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SEIS VIDAS SAÍDAS DO TEMPO

Vitorino de Sousa
1995/2001
Na origem e na finalidade de toda uma vida, bem assim como durante o seu des-
envolvimento, existe o EU SOU transcendente. Em cada coisa, por detrás e acima
de tudo o que existe, o ser humano pressente o Grande EU SOU, a serena presença
do SER divino, do qual provém toda a vida, e para onde a vida retorna. Por esse
Grande EU SOU, deve compreender-se o Espírito Universal, cuja força criativa
confere aos seres e às coisas a sua forma, e aos seres humanos a consciência.

Karlfied Graf Durckheim


Agradeço ao Universo a que pertenço o facto de este texto ter atingido a forma de livro. Evoluin-
do nesse mesmo Universo também se encontram:

• Janete Mendes, que cedeu os nomes Nark e Und (do seu passado ancestral) aos personagens
da primeira narrativa;
• Mónica Annarumma, que cedeu o seu apelido à protagonista do último conto;
• Antónia Rufino, Nair Alexandra e Maria Júlia Nunes e Mónica David que criticaram e reviram as
diversas versões deste texto;
• André Almeida, que me proporcionou conhecer os editores (Lucília Almeida e ?????).

Para todos, a minha profunda gratidão.


PREFÁCIO
Ao longo da leitura das páginas deste livro, o leitor jamais encontrará a palavra «não»*
A razão dessa ausência baseia-se no facto de ter pretendido dar uma singela contribuição ao encerra-
mento de um longo período de negativdade e proibição, na História da Humanidade.
Como o século XXI decerto será tonificado pela Fraternidade, conviria que, desde já, começássemos a
reorientar o nosso comportamento, interno e externo, nessa direcção, pois a fraternidade é uma condição
essencial para sentirmos a Paz à nossa volta e para salvarmos a Terra. Outra condição básica é recuperar o
reconhecimento da Lei que ensina serem os humanos entidades espirituais em evolução, que descem a
este planeta para se autoconhecerem, ou seja, para evoluírem até reconhecerem a sua verdadeira nature-
za e, consequentemente, se reintegrarem na Luz.
Estamos aqui, agora, já cá estivemos antes e... decerto voltaremos a estar, pois cada um de nós é a
soma das muitas vivências que foi cumprindo ao longo do Rio do Tempo.

Será que os protagonistas das narrativas deste livro terão sido algumas das personalidades que vivi ao
longo das minhas encarnações anteriores?
Bom, uma delas, é de certeza, pois assino-a com o meu nome actual. E as outras?

Seja como for, realidade ou ficção, a personagem central deste livro é uma alma – sempre a mesma!
Expressando-se quatro vezes como homem e duas vezes como mulher, dirige-se ao seu Guia particular no
intuito de estabelecer contacto. A esperança dela é que Ele lhe dispense algumas vertentes da Grande
Verdade, que ela acha serem fundamentais para a sua evolução.

Confessemos, desde já, que nem sempre é bem sucedida. Mas isso pouco importa, porque interessa é
a intenção do contacto e, sobretudo, aquilo a que se aspira!

* - Esta regra foi violada apenas uma vez. Desafio o leitor a descobrir em que ponto do texto isso
acontece; nesse momento, perceberá a excepção.
NARK
Século XI a.C.
1 – Em nome do Pai...
Sou eu, Nark, quem agora te invoca, Senhor, porque estou imensamente perturbada.
Reconheço que, se fosse capaz de, facilmente, me recolher ao meu centro interior e aí ficar em equi-
líbrio, deixaria de te invocar em busca de ajuda. Se já estivesse mais perto da Luz, ter-te-ia como fonte
inspiradora e em vez de fonte de auxílio. Mas como ainda estou longe desse estado de elevação, peço-te
que compreendas esta minha insuficiência.

Senhor, tu sabes bem quanto eu gostaria de ser a transmissora da tua divina harmonia, de levar a paz
e a calma às almas perturbadas dos nossos irmãos. O desgosto, porém, é grande.
Poderás pensar que esta perturbação que, agora, muito me apoquenta, se deve ao facto de a terra da
Atlântida ter recomeçado a tremer. A razão, porém, é outra.
É certo que o ar está demasiadamente calmo e pesado, que o céu apresenta aquele cinzento baço que
o chumbo tem, que os oráculos se mostram muito pouco animadores, limitando-se a confirmar as profecias
há muito feitas. Se bem que tais profecias estejam longe de ser tranquilizadoras, já todos nós, atlantes,
nos habituámos a viver com elas. Tu, Senhor, junto com os teus pares e os outros membros da Hierarquia,
lá saberão se merecemos a concretização delas, ou se é tempo de ocorrerem, independentemente de as
merecermos...

Por estranho que possa parecer, este desassossego aflitivo que me enche a alma de inquietação, pou-
co tem que ver com a tragédia que se aproxima. E, se queres saber a verdade, Senhor, o meu descontrolo
emocional é tão grande que consegue sobrepor-se ao mal-estar gerado pela situação que se vive aqui.
O meu constrangimento decorre de uma tragédia ocorrida na minha vida particular, pois um amigo
muito querido precisou de ajuda e eu fui incapaz de lha dar! Receio, até, ter concorrido para o seu fim.
Esta perda irreparável talvez seja o prenúncio de outras, maiores, pelas quais teremos de passar, eu e
todos os outros atlantes. Já tenho, contudo, o coração suficientemente adaptado ao sofrimento.
Será isso uma protecção? Logo o saberei, quando suportar essa grande prova que todas as profecias
asseguram vir a caminho.
Na verdade, Senhor, perdi a Serenidade, tão duramente conquistada, e acolhi o Sofrimento. Mas, por-
que o tempo urge – a catástrofe que nos destruirá pode chegar a qualquer momento - gostaria de te con-
tar, resumidamente, a história do que se passou.

Como sabes, ao longo dos anos tenho-me dedicado, apaixonadamente, às artes da cura, na esperança
de aliviar, um pouco que seja, o sofrimento de quem vive a dor profundamente. Em consequência desta
dedicação quase obsessiva, pouco tempo e disponibilidade me têm sobrado para lidar com os homens en-
quanto criaturas do sexo complementar. Porém, há cerca de um ano atrás, o destino fez com que Und
irrompesse na minha vida. A cor dos meus dias passou, então, a ser diferente.
Muitas vezes o vira passar, com a sua túnica azul de membro do Conselho Supremo, mas jamais me
apeteceu dirigir-lhe a palavra. Era frequente cruzarmo-nos na praça desta cidadela, junto ao santuário, ou
na ponte sobre o canal que liga este círculo à cidade exterior. Mas sempre me limitei a cumprimentá-lo
com um respeitoso aceno de cabeça - aquele gesto que todos os cidadãos devem dispensar a um alto dig-
nitário do Conselho. Conhecia o seu trabalho como dirigente atlante, mas nunca senti interesse em conhe-
cê-lo pessoalmente. Faltava a empatia, creio.
A situação começou a alterar-se quando Und, inesperadamente, por ocasião do meu aniversário, me
enviou um pequeno texto. Ainda estou para saber o que o terá levado a dar-me esse presente, como terá
sabido a data do meu nascimento, bem como o meu endereço. Esse texto dizia assim:

Und é o poeteiro da sem-ternura, o capataz das palavras exiladas.


Ressalva o ardor no pé da folha, borra os escritos com chavões,
embarca na Poesia aos encontrões e, mesmo assim, fica orgulhoso e espavorido.
Und é um fraco fazedor de imagens baças e aprendiz de condutor do seu talento.
Depois, quando olha através dos seus olhos embaciados, só vê, nos outros, indulgência.
Espreitador da vida, incompleto, é mestre-entalhador da impaciência.

Desconhecia que Und fosse sensível a este ponto. O poema impressionou-me pela fragilidade insinua-
da, a qual contrariava a imagem de poder e segurança inerente ao seu cargo político. Como o seu gesto
tocou o fundo do meu coração, resolvi corresponder à sua gentileza. Nesse mesmo dia, sentada na varanda
sobre o mar, escrevi o seguinte, aproveitando a serenidade do fim de tarde:
Nark foi à serra para cantar a Natureza.
Sentou-se sob uma árvore, mas acabou por adormecer.
Então, vieram as formigas e comeram-na, porque desconheciam quem ela era.
E, enquanto levavam os restos para o formigueiro,
a cigarra foi para casa, a correr, compor uma marcha fúnebre.
Então, porque as formigas se arrependeram,
o Tempo recuou e a Primavera pôde prosseguir como devia.

Este texto foi enviado a Und logo no dia seguinte. A partir daí, naturalmente, comecei a olhá-lo com
outros olhos. O poema que recebera tivera o condão de me identificar com o seu autor; se eu fosse poeta,
gostaria de tê-lo assinado. Porém, limito-me a ser uma criatura sensível que escreve para desabafar.

A partir de então, a indiferença que sentia por Und - reconheço agora que se tratava tão-só de medo -
foi desaparecendo aos poucos para dar lugar a uma crescente curiosidade. O fruto desse despertar foi uma
sólida amizade embora, nas primeiras semanas de descobrimento mútuo, nada fora definitivo ou clarifica-
do. Surpresa? Admiração? Compreensão? Talvez sim, talvez nada disso; se calhar, outras coisas.
Com naturalidade, passei a considerar-me amiga dele. E, ao ponderar na forma como a relação ia
evoluindo, estou em crer que, com Und, se passava o mesmo.

Um aspecto curioso foi que, apesar de nos vermos com frequência, a nossa relação sempre se baseou
na troca de informações por escrito. Quando, finalmente, a confiança mútua se instalou, fiquei a conhe-
cer, em profundidade, o potencial criativo daquele novo amigo.
Fiquei espantada, confesso, perante tamanha sensibilidade. E só então percebi que era por expor essa
sensibilidade nas reuniões de Estado que Und sempre fora, e continuava a ser, muito contestado no Conse-
lho Supremo.
Com esta atitude, demarcava-se, é claro, do cinismo dos seus pares!

Com o tempo, Und passou a demonstrar apreço pelas minhas opiniões literárias e chegou, até, a con-
siderar os meus conselhos. Sermos amigos desta forma era imensamente agradável. Pela minha parte,
todavia, jamais me deixei tomar pela vaidade. A nossa amizade crescia em terreno fértil, porque Und era
terrivelmente verdadeiro!
Os encontros e as confidências aconteciam quase diariamente, apesar de, para se encontrar comigo,
ele ter de atravessar a ponte sobre os vários canais e os círculos murados, até atingir a cidade exterior,
onde moro. É claro que, por vezes, era eu quem atravessava essa extensa ponte para ir ao seu encontro.
Apesar disso, continuámos a trocar inúmeras cartas e recados, escritos esses que testemunham perfeita-
mente a evolução que a nossa amizade foi registando.
Todos esses temas, poderiam, é claro, ser debatidos durante os nossos encontros, mas, ao adoptarmos
um sistema de troca de informações por correspondência, a relação acabava por ter outro sabor.

De facto, até os mensageiros se admiravam. Um deles, certo dia, deu-me uma reconfortante sensação
de prazer e felicidade, ao confessar-me que ainda estava para conhecer outro casal que demonstrasse
tanto empenho em corresponder-se!
Presentemente, porém, ao ter de viver a ausência de Und, sinto apenas abatimento e tristeza. Perce-
bo, agora, como é triste uma mulher dispor apenas da sua própria companhia. Mas deixemos isso!

A partir de certa altura, comecei a desinteressar-me pelas minhas tarefas e obrigações.


Tu sabes, Senhor, que lidar permanentemente com o sofrimento alheio pode causar um cansaço es-
tranho, uma saturação que nos põe apreensivos. Reconheço que, nesse tempo, a minha atenção estava
concentrada em Und, mas também é verdade que nunca permiti que esse estado de espírito afectasse a
minha opção profissional pelas artes da cura. Nesse aspecto, continuava, e continuo, segura. Durante essa
fase, todavia, só me apetecia abrir a válvula de escape e verter sobre o papel, fosse o que fosse.
Como é evidente, apenas procurava algum alívio para as cargas que tinha vindo a acumular.

Quando esses desabafos eram minimamente apresentáveis ou inteligíveis, enviava-os a Und; ele que
os destruísse, se assim o entendesse. Em vez disso, porém, o seu instinto de coleccionador (outra caracte-
rística que lhe desconhecia), levou-o a guardar, por ordem cronológica, a totalidade desses documentos.
Agrada-me que ele tenha organizado toda essa informação, pois, além de ser um bálsamo contra a nature-
za insegura dos tempos que vão correndo, também me ajuda a ultrapassar as saudades imensas que tenho
sentido.

Devo confessar que, por vezes, cheguei a ter medo que, ao ler esses desabafos, Und os achasse des-
conexos ou despropositados. No entanto, embora esse medo me rilhasse a autoconfiança, acreditava que,
ainda assim, ele continuaria a estimar-me. Realmente, eu limitava-me a mostrar-me tal como era; expu-
nha-me, mas nunca me inibi de escrever-lhe.
Und, porém, como levava tudo demasiado a sério, jamais desculpou a minha tendência para escrever
textos que pareciam rascunhos de redacções. Sempre que me chamava a atenção, eu sempre lhe respon-
dia que, apesar disso, gostava de escrevê-los.
Eis aqui um desses textos, escrito no dia em que julguei que a minha juventude tinha ficado, irreme-
diavelmente, para trás:

Quando foi que se acabou essa cor, tão linda e perfumada?


Dantes, o Tempo considerava-me e, só por isso, os meus olhos olhavam a direito.
Apetecia-me sorrir ao mar quando as ondas rebentavam a rir;
queria que tudo fosse, apenas, bonito.
Só pureza recendia desta boca... até quando,
tremendo de vergonha como chamas débeis,
dois precisados lábios se sobrepunham aos meus.
Agora, é outro tempo.
A fronte está dura e as mãos sustentam recordações de fogos agrestes e pesos.

À guisa de resposta, Und enviou-me um pequeno manuscrito onde criticava o texto recebido, dizendo
que aquilo suava infantilidade! Mas, como se quisesse fazer uma espécie de contraponto ao meu poema,
acrescentava o seguinte:

Quando a minha primeira pedra foi lançada, a inquietação foi decretada.


Cá está! Hei-la, rastejando lentamente, dia a dia... dia a dia, exactamente.

Esta troca de confidências pessoais, de desabafos autodescritivos, denota bem como o relacionamen-
to começou. A partir dessa altura, parecia que nos tínhamos descoberto mutuamente. Daí para a frente, a
amizade começou a solidificar-se.
Nessa época, perante a natureza dos textos trocados - os citados acima são um bom exemplo disso -
percebemos que algo nos ligava, embora vivêssemos em diferentes patamares de desenvolvimento. Éra-
mos duas sensibilidades que o acaso tinha atraído para se apoiarem mutuamente...
Só que o acaso jamais existiu!

