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Artigo original

O ORDINÁRIO E O ESPETÁCULO NO
GOVERNO DA FRONTEIRA
Normatividades de gênero em Tabatinga*

Flávia Melo (1)

  https://orcid.org/0000-0002-3179-5294

José Miguel Nieto Olivar (2)

  https://orcid.org/000-0002-7648-7009

(1) Universidade de São Paulo (USP), São Paulo – SP, Brasil. E-mail: flaviamelodacunha@usp.br

(2) Universidade de São Paulo (USP), São Paulo – SP, Brasil. E-mail: escreve.ze@gmail.com
DOI: 10.1590/3410116/2019

Nas fronteiras de Tabatinga Nesse período, testemunhamos mudanças


nas políticas públicas e seus efeitos na vida social
A proposta deste trabalho advém de uma expe- transfronteiriça. Principalmente, informados por
riência etnográfica prolongada e multiposicionada uma perspectiva teórica de gênero, atentamos, tes-
em campo. Entre 2011 e 2016, vivemos, lecionamos temunhamos e fomos partícipes das formas como
e pesquisamos na cidade de Tabatinga, tendo como “o Estado” e “a fronteira” se emaranham e são cons-
perspectiva uma constante preocupação com as re- truídos e apropriados por redes locais afetivas, eco-
lações de gênero: o campo acadêmico, os mercados nômicas, sexuais e familiares. Assim, apresentamos
do sexo, a presença peruana, as relações interétnicas aqui esse conhecimento forjado por duas experiên-
e as políticas públicas associadas a gênero, geração, cias situadas num constante trânsito entre formas
sexualidades, segurança pública e à própria fronteira de governo ordinárias e espetaculares, que se imis-
(Olivar, Melo da Cunha e Rosa, 2015; Melo, 2018). cuem e se embaralham na vida social da fronteira e
de seus agentes.
* Flávia Melo teve apoio do Ministério da Educação Esse propósito nos exigiu uma abordagem teó-
(Edital Proext 2012-2016), Fapeam (PROPG) e Ca- rico-metodológica que nos permitisse perceber os
pes/PDSE (no 88881.187521/2018-01); José Miguel
Olivar, da Fapesp (no 13/26826-2 e no 10/50077-1). processos de construção e transformação da fron-
Agradecemos as preciosas contribuições de Fabio Can- teira e os trabalhos cotidianos de agentes que par-
dotti e dos pareceristas anônimos da RBCS. ticipam, em diferentes posições, da produção desse
Artigo recebido em: 16/11/2018 particular espaço performativo. Desse modo, o en-
Aprovado em: 29/05/2019 foque relacional e processual da proposta deman-
RBCS Vol. 34 n° 101 /2019: e3410116
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dou um exercício atento de aproximação empírica Do governo ordinário da fronteira:


