capitalismo. Tal etapa está caracterizada, hoje ainda
mais que no passado, pela concentração do capital, pelo avassalador predomínio dos monopólios,
pelo dilatado papel do capital financeiro, pela exportação de capitais e pela repartição do mundo em
distintas “esferas de influência”. A aceleração do processo de mundialização ocorrida no último
quarto do século XX, longe de atenuar ou dissolver as estruturas imperialistas da economia mundial,
não fez mais que potencializar extraordinariamente as assimetrias estruturais que definem as
inserções dos distintos países nessa mesma estrutura. Enquanto um punhado de nações do
capitalismo desenvolvido reforçou sua capacidade para controlar, ao menos parcialmente, os
processos produtivos em escala mundial, a financeirização da economia mundial e a crescente
circulação de mercadorias e serviços, a grande maioria dos países viu sua dependência externa ser
aprofundada e o hiato que os separava das metrópoles foi alargada até níveis escandalosos. A
globalização, em suma, consolidou a dominação imperialista e aprofundou a submissão dos
capitalismos periféricos, cada vez mais incapazes de exercer um mínimo de controle sobre seus
processos econômicos domésticos. Esta continuidade dos parâmetros fundamentais do imperialismo
mal pode ser dissimulada com uma mudança de nome, chamando de “império” ao que antes se
chamava de imperialismo.

Caracterização da nova fase: superpotência solitária ou tríade imperial?


Pois bem, como caracterizar esta nova fase do imperialismo? Recordemos o que foi sugerido em
algumas apresentações que tiveram lugar neste mesmo palco, e muito especialmente as
contribuições de Samir Amin, Noam Chomsky e Perry Anderson, todas registradas neste livro. Em
primeiro lugar, o que fica claro é que ocorreu uma centralização muito pronunciada da estrutura
mundial do imperialismo, cujo centro de gravidade se transferiu de maneira acentuada aos Estados
Unidos. Trata-se de uma conclusão que, como se sabe, é bastante controversa. Nesta mesma
tribuna, Samir Amin propunha a tese de um “imperialismo coletivo”, a idéia de uma tríade imperial –
Estados Unidos, Japão e União Européia– que o é apenas em aparência. Dito de outra maneira: é
uma tríade em certos aspectos, mas não em outros. Quais seriam os aspectos em relação aos quais
esta tríade se dilui e cede lugar à “superpotência solitária”? Em quais aspectos a dominação
imperialista se constitui uma empresa coletiva?
Parece uma evidência irrefutável que no plano militar não existe uma tríade. Na última
apresentação do painel sobre “Guerra e Comércio no Império”, o economista cubano Orlando
Martinez e a professora Ana Esther Ceceña, da Universidade Nacional Autônoma do México
(UNAM), apresentaram dados impressionantes relativos à extraordinária centralização do poder
militar nas mãos dos Estados Unidos, sem precedentes na história 5. De modo que falar de tríade
quanto a este aspecto não tem muito sentido. Do ponto de vista militar, a União Européia e o Japão
são apenas pequenos satélites dos Estados Unidos e não têm nenhuma condição de atuar com
autonomia em relação às diretrizes emanadas de Washington. A União Européia não pôde, em
décadas, levantar a bandeira que foi içada pela primeira vez por Charles de Gaulle, em favor de uma
política comum de defesa. Sua mesquinhez economicista revela-se na distância que separa o ardor
com que Bruxelas defende a política agrícola comum da indecorosa pusilanimidade com que
abordam os temas relativos à defesa comum européia.
Atualmente, os Estados Unidos são responsáveis pela metade dos gastos mundiais em
armamentos, e mantêm bases e missões de treinamento militar em 121 países do planeta, coisa
absolutamente inédita na história da humanidade. Esse país converteu-se, sem dúvida nenhuma,
nesse policial solitário do qual fala um artigo muito importante, escrito já há alguns anos por um dos
grandes teóricos da direita estadunidense, Samuel Huntington. No terreno militar não existe a tal
tríade, nem há um imperialismo coletivo. A única coisa que há é o poder quase ilimitado dos Estados
Unidos e um discurso de dominação mundial pela força que, como nos lembrava Chomsky em sua
conferência, tem apenas um precedente no século XX: Adolf Hitler.
