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internacional*
Atilio A. Boron**
Assuntos pendentes
Restam, no entanto, muitas questões pendentes quando se trata de obter um diagnóstico
adequado e suficiente do imperialismo de nossos dias. Atualmente, uma das mais importantes é a
correta identificação da situação do centro imperial. Há um debate que vem de longa data, que já se
materializou nos três Fóruns Sociais Mundiais de Porto Alegre e que apareceu também na reunião
de Havana: é a controvérsia sobre a situação atual e o futuro econômico, político e militar dos
Estados Unidos. As posições oscilam em torno de dois pólos: há os que asseguram que, após a
crise dos anos 1970, estamos na presença de recomposição da hegemonia estadunidense no plano
militar, econômico, político e social; e há os que, ao contrário, aderem a uma tese que postula o
debilitamento dos Estados Unidos na arena mundial. O país do norte teria conhecido seu zênite e se
defrontaria agora com seu inexorável ocaso. Trata-se de um debate que não foi saldado e que
futuramente teremos de continuar abordando em toda a sua complexidade, já que de nenhuma
maneira se trata de uma questão menor.
Os partidários desta segunda visão, que em sua formulação mais geral não é por nós
compartilhada, mas que convém examinar em todos os seus detalhes, sustentam que os Estados
Unidos iniciaram uma lenta mas irremediável decadência, e que por essa razão o centro de
gravidade da economia mundial está se deslocando de maneira irreversível em direção ao sudeste
asiático. A conseqüência desta mutação é que o imperialismo que hoje conhecemos seguramente
não sobreviverá no futuro. Há muitos trabalhos que apontam nessa direção. Um dos mais recentes
e importantes representantes dessa argumentação é um livro do professor André Gunder Frank, cujo
título –Re-Orient– precisamente indica uma volta ao Oriente, porque é ali onde supostamente esteve
–há vários séculos– e estará (num futuro relativamente próximo) o centro da economia mundial do
capitalismo. Se se verificar esta tendência, os Estados Unidos deixarão de ter o papel decisivo que
hoje desempenham no sistema internacional. Não nos convence esta proposição, já que subestima
o papel insubstituível, que, pelo menos num futuro previsível, os Estados Unidos têm e seguirão
detendo como custódios finais e asseguradores coercitivos do sistema imperialista. Além disso,
parece-nos que uma tese como essa –assim como outras similares, que afirmam o caráter
inexpugnável e invencível do império– poderia chegar a ter graves conseqüências desmobilizadoras,
sobretudo para nós, latino-americanos e caribenhos. Não obstante, é muito importante discuti-la. O
curso futuro dos Estados Unidos e seu papel na preservação da ordem imperialista são uma questão
central para nossos povos, e, por isso, trata-se de um tema sobre o qual nunca se estudará
demasiado7. A outra questão é a seguinte: como refinar a análise do imperialismo na conjuntura
atual? Creio firmemente que este é um ponto muito importante, tanto no terreno da teoria como no
da luta prática. É preciso evitar cair em visões do imperialismo que o transformem num fenômeno
onisciente, onipresente e onipotente. Se tal visão se afirma na fila de seus críticos e se coagula na
consciência pública, a conseqüência lógica é irrefutável: o imperialismo é invencível, imbatível,
inexpugnável e, portanto, não tem sentido sequer tentar lutar contra ele. Acreditamos importante
assinalar que a geometria do imperialismo é muito complexa e que não pode ser reduzida a apenas
uma dimensão. Parafraseando uma imagem sugerida em um artigo recente de Joseph Nye, pode-
se dizer que o imperialismo dispõe de seus efetivos em três níveis, como em três tabuleiros de xadrez
diferentes (2003). Um primeiro tabuleiro é o militar, em que, como se viu acima, a supremacia dos
Estados Unidos é absoluta.
Claro que aqui convém introduzir uma nota de cautela, porque o que significa uma supremacia
militar absoluta? Significa que pode triunfar inexoravelmente em todas as guerras? Mas, o que
significa “triunfar”? Qual é a lição que se pode extrair do Iraque ou do Afeganistão? Robin Cook, ex-
Ministro das Relações Exteriores da Grã-Bretanha, e que renunciou precisamente por opor-se à
cumplicidade do governo de Tony Blair com a pilhagem perpetrada por George W. Bush e pelos
seus, escreveu há poucos dias que “conquistar o Iraque provavelmente foi fácil, mas governá-lo
como nação ocupada é um desafio muito mais difícil (Cook, 2004). A lição que podemos extrair dos
acontecimentos recentes é a seguinte: o formidável poderio da máquina militar estadunidense
permite-lhes arrasar um país. No entanto, como bem o demonstram os casos do Afeganistão e do
Iraque, Washington viu-se impotente na hora de controlar os países que devastara. Os
estadunidenses não puderam estabelecer uma ordem, ainda que seja uma ordem autoritária e
despótica, para que a sociedade volte a funcionar. Conseqüentemente, apesar de a supremacia
militar estadunidense aparecer como incontrastável, fica soando a seguinte pergunta: quando se
ganha uma guerra? Depois da famosa aparição pública de George W. Bush, colheram-se muito mais
vítimas que antes. É necessário então revisar com extremo cuidado o que é que significa ganhar
uma guerra. A supremacia militar estadunidense pode ser muito importante, muito avassaladora,
mas chega até determinado ponto. E o controle territorial, a “normalização” da sociedade derrotada
continua sendo o verdadeiro teste ácido que decide se uma guerra foi ganha ou não. Esta verdade
foi reconhecida por todos os teóricos da guerra, de Tsung-Tsu a von Clausewitz e Nguyen Giap,
passando naturalmente por Maquiavel. Convém também recordar, para contrabalançar os discursos
que se centram no reducionismo armamentístico, que os Estados Unidos foram derrotados em Cuba,
em Praia Girón, e que sofreram uma derrota catastrófica e humilhante no Vietnam. Para resumir: a
supremacia militar do país do norte é inquestionável, mas não é absoluta.