com os espaços, as pessoas e as relações. cuidar da fronteira “desde abajo”1
Primeiro, apresentamos o fragmento de uma
narrativa de relações afetivas cotidianas, nas quais Já tinham chegado os soldados das Nações Unidas que
gênero, fronteira e Estado se intensificam mutua- vinham vigiar o processo de paz. Chegaram com a
insolência de qualquer militar.
mente, de maneira interseccionada e corporificada. Eles, coitados, acreditavam ser donos de fronteiras,
Essa narração da vida ordinária da/na fronteira su- capazes de
gere outra forma de pensar uma articulação na qual fabricar concórdias.
gênero não diz respeito apenas aos efeitos de uma Mia Couto (2005, p. 10)
política pública para as mulheres (mas a sistemas de
relações e a regimes normativos performativamente Quando Socorro, chorando, contou ao seu
atualizados); e fronteira não diz respeito unicamen- amigo Cauã que o dono do local do restaurante lhe
te a processos organizados de expansão e expressão pedira para entregar o imóvel em quinze dias, ele,
masculina da soberania (mas a campos relacionais furioso, se ofereceu para falar com o proprietário –
de diferenciação e conjunção). Na construção do um grande comerciante local que lhe devia “alguns
argumento, transitamos – como fizemos durante favores”. Não era a primeira vez que seus amigos
todo o trabalho de campo – entre uma dimensão lhe ofereciam cuidados. Mas, dessa vez, entenden-
ordinária da vida transfronteiriça e a dimensão es- do a dimensão dos favores e das dívidas, ela recusou
petacularizada do governo soberano da fronteira. o oferecimento. Assim, Socorro se preparou para
Dessa perspectiva microssocial e micropolítica, desmanchar, em apenas duas semanas, o projeto
nos movemos em outra direção e expomos os re- que construíra durante quase dez anos.
ferenciais teóricos que norteiam a nossa descrição Desde 2013, em Tabatinga, Socorro cuidava
da cidade de Tabatinga, calcada na história colonial de Cauã como a um filho, alimentando-o. Esse
da região amazônica e no período anterior a 1980, era o eixo da relação entre eles: o restaurante dela.
valendo-nos da ideia de fronteira como “mito-con- Mas não só. Socorro teve por todos aqueles anos
ceito” (Serje, 2005) e das ideias de Wendy Brown uma empregada com quem construiu uma tensa e
(2010) e Veena Das (2007) sobre o Estado como hierárquica relação de afeto e cuidado, de “quase”
um agenciamento masculino. Essa imagem nos maternidade e trabalho. Flor trabalhou no restau-
serve de contraste para as transformações históri- rante como garçonete, como cozinheira e, algumas
cas posteriores e para marcar os deslocamentos de vezes, como administradora. Ela era jovem e muito
perspectiva e de foco narrativo, nos quais gênero e desejada pelos homens que frequentavam o local.
mulheres começam a ter outro lugar político e ana- Flor namorou Cauã, e foi nesse contexto que ele e
lítico, tal como demonstraremos neste artigo. Nesse Socorro se fizeram mais amigos.
sentido, abordamos as transformações da fronteira Socorro, peruana da região serrana, é uma
e das governamentalidades posteriores a 1980 em mulher independente e solteira, tinha uns 45 anos
termos de gênero: atentamos à participação das quando nos conhecemos. Chegou a Tabatinga sozi-
mulheres nesse processo e à vida social de políticas nha, fugindo do seu contexto amoroso e familiar, e
públicas que mobilizam a categoria mulher. A evi- após uma tentativa fracassada de fazer negócios em
dência da persistência – e das limitações – de algu- Manaus. Na viagem de volta, de Manaus a Iquitos,
mas narrativas mito-conceituais e do ponto de vista decidiu ficar em Tabatinga. Negava-se a voltar à sua
do Estado (como organismo centralizador) é a base terra assim, “fracassada” e tão rapidamente. Aquela
para os deslocamentos teórico-metodológicos pro- cidade lhe pareceu um lugar estratégico pela facili-
postos no artigo, em que promovemos um diálogo dade de ficar, fazer negócios e pela intensa conexão
cruzado entre antropologia, estudos feministas/de com o Peru.
gênero e o campo dos estudos de fronteiras. Para muitos vizinhos peruanos e colombianos,
“Brasil” e “la frontera” são referentes de melhor ou
mais fácil acesso ao dinheiro, de maior liberdade
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sexual, de acesso à terra e a sistemas aparentemente proteção e o cuidado de uma “estrangeira”, escolhi-
superiores de garantia de direitos. No processo de da a dedo e abraçada carinhosamente.
municipalização e urbanização dos últimos trinta Essas relações de afeto e cuidado, que incluíam
anos, a cidade de Tabatinga materializou essas pos- altos oficiais, fizeram com que o processo da legali-
sibilidades de um Brasil-na-fronteira, aberto a “es- zação de Socorro no “Brasil” (isto é, em Tabatinga)
trangeiros”, o que, para alguns brasileiros, resultava fosse mais célere, antes mesmo da entrada em vigor
ser desigual e excessivamente permissivo (Olivar, do acordo Mercosul2. O gênero, a classe, a posição
Melo da Cunha e Rosa, 2015). de forasteiros em terras bárbaras e a desconexão dos
Como muitos e muitas peruanas em Tabatin- parentescos de origem se encontravam ao redor dos
ga, Socorro entrou no negócio das comidas e, anos cuidados e da alimentação para constituir determi-
depois, conseguiu montar o próprio restaurante nadas imagens e relações: eles confiavam nela, con-
– muito bem-sucedido dentro da pequena e mui- sideravam-na uma “boa peruana”, “diferente dos
to delimitada classe média local: pessoas brancas, outros”. Estavam, então, dispostos a protegê-la, a
brasileiras e colombianas, profissionais da área da lhe fazer confidências, a ouvir seus bons conselhos,
saúde, professores universitários, militares das For- a serem amigos. Para ela, essas relações resultaram
ças Armadas, policiais federais, alguns comerciantes na mais firme proteção; amizades “apresentáveis”
colombianos e brasileiros, principalmente homens. no seu contexto de origem; ingressos certos e clien-
Seu talento para as relações públicas e seu desejo tela distinguida. No caso do Cauã, esse tecido fino
insistente de diferenciar-se levaram-na a construir possibilitou primeiro o acesso – e depois a proteção
relações de amizade com muitas dessas pessoas, e o cuidado – de sua particular fronteira: Flor.
como Cauã. Flor era jovem, pouco mais de 20 anos, diver-
Homem na casa dos 25 anos, branco, “corpo tida e considerada “muito bonita e atraente”, tan-
malhado”, oriundo do Sudeste do Brasil. Intenso, to por Socorro como pelos clientes do restaurante
sincero, violento e “machista”, nas palavras da pró- que a miravam, falavam-lhe coisas, paqueravam-na.
pria Socorro, Cauã chamava a atenção por sua inte- “Porém”, “loretana”, quase “índia”, ribeirinha, com
ligência, sagacidade e pela ferocidade dos seus pre- baixa escolaridade, “salvaje” e “sin aspiraciones en la
conceitos. Era agente federal de segurança pública. vida”. Nasceu numa pequena comunidade de Lore-
Sua passagem pela cidade – parte da estratégia bra- to, de onde partiu em busca do Brasil, num projeto
sileira de controle policial/militar das fronteiras, das migratório familiar e feminino. Flor era a mais jo-
migrações e dos mercados transfronteiriços ilícitos vem. Uma das familiares que a acompanhou nesse
(particularmente tráfico de drogas) – durou três projeto, amante de um alto funcionário da cidade,
anos, como serviço obrigatório da sua carreira, e era considerada a “puta” da família. Outra casou-se
implicou uma indenização adicional ao seu salário, com um militar do policiamento fronteiriço e vive
elevando seus ganhos mensais equivalentes a, mais numa cidade nordestina. Mas Flor desprezava to-
ou menos, dez vezes o que Flor poderia ganhar por dos os homens que se aproximavam dela, recusou
mês e mais que o dobro dos ganhos de Socorro. propostas de casamento financeiramente rentáveis
Cauã detestava peruanos e não escondia esse de homens brasileiros e colombianos. Nesses anos,
afeto. Em certas ocasiões, chegou a agredir verbal- o único homem com quem teve uma relação mais
mente alguns “estrangeiros” durante a realização da intensa e duradoura foi Cauã, quem menos coisas
burocracia migratória. Porém, sempre gostou de materiais lhe ofereceu.
Socorro e criou com ela um vínculo de proteção Segundo Socorro, a relação tinha um compo-
bastante forte. Quando seus pais foram visitá-lo em nente forte e violentamente erótico, de combate,
Tabatinga, conheceram-na e ficaram encantados de domesticação mútua. Ela, afinal, era boa parte
com ela, a quem nomearam representante da mãe de tudo aquilo que ele desprezava naquele “cu do
nessa cidade, nessa fronteira que sentiam como te- mundo” – e de tudo aquilo que teria gostado de
nebrosa, infernal e muito perigosa. Nessa relação possuir. Ela – a Flor, a tríplice fronteira, Tabatin-
maternal, seu trabalho policial se desdobrava para a ga – foi a fronteira que penetrou e não conseguiu
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civilizar; aquela que ele e Socorro buscaram, fanta- de corpos masculinos fardados, armados e bem re-
siaram, odiaram. munerados que circulam ostentosamente pela cida-
No início, Socorro incentivou a relação. Afinal, de de Tabatinga. Socorro e Flor fazem parte (ainda
Cauã encarnava a possibilidade de a jovem deixar que em matizes muito distintos) do regime que
de ser “tan india”, “salvaje” e “mejorar de vida”. Ela produz a abjeção à presença peruana naquela região
favorecia encontros, mediava brigas, aconselhava (Olivar, Melo da Cunha e Rosa, 2015), ao mesmo
Flor a polir suas maneiras. Mas a relação foi mu- tempo são representativas de agenciamentos e pro-
dando e Socorro passou a cuidar mais dele. Inclu- cessos de contradomesticação frequentemente in-
sive, protegeu-o da fúria, “salvajadas” e “brujerías” visibilizados nas abordagens macroestruturais que
de Flor. Enquanto a amizade e confiança com Cauã privilegiam o espetáculo em detrimento do cotidia-
cresciam, a relação com Flor tomava maior distân- no. Socorro, em seu esforço contínuo de distinguir-
cia e desconfiança. Nos últimos tempos da vida em -se dos seus conterrâneos, dedica-se justamente ao
Tabatinga, Socorro estava convencida de que era mesmo ofício de muitas outras mulheres e famílias
vítima de um feitiço. Evangélica batizada, buscou peruanas da cidade; ao redor das mesas do seu res-
ajuda em terreiros para apurar as origens de seus taurante, ela reúne seus novos familiares e amigos,
problemas. Uma série de coincidências e conjectu- intercambiando afetos, ajudas e confidências.
ras convenceram-na de que o feitiço havia sido feito Flor – da perspectiva de Cauã e Socorro – ma-
por Flor, com a ajuda da mãe. Socorro chegou a ir terializa uma fronteira muito particular: jovem “ín-
a Iquitos para que uma famosa bruja desfizesse o tal dia”, “bruja” e “salvaje”, que corporificava o desejo de
feitiço. Ao final do ritual, a bruja sentenciou: “No Cauã, a repulsa de Socorro e o medo de ambos. Suas
te están haciendo daño, lo que pasa es que tú no sabes constantes recusas aos pedidos de casamento não eram
administrar tu negocio”. apenas movimentos contestatórios, mas tinham o
Como vimos, nesse sistema relacional inten- efeito de desconstruir poderosas e persistentes discur-
samente afetivo, sexual e econômico, se produzia sividades que produzem e controlam a “indomável”
um conjunto ou sistema de fronteiras bastante frag- sexualidade das mulheres amazônicas, que condenam
mentado e emaranhado nas ações mais ordinárias e a “ambição” das nativas e sua busca por casamentos
cotidianas desses agentes. No intuito de alijar-nos “vantajosos” ou que denunciam a maternidade “opor-
das análises distanciadas e de grades interpretati- tunista” de “estrangeiras” em busca dos “cobiçados”
vas que privilegiam a “heroicidade”, partimos da benefícios sociais brasileiros (Campos, 2018).
cotidianidade (Serje, 2005; Das, 2007; Moreno e Com ela, pouco conversamos. Sempre sorri-
Langdon, 2018), das relações vivenciadas no co- dente e prestativa, quase nunca nos permitia des-
tidiano da fronteira para, imersos numa intriga lanchar na conversa. De Flor, jamais soubemos
tripartite, observar o agenciamento – não mais como se reconhecia etnicamente. Isso nunca foi um
do Estado, como protagonista ou único produtor tema em nossos encontros e ela jamais se definiu,
daquela fronteira, e tampouco de seus heróis ou para nós, como indígena. Nas poucas conversas
vultos masculinizados, mas em formas de governo que nos permitiu participar ou observar – inclusi-
agenciadas por mulheres (e também por homens) ve com suas irmãs –, sempre a ouvimos falar em
em relações cotidianas de comensalidade, paren- espanhol ou português, e nenhuma outra das tan-
tesco, afeto e poder. Apostamos, pois, “na descida tas línguas que escutamos naquela região. Isso não
ao cotidiano, no preparo diário da alimentação, na significa que Flor não reivindicasse pertencimento
arrumação e organização dos afazeres, no cuidado étnico, tampouco que esse era tema desimportante.
e cultivo persistente das relações familiares” (Perei- Ao contrário, a discussão em torno da etnicidade
ra, 2010, p. 363), onde nos foi possível observar, de Flor teve importância fulcral nessa trama justa-
muito proficuamente, a produção performática e mente pelo modo como essa mulher e seu corpo
ordinária da fronteira e do gênero. foram perspectivados e metaforizaram a fronteira
Nossa tríade de personagens pode ser, em certa para Cauã e Socorro, para quem Flor era “a índia”.
medida, arquetípica. Cauã integra aquela centena Socorro, mulher peruana e migrante tal como
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Flor, insistia em marcar severamente a diferença do rio Amazonas, com população estimada em
entre elas: não índia versus índia, serrana versus lo- 65.844 habitantes, distribuídos em 3.266 quilô-
retana/amazônica, civilizada versus “salvaje”. De- metros quadrados de extensão territorial (IBGE,
dicando-se continuamente ao seu investimento de 2018). Teve origem num povoado formado nas
distinguir-se, enfatizava as diferenças entre a sua adjacências do forte militar de São Francisco Xa-
gente “serrana” e a gente da floresta (loretanos, por vier de Tabatinga, erguido na segunda metade do
exemplo), assim reiterava uma “geografia moral século XVIII por um destacamento militar, a fim
da ordem colonial que subordina a selva ao lugar de demarcar os territórios de Portugal e Espanha e
da queixa, do atraso e da incivilização” (Moreno e dirimir as disputas territoriais entre os reinos (Zá-
Langdon, 2018, p. 149). rate, 2008; Sampaio, 2009).
Cauã, por sua vez, situando Flor como “índia” Entre o final do século XIX e os anos 1940,
e “peruana”, nunca se referia a um possível perten- teve lugar, nessa região amazônica, a exploração
cimento étnico, mas à sua “selvageria”, “brutalida- transnacional da borracha, que promoveu a che-
de” e “atraso”. Todos os argumentos de Cauã e So- gada de “soldados da borracha” (principalmente
corro operavam, pois, no sentido de enquadrar Flor homens), vindos de diversas regiões do Brasil (so-
dessa forma, materializando em seu corpo e sexuali- bretudo Nordeste), do Peru e da Colômbia. Essa
dade uma parte do sistema de perigos da fronteira3. economia, como explica Roberto Camacho (2011),
“Índia”, nas palavras de Socorro e Cauã, expressa- mudou para sempre a paisagem e a vida social na
va uma marca de alteridade radical e uma concepção Amazônia e marcou o processo de fronteirização
depreciativa arraigada a certa construção ambígua da interna e externa desses países. Assim, a cidade e
“índia”, ao mesmo tempo sem ambição (“sin aspira- a região transfronteiriça têm uma longa história de
ciones en la vida”) e invejosa (principal motivo alegado processos espetaculares de conquista e colonizações
aos feitiços supostamente preparados por Flor e sua com o protagonismo de corpos masculinos, milita-
mãe)4. Em seu estudo sobre a criação da mulher étnica res e religiosos (Taussig, 1986; Zárate, 2008, 2011;
estadunidense, Silvia Falquina (2003, p. 42), ampa- Sampaio, 2009; Camacho, 2011), responsáveis por
rada em vasta bibliografia decolonial e antropológi- controlar, converter, “civilizar” e dizimar as popula-
ca, analisa justamente a construção da “índia” como ções indígenas nativas. Do mesmo modo, a história
derivação de “índio” – uma categoria sem referente, da região é marcada por economias de extração de
forjada num equívoco geográfico e inerente à discursi- recursos naturais, de comércios informais através
vidade de processos “neocolonizadores”. dos rios e da lógica da dívida (Taussig, 1986), que
No contexto das relações tabatinguenses, essa são marcantes até hoje.
enunciação deve ser cotejada, ao menos, com dois Apesar do crescimento populacional e do
outros elementos: a numerosa presença e participa- surgimento de diversos povoados, comunidades
ção de pessoas pertencentes a vários grupos étnicos e cidades, no marco dessas transformações eco-
cujos territórios foram atravessados pelos limites nômicas, a guarnição militar instalada no século
nacionais de Brasil, Peru e Colômbia5; e o fato de XVIII manteve-se como uma vila militar a servi-
essa cidade e região serem forjadas em meio a dura- ço da defesa fronteiriça até meados do século XX.
douros processos coloniais e uma extensa e confli- Em 1968, durante a ditadura militar brasileira que
tuosa história de contatos interétnicos. se estendeu até 1985, o território dos municípios
fronteiriços foi classificado como “área de interesse
da Segurança Nacional”6, o que exigia maior pre-
Do governo espetacular da fronteira: sença das instituições de defesa nacional. Com essa
“el control desde arriba” preocupação, o povoado, até então dependente de
outros mais antigos, tornou-se um município autô-
Nos limites oficiais da geopolítica brasileira, a nomo, sendo instalado efetivamente em 1983.
cidade de Tabatinga está situada no oeste do Es- Nos anos 1960, a vila militar de Tabatinga
tado do Amazonas (Brasil), à margem esquerda constituía-se ainda como Pelotão Especial de Fron-
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teira, tal como outros postos instalados na Ama- brasileiras sobre as fronteiras amazônicas internas
zônia, formada quase exclusivamente por homens e internacionais (Faulhaber, 2001; Becker, 2005).
jovens e solteiros7, nordestinos, que se aventuravam Em meio à proliferação de análises sobre a po-
na região pelo alistamento militar. À época, as For- lissemia da ideia de fronteira e a multiplicidade de
ças Armadas Brasileiras incentivaram a migração de abordagens8, a antropóloga colombiana Margarita
recrutas para as fronteiras amazônicas oferecendo Serje (2005) procura outro rumo a partir da ideia
vantagens financeiras e previdenciárias aos que ali de “mito-conceito”. A autora se debruça sobre o
permanecessem. processo histórico, multidimensional e concei-
Na história das famílias da região, é muito co- tual de construção dos “territórios selvagens”, das
mum a união desses homens com mulheres nativas. fronteiras e periferias do Estado-Nação colombia-
A esse respeito, Adriana Marques (2007, p. 91) ar- no. Esse processo a leva a compreender a forte di-
gumenta que a estratégia militar de povoamento e mensão mítica, autorreprodutiva e mitificadora do
defesa das fronteiras amazônicas esteve fortemente conceito de fronteira, intimamente ligado à ideia
associada a ideários de fixação e “miscigenação” e de territórios vazios, de populações selvagens e dos
a práticas de reprodução sexual, incentivadas ins- “héroes de la Frontera”, um espaço ao mesmo tempo
titucionalmente pelas Forças Armadas para a cons- vazio e rico, fantástico e carente, produto de sis-
trução da “pátria”. Essa descrição se multiplica temáticas políticas de estetização e erotização dos
facilmente nas crônicas de antigos habitantes de Ta- outros. Na linha de Michael Taussig (1986), a au-
batinga e de militares aposentados que ali trabalha- tora demonstra como esse sistema imagético sobre
ram (Melo, 2019). Nas palavras de uma moradora: a fronteira é atualizado contemporaneamente em
“aqui todo mundo é filho de militar”. termos de políticas públicas, notícias midiáticas,
Essas narrativas desenham as formas de gover- ações humanitárias e até pesquisas sociais que ten-
no constituintes da história recente da cidade e nos tam produzir informação sobre os confins da huma-
permitem ver como determinadas imaginações sobre nidade ou sobre as resistências de fronteira9.
gênero, raça, Amazônia e fronteira se cruzam e arti- Ainda que a fronteira priorizada por Serje para
culam para constituir não apenas a ação do Estado, a sua conceitualização seja a interna (frontier), é
mas povoados, cidades, fluxos econômicos e princí- possível estender parcialmente suas análises para a
pios de relação social. O desbravamento da fronteira compreensão mítico-conceitual das fronteiras inter-
como um agenciamento masculino é resultado tam- nacionais (borders and borderlands), principalmente
bém de uma imaginação generificada, “imperial”, na América do Sul. Essa extensão ganha sentido
sobre o corpo, o trabalho e o próprio território (Mc- quando pensamos na Amazônia, onde fronteiras
Clintock, 2010). Essas relações, lógicas e imagina- agrícolas e econômicas, coloniais, de conservação,
ções encontram estímulo em narrativas militares e étnicas e nacionais têm se sobreposto há séculos,
religiosas e tiveram um fértil espaço de reprodução e cuja construção mítica continua vigente e de-
nas dinâmicas econômicas extrativistas. terminante até hoje. Seguindo o pensamento de
Tais economias têm sido pensadas como fun- Marshall Sahlins (1985) sobre a “atualização con-
damentalmente masculinas, requerentes de corpos juntural das estruturas míticas”, as transformações
forasteiros, e resultaram em importantes empreen- políticas recentes dos estados nacionais “atualizam”
dimentos de fixação, reprodução e urbanização. Às a lógica mito-conceitual que as estrutura. O mito-
empreitadas de fronteirização amazônica cabia a ta- -conceito da fronteira, afinal, é estruturante da ima-
refa não de defender um território, mas de produ- ginação política nacional (Serje, 2005; Nail, 2016).
zi-lo e povoá-lo em termos de uma muito específica À continuação, mostramos como essa “estrutura
organização de gênero que era reelaborada “lá”, na na conjuntura” se atualiza nas mudanças políticas
correlação de forças, agências, saberes e possibili- nacionais a partir dos anos 1980, resultando numa
dades. Essa imagem da cidade, anterior aos anos reorganização das relações de gênero.
1980, é a imagem de contraste de nossa análise. A partir dos anos 1980, no marco da transição
Uma imagem constitutiva das grandes narrativas democrática brasileira, das novas constituições de
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Colômbia (1991), Brasil (1988) Peru (1992), da punha articular uma série de políticas públicas em
expansão de políticas neoliberais, do crescimento territórios, como a Mesorregião do Alto Solimões e
do tráfico de cocaína na região e da recente mu- a Faixa de Fronteira do Arco Norte que, no caso de
nicipalização de Tabatinga e outras cidades brasi- Tabatinga, eram sobrepostos. Essas políticas e pro-
leiras adjacentes, tem lugar nessa tríplice fronteira gramas – e as territorialidades delas decorrentes –
uma série de transformações territoriais, políticas não divergiram da conformação territorial herdada
e econômicas. Tabatinga foi laboriosamente cons- da colonização e da exploração extrativista e orien-
truída como uma unidade urbana (Aponte Motta, taram sobremaneira as políticas públicas desenvol-
2011), tendo como principal força de propulsão os vidas na região nos últimos quinze anos.
recursos humanos e materiais das forças militares. Além das políticas brasileiras, Tabatinga cres-
Isso implicou a unificação de diversos territórios ceu numa relação orgânica com a Colômbia e o
no Brasil: a vila militar de Tabatinga, a comunida- Peru. O crescimento de Leticia (Colômbia) e sua
de indígena Ticuna de Umariaçu10 e as pequenas consolidação como capital do departamento de
comunidades de colonos – inclusive peruanos –, Amazonas, como polo turístico e zona de livre co-
organizadas na beira do rio ou nos limites interna- mércio, o crescimento e atomização do narcotráfico
cionais com a Colômbia. e a circulação de pessoas e de bens provenientes do
As noções territoriais brasileiras de “Faixa de Peru contribuíram para a transformação de Taba-
Fronteira”, “Arco Norte” e “Mesorregião amazônica tinga que, gradativamente, assumiu papel de refe-
do Alto Solimões” são também centrais para a com- rência nessa mesorregião no que tange ao acesso a
preensão de Tabatinga. A definição legal de “faixa serviços públicos, infraestrutura estatal e comércio.
de fronteira” foi estabelecida em 197911 e, três dé- Junto a Leticia e a ilha de Santa Rosa (Peru), a cida-
cadas depois, em 2009, incorporada à classificação de compõe um “complexo urbano transfronteiriço”
territorial de “arco norte” do Programa de Promo- (Olivar, 2016), que se expande por outras cidades,
ção do Desenvolvimento da Faixa de Fronteira12. O comunidades e povoados da região nos três países.
Arco Norte englobaria – entre outras características De uma primazia absoluta e quase solitária de
que atualizam as narrativas mito-conceituais sobre instituições militares, religiosas e aduaneiras – além
a Amazônia – peculiaridades étnicas e administra- de limitadas experiências de exploração econômica
tivas, constituindo-se um “arco indígena”, tanto do dos recursos naturais –, notamos hoje a presença de
ponto de vista do território (presença de territórios praticamente todas as instituições do governo fede-
indígenas) como da identidade territorial (importân- ral, estadual e municipal – das quais Cauã e muitos
cia étnico-cultural indígena mesmo fora das terras frequentadores do restaurante de Socorro faziam
indígenas). Ao mesmo tempo, o programa integrou parte. Igualmente, há presença importante de vá-
a Política Nacional de Desenvolvimento Regional rios agentes civis e religiosos de governamentalida-
(Decreto nº 6.047/2007), que classificou o municí- de (ONGs, missões religiosas diversas, movimentos
pio de Tabatinga como pertencente à Mesorregião do sociais) e expansão do comércio, das fontes de em-
Alto Solimões13. Essa forma de classificação resultava prego e da educação, entre outros. De uma ação
de certa apropriação de teorias de desenvolvimen- espetacularizada, fundamentalmente masculina e
to regional e de conceitos como “desenvolvimento colonizadora, voltamo-nos para a diversificação
regional desigual” (Harvey, 2004, 2006) e supunha e fragmentação das posições de poder em que os
uma série de indicadores de “vulnerabilidade social” agentes locais e femininos ganham proeminência.
vinculados ao pensamento geopolítico brasileiro he-
gemônico (Sprandel, 2005).
Em 2008, um novo programa somou-se aos Regimes de normatividades de
anteriores: o Territórios da Cidadania, estratégia gênero na fronteira
de universalização de ações para a cidadania imple-
mentada em regiões do país tidas como “mais vul- O processo de expansão do Estado e de trans-
neráveis” (Brasil, 2008, p. 2). Esse programa pro- formação territorial sugere, em termos de gênero,
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mudanças importantes no lugar de homens e mu- ticas de segurança pública e defesa nacional, atuan-
lheres no processo de fronteirização e na própria do as primeiras como subsidiárias das segundas.
imaginação sobre relações de gênero mobilizada. A emergência do discurso sobre “tráfico de pes-
Em primeiro lugar, resulta evidente que, nos úl- soas” em Tabatinga estimulou a produção governa-
timos trinta a quarenta anos, houve significativa mental de “denúncias” de tráfico humano – acopla-
transformação na participação política e econô- do à “exploração sexual” e à “servidão doméstica”
mica das mulheres nesse processo. Antes marcada –, que tinham na vigilância a “estrangeiros” e a
sobremaneira pela participação das mulheres nati- determinadas sexualidades o seu principal foco.
vas na reprodução, na conjugalidade, no cuidado Com efeito, a política de enfrentamento ao tráfi-
doméstico e, no caso das “forasteiras”, na educação co de pessoas ocupou importante lugar na articu-
escolar infantil, hoje a configuração do Estado nes- lação entre gênero e fronteiras, ao estimular ações
sa fronteira está longe de ser exclusivamente militar de controle da ordem interna (segurança pública)
e masculina, ainda que homens e militares/policiais e da ordem externa (defesa nacional), articuladas
continuem tendo destaque quantitativo e simbóli- com uma discursividade governamental humanita-
co (Melo, 2018). rista (Piscitelli, 2016). Contudo, o conhecimento
Muitas mulheres, “forasteiras” e locais, passaram etnográfico da operação dessa política nos permitiu
a ocupar cargos de poder e executivos no Estado em evidenciar o protagonismo das mulheres. Foram
diversos âmbitos e níveis. Ainda que existam mu- fundamentalmente articulações femininas locais,
lheres em altos cargos de poder governamental, elas sob uma forte retórica de violência e de reivindica-
ocupam principalmente as responsabilidades politi- ção de direitos, as que demandaram maior presença
camente imaginadas como femininas e subsidiárias e maior ação das forças militares e de polícia (mas-
das políticas de defesa e segurança, como proteção culinas), inclusive para a vigilância das sexualidades
social, direitos humanos, saúde, educação e comu- e dos deslocamentos das mulheres jovens.
nicação. Por outro lado, diversas políticas públicas Além do tráfico de pessoas, um fato pontual
que operaram nesse território estiveram focadas nas mostra a maneira como essas novas políticas de mu-
mulheres e previam a garantia de direitos, inclusive lheres atualizaram e complexificaram a fronteira: o
a transformação de relações econômicas e de poder. assassinato da radialista tabatinguense Lana Micol
Tal foi o caso da implementação e do fortalecimen- Cirino Fonseca (ABI, 2013). Em maio de 2013, a
to nas fronteiras do Sistema Único de Saúde14, do diretora da Rádio Nacional do Alto Solimões, da
Programa Bolsa Família15 e das políticas de enfren- Empresa Brasileira de Comunicação, foi alvejada por
tamento à violência contra as mulheres (incluindo o um motoqueiro desconhecido. Na época, seu ex-ma-
combate ao “tráfico de pessoas”), entre outras16. rido foi acusado de ser o mandante do crime, cujo
Nesse marco, a ênfase dada à “violência contra processo penal ainda tramita na Justiça brasileira.
as mulheres” (associado à lógica da “vulnerabilida- Sua morte repercutiu nos meios de comunicação e
de”) como conceito-chave de governamentalidade provocou a consternação de moradores da cidade.
resulta importante para pensar as novas relações O assassinato trouxe à arena pública divergên-
entre fronteira, Estado e gênero. Relatórios da ex- cias e disputas sobre a fronteira, bem como a evi-
tinta Secretaria de Políticas para as Mulheres da dente emergência de um campo local – conectado
Presidência da República (Brasil, 2014) indicavam em redes regionais, nacionais e transfronteiriças –
que ampla parcela dos recursos dessa pasta foram preocupado com o gênero, os direitos das mulheres
destinados para ações de enfrentamento à violência e o feminismo. A princípio, a resposta judicial esteve
doméstica e familiar. Em cidades fronteiriças como menos relacionada com as políticas de enfrentamen-
Tabatinga, notamos atenção especial ao combate ao to à violência contra mulheres e mais com o fato de
“tráfico de mulheres”, o que mobilizou discursos uma servidora federal ter sido morta numa região
sobre gênero, sexualidade, mobilidade e território de fronteira em que mortes por pistolagem são re-
muito específicos, conectando uma vez mais as po- correntes (Paiva, 2019). Em momento posterior,
líticas de direitos humanos e proteção social às polí- lideranças feministas, a Empresa Brasileira de Co-
O ORDINÁRIO E O ESPETÁCULO NO GOVERNO DA FRONTEIRA  9