A tendência centralizadora já assinalada também é perceptível, embora de maneira mais
atenuada, no terreno econômico. Os dados disponíveis revelam uma acentuada concentração da
riqueza, de tecnologia e dos mercados em benefício das grandes empresas transnacionais dos
Estados Unidos. Transnacionais, é preciso esclarecer, pelo alcance de suas operações, mas não
pelo regime de propriedade: são empresas estadunidenses, assim como há outras empresas
francesas, alemãs ou japonesas, mas que têm um alcance global. Segundo um estudo realizado
pelo Financial Times há pouco mais de um ano, quarenta e oito por cento das maiores empresas
transnacionais têm sua base e estão radicadas nos Estados Unidos. E se em lugar de focalizar a
atenção sobre as quinhentas maiores colocamos a vista sobre a superelite formada pelas cinqüenta
maiores empresas do mundo, setenta por cento, ou seja, trinta e cinco empresas, são de origem
estadunidense. E isto se repete quando observamos a proporção formada pelas empresas
estadunidenses em diferentes ramos da produção industrial, ou de serviços. No terreno da
informática, das dez maiores empresas mundiais sete são estadunidenses. E se falamos da
produção de software, das dez primeiras, nove são desse país; na indústria farmacêutica, das dez
maiores, seis são estadunidenses. Em outras palavras: o imperialismo tem evidentemente um centro
de gravidade que se localiza no território estadunidense.
Este é outro traço que se acentuou nesta fase atual: o primeiro era a questão militar; o segundo,
que acabamos de ver, a concentração econômica. Há um terceiro, e é a crescente tirania dos
mercados financeiros, cuja dinâmica e implacável voracidade são em grande medida responsáveis
pelas tendências recessivas que prevalecem na economia mundial. Noventa e cinco por cento de
todo o capital que circula diariamente no sistema financeiro internacional, equivalente a uma cifra
superior ao PIB combinado da Argentina, do Brasil e do México, é capital puramente especulativo.
São movimentos de capitais depositados por prazo inferior ou igual a sete dias; ou seja, um período
absolutamente incompatível com a possibilidade de investir esses capitais num processo produtivo
que gere crescimento econômico e bem-estar social.
É precisamente por isso que a professora Susan Strange designou este sistema com um nome
muito apropriado: “capitalismo de cassino”. Esse capitalismo parasitário e rentista gera altíssimas
taxas de lucro em favor de seu caráter puramente especulativo e riscos empresariais enormes,
porque assim como se ganha muitíssimo dinheiro numa operação financeira que consome apenas
alguns minutos, pode-se perder uma fortuna da noite para o dia. Este capitalismo desestimula o
investimento nos setores produtivos, porque mesmo os capitalistas mais propensos a investir na
produção de bens dificilmente resistem à tentação de colocar uma parte crescente de seu estoque
de capital em operações especulativas de curto prazo que, se são bem-sucedidas, lhes garantem
taxas de rentabilidade impensáveis no setor industrial. Isto gera, portanto, descapitalização no setor
produtivo, recessão econômica prolongada, altas taxas de desemprego (pois para essas pequenas
operações especulativas não é necessário contratar demasiados trabalhadores, nem construir
fábricas, nem semear terras), empobrecimento geral da população, crise fiscal (porque é um
mecanismo de acumulação mediante o qual se podem burlar os controles de capital, debilitando a
base financeira dos Estados), e tudo isto, por sua vez, tem um impacto muito negativo sobre o meio
ambiente e, claro, sobre o crescimento econômico. Desnecessário dizer que o centro de todo este
sistema se encontra nos Estados Unidos. Não apenas o centro; também seu principal operador
político no terreno internacional, a Casa Branca, através do controle que o Banco Central desse país
(Federal Reserve) e Wall Street exercem sobre os mercados financeiros internacionais e sobre as
assim chamadas instituições financeiras multilaterais, como o FMI, o BM e a OMC, na prática simples
agências do governo estadunidense.