O terreno econômico é o segundo tabuleiro em que ocorrem as relações imperialistas. Se no
primeiro a superioridade estadunidense é enorme, neste plano Washington tem um predomínio
indubitável, mas muito mais reduzido. Não apenas não pode impor uma certa ordem econômica
internacional aos países da periferia, como não pode sequer atingir um acordo sério e efetivo com
seus próprios aliados da União Européia e do Japão. Os sucessivos fracassos das reuniões da OMC
e das propostas para assinar a ALCA são provas mais que convincentes a este respeito. Em outras
palavras: a trinta anos de produzida a crise do sistema de Bretton Woods –a “ordem internacional”
criada ao fim da Segunda Guerra Mundial–, ainda hoje o imperialismo foi incapaz de construir uma
ordem econômica estável que a substitua, com capacidade para conter e resolver as crises e
contradições que se agitam em seu interior. Naturalmente que tal privação não impediu os
imperialistas de prosseguir com suas políticas de pilhagem e saqueio. Mas o que isso demonstra é
que tais operações se realizam num contexto de crescente instabilidade e imprevisibilidade, e que
os imperialistas devem recorrer cada vez em maior medida à militarização de seu domínio para que
o sistema funcione. Tudo isto, sem dúvida, conspira contra a estabilidade do sistema no longo prazo
e a possibilidade de otimizar os resultados de seus investimentos e estratégias empresariais.
O terreno da sociedade civil internacional será o terceiro tabuleiro de xadrez em que, segundo
Nye, o imperialismo joga sua partida. Aí a situação dos Estados Unidos é muito mais desfavorável,
após a desarticulação das alianças estratégicas, dos sistemas políticos e estatais e das orientações
ideológicas que funcionam desde o final do segundo pós-guerra. A interminável sucessão de agravos
e ofensas sofridas pelos povos, sobretudo na periferia, e as contradições suscitadas pela hegemonia
do neoliberalismo tiveram como resultado a construção de um amplíssimo leque de movimentos
sociais de uma força avassaladora, que se expressam em todo o mundo, de Seattle a Porto Alegre,
passando por Gênova, Gotemburgo, Paris e Tóquio. Na América Latina, e isto sublinhava Perry
Anderson em sua intervenção, é importante reconhecer a importância excepcional que teve o
zapatismo ao efetuar aquela primeira convocatória, no plano internacional, a lutar pela humanidade
e contra o neoliberalismo. Esta exortação adquire documento de cidadania universal com a
realização dos Fóruns Sociais Mundiais de Porto Alegre e, posteriormente, com a propagação destes
protestos a todo o planeta. Este “movimento de movimentos”, que abarca grandes massas de
trabalhadores, de jovens, de mulheres, de indígenas, de minorias de todo tipo, de setores sociais
anteriormente incorporados à dialética de confronto com o capitalismo, aparece agora com uma força
extraordinária, atenuando a debilidade crescente que demonstram as velhas organizações
(especialmente partidos e sindicatos) que representavam, numa fase anterior do capitalismo, as
demandas dos setores oprimidos pelo sistema. E esta mudança na sociedade civil internacional foi
tão importante que a hegemonia incontrastada que o pensamento neoliberal tinha há poucos anos,
permitindo, por exemplo, que os senhores do dinheiro, como os chama o subcomandante Marcos,
se reunissem em Davos, praticamente gozando de uma popularidade universal, agora tenham que
se reunir em lugares remotos e inacessíveis, como se fossem uma gangue de foras-da-lei, para
poderem discutir seus planos de domínio universal. E isto revela a mudança importantíssima na
correlação mundial de forças que, pela primeira vez desde meados dos anos 1970, dá lugar a uma
contra-ofensiva antineoliberal e potencialmente anticapitalista que coloca as oligarquias financeiras
dominantes na defensiva.
Conseqüentemente, acreditamos que tendo em conta estes antecedentes –e outros que seria
preciso agregar à medida que a agenda de trabalho se desenvolva– seria possível avançar a uma
caracterização mais refinada e matizada do que é hoje a dominação imperialista, evitando o
imobilismo teórico e prático dos que asseguram que não há nada de novo sob o sol, e, por outro
lado, o pessimismo a que conduz uma condenação sumária –e a nosso juízo superficial, por ser
unilateral– do imperialismo a partir do predomínio militar estadunidense.
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Notas