municação, a Secretaria de Políticas para Mulheres e das a processos de fronteirização interna (Martins,
a universidade local organizaram manifestações, ela- 1997), ou a caraterísticas explícita ou implicita-
boraram projetos de políticas públicas, promoveram mente tomadas como “culturais” ou “históricas” da
ações preventivas e exigiram a apuração da morte da região (Torres e Oliveira, 2012). As fronteiras pare-
radialista como um caso de feminicídio17. Mesmo as- cem, pois, um bom lugar para atualizar as fantasias
sim, aparentemente deslocando o foco da fronteira, e temores sexuais, de gênero, étnicos, nacionais ou
a hipótese do feminismo e do gênero não se furtou regionais (McClintock, 2010).
da oportunidade de produzir performativamente a O revés dessa construção encontra-se em outra
nação. O assassinato resultou, inclusive, na formula- desumanização positiva e mitológica das mulheres
ção de um projeto nunca implementado de criação “amazônidas”. Representadas como vítimas da “se-
da Casa da Mulher Brasileira em Tabatinga18. Assim, xualização” dos “machos demoníacos”, das “hostes
tanto o assassinato de Lana Micol como a mobiliza- conquistadoras”, são discursivamente reelabora-
ção pública dos discursos de tráfico de pessoas evi- das como fortes guerreiras e heroínas. O proble-
denciaram agenciamentos femininos – e feministas ma é que, como indica Margarita Serje (2005) – e
– locais em prol de maior e mais coercitiva presen- Kamala Kempadoo (2007) para o caso do Caribe
ça policial e militar (masculina) e de reafirmação da –, tais leituras não desativam os mecanismos mito-
identidade nacional. -conceituais e reproduzem os princípios imaginati-
Ao concentrarmo-nos analiticamente nas polí- vos sobre esses territórios e seus habitantes.
ticas de tráfico de pessoas, de enfrentamento à vio- Todo um universo de princípios e relações de
lência contra mulheres na fronteira, e, finalmente, gênero, atravessado pela história e a organização
no caso Lana Micol, almejamos demonstrar as trans- social amazônica, é deixado de lado. Destino se-
formações nas relações de gênero, na incorporação e melhante têm práticas e agenciamentos cotidianos,
produção do gênero pelo Estado e no modo como ambíguos e contraditórios, marcados por gênero e
os espaços de participação das mulheres em formas lógicas singulares (como as mobilidades, a constru-
de governo e processos de fronteirização diversifi- ção social das gerações, as relações com a sexualida-
caram-se ao longo do processo de formação de Ta- de, as relações de trocas econômicas etc.).
batinga, principalmente nos últimos quinze anos. Ao avultar a intriga familiar e amorosa entre
Percebemos também como a força constitutiva das Socorro, Cauã e Flor, buscamos não apenas obser-
retóricas da violência e da segurança, demandando var essa fronteira “desde abajo” (e dali acessarmos
mais presença estatal e maiores mecanismos de con- outras de suas camadas), mas, sobretudo, expe-
trole, se atualiza e modifica, tendo como base uma rimentar um movimento que nos permitisse de-
nova preocupação de gênero, que insistia em identi- sativar esses mecanismos de atualização da forma
ficar as mulheres locais ora como vítimas, ora como mito-conceitual, demonstrando como formas de
vinculadas a atividades criminais, ora como agentes governo espetaculares e cotidianas se imiscuem nos
de “mudança social” e sempre como corpos-nacio- corpos de quem habita aquela fronteira, como na
nais. Mulheres configura-se, pois, um novo espaço de trama de afetos, cuidados e ameaças de nosso trio
atualização mito-conceitual, que cruza diversos âm- de personagens que, longe de ser exclusiva ou pecu-
bitos de poder e de produção de conhecimento. liar, faz parte da miríade de relações de poder que
As abordagens analíticas conectando gênero e atuam na produção performativa e relacional do
territórios de fronteira no Brasil são escassas e têm gênero e da fronteira.
seu objeto principal nas experiências de mulheres
migrantes, deixando de lado conceitualizações de
gênero e de fronteira mais relacionais. Algumas de- Reconceitualizando fronteira
las estão fortemente marcadas por matrizes inter-
pretativas sobre opressão e violência, traduzidas no Para o nosso interesse de reconfigurar a fron-
contexto amazônico como violências sexuais e de teira como problema e objeto de estudo pelo viés
gênero contra mulheres e meninas nativas atrela- de uma antropologia do gênero, nos foi de grande
10  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 34 N° 101