Uma das conseqüências de tudo o que foi dito foi a militarização do sistema internacional e a
crescente tendência a recorrer à violência para preservar uma ordem mundial –na verdade, uma
escandalosa desordem– cada vez mais injusta e desigual. Outra conseqüência: a crise do sistema
das Nações Unidas e do direito internacional. Escutamos apresentações que trataram desse tema,
particularmente as de Noam Chomsky e Perry Anderson. Podemos observar, além do mais,
observando dia a dia o cenário internacional e o triste papel que desempenha a Organização das
Nações Unidas nesta crise. Vemo-lo, também, quando se comprova o acelerado desmantelamento
dos sistemas multilaterais de negociação e o debilitamento do direito internacional. A prova mais
evidente foi a invasão e a devastação do Iraque sem a autorização nem a licença das Nações Unidas.
Outra das conseqüências: a criminalização do protesto social, em que as figuras do pobre, do
desempregado, do sem-teto ou do indocumentado e dos condenados pelo sistema em geral são
satanizadas e convertidas em figuras sinistras e desumanas. Desse modo, as vítimas do capitalismo,
os condenados à exclusão e ao lento genocídio se transformam em delinqüentes, em
narcotraficantes ou em terroristas. Graças à alquimia da globalização neoliberal, as vítimas se
transformam em algozes. Outra das conseqüências verificadas tanto nos países do centro quanto
nos da periferia do sistema capitalista internacional é o aparentemente irrefreável esvaziamento dos
regimes democráticos. Democracias que são cada vez menos democráticas, que têm cada vez
menos legitimidade popular, que fomentam a apatia e o desinteresse pela coisa pública. A política
converteu-se em algo que transita pelos mercados e que depende de sua tirania. A rua e a praça,
privadas de seu dinamismo, são apenas nostálgicas lembranças do passado; os sufrágios
transformaram-se num penoso simulacro carente de significado e de eficácia transformadora. Os
exemplos são abundantes, como se pode comprovar pela leitura dos diversos artigos que compõem
este livro6.Todos estes fatos demonstram que, efetivamente, a morfologia do sistema mundial sofreu
importantes modificações. Não obstante, elas não mudaram a essência do sistema. A globalização
não acabou com o imperialismo nem fez com que este se transformasse em seu contrário. O que de
fato fez foi acentuar os traços que caracterizavam esta fase do capitalismo, a partir do
aprofundamento da injustiça e da iniqüidade tanto dentro das nações como no sistema internacional.
Continuam de pé os mecanismos tradicionais do imperialismo: a extração dos recursos naturais e
das riquezas; a sucção dos excedentes da periferia em direção aos centros metropolitanos; o papel
do capitalismo financeiro, que, como dizíamos acima, se acentuou extraordinariamente; a
concentração monopolística que atinge níveis sem precedentes; seu âmbito normativo continua
sendo o neoliberalismo em sua versão mais globalizada; e, acima de tudo, persistem aquelas
instituições que no passado, quando se dizia que o imperialismo estava em seu apogeu, viabilizavam
a férrea ditadura do capital sobre os povos e os países da periferia. Referimo-nos uma vez mais ao
FMI, ao BM, ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e à OMC, instituições que, longe
de representar a comunidade internacional, são os dóceis instrumentos das classes dominantes em
nível mundial e sobretudo do imperialismo estadunidense.