Comecei, então, a sentir uma grande predisposição para o entender, mesmo quando toda a gente in-
crementou os ataques à sua maneira de ser. Apeteceu-me absorver aquela espécie de loucura que ele
cultivava. Pensei até em fazê-lo, porque via nele a personificação do meu lado obscuro, aquela vertente
que se evita mostrar. Naturalmente, acabámos por nos afeiçoar.
Todavia, quando estava sozinha, repousando no silêncio da solidão pessoal, era assaltada por dúvidas
e frémitos tremendos. Esse relacionamento atirava-me para um tipo de vivência jamais experimentado e
mostrava, claramente, o fim de um longo período da minha vida, muito marcado pelo retraimento. Daí a
instabilidade que sentia!
Por fim, decorrente da afeição conquistada, desatámos a contar tudo um ao outro!

Pela parte que me toca pessoalmente, era uma situação nova, mas muito agradável.
Apesar de sentir a civilização atlante a desabar no meio de uma gigantesca confusão de equívocos
ameaçadores, parecia-me ter encontrado - finalmente! - alguém capaz de se debruçar objectivamente
sobre uma questão, de a analisar com o necessário distanciamento, e só então arriscar uma conclusão.
Nessa altura, fiz questão de lhe comunicar este contentamento: apreciava, realmente, a lucidez com
que ele era capaz de escalpelizar os problemas, para, de seguida, voltar a elaborá-los à sua maneira.

Com o passar do tempo, e devido ao aumento do ritmo da convivência, percebi que Und conseguira
fazer-me mergulhar na sua forma de ser e estar, a aderir e a absorver a sua filosofia de vida. Uma impará-
vel metamorfose interior ia permitindo que eu passasse a encarar os factos na sua real dimensão. Apesar
das naturais oscilações, era formidável a serenidade que daí advinha.
No entanto, a insegurança persistia. E, quando a exteriorizava, Und sempre reagia, quer por escrito,
quer directamente.
Em resposta a duas linhas rascunhadas, escritas sobre a fragilidade dessa nova emoção...

Aprendi que a errar me vou formando.


Dos primeiros tempos me desfiz, como fonte nova, água velha derramando.

... Und, pegou no tema e respondeu desta forma exemplar:

A água sobrevive através das emoções.


Dela, dizem, o Homem nasceu, sem pânico.
Sendo assim, por que estamos sofrendo na Terra, vogando,
enjoados, em evocações aquosas?

Respondi-lhe denunciando a dificuldade que tivera em entender aquelas linhas. Und, como sempre
acontecia, apressou-se a esclarecer-me deste modo:

Mente-se quando a arrumação de um caos


assenta apenas nas gravações de infância.
Quem, nessa evocação, nunca vença,
faz um rasgão na memória e escreve poesia densa.

Pior a emenda que o soneto, como se costuma dizer!

Porém, a dificuldade de entendimento dos seus poemas levou-me a reflectir se ele teria razão ao su-
gerir que eu estava mergulhada na arrumação do caos juvenil. Cheguei à conclusão que sim.
Ao reler, agora, estes dois textos, reparo que, daquele que escrevi, ressalta um ambiente relativa-
mente dramático e ingénuo. Como negar os laivos de romantismo tardio na citação da fonte e no simbo-
lismo da água? Ao invés, das linhas escritas por Und, ressalta uma filosofia madura, que só pode ser fruto
de uma acerada elaboração mental, aliada a um requintado gosto na escolha dos conceitos e das palavras,
assim como de uma excelente capacidade de condensação.
As diferentes naturezas destes dois textos provam, suficientemente, o que disse atrás quando afirmei
que, apesar de bastante próximos, nos encontrávamos em diferentes graus de desenvolvimento.

Em certos dias, Senhor, dezenas de ideias partilháveis me ocorriam, cogitações que gostaria de ter
discutido com Und; mas ele, por vezes, estava inacessível. Hoje, porém, pergunto-me por que é que, nes-
ses momentos, me esqueci de te invocar, Senhor, para as partilhar contigo? Reconheço que, ao preferir
uma aventura exterior, te releguei para segundo plano. No entanto, se esta opção gerou consequências
desagradáveis... sinto que também me fez crescer imenso. Será assim tão grave este interregno no con-
tacto contigo? Jamais esqueci a tua presença e os teus ensinamentos. Mas, se estou encarnada na Terra,
se estou mergulhada no seu plano denso para conhecer o que se esconde em mim, deverei recusar as ex-
periências que essa condição proporciona? Que posso fazer agora?

Pressinto que resta pouco tempo. A terra continua a agitar o dorso na esperança, certamente, de sa-
cudir para fora dela quem tão mal a tem tratado e servido. Os sacerdotes estão desesperados porque já
nenhum tipo de invocação ou sacrifício consegue aplacar a ira da Grande Mãe...
Que podemos fazer para evitar o desastre?

2 - ...do Filho...
Talvez porque evitei entabular diálogo contigo, a partir de certa altura também foi difícil fazê-lo com
Und. Ou estava ausente, ocupado com as intermináveis sessões do Conselho Supremo ou, se estava dispo-
nível, faltava-me coragem para abordar certos assuntos. A notória falta de autoconfiança - que, ainda
hoje, me desgosta até à agonia - era, então, ainda mais dolorosa, porquanto eu sentia possuir um segundo
nível de consciência. Sempre que atraiçoava o que tinha por fundamental, contrariava a própria natureza
e, como resultado, exteriorizava uma imagem totalmente diferente da verdadeira.

Poderás achar, Senhor, que falo demasiadamente de mim, uma simples mulher desta decadente civi-
lização atlante que, por um curto período, se limitou a trocar amizade com um homem. Mas, repara, tudo
isto que estou a dizer agora é o fruto do convívio com Und. Confessar a influência que ele exerceu sobre
mim é o mesmo que falar sobre o carácter da relação que alimentámos. É isso que interessa, porque foi
muito bonito!

Quando debatíamos as questões em conjunto, quase sempre era Und quem falava mais. Ele gostava de
falar e eu gostava de o ouvir. Percebendo isso, Und folgava em dar largas aos seus devaneios filosóficos.
Então, de repente, o seu entusiasmo crescia. Tal como acontecia no Conselho Supremo, quando criti-
cava a degradação a que a civilização atlante chegara, era difícil fazê-lo parar. Como tinha o hábito de
discorrer com base na sua experiência pessoal, quer alguns conhecidos, quer os membros do Conselho,
acusavam-no de falar muito de si. No fundo, toda essa gente era incapaz de ouvir!
Os conselheiros de Estado - esses sim, fechados num individualismo exclusivista - estavam cegos para
o facto de Und sempre se ter preocupado profundamente com os problemas que afligem e perturbam a
comunidade. Custava-lhes a perceber que ele jamais deixara de ser um homem fundido com o sucesso, o
sossego e o bem-estar dela. Quando Und falava de si, falava do colectivo! Como foi possível àqueles ho-
mens, respeitados pela sua pretensa sabedoria, terem fechado os olhos a tamanha integridade?
De facto, Und era incorruptível e sempre recusou algo que o beneficiasse pessoalmente!

Senhor, é confrangedor verificar que somos dirigidos por homens mesquinhos e ambiciosos, vesgos,
senão míopes. Esta constatação certamente estará relacionada com o facto de as coisas estarem como
estão. Para nós, atlantes, deveria bastar o medo causado pelo facto de a crosta terrestre mostrar tão an-
gustiantes sinais de instabilidade, que põem em risco a sobrevivência. Sim, isso deveria ser suficiente. Por
que acelerar, então, a destruição, minando-nos por dentro, numa altura em que deveríamos unir esforços
e preparar, em paz, o abandono deste planeta?

É muita tristeza e angústia, Senhor! Sei que tudo tem um princípio, um meio e um fim; sei que a mor-
te, tal como o acaso, jamais existiu ou existirá. Mas, tenta compreender que, para a maioria dos que es-
tão encarnados é difícil aceitar o momento de partir deste planeta. É sempre assim, quando se aproxima o
fim. E, de facto, se olhar lá para fora, vejo no horizonte um vulcão em furiosa actividade. As entranhas da
terra sussurram, gravemente, um ronco ameaçador; no mar, as vagas estão a investir e a abocanhar o
litoral. As pessoas correm de um lado para o outro, agitadas pela febre de armazenar mantimentos.
Pobres loucos! É patético verificar o que apoquenta os atlantes neste momento. Apetece-me sorrir com-
passivamente, enquanto fecho os olhos para segurar as lágrimas.

Pela minha parte, tento manter a serenidade perante a catástrofe que se aproxima, e creio que a me-
lhor maneira de ocupar estas últimas horas é estar aqui contigo, Senhor, relembrando Und, aquele homem
que resolveu antecipar a sua partida deste mundo... talvez para que, no outro, possa cuidar dos prepara-
tivos para a chegada do seu Povo.... Sim, em breve partiremos.

Estava eu a dizer que Und era acusado, pelos membros do Conselho e amigos íntimos, de falar muito
de si. Já provei que isso é falso.
As nossas conversas decorriam num clima muito especial, porque a minha profissão de auxiliadora me
ensinou a ouvir. Por isso, posso dizer que Und se baseava no seu traquejo pessoal e na observação do dia a
dia; todavia, jamais recorria às experiências da sua infância e juventude. Que me lembre, nunca o ouvi
referir esse período.
Efectivamente, mostrava bastante reserva nesse ponto, pois sempre calou histórias ou acontecimen-
tos dessa época da sua vida. E o facto de, por vezes, se entusiasmar durante as conversas, nada o distraía
em relação a tal reserva. Dava a impressão de haver uma barreira no tempo, uma zona do passado que
recusava ultrapassar. Pensando nisso, ainda hoje estou convencida de que evitava esse limite para se es-
quivar de revelações comprometedoras, de viagens temporais arriscadas, talvez incómodas, das quais
decerto se arrependeria. A existência dessa barreira inibiu o debate do assunto.

Certo dia, caí na asneira de lhe mostrar manuscritos de poesias antigas...


Devo abrir aqui um parêntesis para relembrar que ele era bastante austero na apreciação dos meus
textos: se tinham má qualidade, explicava a razão por que assim achava; se estavam bem escritos, de
igual modo procedia, chegando, quando era caso disso, a proferir palavras elogiosas. No entanto, quer
num caso, quer noutro, sempre me incitava a continuar, a experimentar, a perseverar, a pesquisar. Sabia,
por experiência própria, que os resultados externos do que fazemos só aparecem depois de porfiado traba-
lho. Mas também defendia ser irrelevante que esses frutos aparecessem externamente, pois os mais pro-
veitosos são os que se alcançam por dentro. Esses, são invioláveis e perenemente resistentes a qualquer
tipo de degradação.

Os tais manuscritos eram poesias marcadas pela ingenuidade da juventude. Hoje, quando as releio,
reparo como deixam transparecer, claramente, até que ponto eu era uma mulher castrada mentalmente,
sem força suficiente para ultrapassar a situação - com a agravante de me aperceber disso!
Parece impossível como, então, me refugiava no misticismo religioso e na devoção aos sacerdotes, as-
sim como nas emoções e no bucolismo. A incompreensão em relação ao sexo era total. É inacreditável
como sofria com os fantasmas da punição inevitável, face aos pensamentos impuros ou às danças pré-
sexuais, as quais imediatamente me incitavam à fuga sempre que alguém se aproximava. É fácil imaginar
de que tipo de textos se tratava.

Und leu esses manuscritos e a resposta chegou rapidamente. Só que, dessa vez, creio ter ido longe
demais na dureza da análise. Chocou-me e surpreendeu-me sobremaneira o seu tom intolerante. Afinal,
aquelas poesias nada mais eram do que curiosidades. Na sua crítica, parecia ralhar-me por ter sido capaz
de escrever tais coisas. Continuo a pensar que deveria ter-se ficado pelas deficiências da forma ou pelas
incorrecções de ritmo, já que, durante a escrita, eu tentara respeitar as regras em vigor. Mas, apesar das
repreensões, encorajava-me a continuar a escrever.

A prova é que, a par da crítica dura e cerrada, sugeriu o aproveitamento daquele material para ilus-
trar um texto onde, à luz da maturidade actual, abordasse os aspectos políticos e sociais atlantes, os
quais, devido à castração mental e à má utilização das energias - prática generalizada durante estas últi-
mas décadas! - me tinham conduzido à escrita de semelhantes disparates. Nesse texto analisaria a estru-
tura de um ser humano que, em determinadas condições educacionais, é levado a escrever tais disparates.
Embora tivesse achado a ideia aproveitável, confesso que ainda estou para lhe dar andamento. Infe-
lizmente, dadas as condições que a Atlântida está a viver, como poderei satisfazer tal sugestão? Neste
momento, Senhor, desconheço, até, se terei tempo para finalizar este contacto contigo!

Defeitos dignos de menção? Conheci alguns, é verdade mas, depois de me ter habituado a eles, depois
de ter conhecido Und a fundo, cheguei a duvidar se realmente eram defeitos ou, tão-somente, uma parte
curiosa da sua rica personalidade.
Por exemplo, criticavam-no por ser autoconvencido. Esta era uma crítica imprópria, porquanto quem
o criticava mostrava-se incapaz de reconhecer a diferença entre autoconvencimento e auto-segurança.
Evidentemente que aquele que é forte e seguro quase sempre parece sobranceiro àquele que é fraco!
Criticavam-no por gostar de ouvir falar de si. Tenho dúvidas que assim fosse. Do que Und gostava, sem
dúvida, era que, construtivamente, lhe dissessem se errara nas decisões que tomara enquanto membro do
Conselho Supremo. Evidentemente, jamais se julgou infalível ou mais sabedor do que os outros Conselhei-
ros. Tinha era mais experiência!
Criticavam-no por precisar de atenção. Bom, ele era um homem suficientemente evoluído e maduro
para saber que a verdadeira atenção tem de vir de dentro. Em várias ocasiões o ouvi defender que um ser
humano só poderá dispensar atenção a quem o rodeia se der permanente atenção a si mesmo. Und valori-
zava, isso sim, o afecto que pudessem sentir por ele. Mas, isso, é uma coisa bem diferente.
Criticavam-no por haver demasiada gente a gravitar à sua volta. Ó Senhor, o que se pode dizer acerca
disto? Quisera ele que o deixassem em paz! Mas as pessoas, tal como as borboletas, são atraídas pela luz.
Que culpa tem a luz que as borboletas se mantenham por perto?

Todas estas acusações provinham, principalmente, dos outros Conselheiros. No entanto, por vezes,
também procediam de alguns amigos... o que é mais grave! Ao fim e ao cabo, perante tamanho carisma,
todos eles acabavam por se sentirem atraídos. Mas, ao colocarem-se na posição de satélites da sua força
atractiva, como poderiam aperceber-se da humildade e da dedicação que suportava a forma de Und estar
no mundo? Se há quem seja capaz de atrair satélites, é porque possui força gravitacional para isso!
Diz-me, Senhor, que culpa tem o Sol de prender a Terra e os outros planetas junto de si, fazendo com
que girem à sua volta?

Nunca concordei, portanto, com estas avaliações.


Julgo ter deixado bem claro que os seus pretensos defeitos pouco ou nada significavam para mim. Ali-
ás, quando começou a usar uma ironia cheia de compreensão, deixei de sentir a irascibilidade e a falta de
paciência que habitualmente demonstrava para com a estupidez.