valor uma produção brasileira recente sobre terri- mológica” dos anos 1980-1990 na antropologia,
tórios e relações transfronteiriças. José Lindomar mobilizada por mulheres e por outras teóricas fe-
Albuquerque (2010, 2015) aborda os limites entre ministas (Strathern, 1990; Butler, 1990a; Haraway,
Brasil e Paraguai, materializados nos “brasiguayos”. 1991; Ortner, 1996), além de por outros aportes
Nesse caso, a fronteira é apresentada como um espa- dos enlaçamentos entre antropologia, história, gê-
ço social em construção através dos agenciamentos nero e narrativa (Sahlins, 1985; Taussig, 1986; Mc-
diversos de múltiplos atores. Por sua vez, Claudia Clintock, 2010; Das, 2007). Esse repertório nos
Lopez (2000) analisa as apropriações e reelabora- ajuda a pensar “o social” (o gênero, as fronteiras)
ções que indígenas Ticuna fazem das fronteiras como sistemas de relações e de associações, de prá-
internacionais na produção de um território mul- ticas de agentes, de tensões formativas-construtivas,
tifronteiriço19. Essa composição de múltiplos terri- que devem ser reconstruídos e rastreados de forma
tórios e fronteiras, que cruzam frentes de expansão situada, como o fizemos.
econômica, espaços de contatos interétnicos, limi- Além disso, exige um olhar entre escalas mi-
tes internacionais e mobilidades transnacionais, cro e macro, não como entidades de naturezas di-
adquire força etnográfica e analítica nos textos de ferentes, nem em estrita relação causal, mas como
José de Souza Martins (1997), Lylia Galetti (2012) escalas diferentes de redes extensas de agentes so-
e Renata Nóbrega (2016), e marca rumos de aná- ciais (Latour, 2008). Possibilita, dessa forma, uma
lise muito diferentes. Por outro lado, Paula Tog- abordagem mais interessada nas práticas ordinárias
ni (2014) e Gustavo Dias (2015) mostram como de fabricação social do mundo, das diferenciações e
a linha do limite internacional entre o Brasil e a distinções (McClintock, 2010; Brah, 2006; Pisci-
Europa se expande entre os territórios nacionais a telli, 2008), de materialidades e imaginações múl-
partir de tecnologias de controle específicos, como tiplas e conectadas parcialmente, do que na lógica
configurações de bairros e em corpos. Nesses traba- espetacular do significado, da dominação e das dis-
lhos, produzidos a partir de preciosas etnografias de tinções entre simbólico e material, estrutural e dis-
viagem e de longa duração, se destaca a enorme im- cursivo, literal e metafórico, entre outras (Latour,
portância dada aos agentes sociais nas suas práticas 2008; Wagner, 2010). Como as que observamos
e capacidades de produzir, furar, regular, decompor nos enunciados de Socorro sobre Flor e de Cauã
e restituir múltiplas fronteiras. Ademais, em Togni sobre a abjeção peruana, nos cuidados intercam-
(2014) e Nóbrega (2016) existe uma preocupação biados entre comidas e documentos, nas conexões
explícita – e rara – por compreender essas fronteiras entre ações de prevenção à violência de gênero e
(relações, territórios e deslocamentos) em termos o controle migratório, ou na produção da nação
de gênero, afetos, sexualidade, produção de família emergida do processo de apuração do assassinato
e circulação econômica. da radialista.
Outro estudo sugere que “um projeto feminis- Essa abordagem marca a nossa relação empíri-
ta de fronteiras interroga os múltiplos sentidos dos ca e analítica com o Estado-nação, categoria cen-
limites e das fronteiras”, e, nesse exercício, Denise tral nas análises sobre fronteiras. Longe de pensar o
Segura e Patricia Zavella (2008, p. 539) propõem Estado-nação como uma entidade que opera sobre
quatro dimensões de análise: estrutural, discursiva, a fronteira, optamos por seguir o rumo de uma an-
interacional e actancial. As autoras seguem uma tropologia preocupada com a reflexão etnográfica
tradição chicana/norte-americana de “teoria de sobre governamentalidade e sobre o Estado aqui
fronteiras”, muito inspirada em Glória Anzaldúa concebido como sistema administrativo poroso,
(2012) e atenta à produção da identidade, às resis- altamente contingente e polimorfo (Souza Lima,
tências e hibridizações, às sexualidades “transgres- 2002; Das e Poole, 2004; Sharma e Gupta, 2006;
sivas” e à semiótica, com forte base disciplinar nos Brown, 2010). Prestamos especial atenção à dimen-
estudos culturais e na crítica literária. são produtiva e espetacular do Estado na relação
Nossa proposta coincide com o espírito dessa com gênero e violências/terror (Das, 2007; Taussig,
crítica feminista, conectando-a à “virada episte- 1986), com os discursos dos direitos humanos e do
O ORDINÁRIO E O ESPETÁCULO NO GOVERNO DA FRONTEIRA  11