Assuntos pendentes
Restam, no entanto, muitas questões pendentes quando se trata de obter um diagnóstico
adequado e suficiente do imperialismo de nossos dias. Atualmente, uma das mais importantes é a
correta identificação da situação do centro imperial. Há um debate que vem de longa data, que já se
materializou nos três Fóruns Sociais Mundiais de Porto Alegre e que apareceu também na reunião
de Havana: é a controvérsia sobre a situação atual e o futuro econômico, político e militar dos
Estados Unidos. As posições oscilam em torno de dois pólos: há os que asseguram que, após a
crise dos anos 1970, estamos na presença de recomposição da hegemonia estadunidense no plano
militar, econômico, político e social; e há os que, ao contrário, aderem a uma tese que postula o
debilitamento dos Estados Unidos na arena mundial. O país do norte teria conhecido seu zênite e se
defrontaria agora com seu inexorável ocaso. Trata-se de um debate que não foi saldado e que
futuramente teremos de continuar abordando em toda a sua complexidade, já que de nenhuma
maneira se trata de uma questão menor.
Os partidários desta segunda visão, que em sua formulação mais geral não é por nós
compartilhada, mas que convém examinar em todos os seus detalhes, sustentam que os Estados
Unidos iniciaram uma lenta mas irremediável decadência, e que por essa razão o centro de
gravidade da economia mundial está se deslocando de maneira irreversível em direção ao sudeste
asiático. A conseqüência desta mutação é que o imperialismo que hoje conhecemos seguramente
não sobreviverá no futuro. Há muitos trabalhos que apontam nessa direção. Um dos mais recentes
e importantes representantes dessa argumentação é um livro do professor André Gunder Frank, cujo
título –Re-Orient– precisamente indica uma volta ao Oriente, porque é ali onde supostamente esteve
–há vários séculos– e estará (num futuro relativamente próximo) o centro da economia mundial do
capitalismo. Se se verificar esta tendência, os Estados Unidos deixarão de ter o papel decisivo que
hoje desempenham no sistema internacional. Não nos convence esta proposição, já que subestima
o papel insubstituível, que, pelo menos num futuro previsível, os Estados Unidos têm e seguirão
detendo como custódios finais e asseguradores coercitivos do sistema imperialista. Além disso,
parece-nos que uma tese como essa –assim como outras similares, que afirmam o caráter
inexpugnável e invencível do império– poderia chegar a ter graves conseqüências desmobilizadoras,
sobretudo para nós, latino-americanos e caribenhos. Não obstante, é muito importante discuti-la. O
curso futuro dos Estados Unidos e seu papel na preservação da ordem imperialista são uma questão
central para nossos povos, e, por isso, trata-se de um tema sobre o qual nunca se estudará
demasiado7. A outra questão é a seguinte: como refinar a análise do imperialismo na conjuntura
atual? Creio firmemente que este é um ponto muito importante, tanto no terreno da teoria como no
da luta prática. É preciso evitar cair em visões do imperialismo que o transformem num fenômeno
onisciente, onipresente e onipotente. Se tal visão se afirma na fila de seus críticos e se coagula na
consciência pública, a conseqüência lógica é irrefutável: o imperialismo é invencível, imbatível,
inexpugnável e, portanto, não tem sentido sequer tentar lutar contra ele. Acreditamos importante
assinalar que a geometria do imperialismo é muito complexa e que não pode ser reduzida a apenas
uma dimensão. Parafraseando uma imagem sugerida em um artigo recente de Joseph Nye, pode-
se dizer que o imperialismo dispõe de seus efetivos em três níveis, como em três tabuleiros de xadrez
diferentes (2003). Um primeiro tabuleiro é o militar, em que, como se viu acima, a supremacia dos
Estados Unidos é absoluta.