Fisicamente, sempre me foi difícil fazer avaliações. De qualquer forma, tinha uma boa figura de ho-
mem maduro. Como em quase todos nós, o cabelo era loiro. O seu corpo, magro e esguio, embora de esta-
tura mediana (media apenas 2,10 m), sobressaía magnificamente quando estava coberto pelo belo manto
azul de Conselheiro, cingido na cintura por uma larga faixa de couro, entrançado com esmeraldas.
Movimentava-se calmamente, como se a pressa jamais o afligisse. E, perante estranhos, só começava
a falar quando se sentia à vontade; antes disso, mantinha a reserva e baixava ainda mais o tom da voz, a
qual, por natureza, já era suave. Percebia-se, no entanto, que, por baixo desse tom grave e calmo, se
escondia uma poderosa força. Segundo me constou, nos piores momentos das sessões do Conselho Supre-
mo, quando toda aquela contenção se libertava, surgia uma voz tonitruante e um tom implacável, capaz
de fazer encolher quem estivesse na sala.

A sua força, porém, residia no olhar. Contaram-me que, certo dia, um Conselheiro lhe chamou cão
traidor. Und ficou calado por uns momentos e, escolhendo um timbre quase sussurrado, espetou o olhar no
dito Conselheiro e disparou: «Para que seria eu um cão? Sou, apenas, um homem que ladra aos seus pró-
prios calcanhares de Aquiles, antiquíssimos!»
Ninguém entendeu o que ele quis dizer com aquilo. Desconhece-se quem seja esse Aquiles e por que é
que os calcanhares dele hão-de ser tão célebres, ao ponto de serem citados pelo mais proeminente Conse-
lheiro da Atlântida. Deve tratar-se de algum personagem célebre, mas as nossas lendas e memórias nada
dizem a respeito de tal entidade.
Enfim, parece que o Conselho levou bastante tempo para recuperar da esmagadora reverberação
energética que ficou a zunir dentro da sala!

No que respeita à ideologia, defendia fervorosamente a justiça social, embora fosse um inovador cau-
teloso. Obviamente, tal cautela advinha das responsabilidades inerentes à sua função no Conselho Supre-
mo, lugar onde as transformações têm de ser sugeridas e conduzidas com muito cuidado, sob pena de o
cargo ser posto em causa.
Em relação à religião, era um artista. Poderia ter sido um excelente sacerdote, tal era o seu conheci-
mento. Todavia, tudo fazia para tirar o maior proveito da vida. Conseguiu-o, livrando-se de muita escória
e afastando-se prudentemente dos templos. Assim se recusou a transformar-se numa estátua animada e
desprovida de sentimentos.

A sua busca do novo, do original, era constante. Certa vez, numa conversa tida durante um passeio ao
longo da praia, adverti-o: «Essa procura insaciável acabará por tornar-se velha e, um dia, serás tentado a
parar.»
Und ficou em silêncio meditativo e esperou que a conversa mudasse o rumo. No dia seguinte, porém,
recebi um texto que respondia àquela minha observação:

Repara nas nuvens espessas que parecem tapar a garganta da Fonte!


Vem, Nark, alcemo-nos para lá da grosseria que cobre as coisas densas.
Ultrapassemos estes corpos feitos de peso, para que a sombra deixe de afligir.
Subamos, querida deusa que decerto já foste.
Quando sentirmos a vibração da Voz que reina sobre o misterioso Tecto do Alto,
identificaremos a nascente deste nosso eterno Amor.
Quem O procura sabe que cada passo é sempre o primeiro,
pois incontáveis são os caminhos de um labirinto.

No encontro seguinte, por temer enfrentar as emoções que aquele texto desencadeara em mim, calei
qualquer comentário. Apesar de sentir o coração profundamente tocado, limitei-me a agradecer a lem-
brança...

Toda a gente que conhecia Und sabia que, naturalmente, a política fazia parte da sua vida. Ora, espe-
ra-se que os políticos que sejam pessoas ocupadas com os problemas do quotidiano social. Mas, se respon-
derem a essa expectativa, acaba sempre por lhes restar pouco tempo para que a reflexão se instale e a
introspecção ocorra. De qualquer forma, os políticos - quer os que fazem as coisas, quer os que se ficam
pela intenção de fazer - são pessoas demasiadamente viradas para fora. Ao invés, um poeta é alguém que
está virado para dentro e adere à poesia porque tem de satisfazer um estado de espírito. É natural, por-
tanto, que a população tenha dificuldade em ver associadas estas duas ocupações. Und, porém, praticava-
as simultaneamente. Talvez por isso, talvez por se introspectar, era tão bem sucedido nas suas funções
políticas de Conselheiro, apesar da oposição que lhe faziam.
Quero com isto dizer que Und sempre escreveu poesia e sempre teve assento no Conselho Supremo,
mas só era conhecido através desta última ocupação.

Curiosamente, os seus escritos começaram a ser reconhecidos durante o período da nossa relação. Und
confessava-me, com os olhos a brilhar: «Foste tu quem trouxe a sorte!»
Só então percebi que acertara quando a intuição me sugerira apostar naquele homem. Digo intuição,
porque, se eu carecia de conhecimentos sobre literatura e poesia... conhecia muito bem os atlantes. Por
isso, lhe respondi: «A partir de agora, vai haver um abrandamento das opiniões maledicentes e no ambien-
te hostil que te circunda.»
Ele duvidou. Defendi a minha posição argumentando: «Tu sabes que, quando o reconhecimento públi-
co recai sobre um cidadão, ele passa a ser visto como uma pessoa diferente daquela que já era, antes do
reconhecimento ocorrer. O reconhecimento só altera a vida de uma pessoa quando ela se deixa perturbar
por isso. Se assim for, porém, a sua base de sustentação está podre.»
Und olhou-me com aquele ar matreiro e perguntou: »Achas que a base de sustentação está podre?»
Como havia alguma ironia naquela pergunta, respondi com outra pergunta: «Qual base de sustentação?
A tua... ou a nossa?»
Ele sorriu, e respondeu ternamente: «A nossa, claro!»
Assustei-me e preferi contornar a questão, garantindo que, como era bom de ver, a base de sustenta-
ção dele era bem sólida!...

Em face daquele acordar do público para a criatividade do seu mais destacado Conselheiro, pedi-lhe:
«Por favor, jamais esqueças as fases por que passaste. Evita menosprezar alguém que esteja a viver as
mesmas fases iniciais, onde só existe indiferença.» Falei assim, mas o que eu queria dizer era que me
poupasse à desilusão!
Percebo agora que, quando proferi aquelas palavras, estava a pensar nesta escritora de rascunhos,
estava a recear que Und passasse a repudiar os meus desabafos pouco literários e superficialmente poéti-
cos. Por isso, no dia seguinte, para reforçar a conversa tida, enviei-lhe uma pequena mensagem onde
dizia:

Se nasceste mais dotado que a maioria, aceita e usa esses dons o melhor possível, porque tens mais responsabili-
dades do que os outros.

Expondo a sua modéstia atormentada, Und respondeu assim:

Und é apenas um gémeo de si mesmo,


um capitão de bobos, um fraco domador de deuses.
Enquanto diafragma fechado com a fantasia alçada, é o rei do Alto Ar;
enquanto homem isolado na corte triste dos homens,
é um desajeitado anfitrião de outras dimensões.

Sobre a mesa do jogo,


junto ao artefacto calibrado que, pingando água, cobra o Tempo,
está uma caixa vermelha, almofadada com lixa.
Lá dentro, contorcendo-se e casquinando,
as larvas voluptuosas, viscosas, da Inquietação,
untam a lixa ao coçarem-se nela e pipilam cânticos difíceis de resistir.

Mas, nem as larvas são sereias, nem Und é Ulisses;


sequer há mastros ou cabos por perto!
Este drama caricato só terminará quando deixar de me identificar com a lixa,
ou quando arranjar coragem para essa caixa vermelha deitar ao mar!

Tal como acontecera com Aquiles, de novo me interroguei sobre quem seria aquele Ulisses.
Em vão.

Bom, quando lhe pedi para me poupar à desilusão, poderá parecer que estava a falar apenas do tempo
presente. Essas palavras, contudo, aplicavam-se também ao futuro...
Mas é profundamente triste verificar como foi curto o futuro de Und; é igualmente lamentável reco-
nhecer a evidência de que, também para todos nós, atlantes, o fim se aproxima.
Senhor, imaginas como é assustador estar aqui a contactar contigo, sentindo o chão da Atlântida a
tremer debaixo dos pés? Imaginas como é angustiante saber que esta actividade telúrica, suportável por
agora, rapidamente irá transformar-se naquilo que a todos matará?...
Esta relação foi uma coisa nova, e só raras pessoas serão capazes de entender o que se passou, sem
lhe aplicar um rótulo grosseiro. Como explicar-te a subtileza da energia que nos envolvia quando estáva-
mos juntos? Apesar dessa sintonia, Und sempre pedia: «Por favor, Nark, encara os meus devaneios e capri-
chos com um sorriso adulto nos lábios.»
Invariavelmente, respondia-lhe: «Desde o princípio que assim faço...»
Era difícil entender por que Und pedia desculpa por ser como era!

Senhor, se crês que experimentei os desvarios da Paixão, garanto-te que tudo fiz para os manter afas-
tados das portas do meu coração.
Und pertencia àquele género de indivíduos incapazes de despertar grandes arrebatamentos. Evitei a
paixão, mas gostei dele com um amor, um afecto e um respeito demasiado sólidos para o tempo que de-
correra desde aquela inesperada prenda de aniversário. Realmente, ao considerar os espaços reservados
pelas pessoas que rodeiam, Und passou a ter um lugar cativo. Foi isso que induziu o medo! O meu carinho
por ele era francamente adulto e compreensivo, mas fraquejou quando os complexos vieram à tona. Ao
sentir o meu coração ocupado, comecei a reprimir, a bloquear, a evitar, e logo um comportamento estra-
nho inquinou a minha postura. Imaturamente, comecei a reagir como se algo já tivesse falhado.
Um dia, fruto desse medo, num minuto infeliz, escrevi-lhe o seguinte:
Und, creio que reunimos as condições para gostarmos um do outro, mas a verdade é outra. Apreciamo-nos de
uma forma pouco convencional; melhor, gostamos daquilo que cada um de nós tem de mais disforme. Será isto
uma forma de desprezo? Se fizer um leve esforço, sou capaz de entender a tua loucura, de te apoiar, até. Mas,
se olhar para ti através do prisma virado contra a luz, tornas-te uma pessoa difícil de entender, praticante de
uma convivência complicada. Por outro lado, sei que és bem diferente. Compreendes isto? Mas, estou muito me-
lhor... No entanto, os teus olhos... os teus olhos...

Portanto, o que era uma promessa, jamais chegou a ser concretizado.


Porém, a referência que fizera à sua loucura deve ter-lhe tocado na corda mais sensível, porque, em
resposta, recebi um texto estranho e insólito. É uma espécie de poesia, escrita numa forma inesperada.
Passei imenso tempo a apreciá-la, porque, quer a forma, quer o conteúdo, contrariavam totalmente o
estilo e o tipo de discurso dos seus escritos anteriores. Para mim, foi uma completa revelação:

ASCENSÃO E VOLVO DO TERCEIRO LOUCO (I)

AS CENtenas de ladrilhos espelhados. Geometrias em losango


SÃO Embutidas num chão suspenso. Um festim típico e trágico,
VOLteado e louco. Vejo fitas, feitas em laços, nas tranças
VO DOnairosas. Há grandes homens nus. Cirros esfarrapados. As
TER CEleradas do prazer varam-se com mil facas, grandes e
IRO LOUC Oleadas. Rindo-se, só os cabos delas ficam por esconder.

ASCENSÃO E VOLVO DO TERCEIRO LOUCO (II)

ASsim se está bem em verde. Os nus acorrem, chamejantes, e


CEN SAturam as línguas no sangue dos ventres avermelhados.
OE VOam as cores. As barbas hirsutas ficam sujas de púbis
LVO DOces, exauridos junto a cascatas roxas e nacos de chão
TERCEI ROlante. É um vórtice de fel. Como tenho medo desta hora e da
LOU COr do sonho, fujo para o fundo de perspectiva afunilada.

ASCENSÃO E VOLVO DO TERCEIRO LOUCO (III)

ASCEN SÃO assim os medos? Só a grande porta, de fundo negro, me


E Viceja nos olhos de raios segados. É assustador o tema vil
OLVO DO salão deste sonho. Que é dos nus? E das doidas? Resta o clarão
T ERguido, que cega. Então, as minhas mãos, ao verem-se entre si,
CEI ROmpem-se numa coisa desvairada de dez dedos a crescer.
LOU COntorcendo-se, fazem casulo, e eu cedo, enrolado de frio.

Por aqui se vê como o estado de espírito de Und se degradou rapidamente.


Prefiro acreditar que os meus medos, que acabaram por anular a receptividade que lhe dispensava,
nada têm a ver com a drástica resolução que tomou. No entanto, quando me lembro da forma como ele
pôs termo à vida, quando recordo o momento em que soube do seu desaparecimento, sinto umas dolorosas
tenazes trilhando-me sob o umbigo.
Tenho lutado, assanhadamente, contra a mente arrepanhada pelos remorsos.

Como te disse no princípio, um ser humano, muito querido, precisou de ajuda e eu fui incapaz de lha
dar. No fundo, receio ter concorrido para a sua perdição... Por isso te chamei, Senhor!
Mas, agora, a catástrofe vai desabar. O chão treme tanto que mal consigo manter-me de pé. O mar
ruge como nunca o ouvi; as ondas e os gritos são cada vez maiores. A julgar pelo pânico, a parte baixa da
cidade já deve ter sido completamente destruída; em breve, o ímpeto do maremoto chegará aqui.
Por que está isto a acontecer, Senhor?

3 - ...e do Espírito Santo.