humanitarismo (Ferreira e Schuch, 2010; Fassin, poder sendo permanentemente negociadas, perfor-
2011), e com a regulação do gênero, da sexualida- matizadas e materializadas nos corpos dos agentes
de e dos mercados do sexo (Butler, 2004; Piscitel- que a produzem. Assim, compreendemos melhor o
li, 2016; Vianna, 2012). Nesse enquadramento, a que está sendo trabalhado e avançamos na análise
ideia de capilaridade resulta central e será entendida do governo dessa fronteira por uma perspectiva de
como a própria natureza operacional e criativa do gênero. Essa perspectiva foge da narrativa oficial de
Estado/governamentalidade, seguindo as reflexões políticas e agendas de fronteirização, das explica-
de Michel Foucault sobre governamentalidades e ções puramente econômicas e generalizações espe-
o poder como exercício (Foucault, 2004; Lemke, tacularizadas e da concepção apriorística da hibri-
2000), bem como a ideia de “atos performativos” dação e da resistência. É outra forma de entender as
de Judith Butler (1990b, 2015)20. articulações entre gênero e o governo da fronteira,
Esse conjunto de referências teóricas permi- ou seja, debruçando-se nas suas relações cotidianas
te assumir a fronteira como um objeto de estudo ordinárias e de intimidade.
etnográfico e antropológico. Optamos conceitual-
mente por focar numa ideia desqualificada de fron-
teira como processo (Grimson, 2003), dinâmica De volta ao começo
(Albuquerque, 2010) e relação – essa última num
sentido inspirado por elaborações antropológicas Neste artigo, apresentamos uma rota metodo-
(Strathern, 2014; Viveiros de Castro, 2015). Assim, lógica e analítica para a compreensão da fronteira e
colocamos a fronteira – aquele “cu do mundo”, suas formas de governo, pela perspectiva de gênero,
como costumam afirmar agentes estatais de fron- influenciada por correntes teóricas da antropologia,
teirização – no “centro do mundo”, como processo dos estudos de gênero e feministas e dos estudos
fortemente corporificado e corporificante, que pre- de fronteira. Esse exercício teve vários propósitos:
cisa ser preenchido de dados, perguntas e observa- (a) avançar na produção de conhecimento especí-
ções. Nessa lógica, a atenção volta-se às práticas do fico sobre um território multi e transfronteiriço e
cotidiano (“to descent into ordinary” [Das, 2007]), suas formas de governo; (b) argumentar a favor da
às “negociações da intimidade” (Zelizer, 1997), às necessidade de abordagens “from the borderlands”;
práticas em jogo, às agências, às micropolíticas das (c) colocar em discussão a coprodução entre gênero
pessoas que habitam e produzem a fronteira dia a e processos de fronteirização; e (d) apresentar um
dia (Ortner, 1995). modo particular de compreender a existência so-
Metodologicamente, nossa proposta esteve cial, afetiva e corporal do Estado-na-fronteira.
centrada no trabalho etnográfico situado em ter- Partindo da oposição analítica entre formas de
ritórios de fronteira e transfronteiriços, reduzindo governo ordinárias e espetaculares, revisitamos aqui
o extenso campo semântico e metafórico que co- uma trama afetiva triangulada para, nesse contex-
mumente conecta estudos de fronteiras. Seguindo a to etnográfico, enfatizar alguns aspectos que con-
inspiração de autores como Michael Taussig (1986) sideramos importantes. Com isso, propomos uma
e Veena Das (2007), os dados etnográficos vêm compreensão das relações entre gênero e fronteira
sendo “reconfigurados”, no sentido proposto por como dinâmicas, inter-relacionadas, multidimen-
Paul Ricoeur (1994) na sua análise sobre memó- sionais e micropolíticas. Nosso argumento princi-
ria, tempo, história e narrativa. As descrições assim pal defende que os processos de fronteirização são
construídas traduzem, também na forma textual, altamente definidos por regimes de normatividades
a mudança de perspectiva e de escala, permitindo de gênero que atualizam, naqueles territórios trans-
iluminar outros aspectos, agenciamentos, relações fronteiriços, determinadas lógicas de gênero inter-
e, claro, outras fronteiras, como as que nos sugerem seccionado à etnia, nação, procedência regional e
a imersão na trama entre Socorro, Cauã e Flor. posição socioeconômica.
Nesse excerto narrativo, vimos os agencia- Essa imersão no cotidiano contrasta com o
mentos de gênero sendo produzidos, as relações de agenciamento estatal espetacular, perspectivado na
12  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 34 N° 101