Claro que aqui convém introduzir uma nota de cautela, porque o que significa uma supremacia
militar absoluta? Significa que pode triunfar inexoravelmente em todas as guerras? Mas, o que
significa “triunfar”? Qual é a lição que se pode extrair do Iraque ou do Afeganistão? Robin Cook, ex-
Ministro das Relações Exteriores da Grã-Bretanha, e que renunciou precisamente por opor-se à
cumplicidade do governo de Tony Blair com a pilhagem perpetrada por George W. Bush e pelos
seus, escreveu há poucos dias que “conquistar o Iraque provavelmente foi fácil, mas governá-lo
como nação ocupada é um desafio muito mais difícil (Cook, 2004). A lição que podemos extrair dos
acontecimentos recentes é a seguinte: o formidável poderio da máquina militar estadunidense
permite-lhes arrasar um país. No entanto, como bem o demonstram os casos do Afeganistão e do
Iraque, Washington viu-se impotente na hora de controlar os países que devastara. Os
estadunidenses não puderam estabelecer uma ordem, ainda que seja uma ordem autoritária e
despótica, para que a sociedade volte a funcionar. Conseqüentemente, apesar de a supremacia
militar estadunidense aparecer como incontrastável, fica soando a seguinte pergunta: quando se
ganha uma guerra? Depois da famosa aparição pública de George W. Bush, colheram-se muito mais
vítimas que antes. É necessário então revisar com extremo cuidado o que é que significa ganhar
uma guerra. A supremacia militar estadunidense pode ser muito importante, muito avassaladora,
mas chega até determinado ponto. E o controle territorial, a “normalização” da sociedade derrotada
continua sendo o verdadeiro teste ácido que decide se uma guerra foi ganha ou não. Esta verdade
foi reconhecida por todos os teóricos da guerra, de Tsung-Tsu a von Clausewitz e Nguyen Giap,
passando naturalmente por Maquiavel. Convém também recordar, para contrabalançar os discursos
que se centram no reducionismo armamentístico, que os Estados Unidos foram derrotados em Cuba,
em Praia Girón, e que sofreram uma derrota catastrófica e humilhante no Vietnam. Para resumir: a
supremacia militar do país do norte é inquestionável, mas não é absoluta.
O terreno econômico é o segundo tabuleiro em que ocorrem as relações imperialistas. Se no
primeiro a superioridade estadunidense é enorme, neste plano Washington tem um predomínio
indubitável, mas muito mais reduzido. Não apenas não pode impor uma certa ordem econômica
internacional aos países da periferia, como não pode sequer atingir um acordo sério e efetivo com
seus próprios aliados da União Européia e do Japão. Os sucessivos fracassos das reuniões da OMC
e das propostas para assinar a ALCA são provas mais que convincentes a este respeito. Em outras
palavras: a trinta anos de produzida a crise do sistema de Bretton Woods –a “ordem internacional”
criada ao fim da Segunda Guerra Mundial–, ainda hoje o imperialismo foi incapaz de construir uma
ordem econômica estável que a substitua, com capacidade para conter e resolver as crises e
contradições que se agitam em seu interior. Naturalmente que tal privação não impediu os
imperialistas de prosseguir com suas políticas de pilhagem e saqueio. Mas o que isso demonstra é
que tais operações se realizam num contexto de crescente instabilidade e imprevisibilidade, e que
os imperialistas devem recorrer cada vez em maior medida à militarização de seu domínio para que
o sistema funcione. Tudo isto, sem dúvida, conspira contra a estabilidade do sistema no longo prazo
e a possibilidade de otimizar os resultados de seus investimentos e estratégias empresariais.