Infelizmente, tenho que concluir. Resta dizer que, antes de desaparecer, Und me devolveu as cartas,
recados e desabafos que eu lhe fora enviando ao longo do tempo.
Recentemente, vim a saber que destruiu toda a sua produção, excepto as linhas que se seguem. Se
tudo vai ser arrasado, se a Atlântida vai desaparecer, por que razão poupou este texto:
No início, num momento indeterminado - quando ainda ninguém estava em condições de registar quanto da
Serpentina Eterna já se desenrolara e quanto faltava desenrolar - o Ovo Cósmico estava concentrado, guardando
em si as várias vias de desenvolvimento.
Era um vasto leque de opções, tão variado e tão grande como o seu Criador.
Esta entidade, posteriormente plurinomeada pelos homens das Raças que se foram sucedendo, sabia que as
chavetas onde se ordenavam essas opções - e nas quais se inscrevia o modo de começar e desenvolver a Obra - es-
tavam de tal forma concebidas que detinham a capacidade de se anularem entre si.
Por isso, compreensivelmente hesitante, o Supremo foi adiando a decisão, foi protelando até ao limite razo-
ável, o momento de proferir as ordens que devia ordenar a si mesmo.
E estas ordens iam no sentido de se iniciarem todas as coisas.
Aliás, era imperioso decidir-se; era forçoso que, dentro de um lapso de tempo cuja duração só dele depen-
dia, passasse a dispor de mais alguém a quem pudesse dar ordens - ordens essas que, curiosamente, de momento,
Ele estava a ser incapaz de dar a si mesmo.
Se assim fizesse, assim se livraria da estranha situação de estar sozinho!
Quando a decisão, finalmente, ressoou na sua Mente e saiu pela sua Boca Primordial, tufões de luz, bolhas
de vazio e infinitas pressões, intrincadamente criaram uma elaboradíssima renda, uma rede que ainda hoje pa-
rece inverosímil.
O vácuo estremeceu e, explodindo, em alguns pontos deixou de ser o que era.
Inflou-se com a explosão, ficou diferente mas, mesmo assim, continuou a reflectir o Ovo Infinito.
De um vazio denso - todo cheio de partículas redemoinhando e silvando no escuro - se fez a Luz, que logo
encontrou a Treva para defrontar.
O facto de o Tempo ser ainda uma criança, contribuiu para que deuses poderosos chegassem de longe.
Sem disporem, ainda, de chão firme onde poisar, estavam suspensos, mas pulando de contentes, porque sa-
biam que, em breve, o Homem nasceria para ficar ao seu dispor.
Então, poderiam brincar!
Imediatamente trataram de ocupar a recente morada imponderável e, depois de testarem os seus apetre-
chos mágicos, combinaram qual deveria ser o primeiro passo da sua função, a qual, recentemente, nascera sem
causa conhecida.
Então, decidiram transformar-se em entidades omnimoradoras, disfarçar o Amor imanado da Fonte com a
máscara do seu olhar e desdobrá-lo neste canto do Universo; de seguida, deveriam plantar o Homem! Quando
assim fizeram, e porque tinham agido com um propósito muito definido, logo no Homem se insinuaram.
Na verdade, com essa incumbência tinham vindo de onde haviam partido, com esse objectivo se tinham ins-
talado nestas paragens específicas do Infinito.
Assim que o Homem os descobriu, logo os adorou. Em consequência, os deuses passaram a viver iludidos pelo
orgulho de haverem dotado de enigmas o Espaço e o Tempo inteiros.
Estas entidades ainda hoje perduram intactas, porque sabem dar-se aos humanos como espelho; movem-se à
vontade dentro dos nossos registos. E gozam de verdadeira alegria quando nós, feitos tolos, nos iludimos, ao
acreditarmos demasiadamente que eles traçam os nossos fados.
Como foram bem sucedidos, os deuses escusam agora de esconder a sua vergonha do olhar do Uno - o tal
que, dizendo EU SOU O QUE SOU, os ama, sorri sabiamente, os deixa brincar, aceita e condescende.
Assim, o Homem, desde então, vem apodrecendo num silo sem escoamento, porque é o fruto da Inseguran-
ça. Desconfiado e medroso de algo maior do que uma cicatriz chamada umbigo, acabou reduzido a um mero fluxo
vertiginoso, subtil e renovável.
Com o escoar dos séculos, desse som portentoso evocador da Criação já só se ouve um trilo nervoso, res-
soando mui tenuemente; uma potente pressão foi-se acumulando e, agora, só se distingue um perigoso zumbido
de êmbolos, actuando em seco.
Nós, atlantes, do alvor do Homem repatriado temos vindo, em cada Era cumprindo e despachando Raças de
sangues imperfeitos.
Mas, por que evitamos a partida?
Já que nos remetemos para o sonho, numa tentativa de religar, por que receamos a dissipação?
Se é certo que tendemos para a indagação do local onde nasce a fonte da Força que nos segura aqui... tam-
bém é certo que lutamos contra a Luz, tal como os espelhos distorcidos, reflectores de imagens risíveis e carica-
tas.
Somos cegos que já viram, mas esqueceram o que é ver!
Transformámo-nos em adoradores de labirintos vivos; através deles deambulamos, e deambularemos perdi-
dos, até que o bocadinho da Fonte, que em nosso cerne hospedamos, nos revele que o caminho certo através de
um labirinto jamais é a solução que serve aos outros.
Encerrado na enorme retorta, onde se destila e se concentra até à essência volátil, o Homem deveria repen-
sar tudo e olhar-se ainda uma outra vez.

É esta a herança que Und me legou; levo-a na memória.

4 – Ámen.
Adeus, Senhor. Agora, já nada interessa. Em breve estarei aí.
Vês como se eleva, finalmente, a maior e a mais destruidora de todas as ondas?... Perdoa-me se falhei
e obrigado por teres estado aqui neste momento, sempre tão difícil... É o fim d...
CAIUS
Século I d.C.
1 – Em nome do Pai...
- Salve, Caius. Queres vir jogar aos dados?
- Mais tarde, Lívio, mais tarde. A minha centúria foi destacada para crucificar uns ladrõezecos... e
mais aquele tipo que passa a vida a pregar. Raios partam o homem, que só tem trazido perturbação a esta
terra!
- Aquele a quem chamam Jesus?
- Pois, esse! Finalmente vamos pregá-lo na cruz! Já era tempo! A partir de amanhã, vamos ter sosse-
go.
- Que os deuses o permitam, Caius! Bom, se vais pregar na cruz esse cristão... é um dia especial.
- Aparece, que sempre gozamos um bocado.
- É capaz de ser boa ideia... Bom, então, vou indo... Salve, centurião!
- Adeus, Lívio! E que os deuses guiem a tua mão quando atirares os dados!
- Que se lixem os dados! Vou mas é dormir. Preciso de estar fresquinho para a festa.
- Fazes bem! Então, até amanhã.
- Até amanhã.

2 - ...do Filho...
- Por Júpiter! Por que acordo a meio da noite neste desassossego? Por que desperto com estas inespe-
radas vibrações a ressoar nos meus ouvidos?

- Porque a tua consciência te perturba! Na véspera de grandes acontecimentos sempre se desenca-


deiam forças e movimentos purificadores, directamente proporcionais à grandeza deles. Amanhã ocorrerá
um evento fundamental que exige esse tipo de preparação.

- Mas quem és tu, que assim fala? Quem és tu para assegurar que a minha consciência me perturba?
Por que me falas de purificação?

- Eu sou quem tem por função velar por ti, pelo teu crescimento e evolução. Mas a tua conduta gros-
seira tem impedido que te apercebas da minha presença. Enquanto assim continuares, pouco ou nada
poderei fazer.

- Então, por que razão te mostras hoje... a mim que há tantos anos vivo grosseiramente, como dizes,
defendendo com a minha força, coragem e dedicação este Império Romano que reina sobre o mundo civi-
lizado?

- O verdadeiro Império existe para além de Roma, de Atenas, Esparta ou de outra cidade qualquer.
Mas deixemos isso, por agora. Decidi intervir hoje, porque, dentro de algumas horas, vais participar num
acontecimento ímpar que mudará o rumo da Humanidade.

- Referes-te à crucificação daquele desordeiro... como é que ele se chama?

- Terás milénios para saber e entender o Seu nome. Apesar de Ele dizer que veio trazer-vos uma es-
pada – o símbolo dos novos conceitos que vos libertarão -, evita chamar-Lhe desordeiro. Quem perverte a
ordem sois vós, romanos, que vos julgais senhores do mundo civilizado e por civilizar. Nem de vós mesmos
sois senhores, quanto mais das criaturas que pusestes sob o vosso jugo!

- Mas, então, quem é esse homem que, só por ir ser crucificado vai mudar o rumo da Humanidade? Es-
távamos nós bem lixados se cada bandido que crucificamos tivesse o poder de mudar o rumo da história!

- Podes ser ignorante, centurião, mas escusas de o demonstrar!

- Vou deixar passar em claro essa ofensa e peço-te que respondas: Quem é esse homem?
- Limita-se a ser um homem que conhece o que o Homem tem sido, o que é, o que virá a ser. Por isso,
desceu à Terra para transmitir o novo código que vos há-de conduzir, a todos, de retorno à Fonte da qual,
há muito tempo atrás, resolvestes separar-vos. E sabes por que faz Ele esse sacrifício? Porque o ser hu-
mano perdeu-se dentro de si mesmo, criou os seus próprios labirintos e meteu-os uns dentro do outros.
Perdeu a noção das suas origens, o que faz na Terra e para onde vai. Os homens deixam-se conduzir por
outros homens - vê o que se passa no teu tão adorado Império Romano! - os quais, por sua vez, também
desconhecem de onde vieram e para onde vão. São como cegos conduzindo outros cegos! Os seres huma-
nos - tu, centurião Caius! - desconhecem as suas verdadeiras potencialidades, tardam em reconhecer que
acolhem a centelha divina dentro do peito, recusam-se a ver que foram criados à imagem e semelhança
do Pai, e que, perante Ele, todos são iguais, com as mesmas capacidades e possibilidades. Foi isto que
Jesus veio dizer-vos e, por causa disto, vai ser crucificado. Tu, centurião, vais estar presente, vais dar-
lhe uma esponja embebida em vinagre para que mate a sede, vais fiscalizar que os pregos fiquem bem
pregados, que a cruz seja bem erguida e fixada. Tu vais estar lá, Caius. Portanto, aconselho-te a que
olhes bem para Ele e procures ouvir a Mensagem que te traz.

- Ouve lá, ó tu que desconheço quem sejas. Achas que ele, pregado na cruz, vai ter tino suficiente
p'ra dizer seja o que for?

- Da sua boca decerto sairão outras palavras, poucas. O que te aconselho é que, perante a sua agonia,
procures ouvi-lo dentro de ti. E fica sabendo que, se fores incapaz de o ouvir com os teus ouvidos inter-
nos, Ele continuará a falar-te baixinho, como está a fazer neste momento por meu intermédio e como
sempre fez, aliás.

- Estás aí com essa conversa toda, mas seria melhor que estivesses calado. Sabes, por acaso, o que
custa ser crucificado? Duvido que saibas como é difícil ultrapassar a dor. Morrerá incapaz de pronunciar
outra coisa excepto que acabem com ele rapidamente!

- É impossível presenciar a morte seja de quem for, pela simples razão de que tal coisa jamais pode
ocorrer. O que chamas morte é somente uma passagem, uma transição. Dentro de algumas horas, tu e os
teus soldados romanos irão presenciar algo que irão considerar um milagre. Mas fica sabendo que os
milagres - tal como a «morte» - jamais ocorrem. Se algo se apresenta como «milagre», é porque a capaci-
dade de compreensão de quem presencia esse evento é incapaz de identificar as leis em que ele se ba-
seia.

- Tudo isto é muito estranho! Afinal, por que estou eu aqui a dar-te trela, quando poderia estar a
dormir?

- E eu te pergunto: Como consegues dormir? Tiveste tempo para descansar desde que, enquanto Nark,
foste retirado da Atlântida...

- Nark? Atlântida? De que estás tu a falar?

- Uma das tuas encarnações anteriores foi vivida na Terra no período em que a civilização atlante so-
çobrou. Nessa ocasião, assumiste a forma feminina de uma curadora, inocente de coração, a quem, nos
últimos meses que antecederam a catástrofe, foi dada a ventura de contactar com o poder do Amor hu-
mano. Mas tiveste medo!

- Essa agora! Tu és muito engraçado! Sejas lá quem fores, tens uma imaginação muito fértil. Começo
a gostar de ti por causa disso. Mas deixa-te de tretas e diz lá por que estou eu a falar contigo, em vez de
dormir?

- Estás aqui a falar comigo porque eu pretendo que te transformes num discípulo. Mas os discípulos
de que preciso devem ser flexíveis e criativos; devem alegrar-se quando o vento do Mestre os fustiga,
lavando as suas impurezas, apagando o eco das suas faltas; devem ser belos como o Sol que nasce dentro
de cada um. Os discípulos de que preciso nada devem temer, porque a inocência da entrega assegura a
protecção. Eles devem ser tudo o que for preciso ser para que a Luz cresça no mundo; O seu coração deve
ser capaz de ler a história do que têm a fazer; devem ser finos e subtis, artistas da Luz, curadores espiri-
tuais das mazelas da Humanidade. É isso que eu quero de ti; nada mais.

- Mas, por Júpiter!, eu sou um centurião! Como posso ser discípulo lá dessa coisa de que falas? Ouve
uma coisa: eu já sou um discípulo - e graduado! - do exército romano, o qual sirvo e quero continuar a
servir. Para mim, chega e sobra!
- As perguntas que deves fazer são: Quem sou? Para onde vou? Qual o caminho que devo percorrer?...
Estas são as questões que precisas encarar de frente. Quanto às respostas, há muito estão impressas no
teu espírito. Ousa ouvir, assumir e precipitar essas respostas.

- E eu sei lá como é que isso se faz! É difícil apreender o que pretendes. Repara bem, ó voz estranha,
eu já sei muito bem quem sou: sou um centurião romano, chamado Caius, que tem o corpo coberto de
cicatrizes das batalhas em que participei e venci, para glória do Imperador. Também sei para onde vou:
vou a caminho da idade madura, percorrendo a via do serviço militar a que me dediquei, porque gosto de
estar integrado numa hierarquia bem estruturada, porque gosto da ordem e da disciplina, do ambiente das
tendas de campanha e das casernas, da gritaria dos campos de batalha, do rufar dos tambores e do sangue
a escorrer. E julgas que desconheço o caminho que devo percorrer? Sei perfeitamente que devo percorrer
o caminho da entrega às armas, que devo cumprir com as obrigações que o regulamento me impõe... e -
desculpa lá a franqueza – neste momento devo cumprir com a obrigação de voltar a adormecer, senão
amanhã estarei rabugento e incapaz de desfrutar o «milagre» que vai mudar o rumo da história da Huma-
nidade!

- Muito bem. Mas, antes de te deixar com as tuas ironias e sarcasmos, quero dizer-te que o exército
que deves servir é o Exército da Luz, aquele onde todos são graduados (como gostas que te reconheçam!),
porque conhecem o propósito e o método da afirmação da Luz - aquele onde todos são auto-suficientes e
livres, sem regulamentos limitadores, pois recebem o seu sustento da Fonte de Vida. Neste Exército de
que agora te falo, a estratégia é a da iluminação, em vez da aniquilação física, já que, em face da Luz da
Verdade, as ilusões e as mentiras são forçadas a cair. De facto, perante a expansão da consciência amoro-
sa - lembras-te lá tu do que isso seja, ó ex-Nark! - todos os preconceitos e contracções mentais se aniqui-
lam. E, se a tua entrega for total, até mesmo o desejo de pertencer ao Exército da Luz acabará por cair...
para que o Pai triunfe!

- Adeus, Caius. Bendito sejas tu. Torna-te cristalino para que a Verdade possa ressoar em ti.

3 - ... e do Espírito Santo.


- Aqui estou eu outra vez, deitado neste catre, sem poder dormir. Há três dias que ando nisto, sem
conseguir perceber o que é que se passa. Já estou farto de te invocar, mas... Por que teimas em esconder
a tua presença, ó voz estranha?... Vivo há três dias sem receber qualquer sinal de vida da tua parte...
embora me pareça que só de Vida podes dar sinal!... Assim, por que raio me deixas neste isolamento,
nesta angústia, neste vazio...

- É para que te descubras, Caius!

- Ah! Finalmente!