segunda parte do artigo. Aqui, empregamos espeta- às formas linguísticas provenientes do trabalho de
cular no mesmo sentido de grandioso, ostentoso e campo, entre outros. Essa atenção implicou uma
não como sinônimo de extraordinário, posto que escrita mais literária, não no sentido das formas
intensivamente presente no dia a dia daquela fron- poéticas, mas do cuidado narratológico e, portan-
teira e imiscuído a ele. Assim, e em consonância com to, como nos lembra Ricoeur (1994), demanda um
Flávia Melo (2018), compreendemos que o governo tipo de cumplicidade por parte dos leitores, capaz
espetacular diz respeito tanto à performatividade das de completar o processo de “reconfiguração” da
operações militares de combate ao tráfico de drogas memória, das narrativas e das relações.
ou de pessoas, muito frequentes naquela cidade, Na segunda parte do artigo, apresentamos o
como ao aparato das forças de segurança e defesa na- que pode ser entendido como um ponto de vista
cional materializado em edificações, veículos e arma- sobre “o Estado”, o governo espetacular e hege-
mentos de grande porte, além de centenas de corpos mônico, uma perspectiva fundamentalmente dis-
fardados que por ali circulam diariamente. tanciada, abrangente, atenta a fenômenos macros-
Esse par – governo ordinário e governo espeta- cópicos e a vetores de produção social, cuja base são
cular – guarda estreita relação com as proposições os centros nacionais de poder, as forças masculinas
de Das (2007). Aqui, tratamos justamente de en- de desbravamento, os grandes ciclos econômicos.
fatizar como uma forma de governo ostentoso e Além disso, a narrativa dessa parte está mais con-
opulento – portanto, espetacular – se imiscui a ou- centrada numa perspectiva histórica, que nos per-
tras agências e governamentalidades, é subvertido e mite construir uma imagem mito-conceitual da
reforçado por elas em relações altamente porosas e fronteira, sobre a qual contrapomos tanto transfor-
capilarizadas, tal como observamos. Nesse sentido, mações históricas quanto mudanças ou torções de
aproximamo-nos mais uma vez do modo como Ser- perspectiva. Essa imagem resulta de uma imagina-
je (2005) emprega espetacular referindo-se ao pro- ção política e nacional sobre gênero e as “terras de
jeto nacional, à produção mítica de “a Nação” (pp. ninguém” (Martins, 1997; Nóbrega, 2016), que fez
120-138). Com efeito, nosso movimento consistiu, com que fossem apenas homens populares, rurais
principalmente, em suspender essa perspectiva dis- ou negros (e, em alguns casos, suas mulheres) aque-
tanciada e majoritária que chamamos de “o Estado” les que podiam encarar a ação de ponta da expan-
e indagar etnograficamente pelo que acontece na são agrícola e da defesa nacional. É a imagem mais
vida íntima e cotidiana das fronteiras, suas econo- bruta da “dimensão prerrogativa” do Estado (e da
mias, seus universos relacionais e suas arquiteturas fronteira, e do gênero) como agenciamento mascu-
de poder e de governo. lino (Brown, 2010).
Nesse plano de conexões, acessamos relações As transformações históricas que evidenciamos
como aquelas nas quais Socorro, Cauã e Flor ela- em Tabatinga, a partir dos anos 1980, têm a ver com
boram performativamente posições sociais e de uma expansão da “dimensão liberal” do Estado, com
poder (interseccionalmente imbricadas), que têm uma nova versão dos processos civilizatórios e de
como efeito a produção cotidiana e corporificada expansão da fronteira interna: o humanitarismo, a
da fronteira e de seu governo ordinário que, em assistência social, os direitos humanos, o comércio
Tabatinga, adquire importante densidade social, liberal, as organizações não governamentais. De uma
empírica e actancial. Essa conexão é absolutamente vila militar masculina e suas relações de dominação
produtiva na tarefa inacabada de montar, explicar e colonial e de defesa nacional, passamos, em poucos
compreender esse lugar, essas relações e fronteiras. anos, a uma cidade intensa e complexa, referência
Nela, evidenciamos como a mudança de perspec- comercial de uma região transfronteiriça estendida, e
tiva é favorecida potencialmente pela mudança da com agências ou representantes de praticamente to-
forma do texto. Nesse ir e vir de perspectivas, ve- das as instâncias do Estado em seus diversos âmbitos.
mos uma narrativa cujo foco está atento a detalhes Vemos, então, como se faz necessária uma perspec-
da vida íntima dos agentes, a pequenas diferenças tiva diacrônica e processual, atenta à multiplicidade
e distinções, ao “trabalho do tempo” (Das, 2007), e à transformação, para compreender uma fronteira
O ORDINÁRIO E O ESPETÁCULO NO GOVERNO DA FRONTEIRA  13