O terreno da sociedade civil internacional será o terceiro tabuleiro de xadrez em que, segundo
Nye, o imperialismo joga sua partida. Aí a situação dos Estados Unidos é muito mais desfavorável,
após a desarticulação das alianças estratégicas, dos sistemas políticos e estatais e das orientações
ideológicas que funcionam desde o final do segundo pós-guerra. A interminável sucessão de agravos
e ofensas sofridas pelos povos, sobretudo na periferia, e as contradições suscitadas pela hegemonia
do neoliberalismo tiveram como resultado a construção de um amplíssimo leque de movimentos
sociais de uma força avassaladora, que se expressam em todo o mundo, de Seattle a Porto Alegre,
passando por Gênova, Gotemburgo, Paris e Tóquio. Na América Latina, e isto sublinhava Perry
Anderson em sua intervenção, é importante reconhecer a importância excepcional que teve o
zapatismo ao efetuar aquela primeira convocatória, no plano internacional, a lutar pela humanidade
e contra o neoliberalismo. Esta exortação adquire documento de cidadania universal com a
realização dos Fóruns Sociais Mundiais de Porto Alegre e, posteriormente, com a propagação destes
protestos a todo o planeta. Este “movimento de movimentos”, que abarca grandes massas de
trabalhadores, de jovens, de mulheres, de indígenas, de minorias de todo tipo, de setores sociais
anteriormente incorporados à dialética de confronto com o capitalismo, aparece agora com uma força
extraordinária, atenuando a debilidade crescente que demonstram as velhas organizações
(especialmente partidos e sindicatos) que representavam, numa fase anterior do capitalismo, as
demandas dos setores oprimidos pelo sistema. E esta mudança na sociedade civil internacional foi
tão importante que a hegemonia incontrastada que o pensamento neoliberal tinha há poucos anos,
permitindo, por exemplo, que os senhores do dinheiro, como os chama o subcomandante Marcos,
se reunissem em Davos, praticamente gozando de uma popularidade universal, agora tenham que
se reunir em lugares remotos e inacessíveis, como se fossem uma gangue de foras-da-lei, para
poderem discutir seus planos de domínio universal. E isto revela a mudança importantíssima na
correlação mundial de forças que, pela primeira vez desde meados dos anos 1970, dá lugar a uma
contra-ofensiva antineoliberal e potencialmente anticapitalista que coloca as oligarquias financeiras
dominantes na defensiva.
Conseqüentemente, acreditamos que tendo em conta estes antecedentes –e outros que seria
preciso agregar à medida que a agenda de trabalho se desenvolva– seria possível avançar a uma
caracterização mais refinada e matizada do que é hoje a dominação imperialista, evitando o
imobilismo teórico e prático dos que asseguram que não há nada de novo sob o sol, e, por outro
lado, o pessimismo a que conduz uma condenação sumária –e a nosso juízo superficial, por ser
unilateral– do imperialismo a partir do predomínio militar estadunidense.

Conclusão que é um convite


Não cabe dúvida, estamos vivendo um momento muito especial na história do imperialismo: a
passagem de uma fase clássica a outra, cujos contornos ainda estão sendo esboçados, mas cujas
linhas gerais já podem ser discernidas com clareza. Nada poderia ser mais equivocado que postular
a existência de um nebuloso “império sem imperialismo”. Daí a necessidade de polemizar com esta
tese, dada a excepcional gravidade da situação atual: um capitalismo cada vez mais regressivo e
reacionário nas áreas social, política, econômica e cultural, que criminaliza os movimentos sociais
de protesto e militariza a política internacional a partir do primado absoluto da força. Diante de uma
situação como esta, dizíamos, só um diagnóstico preciso sobre a estrutura e o funcionamento do
sistema imperialista internacional permitirá aos movimentos sociais, partidos, sindicatos e
organizações populares de todo tipo que lutam por seu derrocamento encarar as jornadas de luta
com alguma possibilidade de êxito. Não há luta emancipatória possível se não se dispõe de uma
adequada cartografia social do terreno onde as batalhas serão travadas. De nada serve projetar com
esmero os traços de uma nova sociedade se não se conhece, de maneira realista, a fisionomia da
sociedade atual e o caminho através do qual haverá de passar a construção desse mundo no qual
caibam (quase) todos os mundos, parafraseando a frase zapatista. Todos os mundos dos oprimidos,
agregaríamos, para não cairmos num perigoso romantismo. Nesse novo mundo, que é necessário
começar a construir agora mesmo, não haverá lugar para o mundo dos falcões militaristas; para a
gangue dos Bush, Blair, Aznar e Companhia; para os monopólios que transformaram a humanidade
e a natureza em sua presa; para os políticos e dirigentes sociais que acompanharam o holocausto
desencadeado pelo neoliberalismo ou com ele consentiram. Um mundo pós-capitalista e pós-
imperialista é possível, mas antes temos que mudar o atual. E isto não se consegue operando sobre
ilusões, mas agindo sobre a base de um conhecimento realista e preciso a respeito do mundo que
desejamos deixar para trás e sobre o caminho que temos que percorrer.