- Finalmente, digo eu! Finalmente, começaste a olhar para dentro!... Vejo que algo mudou em ti. Só
agora me fiz presente na tua consciência, porque precisavas de tempo para digerir a experiência que
viveste. Eu sei o que se passou, Caius. Como poderia eu deixar de presenciar o inacreditável espectáculo
que vocês montaram? Mas, agora, que já te perdeste o suficiente, quero ouvir a tua versão do que se
passou.

- Passou-se que me senti muito mal, muito mal. Aliás, desde a crucificação daquele... sabes?... enfim,
desde a morte dele me sinto muito mal.

- Já te disse que Ele continua vivo!

- Custa-me a entender como isso possa ser possível, mas, enfim... se tu o dizes...

- Digo, porque apenas posso falar a verdade. A verdade é a lei que emana da Fonte. E já que vais
transformar-te num arauto dessa lei, tens de aprender a reconhecer a sua actuação em ti mesmo. Olha
bem para ti, Caius. Há dias disse-te que já viveste neste planeta, que te chamaste Nark, que foste curado-
ra e que o teu coração cedeu ao amor pouco tempo antes de abandonares o corpo de que a tua alma se
serviu para expressar, na Terra, o Espírito que a anima. Quando te disse isto achaste-me «engraçado»,
com propensão para fantasiar. Lembras-te? Mas a verdade é essa, assim como é verdade que, um dia,
novamente irás largar esse lastro físico, que agora mal consegue descansar e se reconhece como centu-
rião. No futuro, virás a ser o que escolheres e, depois dessa experiência, farás outras, tantas quantas
forem necessárias até te purificares dessa amnésia que te vitima.

- Muito bem. Admitamos então que ele continua vivo. Mas isso pouco alivia o meu desconforto...

- Por agora, é natural que tenhas a sensação de que o facto de ele continuar vivo pouco ou nada ali-
via o teu desconforto. É só uma sensação. Mas há-de parecer-te aliviar... Isso te garanto. Mas continua a
tua história.

- Bom, estava eu a dizer que me senti muito mal. Muito mal, mesmo. Algo me perturbou profunda-
mente, porque me pareceu que... mas... como tal coisa pôde ser possível?... Pareceu-me que ele me fala-
va... Porém, os seus lábios estavam lívidos, secos, pedindo água. A sua voz calou qualquer expressão de
súplica e só o pedido de água se ouviu. A cabeça estava caída sobre o peito, a sangrar, mas, vindo dos
seus olhos, chegava-me um olhar estranhamente brando. Sim, eu estava mesmo ali, aos seus pés, a olhar
p'ra cima, completamente paralisado, com a esponja espetada num pilo. Mas... por que estaria eu a ver
de forma diferente? Seria porque estivesse a sentir? A verdade é que um discurso vibrava dentro da minha
cabeça. Foi uma coisa tão surpreendente, que até recusei o convite do Lívio p'ra jogar dados. O que que-
ria Jesus que aprendêssemos quando me transmitiu...

«Uma esponja, por meu Pai me está sendo colocada agora, ternamente, debaixo dos olhos... ape-
sar de tu, Caius, me ofereceres outra, impura, para que sorva o vinagre com que, neste Monte, se
mata a sede.
Vês? É uma flanela branca e macia que me está enfaixando da cintura às coxas torturadas... em
vez do tecido áspero com que tentaram assar-me estas partes, rebeldes porque físicas e intocadas.
O que escorre pelo meu corpo é a Luz com que a Fonte me impregnou, em vez deste sangue mo-
ribundo que a tua incompreensão e ignorância fez sair de onde circulava.
O que cinge a minha cabeça, é um halo dourado - puríssimo na sua intenção - que se espargirá
por todas as partes da Terra, descobertas e por descobrir... em vez desta coroa de espinhos com que
os teus soldados, rindo, me coroaram. Esta coroa fere a minha pele, centurião, mas esta pele está
tisnada por um Sol diferente daquele que te ilumina e faz suar. Esse outro Sol de que te falo haverá
de acender-se, sem tisnar, no coração de todos os homens. No teu também, Caius.
Irmão - que me crucificas, mas que amo - o que atravessa os meus pés são os ternos beijos da
Mãe, em vez dos pregos romanos que ajudaste a cravar em mim e nestes dois infelizes que aqui estão;
A dor que lhes infligiste obriga as lágrimas a brotarem da carne torturada dos seus olhos, como se fos-
sem o sumo da desgraça. O meu caso, porém, é diferente, Caius: apesar de seres incapaz de ver lá-
grimas no meu rosto, elas têm o poder de te curar, fazendo com que todo o sofrimento acumulado e
toda a dor açaimada desapareçam para sempre... Procura sentir o que te disse... Adeus, Caius... Ago-
ra, tenho que partir.»

Foi isto que ouvi, no Gólgota... Foi uma mensagem? Uma confissão? Um desabafo? O que é que se pas-
sou? Fala, por favor!... Por que razão me é impossível serenar?... Que devo fazer?

- Espera, Caius. Espera serenamente; e, sobretudo, mantém o contacto com o Silêncio.

4 – Ámen.
Perdoa-lhes, senhor, pois não sabem o que fazem.
JUAN DE LAS CASAS
Século XVI d.C.
1 – Em nome do Pai...
Como festejo hoje, dia 31 de Agosto, o meu aniversário, pedi para abandonar um pouco mais cedo os
meus afazeres de copista na Abadia. Retirei-me para o claustro e sentei-me junto desta roseira para que a
mente possa fluir livremente. Daqui, ouço cantar o pequeno repuxo do jardim e, antes que soe o toque de
vésperas, aproveito para te invocar, meu Guia protector.

Quero meditar um pouco sobre a tua existência e função, e aqui aguardo, calmamente, que te faças
presente em mim. Hoje, tal como desde sempre, irei colocar-te algumas perguntas, pois essa é a intenção
última que sempre me leva a entrar em contacto contigo. Tenho esperança de que, considerando as tuas
funções ancestrais para comigo e a antiquíssima relação de amizade que acabou por se estabelecer entre
nós, me induzas respostas.

Como sabes, as averiguações que ao longo do tempo tenho vindo a fazer através destes contactos,
contigo pouco têm que ver com a curiosidade. Importa que acredites nesta afirmação pois, embora ela
seja verdadeira, pode ser entendida distorcidamente, uma vez que optei por nascer, outra vez, com a
curiosidade aguçada.

Quando, há várias vidas atrás, me chamei Nark, foi precisamente a curiosidade que me atirou para
junto de Und. Nesses tempos, aprendi que a curiosidade, como tudo aliás, tem duas faces. Sempre que
deixei que ela fosse um sorvedoiro, isto é, enquanto permiti que ela se servisse de mim, trilhei atalhos
que me afastaram do Caminho; quando, porém, comecei a simplificar, ou seja, quando convoquei a curio-
sidade para o meu serviço, foi ela mesma que me apontou e fez encontrar o verdadeiro Caminho. Por isso,
é preciso estar com atenção.

Sabes, também, que já transcendi o estágio de querer apreender conceitos só para armazenar mais
informação. Se ainda te faço perguntas é porque acredito que as respostas podem ajudar a minha Alma a -
sem adiamento ou exploração de atalhos - assumir a forma esférica que o Espírito tem.

E, assim, vou tomando-o, devagar, o veneno com o qual me comprometi a conviver tranquilamente.
Faço-o levando à boca, solenemente, o Cálice de Ouro que se foi enchendo com esse veneno, a que cos-
tumo chamar fel requentado. O Silêncio e a Serenidade são as essências básicas do sabor subtil que esse
veneno tem escondido; a Estupefacção e a Dúvida emprestam-lhe um travo áspero e bizarro.

Porém, a Brisa do Pai perpassa por entre as moléculas desse veneno, amenizando a acidez do seu
sabor. Embora saiba andar, essa Brisa ama-me tão profundamente que cede em gatinhar para poder acom-
panhar o ritmo lento dos meus passos. Enrolando-se nos meus pés, vai corrigindo o meu rumo e orientan-
do-me no Caminho. E, ajudando-me neste trabalho de desbaste interno, vai-me sugerindo a forma perfei-
ta, e acabada, de uma esfera.

Assim é quanto à forma da alma e ao espírito; quanto ao corpo, contento-me com este físico escorrei-
to e seco, o qual alimento e trato com o maior desvelo, para que seja uma digna morada do Pai, transitó-
ria embora, e um suporte saudável para a Sua manifestação.

Pensei na esfera, porque creio que, simbolicamente, esse é o nosso objectivo último; para isso nas-
cemos, para isso temos vindo a encarnar ao longo das Eras. Todavia, meu amado Guia, deves conhecer a
lentidão com que este processo tem decorrido. Tão lento é que, hoje em dia, embora já tenhamos aden-
trado o século XVI, raros são aqueles que já conseguiram burilar a pedra informe, cheia de arestas, em
que se tornaram.

É muito simples o método que tenho seguido para, espiritualmente, atingir a forma esférica: limito-
me a prestar atenção às formas que a minha personalidade actual prefere para se manifestar. Assim faço
desde o dia em que vi nesses automatismos potentes obstáculos ao Caminho que me comprometi a percor-
rer nesta renovada visita à Terra e aos nossos irmãos. A experiência feita enquanto centurião romano foi
decisiva para ganhar essa percepção; de facto, aprendi bastante com a rudeza e a superficialidade auto-
mática da personalidade de Caius.

Repara que, quando falo de mim, refiro-me àquele Ser Espiritual que verdadeiramente sou - eterno,
mas ainda em fase de inevitável evolução. A verdade é que tento esquecer o meu ego inevitavelmente
transitório... isso que responde pelo nome que assino e vive encerrado dentro das muralhas desta magnífi-
ca abadia, lidando com pergaminhos, fazendo cópias e compondo iluminuras, rezando e meditando em
paz.
É interessante como, depois de ter usado as mãos de Nark para curar os irmãos atlantes, depois de ter
usado as mãos de Caius para matar os inimigos ao empunhar uma espada romana, uso agora estas mãos de
Juan de las Casas para escrever. Que outros usos lhes darei no futuro? Pouco interessa isso. As mãos são
apenas um meio para lidar com as experiências que me enriquecerão, que me tornarão cada vez mais
transparente à Luz, mais esférico, seja curando, seja matando. Pagarei por via dessas mortes? Beneficiarei
por via daquelas curas? Que interessa isso?

No entanto, é curioso verificar que, se reflectir acerca das diferenças de forma e de valor, sempre
acabo por chegar à conclusão de que, afinal, desconheço como realmente me chamo! O facto de estar
registado oficialmente como Juan de las Casas tem pouco ou nenhum significado.
Mas, afinal, qual a razão que me leva a crer que o conhecimento do meu Nome me aproxima da forma
esférica? Antes de responder a esta pergunta que eu próprio fiz, deixa-me dizer-te o seguinte:
Sei que há muito tempo desististe de fazer perguntas. Intuo que abandonaste essa atitude a partir do
momento em que integraste, até à mais ínfima parcela do teu ser vibrante, a evidência de que tudo está
em tudo, de que em vez de «isto» e «aquilo», existe apenas Tudo. Sim, sei isso muito bem. Mas eu sou, e
tenho consciência de ser, uma criatura que vive só na aspiração de ver com os olhos do Pai; porém, dado
que continuo a ver através destes toscos olhos físicos, é natural que, naquele Tudo, eu ainda aperceba um
somatório de muitas partes separadas.
Isto é certo; mas também é certo que se ainda sofro dessa moléstia chamada «separação», é porque
essa é, por agora, a vontade de Deus. Por isso O louvo e me empenho em ascender até Ele.

Ao aspirar à Ascensão poderia ser que a minha intenção fosse, somente, a de O conhecer. Porém, eu
já O conheço. E sei que O conheço porque O sinto em mim; outro objectivo poderia ser o de O imitar; no
entanto, para quê imitar o que está em mim e, por isso, é meu por natureza?
Senhor, se O louvo e me empenho em ascender até Ele é, pura e simplesmente, para ser Ele!

Portanto – e respondo agora à pergunta colocada há pouco - se investigo o meu verdadeiro Nome, é
porque creio firmemente que sabê-lo me pode ajudar. Como? Bom, certamente poderia ir bem mais fundo
no mergulho interior se soubesse que vibração tem esse Nome, se soubesse como se escreve e diz, se fosse
capaz de o sentir em mim como sinto o Divino. Acresce que a integração do meu verdadeiro Nome traria
como consequência a desvinculação de aquele outro que os meus pais escolheram, essa vibração que in-
terrompe a minha atenção interna quando é captada pelos meus ouvidos. Por isso, Senhor, se for tempo e
conveniente, revela-me o meu verdadeiro Nome.

Juan de las Casas:

O teu nome é o mandamento único da Verdade!

Oxalá a Tábua da Mentira, que trazes ao teu pescoço,


se mantenha virgem até ao fim dos dias do Tempo.
Só assim o manto que te cobre, recobre e encobre
deixará de ser o berro agudamente penetrante que é agora.

Amo-te, meu irmão. Mas já senti esse grito a rechaçar o amor


que outros seres sentiram que sentiam por ti.

Continua, pois, a aprender o valor da aceitação.


Ela é quem mora, mui aconchegada, na Casa do teu Nome eterno;
ela é paz que conquistarás através da tua ascensão.

Sim, o teu nome é o mandamento único da Verdade;


e o mandamento único da Verdade é ditado pelo teu coração.

Bom... quer dizer então que o meu verdadeiro Nome, a Aceitação e a Paz interna são uma e a mesma
coisa?...
Obrigado, Senhor.
2 - ...do Filho...
Voltando ao tema de por que é que faço perguntas e levanto questões?
Simplesmente, porque tenho essa via como a que mais se coaduna com as características básicas da
criatura que prometi ser na Terra - esse passado útero e a futura sepultura do meu corpo mais denso.
Fiz essa promessa algures, naquele lugar que, respeitando a minha visão de monge, devo chamar céu.
Por isso, enquanto piso este chão sagrado, aqui me tens, tentando expressar o que de melhor existe nos
seres humanos. Contudo, outras pessoas, com diferentes registos de passado - ou seja, localizadas em
pontos distintos da vereda que leva à Casa do Pai! - actuam de diverso modo, pois cada um escolhe o que
fazer, de acordo com as dúvidas, preocupações ou falhas que tem por descartar.

Por exemplo, o ano passado, quando abandonei o sossego e a protecção das muralhas deste convento
para assistir às últimas horas de um parente chegado, conheci um homem deveras interessante. Ao longo
da conversa que tivemos durante a viagem, pude aperceber-me de como era culto e educado... embora
um tanto ou quanto atacado pela heresia. Durante as horas de conversa a que nos entregámos para ajudar
a passar o tempo, acabou por me confessar que o seu desassossego derivava da reflexão que empreendera
acerca das divindades vigentes.

No princípio, confesso, estranhei a natureza daquele desassossego, mas quando ele o explicou mais
detalhadamente, passei da estranheza à surpresa. Afinal, a excitação e o inconformismo que o perturba-
vam advinham de ter reconhecido que essas divindades, por se sentirem tão profusamente veneradas pe-
los seres humanos, se tinham deixado tentar pela inveja e começado a aquilatar qual deles era o mais
poderoso. Insatisfeito com esta mirabolante constatação, esse irmão achou ser sua obrigação remediar,
senão resolver, tais desavenças.