como Tabatinga, suas formas de governo e as rela- centralidade do desejo, o erotismo e o prazer sexual
ções que gesta. na etnologia indígena; e o poder ameaçador da se-
Nesse cenário, as relações de gênero são produ- xualidade feminina indígena, consultar, por exemplo,
zidas em outros termos e as mulheres ganham espa- Belaunde (2015).
ços de poder e protagonismo em diversos âmbitos 4 Magalhães (2015) propõe análise original sobre in-
de governamentalidade e de comércio. Porém, isso vejas, traições e feitiços entre mulheres Ticuna. Ex-
perimenta caminhos interpretativos que, noutros
não implica necessariamente uma mudança na pers-
contextos, inspiram novos enquadramentos para
pectiva política sobre as fronteiras (frontiers and bor- compreender as acusações de feitiço entre mulheres.
derlands) ou na perspectiva analítica. Nessa lógica, a
5 Importante aspecto concerne às diferentes concepções
mulher – e, particularmente, a índia –, como sujeito
de mestiçagem e indianidade no Brasil, Peru e Co-
de ação ou como cristalização discursiva, ocupa um lômbia. Sobre as categorias legais de indianidade no
lugar central na tensão mítica entre civilização e bar- Brasil e Peru, ver Reis e Ramos (2018), e na Colôm-
bárie. Como parte do mito fundador das ações de bia, Gros (2010).
fronteirização, essa posição é visível desde os antigos 6 Decreto-Lei federal nº 314/1968 e Lei federal nº
textos de Domingo Faustino Sarmiento (2010) sobre 5.449/1968.
a frontier argentina. Mulheres nativas (“civilizadas”), 7 As Forças Armadas Brasileiras permitiram o ingresso
mulheres indígenas vinculadas às igrejas ou ao Esta- de mulheres apenas na década de 1990. Contudo, o
do, mulheres “estrangeiras” engajadas em processos serviço militar obrigatório é exclusivo aos homens.
de atualização da necessidade nacional de controlar, 8 Ver os trabalhos de Alvarez (1995), Hannerz (1997),
vigiar e domesticar a fronteira. Donnan e Wilson (1999), Faulhaber (2001), García
Nessa narrativa da perspectiva do Estado, mu- (2003), Albuquerque (2010), Iossifova (2013), Car-
lheres aparecem com responsabilidade crescente so- din e Colognese (2014) e Olivar (2015).
bre a dimensão humanitária do governo (the care, 9 Seguindo a literatura brasileira sobre “frentes de ex-
estruturalmente subordinado ao império da lei), pansão” (Martins, 1997) ou a meta-análise de Fau-
como agentes ativas demandantes de mais prote- lhaber (2001) e Galetti (2012), entendemos que as
ções e defesas masculinas, e, discursivamente – a análises de Serje resultam perfeitamente úteis para o
Mulher, principalmente indígena e jovem –, como Brasil.
vítima vulnerável requerente de maior tutela ou de 10 As comunidades Umariaçu I e II encontram-se na Ter-
mais “empoderamento”. Nessa configuração, a ne- ra Indígena Tukuna Umariaçu, demarcada em 1998
cessidade de “integração” ao projeto liberal e desen- e localizada no município de Tabatinga; tem 5 mil
hectares de extensão e população estimada em 7.219
volvimentista nacional e a necessidade de “defesa”
habitantes. Fonte: <https://terrasindigenas.org.br/es/
das ameaças estrangeiras se sobrepõem e tomam
terras-indigenas/3888>; acesso em: 19 ago. 2019.
forma e força afetiva nos corpos das mulheres.
11 “A faixa de fronteira do Brasil com os países vizi-
nhos foi estabelecida em 150 km de largura (Lei nº
6.634/1979), paralela à linha divisória terrestre do
Notas território nacional” (Machado et al., 2005, p. 51).
12 O Programa de Promoção do Desenvolvimento da
1 Essa narrativa foi construída no percurso de 2016 e
Faixa de Fronteira estabeleceu como “arco norte” o
tem sido (re)trabalhada, ampliada e aprofundada pe-
território de “faixa de fronteira” dos estados do Ama-
los autores em apresentações orais, palestras e outros
pá, Pará, Roraima, Amazonas e Acre, na Amazônia
textos publicados (Olivar, Melo da Cunha e Rosa
Legal brasileira (Brasil, 2009, p. 34).
2015; Olivar e Melo da Cunha, 2017).
13 Na Política Nacional de Desenvolvimento Regional
2 O Acordo de Residência do Mercosul (promulgado
(Brasil, 2007), a mesorregião é um “espaço subnacio-
pelo Decreto nº 6.975/2009) facilitou a migração
nal contínuo, com identidade comum e compreende
entre os países do Mercosul, Bolívia e Chile. Peru e
áreas de um ou mais Estados, definido para identifi-
Colômbia assinaram o acordo no mesmo ano.
cação de potencialidades e vulnerabilidades que nor-
3 Sobre a desqualificação da história sexual indígena; a teiem a formulação de políticas”.
14  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 34 N° 101