Permitam-nos concluir dizendo que estas discussões, estimuladas por esse nobre afã dos
cientistas sociais e humanistas vinculados à rede do CLACSO de recuperar o pensamento crítico,
foram facilitadas por um elemento muito importante: o contato estabelecido entre o pensamento
crítico latino-americano e a prática dos movimentos sociais que lutam contra o neoliberalismo, a
globalização neoliberal e, em última instância, contra o capitalismo. Esta interação teve um efeito
virtuoso para ambos os lados: enriqueceu-se a formação dos cientistas sociais, tornando-a mais
aguda e penetrante. E melhorou também a qualidade dos dirigentes sociais. Na conferência que
reproduzimos neste livro, Perry Anderson dizia que este continente era o único que desenvolvera,
de uma maneira persistente e com uma significativa densidade teórica, uma notável produção
intelectual contestadora e crítica do capitalismo. Acreditamos que este contato entre cientistas
sociais e movimentos sociais assinala um novo marco no desenvolvimento das ciências sociais, que
na América Latina –como no resto do mundo– eram atividades que se desenvolviam nos seguros
mas estéreis espaços da academia. A esterilidade academicista foi um elemento fundamental na
determinação da profunda crise em que caíram as ciências sociais, crise da qual ainda não se
recuperaram. Os tipos de enfoques e aproximações que vimos nesta conferência em Havana
demonstraram ser muito mais ricos. A imprescindível discussão teórica que caracteriza as ciências
sociais viu-se enormemente favorecida pela estreita vinculação que se estabeleceu neste continente,
ainda quando de maneira desigual, entre a prática dos cientistas sociais e a prática dos movimentos
sociais. Favorecer esse diálogo é uma das metas distintivas do CLACSO e de muitas outras
instituições nacionais da América Latina, e o êxito desta iniciativa nos convoca a seguir nesta linha,
aprofundando-nos nesta vinculação e sabendo que desta maneira não apenas contribuímos para
construir um mundo melhor, mas que ao mesmo tempo fazemos ciência social de melhor qualidade.
Isto é, em linhas muito gerais, um breve resumo dos temas que se discutiram nesta semana. Dito
isso, gostaria de convidar agora ao presidente Fidel Castro Ruz a que tivesse a amabilidade de
pronunciar as palavras de encerramento desta conferência. Muito obrigado.

Bibliografia
Anderson, Perry 2003 (1999) “Neoliberalismo: um balance proviso”, em Sader, Emir e Pablo Gentili
(compiladores) La trama del neoliberalismo. Mercado, crisis y exclusión social (Buenos Aires: CLACSO).
Boron, Atilo A. 2002 Império & Imperialismo. Uma leitura crítica de Michael Hardt e Antonio Negri (Buenos
Aires: CLACSO).
Boron, Atilio A. 2001 A Coruja de Minerva. Mercado contra democracia no capitalismo contemporâneo (Rio
de Janeiro: Vozes).
Boron, Atilio A., Julio César Gambina e Naún Minsburg 2004 (1999) Tiempos violentos. Neoliberalismo,
globalización y desigualdad en América Latina (Buenos Aires: CLACSO- EUDEBA).
Ceceña, Ana Esther e Emir Sader (organização) 2002 A guerra infinita. Hegemonia e terror mundial (Rio de
Janeiro: Vozes).
Cook, Robin 2004 “Bush no tiene su calendário”, em Página/12 (Buenos Aires) 10 de abril.
Hardt, Michael e Antonio Negri 2000 Empire (Cambridge, Mass.: Harvard University Press).
Hinkelammert, Franz 2002 El retorno del sujeto reprimido (Bogotá: Universidad Nacional de Colombia).