Na altura, considerei aquela criatura algo desviada do verdadeiro caminho religioso. Hoje, porém, sou
tentado a reconhecer que, de facto, aquele homem estava empenhado, tanto quanto eu estou, em chegar
até Deus. Digo isto porque, de dia para dia, me sinto mais perto daquela noção, já antes referida, de que
tudo está em tudo e que todos os caminhos, por mais estranhos que pareçam, levam à fusão com o Pai,
pois essa é a Sua divina vontade. Aquele homem, de quem esqueci o nome, fazia-o debatendo questões
que lhe tiravam o sono!

Como vês, Senhor, pessoas há que, aparentemente, vivem querelas bem mais complicadas do que
aquelas que me levam a entrar em contacto contigo! Os meandros do pensamento são inescrutáveis, inú-
meros são os ramais, sombrios os recantos. Por isso, precisamos tanto de recuperar a Luz que nos criou!

Então, aquela alma atormentada, para reflectir acertadamente acerca do que deveria fazer, esperou
pacientemente que a revolta das suas emoções se aplacasse, que a respiração serenasse e a mente recu-
perasse o silêncio. Na harmonia assim conseguida, bem depressa percebeu que só tinha uma via a seguir:
trabalhar no sentido de se descartar dos complexos de culpa e, uma vez isso conseguido, concluir a tarefa
enveredando pela criação de novos deuses!

Embora esse homem estivesse um tanto ou quanto perdido, a sabedoria que adquirira anteriormente
era suficiente para perceber que iria ser muito mais difícil ultrapassar a primeira fase do processo, isto é,
descartar os complexos de culpa, do que satisfazer a segunda, ou seja, a criação de novos deuses.

Assim era com ele, e continua a ser com todos nós, porque eliminar complexos de culpa remete para
o Passado, enquanto criar novos deuses projecta para o Futuro. Ora, por hábito, quase todos costumamos
pensar que o Passado está repleto de penas pesadas, ao passo que o Futuro se encontra cheio somente de
vagas esperanças. Habituámo-nos a crer que o Passado, apesar dessas penas dolorosas, é seguro porque é
conhecido; acostumámo-nos a imaginar um Futuro assustador porque receamos que semeie novos desaires.
Entretanto, esquecemo-nos de prestar atenção ao momento que passa!

Lembro-me que, quando debatemos este assunto pela primeira vez, tu me ensinaste que o Passado é
apenas memória e que o Futuro somos nós que o moldamos através das escolhas feitas no tal momento
que passa. Este ensinamento alertou-me para a importância do livre-arbítrio. Mas, segundo me parece, a
essência do livre-arbítrio pouco tem que ver com escolhas relacionadas com o plano físico: ter a liberdade
de escolher entre um prato de peixe ou um prato de carne nada tem que ver com a prática do livre-
arbítrio. A única escolha verdadeiramente essencial é termos a liberdade de decidir se queremos conti-
nuar a viver dentro do túnel escuro que o ego nos proporciona, ou se preferimos viver na Luz com que
Deus nos criou.
No que toca ao livre-arbítrio, nada há para além disto.
Diz-me tu, Senhor: se escolhemos viver dentro do túnel do ego, qual é a diferença entre vivermos
num ou noutro ponto da escuridão com que ele nos alicia? Se estamos dentro do túnel podemos ter a sen-
sação de que somos livres para escolher entre morrer de peste ou de fome. A questão, porém, é outra; a
questão é se queremos continuar a morrer – seja lá de que maneira for! – ou se preferimos parar, de vez,
com este vaivém entre a Terra e o Céu.
Esta é a única escolha que honra, verdadeiramente, a Lei do livre-arbítrio.

Enquanto recusamos isto – o que criaria campo para a intuição e, depois, para o contacto directo com
o Guia - somos forçados, evidentemente, a decidir com base nos dados insuficientes que o ego fornece. É
o que resta a quem decide desviar os olhos do Divino. O pior é que, embora decidindo com base na dúvida,
continuamos a ser responsáveis pelas consequências que possam advir. É por isso que a libertação além de
difícil, é rara. De facto, como pode ser fácil a ascensão para os seres que vivem esmagados pelo peso de
tantas limitações?

Aquele homem, no entanto, estava seguro de que alcançaria os seus intentos, pois os deuses que pre-
tendia criar seriam só para ele. Na base desta resolução, estava a premissa de que, se esses deuses se
limitassem a condicionar a sua própria mente, decerto acabariam por se convencer de que só sobre ele
interferiam. Mais: se ele próprio já alijara dos seus ombros a carga áspera da inveja, também aos seus
deuses faltariam motivos para se digladiarem.

Confesso-te, Senhor, que andei imenso tempo a meditar nesta linha de raciocínio. Apesar do seu evi-
dente odor a heresia, achei-a extremamente interessante. Sem ter chegado a arrepender-me por ter to-
mado ordens, agradeci a Deus o facto de me ter tirado, por breves dias, dos claustros desta Abadia, pois
esse pequeno interregno proporcionou-me a grata oportunidade de conhecer uma elucubração filosófica
que muito enriqueceu o leque de conhecimentos que julgo possuir.
Além disso, alargou a minha visão sobre as coisas do Homem, neste mundo de Deus!

Senti imensa satisfação ao verificar que aquele irmão estava tão determinado em levar por diante a
empresa de criar novos deuses, como estava decidido a recusas a formação de uma nova seita. Oxalá te-
nha resistido à tentação de angariar seguidores entre os muitos infelizes que, decerto, encontrou no seu
caminho. Muito me desgostaria saber que, embora inteligente e inofensivo, acabara os seus dias a arder
numa fogueira da Santa Inquisição, prática muito em voga, desgraçadamente, nos tempos que vão corren-
do.
Em resumo, continuo a acreditar ter sido extremamente enriquecedora esta oportunidade de conviver
com aquela criatura, durante a viagem que me levava de volta à terra natal.

Portanto, para concretizar o seu projecto, ele acabou por fazer exactamente o mesmo que muitos dos
nossos antepassados já haviam feito. Ou seja, percebeu que o caminho mais fácil era tomar o Homem
como modelo. Então, sem recorrer a espelhos, olhou para si, mediu os tormentos e, usando expressões
singelas, inventou as necessárias liturgias e as devidas orações.

Durante a conversa, aquele homem raro teve a honestidade de referir a sua esperança em que as ora-
ções viessem a ser eficazes, pois redigira-as inspirado pela Reverência. Por fim, concluiu a sua narrativa
confidenciando-me que, quando terminou a tarefa, sentiu a consciência apaziguada. O sinal externo desse
apaziguamento fora a calma que a mão dextra manifestara, ao quedar-se, imóvel, sobre o pergaminho,
depois de pousada a pena. Pôde, então, respirar fundo, reler o que escrevera e fixar na memória - esfor-
çando-se, todavia, para que chegasse ao Espírito - a essência do acto e o sentido da escrita. Aceitando o
cansaço, a cabeça acabou por descair e apoiar-se na mão que segurava a grossa folha.

À despedida, confessou-me que, embora tivesse corrido o risco de ser diferente - o que acarreta, por
vezes, graves riscos - tinha assegurado um meio para recuperar a paz e atingir a salvação, sempre que o
perigo, que sempre espreita, espreitasse.

3 - ... e do Espírito Santo.


Senhor, tu que me exortas para que, em teu Nome, eu seja um criador de normas, um descobridor de
Leis e um revelador das analogias existentes entre os vários fragmentos da Criação, permite a seguinte
indagação: ser diferente, como aquele homem foi - mesmo quando «ser diferente» significa inventar novos
deuses - será que assegura a paz? Humildemente aceito ser o construtor, firme e decidido, da estrutura do
teu futuro Reino, mas, mesmo que seja reconfortante «ser diferente» dessa maneira... será que garante a
protecção quando o perigo espreita?

Retornei à abadia e ao manuseamento dos meus adorados livros, pensando que, quando a fé é grande,
deve-se respeitar uma certa contenção, especialmente quando se decide criar novos deuses. Tal como
este homem, muitos de nós, ao longo da caminhada, arriscámos cair no exagero. Como muito bem sabes,
Senhor, temos vindo e chegado por ondas. Cada uma delas criou deuses; depois, cada vaga humana achou
que os deuses adorados anteriormente tinham sido mal concebidos e, por isso, deficientemente interpre-
tados. Como consequência, a sua interferência foi sentida como insatisfatória.
Apenas se esqueceram de reparar que ambas as partes se reflectiam!

- Tens razão, Juan de las Casas. Em virtude de, ao longo dos milénios, vós terdes arriscado o exagero,
é longa a lista dos deuses criados. Talvez demasiadamente longa. Assim é, porque, na ânsia de procura-
rem fora de vós, haveis esquecido a fórmula de como se compõe, na face, um sereno e divino sorriso,
aquele sorriso que, por estar apartado da ostentação e da sobranceria, define a autoconfiança, a sabedo-
ria e o distanciamento. Se tivésseis isso presente, qual a necessidade de diversificar tão desmesurada-
mente os alvos para onde adorais disparar as vossas inseguranças?
Eis aqui uma verdade que, quem busca um sentido para a vida, deveria reconhecer.

Tens toda a razão, como sempre. Por isso, ajuda-me a integrar essa verdade, Senhor. Em devido tem-
po ensinaste-me que o caminho é sempre o mesmo; os seus sinais e os avisos é que são diferentes, embora
tenham encerrado sempre a mesma mensagem.
Considerando aquilo que hoje sei - ou julgo saber - sou levado a acreditar que esse homem, em breve
deve ter percebido que fora infrutífero o seu esforço de criação de novos deuses. Decerto que, em busca
da Luz, reconheceu que pesadas cartas lhe tinham saído à nascença; se calhar, sentindo-se à beira de
sucumbir por via dessa reflexão, presumiu que poderia substituí-las por outras, mais leves. Talvez, até -
quem sabe? - se tenha iludido com a esperança de que uma ou outra, venturosa, pudesse vir a cair, sozi-
nha, do baralho.
Porém, decerto logo se arrependeu de divagar nesta ilusão, porque algo em si lhe deve ter revelado
que a Vida apenas espera do Homem a coragem suficiente para se autoconfrontar. Uma voz parecida com
a tua deve ter-lhe sussurrado ser imperioso reconhecer que tudo o que ele precisava para colmatar carên-
cias estava contido, desde o princípio, na sua essência, à espera de ser encontrado.

Achas estranhas estas palavras na boca de um pobre e devoto monge? Talvez sejam... talvez sejam...

Assim, se aquele homem acordou, realmente, para esta forma de encarar a Vida, é natural que, em-
bora tão cego como os demais, tenha aprendido a decidir sozinho. Estou convencido de que, à medida que
o tempo foi escorrendo, passou a sentir-se cada vez mais integrado. Quando se escolhe assumir este risco,
ganha-se a satisfação de saber que estamos a peregrinar pelo nosso próprio caminho.

Mas gostaria de voltar àquela proliferação de deuses que atrás abordei, para relembrar que, na Natu-
reza, nada se perde, nada se ganha, portanto, tudo muda de forma. Então, fruto da conversa com aquele
homem, eu próprio tive a intuição de que esses deuses criados ao longo dos milénios, porque nunca os
libertámos depois de deixarem de ter serventia, ficaram entregues a si mesmos. É por isso que, apesar
dessa espécie de abandono, eles continuam activos!

4 - Ámen.
Meu bom conselheiro, se tiveres acesso a esses deuses através de uma forma diferente daquela que
nós julgamos ter, peço-te o seguinte: convence-os de que, embora possam ter sido desprezados por alguns
de nós, devem ser complacentes e proteger-nos a todos. Em nome da Luz, pede-lhes que reconheçam
todos os esforços que já fizemos, bem como aqueles que ainda nos esperam. Roga-lhes que registem todas
as dores que nos têm educado... e amenizem as que estão ainda por sentir!
Todos nós lhes agradeceríamos se considerassem tudo o que nos tem amadurecido e, principalmente,
se nos revelassem as tarefas que nos aguardam para que o Plano se cumpra.
Que os deuses reconheçam, registem e considerem tudo isto - que para eles é nada! - antes que se
nos esgote o tempo disponível para salvar este intrincado e ardiloso labirinto.

Assim seja.
CHUVA PRATEADA
1833 d.C.
1 – Em nome do Pai...
Começo a ficar muito apreensivo, ó Grande Espírito. Já várias vezes te perguntei por que me pedes
para segurar numa coisa que desconheço o que seja, mas tu nada dizes. E mais inquieto fico quando...
como é que disseste há pouco...?

Chuva Prateada, oferece este bolo a quem for capaz de reconhecer a tua sabedoria.

Mas, ó Grande Espírito... o que é um bolo?

É uma coisa doce, que se come. É muito bom! Entre os brancos, é costume oferecer-se um bolo, co-
berto de chocolate como esse, quando um amigo ou familiar festeja o aniversário.

E por que me ofereces uma coisa que pertence aos costumes dos brancos? Chuva Prateada nasceu ín-
dio!

Porque no Reino dos Sonhos onde agora te encontras, as leis são diferentes das que vigoram no plano
físico. Se lá estivesses, este transe seria diferente; talvez te oferecesse algo relacionado com a tua cultu-
ra. Porém, como estás a viver um sonho, faz o que te digo e deixa-te de perguntas desnecessárias.

Estou muito constrangido porque desconheço o que seja um bolo. Somos exímios conhecedores de er-
vas e plantas, gostamos tanto de cavalos que eles nos revelam os seus segredos, sabemos que o Espírito
dos nossos antepassados nos protege, cozinhamos no fogo a carne que caçamos mas, apesar de ser o xamã
da tribo, é a primeira vez que vejo esta coisa fofa a que chamas bolo. Se me fosse possível ir agora ao
acampamento, até o meu pai, o Grande Chefe Chuva Dourada, seria incapaz de dizer do que se trata.

Chuva Prateada, oferece este bolo a quem for capaz de reconhecer a tua sabedoria.

Já ouvi, ó Grande Espírito! Mas o que te terá lavado a baixar até mim só para me entregares o bolo e
este insólito recado? E aqui estou eu, especado, atónito, a segurar num bolo, a olhar para o ar em busca
de sinais.

Encontro-me à entrada da única rua desta minúscula povoação. O céu está azul e transparente, sem
nuvens, pássaros a voar ou quaisquer outros sinais interpretáveis... se bem que «azul» e «transparência»
simbolizem coisas muito importantes. Mas isso é pouco.

Olhando com mais atenção, esta povoação, onde só habitam brancos, parece um furúnculo nascido na
bela e vasta pradaria, a morada ancestral da nossa tribo.
Ó Grande Espírito, será que a Mãe Terra pretende purgar, aqui, parte dos humores pestilentos que a
afligem? A julgar pela boçalidade dos seus habitantes, parece que sim.

Esta desolação poeirenta e acastanhada da povoação, faz-me recordar a minha encarnação como Juan
de las Casas. Nesse tempo, enquanto monge, podia deleitar o olhar nas roseiras e nos repuxos dos claus-
tros, e espraiar o pensamento pelos verdejantes vales que rodeavam a abadia. Agora, porém, estou a viver
este sonho preocupante.