14 A esse respeito, consultar Giovanella et al. (2007) so- derlands”. Annual Review of Anthropology, 24:
bre políticas de saúde na fronteira do Arco Sul, decor- 447-470.
rentes da ampliação de acordos no Mercosul. ANZALDÚA, Gloria. (2012), Borderlands/la fron-
15 Política de transferência condicionada de renda, des- tera: the new mestiza. San Francisco, Aunt Lute
tinada a famílias em situação de pobreza, similar a Books.
outras desenvolvidas na maioria dos países latino-a- APONTE MOTTA, Jorge. (2011), Leticia y Taba-
mericanos e caribenhos (OIT, 2014).
tinga: transformación de un espacio urbano en la
16 As políticas de enfrentamento à violência contra mu- Amazonia. Tesis de maestría, Leticia, Universi-
lheres estavam vinculadas à extinta Secretaria de Polí-
dad Nacional de Colombia.
ticas para Mulheres da Presidência da República.
BECKER, Bertha. (2005), “Geopolítica da Ama-
17 Assassinato de mulheres motivado pelo gênero. Acres- zônia”. Estudos Avançados, 19 (53): 71-86.
centado ao Código Penal Brasileiro pela Lei federal nº
BELAUNDE, Luisa Elvira. (2015), “O estudo da
13104, de 9 de março de 2015.
sexualidade na etnologia”, Cadernos de Campo,
18 Sobre uma lógica de feminismos carcerários e seu en-
24 (24): 399-411.
contro com as políticas humanitaristas no terreno do
BERNSTEIN, Elizabeth. (2010), “Militarized hu-
tráfico internacional de pessoas, ver Bernstein (2010).
manitarism meets carceral feminism: the poli-
19 Para essa abordagem, a noção de “transfronteiriço”
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O ORDINÁRIO E O ESPETÁCULO THE ORDINARY AND THE LE BANAL ET LE SPECTACLE


NO GOVERNO DA FRONTEIRA: SPECTACLE IN BORDER DANS LE GOVERNEMENT DE LA
NORMATIVIDADES DE GÊNERO GOVERNMENT: GENDER FRONTIÈRE: NORMATIVITÉS DE
EM TABATINGA NORMATIVITY IN TABATINGA GENRE À TABATINGA

Flávia Melo e José Miguel Nieto Olivar Flávia Melo e José Miguel Nieto Olivar Flávia Melo et José Miguel Nieto Olivar

Palavras-chave: Antropologia; Estado; Keywords: Anthropology; State; Gov- Mots-clés: Anthropologie; État; Gouver-
Governamentalidade; Amazônia. ernmentality; Amazon nementalité; Amazonie.

Este trabalho advém de experiência et- This paper arises from ethnographic ex- Ce travail provient d’une expérience eth-
nográfica na cidade de Tabatinga (AM), perience in the city of Tabatinga (AM), nographique dans la ville de Tabatinga
tríplice fronteira de Brasil, Peru e Co- place of the triple border of Brazil, Peru (AM), dans la triple frontière entre le
lômbia. Interessa-nos compreender como and Colombia. We concern ourselves Brésil, le Pérou et la Colombie. Nous
“o Estado” e “a fronteira” se emaranham, with comprehending the entanglement nous sommes intéressés à comprendre
são construídos e apropriados por redes between “State” and “border”, how they comment « l’État » et « la frontière » s’en-
locais afetivas, econômicas, sexuais e fa- are constructed and appropriated by lo- chevêtrent, sont construits et appropriés
miliares, levando em consideração uma cal emotional, economic, sexual and fa- par des réseaux locaux affectifs, écono-
perspectiva teórica de gênero. A partir da miliar networks, standing from the per- miques, sexuels et familiaux, en tenant
trama de afetos de uma tríade de perso- spective of gender theory. Starting from compte d’une perspective théorique du
nagens que colocam em cena uma forma the web of affections of three characters genre. A partir de l’intrigue d’affections
ordinária de governo, propomos uma who put in place an ordinary form of d’une triade de personnages qui mettent
análise diacrônica de governamentalida- government, we offer a diachronic analy- en scène une forme banale de gouver-
des masculinas espetaculares, que atua- sis of spectacular male governmentalities, nement, nous proposons une analyse
lizam certo mito-conceito de fronteira. which updates a specific myth-concept of diachronique des gouvernementalités
Esse caminho nos conduz à análise da border. This path takes us to the analysis masculines spectaculaires, qui mettent à
ampliação da participação das mulheres, of the widening of women’s participa- jour un certain mythe-concept de fron-
e da vida social de políticas públicas que tion and of the social life of public poli- tière. Cette voie nous conduit à l’analyse
mobilizam a categoria mulher, situacio- cies that mobilize the category “woman”, de l’expansion de la participation des
nalmente associada à região fronteiriça. situationally associated with the border femmes et de la vie sociale des politiques
Por fim, rumamos a uma reconceitualiza- region. At last, we move towards a re- publiques qui mobilisent la catégorie
ção de fronteira por uma perspectiva rela- conceptualization of border through a des femmes et est associée, du point de
cional e processual, na qual gênero, como relational and processual perspective, in vue situationnel, à la région frontalière.
elaboração performativa e interseccional, which gender, as an intersectional and En conclusion, nous proposons une re-
tem lugar central. performative construct, has a central conceptualisation de la frontière d’un
place. point de vue relationnel et procédural,
dans laquelle le genre, comme l’élabo-
ration performative et intersectionnelle,
occupe une place centrale.

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