Lander, Edgardo (compilador) 2000 La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales.
Perspectivas latinoamericanas (Buenos Aires: CLACSO).
Meiksins Wood, Ellen 2003 Empire of Capital (Londres e Nova Iorque: Verso).
Nye, Joseph S. Jr. 2003 “U. S. power and strategy after Iraq”, em Foreign Affairs (Nova Iorque) julho-agosto.
Panitch, Leo e Sam Gindin 2003 “El capitalismo global y el imperio norteamericano”, em Temas (Habana)
número 33/34, abril-setembro, 28-42.
Patnaik, Prabhat 1990 “Whatever hapenned to imperialism?”, em Monthly Review (Nova Iorque) volume 42,
número 6, novembro, 1-6.
Sastre, Alfonso 2003 La batalla de los intelectuales. Nuevo discurso de las armas y las letras (Havana:
Editorial de Ciencias Sociales).

Notas

* Texto apresentado na sessão de encerramento da III Conferência Latino-Americana e Caribenha de Ciências


Sociais.
** Secretário-Executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) e Professor Titular Regular de
Teoria Política e Social na Universidade de Buenos Aires (UBA).
1 Examinamos esse tema em Tiempos violentos. Neoliberalismo, globalización y desigualdad en América Latina, 2004
(1999), onde se apresenta uma detalhada bibliografia sobre a matéria.
2 As teses de Hardt e Negri foram submetidas a duríssimas críticas desde o momento mesmo em que vieram a público
em Império. Daniel Bensaid, Alex Callinicos, Néstor Kohan, Ellen Meiksins Wood, Leo Panitch e quem assina este artigo
discutiram esta obra em detalhe, a partir de diferentes perspectivas.
3 Sobre os estragos que o “bem-pensar” causou em nosso tempo, e especialmente entre as esquerdas, consultar o
magnífico ensaio do escritor e dramaturgo espanhol Alfonso Sastre (2003).
4 Nesta seção nos baseamos extensamente em nosso Império & Imperialismo (2002).
5 Recomendamos Ana Esther Ceceña e Emir Sader (2002).
6 Esse tema desmente cabalmente a premissa neoliberal de que o mercado é “a outra cara” da democracia. Para um
exame desta falácia, ver Boron (2001).
7 Não é um tema menor a inexistência na América Latina e no Caribe de centros de estudo ou de programas de pesquisa
destinados exclusivamente a analisar a problemática dos Estados Unidos em suas mais distintas facetas. O pouco que
há se encontra em Cuba, sobretudo no âmbito do Centro de Estudos sobre a América (CEA). O México tinha uns poucos
institutos destinados ao tema, mas foram premeditadamente desmantelados durante o furacão neoliberal desatado por
Salinas de Gortari, e sobretudo com o ingresso no Tratado de Livre Comércio. Já não era necessário estudar os Estados
Unidos, algo que por certo provocava desgostos e receios nos círculos governantes ao norte do Rio Bravo. Enquanto
isso, nos Estados Unidos, os centros, institutos e programas dedicados ao estudo do México e à relação mexicano-
estadunidense são mais de cem! O Brasil tampouco tem, até esta data, um centro de estudos dedicado aos Estados
Unidos, apesar de haver uma tentativa em marcha na Universidade Federal Fluminense (UFF). No resto dos países da
região não há sequer tentativas. A Argentina menemista, que exaltava as “relações carnais” com os Estados Unidos, não
tinha por que se ocupar do tema, e o mesmo acontece com os demais governos da região. Uma mostra claríssima,
estrondosa, de que a outra cara do imperialismo é a colonialidade do saber e do poder, é a persistência de uma tradição
de submissão que se fez carne em nossos países. Nem sequer temos a ousadia de pretender estudar aos que, como
disse em seu momento Simão Bolívar, “parecem destinados pela Providência a encher as Américas de misérias em nome
da liberdade”. Sobre a colonialidade do saber e do poder, ver a excelente compilação de Edgardo Lander (2000).

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