A minha tribo desde sempre habita neste local do interior da América do Norte. Temos vivido em paz
mas, a partir de certa altura passámos a ter como vizinhos os caras-pálidas deste lugarejo. E a sua hostili-
dade acabou com o nosso sossego.

Este povoado do Novo Mundo é constantemente varrido pelo vento agreste das montanhas que se er-
guem ao longe. Uma poeira fina anda sempre no ar quando o tempo está seco; todavia, depois da chuva,
transforma-se num lamaçal. Na rua passam carroças desengonçadas; também há cavalos presos à porta
dos bares e vaqueiros rudes, com a barba por fazer. Com muita frequência, estes fedorentos primitivos
são desafiados por pistoleiros assassinos, vestidos com uma espécie de gabardina aberta, tipo guarda-pó,
quase até aos pés.
Diz-me, ó Grande Espírito, se os vaqueiros são rudes, o que chamarei aos pistoleiros assassinos?

Chama-lhes irmãos.
Bom. Vistas de muito alto, as duas filas de construções da rua única parecem pequenos lanços de car-
ril alinhados paralelamente. Estas casas, incrustadas na imensidão limpa da pradaria, são uma visão insóli-
ta e ofendem a sua serenidade.

Apesar de ter as mãos ocupadas com o bolo, reflicto acerca de este povoado ter só uma rua. Se o
construíram assim deve ser porque os habitantes queriam presenciar tudo o que ali ocorresse. Havendo só
uma rua, tudo aconteceria nela; se existissem outras, paralelas ou transversais, algo indispensável poderia
passar desapercebido ao observador, e perder-se para sempre.

Já lá vão muitas luas, colonos brancos começaram a chegar em carroças. Respondiam ao apelo da
conquista do Oeste e aqui se instalaram. De longe, assistimos à sua chegada, e logo nos custou a entender
quem seriam aqueles maltrapilhos. Mais admirados ficámos quando começaram a levantar casas, armazéns
e saloons, sinal de que pretendiam estabelecer-se. O que quereriam daqui?

Naquela altura, tivemos alguma dificuldade em entender por que se instalavam eles num local com-
pletamente seco. Por detrás daquelas montanhas, no entanto, corre um caudaloso rio, em cujas margens
florescem árvores. Quando os vi a assentarem arraiais aqui, tive a intuição de que a tribo iria ter proble-
mas com aqueles brancos ignorantes, que nem sequer sabiam escolher o melhor local para construir as
suas casas. Mas, aos poucos - foi preciso esperar que os materiais necessários à construção chegassem lá
de onde vinham - a povoação começou a tomar forma.

Quando o Grande Chefe Chuva Dourada, meu pai, teve a certeza de que iríamos passar a conviver com
aquela gente, ordenou que decorássemos os corpos com as penas e as pinturas tradicionais, e fôssemos
dar-lhes as boas-vindas. Mas, assim que nos aproximámos, fomos violentamente repelidos: morreram sete
dos nossos irmãos, sem que se tivesse percebido o que acontecera. Apenas se ouviram uns estampidos
surpreendentes que muito nos assustaram, enquanto alguns bravos caíam.
Retirámos rapidamente para o acampamento com a intenção de analisar o sucedido, e concluímos que
os brancos tinham entrado em pânico quando viram aproximar-se um grupo de índios emplumados. Então,
decidiram matar quem vinha em paz, demonstrando que a sua inteligência, já de si escassa, se transfor-
mara em medo.

Lembro-me muito bem desse dia, pois marca o início das lutas de morte entre os intrusos e a tribo.
Desde então, e depois de ter visto morrer muitos bravos guerreiros, aprendi que os homens brancos só
valorizam a própria existência. Por isso, defendem-na matando quem julgam que a ameaça; para eles só
conta a própria sobrevivência, e defendem-na dando caça a quem já vivia na região. Aqueles a quem eles
chamam «peles-vermelhas», porém, sempre aqui estiveram, vivendo em paz com a Natureza.

Agora, estes rústicos vão beneficiar por terem construído ao longo de uma única rua, porque um ser
humano que, desta vez, nasceu índio, vai ter de a percorrer, segurando um bolo.

À entrada da rua, desejo que apareça alguém que se identifique com a minha sabedoria para receber
o bolo. Mas continuo a achar esta tarefa muito difícil: como é que um branco poderá identificar-se com a
sabedoria de um índio?
Começo a avançar, dou uns quantos passos... mas ninguém aparece; ninguém se atreve a mostrar-se
para satisfazer este meu primeiro olhar.

Bom, ou este povoado está realmente deserto - o que torna tudo isto completamente despropositado
- ou os brancos, neste sonho, são tímidos.
Se está deserto, por que evacuaram a aldeia?
Será que desconhecem a minha sabedoria?
Estarão eles com medo dos meus poderes de xamã, apesar de pouco valerem contra armas de fogo?
Por que hesitam em disparar, agora que estou aqui isolado, sozinho e indefeso?
Estará aplacada a ira dessas armas, depois da morte dos meus irmãos de tribo?
Ou foi a morte dos búfalos?
E por que razão os brancos desconhecem que um xamã viria visitá-los?

Quando pararás de fazer perguntas, Chuva Prateada?

Porque tudo isto me faz imensa confusão, ó Grande Espírito! Todas estas incongruências só fazem sen-
tido se me lembrar que estou a sonhar. Mas, mesmo assim, tudo isto é muito estranho. Olha, o que me
apetece é voltar à tribo, sentar-me ao sol, invocar os espíritos dos antepassados e criar esconjuros eficien-
tes contra as armas dos brancos... Mas tenho esta difícil missão a cumprir e vou cumpri-la.

Estou habituado a provações porque, no passado, noutras existências, cumpri missões igualmente difí-
ceis. Esta missão, porém, nada é quando comparada com as que tive de superar para chegar a xamã da
tribo. Portanto, chega de congeminações. Há que acabar com esta brincadeira, antes que algum barulho
ou estremeção me acorde e obrigue a regressar precipitadamente.

Avanço rua fora. E nem o facto de um índio estar a passar defronte das janelas das casas dos brancos -
ainda por cima segurando um objecto que lhes é familiar - faz com que alguém apareça para reconhecer a
minha sabedoria. Fossem outras as condições, e um encarniçado tiroteio, típico de quem tem medo, já
teria começado.

Continuo a avançar lentamente. Olho de um lado ao outro, esquadrinho vidraças e sondo portas en-
treabertas na esperança de que alguma criatura reivindique este bolo – o símbolo da minha sabedoria.
Mas, para minha desilusão e desespero, parece que este lugar está mesmo deserto de vida... mesmo que
pouco inteligente.

Estou agora a meio do trajecto. Mas os meus braços, que nem de carne são, começam a parecer de
pedra; os músculos doem imenso. Para continuar a suportar o peso sou forçado a dobrá-los e a encostar os
cotovelos à barriga. O bolo que, no início, seguia bem à frente do peito, está agora ao nível do umbigo.
Nunca pensei que a minha sabedoria pesasse tanto!

Afinal, como é que posso encontrar alguém que reconheça a minha sabedoria num lugar deserto?
Será possível, Ó Grande Espírito, que nenhum branco a reconheça?

2 - ...do Filho...
Evita cair na presunção de julgar que todos os brancos são como esses com quem tens de lidar agora.
Se eles são assim é porque escolheram ser assim; igualmente, se és o xamã e um dos filhos dessa tribo é
porque assim decidiste. Pouco importa se uns têm a pele branca e tu a tens avermelhada. Todos provêm
da mesma matriz; todos estão a fazer a mesma digressão, embora cada um tenha escolhido percorrer o
ramal que lhe é mais conveniente.
Quando foste a curadora Nark, escolheste aprender através do altruísmo e das torturas da paixão;
quando optaste por ser centurião romano decidiste aprender através da prática da violência; quando fos-
te o monge Juan de las Casas, escolheste a vida monástica... um excelente pretexto para te furtares ao
verdadeiro amor de uma entidade-mulher. Agora és xamã e, mais uma vez, escolheste a dedicação à
comunidade. Muito bem. É um caminho como qualquer outro. Se a tua escolha é desenvolver exclusiva-
mente a dedicação aos outros, há que aceitar tal opção. Um dia, porém, terás de fazer as experiências
que a tua escolha única tem vindo a protelar.
Sendo assim, por que perguntas se alguém reconhecerá a sabedoria que tem alentado as tuas esco-
lhas? É precisamente para fazer essa prova que estás aqui, com esse bolo na mão.

Por que é tão difícil compreender a tua linguagem?

Porque, embora em contacto comigo, estás encarnado na Terra. Portanto, encarnado nesse planeta e
afastado da tua origem, é natural - e até conveniente - que tenhas alguma dificuldade em compreender-
me. Se me entendesses perfeitamente, poderias perder o estímulo necessário para continuares a percor-
rer o caminho que tens para percorrer.

Será possível que me tenha vindo a dedicar às pessoas, mas nunca tenha sentido a sua verdadeira na-
tureza?

De nada serve dedicares-te às pessoas enquanto condenas as suas atitudes, principalmente as que são
baseadas no medo. Já se sabe que o instinto de sobrevivência animal – o deles e o teu - sugere comporta-
mentos que anulam a energia divina que deveria irradiar desses comportamentos. Mas, se vives agora
nestas condições, isto é, se «tu és um pele-vermelha» e «eles são caras-pálidas», tudo isso poderia ser
diferente. Mas o que interessa é o seguinte: se índios e brancos estão em litígio, é indiferente em que
lado da barricada cada grupo se encontra. O fundamental é que cada parte aceite e respeite a posição
que ocupa, reconhecendo que ambas são precisas para que, quem as representa, possa evoluir.
Então, isso significa que eu evito viver a unidade com os outros?

De que te serve evitar a união com os outros? É claro que estes «outros», tanto são os teus vizinhos
brancos, como os elementos da tua tribo. Com estes, a interacção é obviamente mais «natural» porque
gostas deles, ou seja, porque tu os preferes aos brancos, que detestas. Ora, o grande problema é preci-
samente a preferência! Se preferes uns e condenas outros, isso significa que ainda estás cego para o facto
de que todos são Um. Assim sendo, por que fazes esta pergunta? Experimenta consultar aquela parte de ti
que conhece todas as respostas.
Sei muito bem que brancos e índios praticam culturas diferentes e que, por isso mesmo, defendem
valores antagónicos; daí os problemas que cada grupo acha que o outro grupo levanta. Porém, culturas
diferentes apenas são formas diferentes de vivenciar a mesma coisa – a Vida.
Agora te pergunto eu: porque é que um anão e um gigante teriam de combater entre si? Vão comba-
ter-se mutuamente só porque olham para o mundo de níveis diferentes? O anão deve revelar ao gigante
os segredos das formigas e do resto que se passa perto do chão; o gigante deve revelar ao anão o segredo
das nuvens, dos pássaros e do resto que se passa nas alturas.

Mas como pode Chuva Prateada sentir-se Um com quem mata os seus irmãos de tribo?

Chuva Prateada, se me amas, por que mostras tanta dificuldade em entender o que te digo?
Antes do mais, é incorrecto dizer que a morte existe. Será que tenho que repetir sempre a mesma
coisa? Quando viveste na Atlântida demonstraste conhecer este conceito; quando viveste em Roma, falá-
mos sobre o assunto. Por que o esqueceste?
Escusas de fazer essa cara; se, agora, sou eu que pergunto é porque conheço todas as respostas: tu
sabes que a morte é um falso conceito... mas evitas lembrar-te disso! Mas vou usar a tua linguagem para
te dizer o seguinte: A morte é uma escolha! Se alguém morreu é porque precisou de morrer, isto é, se
alguém desencarnou é porque precisou de desencarnar. Se assim aconteceu ou é porque a sua presença na
Terra passou a ser desnecessária, ou porque completou a fase de aprendizagem que lhe cumpria fazer.
Seja como for é sempre uma escolha.
Talvez preferisses que as coisas tivessem sido diferentes com os guerreiros da tua tribo; mas, ó Chu-
va Prateada, se és incapaz de gerir a tua própria vida, como podes desejar que a dos teus irmãos, já
desencarnados, tivesse sido diferente? Se alguns deles partiram, é porque se lhes esgotou, ou eles fize-
ram com que se esgotasse, o período para estarem na Terra. Continua a amá-los, mas esquece-os enquan-
to seres físicos. Agora: se és incapaz de os esquecer é porque estás preso a eles; se estás preso a eles,
nem que seja só na memória, estás a falhar na prática do desapego. Descarta-te, pois, das saudades dos
corpos que eles foram, Chuva Prateada. Deixaste de poder compartilhar a presença deles, mas o espírito
que os animou continua vivo, mais vivo do que nunca, pois libertou-se das pesadas condicionantes do pla-
no terrestre.
Por outro lado, é bem certo que quem mata, bem escusava de matar, pois limita-se, com essa atitu-
de, a juntar lenha para a fogueira que, mais cedo ou mais tarde, lhe ensinará o verdadeiro valor da Vida.
E tu mataste quando foste centurião em Roma... embora com permissão oficial! A «compensação» há-de
chegar, deixa lá. Olha: parte dela é esta humilhação de estares prestes a ter de reconhecer que, afinal, a
tua sabedoria é quase nenhuma!

3 - ... e do Espírito Santo.


Será possível que me tenhas colocado aqui para presentear um branco? Se isto se passasse no nosso
território, seria facílimo encontrar quem estivesse em condições de reconhecer a minha sabedoria.

Os brancos também são teus irmãos, Chuva Prateada. É evidente que se estivesses no território da
tribo seria muito mais fácil: entre membros da mesma comunidade esse reconhecimento é muito simples
de obter. As dificuldades, porém, jamais te foram ocultadas. Por quê essa estranheza, agora? Por que
haveria eu de te pedir o que é fácil ou de te propor a via da menor resistência?

Para além do que tenho dado... será que disponho de mais alguma coisa para dar?

Precisarei de repetir que te pedi para me ajudares? Criar o futuro será a tua missão; e para que essa
criação se possa implantar, eu te propiciarei os meios de que necessitas; escusas de te preocupar com
isso. Antes, porém, preciso que te predisponhas a ajudar-me.
Saberei eu o que é a verdadeira sabedoria da compaixão?

É bom sinal que faças essa pergunta, Chuva Prateada. A prática da compaixão é altamente reconfor-
tante principalmente quando é dirigida àqueles a quem chamas «inimigos», ou seja, aqueles que cruzam
o teu caminho, parece que te magoam e negam os teus valores. Ou já te esqueceste da mensagem que
recebeste quando andavas a cravar pessoas na cruz?

Será que posso guardar a minha sabedoria para mim? Seria mais fácil. Aliás... nunca comi um bolo.

Isso é impossível! Já deverias saber que a Lei do Amor te impede de ficar com o bolo. Se alguém pu-
desse beneficiar, exclusivamente, da sua própria sabedoria, tal jamais seria Amor.

Começo a ficar preocupado. Se viver verdadeiramente é ser capaz de ver o Um nos outros, quer dizer
que sofro de separação?

Por que perguntas, se sabes a resposta?

Queres dizer então que a rua vazia, este silêncio de som e pessoas, significa que nada tenho feito
para ver o divino por detrás da aparência física e das maneiras de ser alheias? É por isso que ninguém apa-
rece para ser presenteado?... Isto é muito preocupante, Ó Grande Espírito. O que posso eu fazer?

Olha, o melhor que tens a fazer é deixares de te preocupar com o que podes fazer!

Embora já tenha entendido por que razão ninguém aparecerá para receber o bolo, quero levar isto
até ao fim. Quero ir até ao fundo da rua para ter a certeza! Preciso de ficar com a consciência tranquila
para que... ... mas... Espera!... Como posso eu ter a consciência tranquila? Só se for por querer terminar
o que me pediste para fazer! Quanto ao resto... Estarão tranquilos os planos profundos da minha cons-
ciência?... O que acabei de vivenciar, as impressões que acabei de receber, as memórias das outras
vidas... tudo isso gira à volta da consciência, sim, mas, estará ela suficientemente expandida?
Afinal, o grau da minha sabedoria é um mito pessoal; carece de existência real!

4 - Ámen.
Parece que, finalmente, percebeste!
Dado que a minha função é vigiar o cumprimento do teu plano director, resolvi accionar o mecanismo
dos sonhos, pois, no ponto de desenvolvimento e purificação em que te encontras, só no plano astral e
com a minha orientação poderias ganhar a necessária ampliação de consciência. Foi um expediente para
te despertar um pouco mais... e convidar-te a estares atento de outra maneira.

Sinto que, mais uma vez, fico entregue a mim mesmo... Pelos vistos, está na hora de acordar. Obriga-
do, ó Grande Espírito, por me teres respondido e ajudado.

Escusas de agradecer. Iluminar-te, é parte do meu trabalho. Que a Luz desça sobre ti, Chuva Pratea-
da.
VITORINO DE SOUSA
1948 d.C.
1 – Em nome do Pai...
Antes do mais, Mestre, gostaria de te prestar as minhas homenagens pela tua função de gestor da
equipa que determina o sexo dos que se preparam para encarnar, assim como o melhor momento para o
nascimento. Deve ser muito interessante coordenar estas tarefas essenciais, por forma a que o regresso ao
plano terrestre se verifique no momento mais apropriado e que a encarnação ocorra num corpo físico cujo
sexo reflicta a polaridade que a alma escolheu expressar.

Ora, é precisamente sobre um determinado nascimento, ocorrido aqui na Terra, que eu gostaria de
ser esclarecido, pois é algo que muito me confunde, e está relacionado com a função que desempenhas. A
questão é a seguinte:

Quando a criança em causa nasceu, os pais ficaram satisfeitíssimos por ela ter reentrado na sociedade
dos humanos como uma criatura do sexo masculino. Pela minha parte, no princípio, dei pouca importância
à questão, mas, à medida que os acontecimentos se foram desenrolando, comecei a duvidar se a opção
«sexo masculino» estaria correcta. Em face dos acontecimentos, parece-me que algo correu mal em algum
ponto do processo. Custa-me, porém, a acreditar que tenha ocorrido algum erro, uma vez que tu, Mestre –
sempre impecável nas funções que desempenhas - tens responsabilidades no que toca a esta matéria.

Seja como for, a satisfação por passar a haver mais um menino neste mundo, foi bastante mais evi-
dente no pai, do que na mãe. Todavia, apesar deste desnível de contentamento dos progenitores, ambos
conseguiram equilibrar-se e chegar a um acordo: poucos dias depois daquela criança loura, anafada e ro-
sadinha respirar por seus próprios pulmões, concordaram em chamar-lhe Cláudio.

Curiosamente, com o passar dos anos, a desequilibrada euforia do pai e a moderada satisfação da
mãe, acabaram por inverter-se: o pai passou a ver na criança uma espécie de maldição que lhe transfor-
mava a vida num inferno; a mãe preferiu encarar o filho como uma oportunidade para crescer, para exa-
minar os seus instintos maternais, para testar o seu amor incondicional, ou seja, a capacidade de aceitar
coisas e pessoas como elas são, em vez de como gostaria que fossem. Mas como ambos desconheciam que,
sejam quais forem as circunstâncias, nada acontece por acaso, ambos mereciam o que lhes acontecera e
estava reservado para o futuro. Assim foi, porque disso precisavam.

Tu, Mestre, sabes que defendo este conceito há milhares de anos. Quando andei pela Atlântida no
corpo de Nark já sabia que era assim. Tenho a perfeita consciência de que Und apareceu na minha vida
porque eu precisava de aprender um tipo de afecto, diferente do que sentia pelos pacientes. Mas adiante.

Para aqueles pais, o filho materializava, evidentemente, uma excelente oportunidade para alargarem
o seu autoconhecimento e corrigirem hábitos de conduta. Mas, como se verá, cada um reagiu de forma
diferente. Nos primeiros meses, durante os quais a multiplicação da família funcionou como uma fonte
inesgotável de novos estímulos, nada faria supor que o enredo viesse a desenrolar-se como se desenrolou.

Pelo lado do pai, o Cláudio descendia de um cidadão chamado Severino Santos e Cunha; pelo lado da
mãe, nascera de uma jovem que respondia pelo nome de Isabel de Sousa Fonseca. Esta, depois de casada,
e como é costume, acrescentou ao seu apelido o «e Cunha» do marido, transformando-se, portanto, em
Isabel de Sousa Fonseca e Cunha - um nome bem bonito e cheio de ritmo, como convém às vaidades da
Terra... embora completamente inútil ao equilíbrio do Céu.

Severino sempre sofreu do defeito de julgar que podia pôr e dispor de tudo e todos, a seu belo pra-
zer. Portava-se como se o seu comportamento estivesse protegido pela impunidade.
Se admitirmos que a Universidade é capaz de transmitir conceitos educacionais favoráveis à formação
cívica e humana das pessoas que por lá passam (do que eu duvido!), este grosseiro exemplar do sexo mas-
culino em nada beneficiou deles. Na verdade, chegou ao fim do curso de Arquitectura sem ter trabalhado
minimamente o seu ego dominador, sem ter feito o mais leve movimento para alterar a mania de desres-
peitar fosse quem fosse. Parecendo isto insuficiente, muitos anos depois da formatura, persistia em gabar-
se de continuar igual a si mesmo!

Portanto, alardeando uma desfaçatez inaudita, considerava a esposa como uma mulher que devia res-
peitar sagradamente as suas decisões irrevogáveis e cuja obrigação era apadrinhar as manifestações da
sua suprema vontade. Na época do nascimento do Cláudio, confessava aos amigos de bar e colegas de
trabalho, que Isabel era indispensável à concretização dos seus vincadíssimos atributos sexuais, um ins-
trumento preponderante para a cabal afirmação da sua masculinidade.

Como é costume acontecer, Severino Santos e Cunha transcrevera esta estupidez das suas encarna-
ções anteriores. Todavia, em vez de ir ter contigo, Mestre, em busca de um momento de nascimento que
lhe proporcionasse uma família onde purgar essa estupidez, preferiu ignorar-te. Assim, viu-se forçado a
aceitar a família que os Senhores do Karma lhe designaram. É claro que, devido à baixa frequência dos
seus campos, a Lei da Ressonância fez com que o seu pai fosse um homem igualmente rude e boçal. É
claro que a estupidez do Severino, agora encarnada, viu nisso um alibi sensacional para culpabilizar o pai
por lhe ter passado tais características. Através deste desgastado e muito praticado estratagema, a sua
mente perversa desvinculava-se de qualquer responsabilidade de ser como era.

Portanto, Severino aceitava tranquilamente o destrambelhamento psicológico que derivava da sua


boçalidade nata, ao acreditar que herdara do pai uma natureza propícia ao seu florescimento. Por isso,
nunca entendeu que fosse possível detectar aspereza no seu comportamento ou abusos na sua filosofia de
vida. Como jamais aceitou qualquer chamada de atenção, viveu como se tivesse recebido permissão para
permanecer neste mundo respeitando, exclusivamente, as ordens dos seus desejos e do seu ditatorial po-
der de decisão.

Como podes ver, Mestre, este planeta ainda é pisado por pessoas bastante comprometidas com as for-
ças involutivas. Faço este reparo embora saiba que tais pessoas estão cá, precisamente, para evoluírem e
chegarem a comprometer-se com a Luz. São irmãos que precisam de toda a ajuda que lhes possamos dar,
pelo que o nosso amor incondicional as deve aceitar como são, vendo o Espírito nelas, mesmo quando o
seu comportamento nos choca ou desilude.

A verdade, porém, é que este arquitecto marialva falhou na tarefa de ganhar consciência acerca de si
próprio e na flexibilização do seu rígido carácter. A única razão que encontro para esta cegueira é ter
preferido usar a sua energia para manipular e transformar os outros, em vez de se transformar a si mes-
mo.

A mãe do Cláudio, a minha amiga Isabel de Sousa Fonseca e Cunha, ao invés do seu primário marido,
começou por ser uma adolescente um pouco tímida e atreita a devaneios sonhadores, mas o casamento
acabou por a transformar numa mulher com tendências para a passividade resignada. Antes, porém, de
conhecer aquele que haveria de ser seu marido e pai do Cláudio, teve direito, como qualquer jovem que
se preza, a um período de iniciativa desimpedida. Ao sentir uma vida inteira perfilando-se à sua frente,
acalentou muitos sonhos e deu rédea solta à fantasia acerca do seu futuro.

Portanto, ingenuamente segura desses sonhos, acreditou que, um dia, alguém apareceria para a fazer
feliz, e passou a viver de acordo com essa crença. Contava, pois, que o bom Deus afastaria os escolhos
traiçoeiros da sua rota. Sabendo-se uma jovem educada, com bom íntimo, capaz de perdoar e compreen-
der, amiga de compartilhar e adversa à pratica do mal, sempre acreditou que Deus jamais lhe daria a pro-
var o acre sabor do sofrimento. Pelo simples facto de nunca ter prejudicado fosse quem fosse, achava-se
ao abrigo do descontentamento divino.
Nessa altura, ninguém lhe disse que Deus nada tem que ver com o assunto.

A sua vida de menina de olhar cândido decerto teria tomado outro rumo se, nesses tempos, alguém
lhe tivesse dito que convém viver sem qualquer tipo de dependência – mesmo de Deus – e que a prática
desta liberdade implica, evidentemente, uma profunda responsabilidade. Isabel desconhecia que podemos
viver sem dependências porque estamos permanentemente acompanhados por Quem nos ama, e que a
ajuda incondicional dos núcleos superiores do nosso próprio ser está sempre disponível. Mas, para que
possamos experimentar isto claramente, temos de nos doar ao Alto praticando o desapego e a desidentifi-
cação com as formas e as estruturas mundanas, pessoas inclusive; temos de treinar a ausência de ambi-
ção, de vaidade e de egoísmo, transcendendo os estímulos interiores; temos de nos descartar dos medos e
das dúvidas; finalmente, temos de cultivar a capacidade de silêncio e de entrega à Missão Maior.

Estou convicto destas premissas porque tu, Mestre, mas ensinaste. As passagens pela Terra enquanto
Nark, Juan de las Casas, Chuva Prateada e, principalmente, enquanto Caius, o centurião, foram decisivas
para esta aprendizagem.

Mas é natural que Isabel de Sousa Fonseca pensasse como pensava. Como a ingenuidade ignorante a
embalava, ajuizava Deus como uma entidade com atributos humanos e, como tal, capaz de julgar com
base em conceitos morais acerca do que é bom ou mau. Além disto, o que é soberbo, achava o Criador
capaz de dispensar atendimento personalizado a cada um dos seus filhos. A sua mente, potencialmente
pura mas ainda nublada, jamais questionara por que haveria Deus - que dotou os membros da sua Criação
com tudo o que precisam para se desembaraçarem sozinhos - de dar-se à trabalheira de se preocupar com
cada um dos seus rebentos?

Parece-me que só uma personalidade tomada pelo egoísmo poderia desejar que Deus virasse a sua
divina atenção para ela, e ficasse ali, sempre atento, todos dias, todas as horas, para que a vida lhe cor-
resse de feição e os sonhos se mantivessem por esfumar. É claro que este egoísmo estava eficientemente
camuflado por uma farda de «pessoa bondosa». Como se isto fosse pouco, e apesar de se dizer religiosa,
permanecia espiritualmente estática, à espera que fosse Ele a aproximar-se dela. Naturalmente, nem lhe
passou pela cabeça dar um mísero passinho ao encontro Dele... para além daquele que ela julgava dar
indo à missa todos os domingos. Enfim, como só se via a si mesma no espelho, esquecia-se que este plane-
ta está infestado de milhões de criaturas querendo e esperando exactamente o tal atendimento personali-
zado.
Haverá algum ser, mesmo divino, que consiga resistir a uma coisa destas?

Bom, um dia, durante umas férias no campo, fui dar com ela deitada numa rede, presa entre duas ár-
vores. Olhava o vácuo, à espera que a vida lhe acontecesse. Conduzi a conversa para estes assuntos e, às
tantas, quando ela revelou a forma como avaliava o Divino, acabei por lhe dizer:
- Sabes, Isabel, aquilo a que nós chamamos «Deus» a uma incomensurável e incompreensível dimensão
que tudo contém, de onde tudo provém, desde o calhau ao guru. É isso, aliás, que todas as religiões asse-
guram anunciando que Deus está em toda a parte. E tudo se mantém em constante transformação evoluti-
va: quando incentivamos a evolução, avançamos decisivamente; quando temos medo, ficamos parados, ou
seja, suspendemos o processo evolutivo. Mas, apesar destas pausas aparentes, o movimento de retorno à
Unidade é imparável. Todos nós somos um prolongamento, um ramal, uma gotinha dessa energia, saída
dessa Dimensão Maior. E o facto dela estar «presa» dentro destes corpos físicos, nem altera a sua nature-
za, nem desmente a sua origem. Para essa Dimensão estamos a caminhar: um dia, quando nos tivermos
purificado convenientemente, nela seremos reintegrados. Isabel, dentro de ti, tens tudo o que precisas
para fazer a única escolha possível, para permitires que a alma absorva o teu ego matreiro. Tenta desobs-
truir os canais que te ligam a esse Núcleo Primordial, para que brilhe a Luz que, pacientemente, espera
dentro do teu peito.

Quando terminei, ela olhou para mim com cara de sono, abanou ligeiramente a cabeça e disse:
- Ó Vitorino, devias ir à missa mais vezes!

Como podes verificar, Mestre, se os irmãos rudes/agressivos, como Severino, vivem com a essência
humana soterrada, também os ingénuos/inocentes, como Isabel, precisam das pálpebras levantadas. Em
relação a este «acordar» deve-se, é claro, esperar pelo tempo certo, dado que as hormonas para o cres-
cimento espiritual ainda estão para ser inventadas. Porém, ao considerar a premência ascensional destes
tempos que vamos vivendo, é obvio que ainda há imensa gente necessitada de um pequeno empurrão.

Confesso-te, Mestre, que tenho reflectido bastante sobre isto. Assim, creio que a diferença entre os
ingénuos/inocentes e os rudes/agressivos é que o mundo dos rudes/agressivos raramente é perturbado
pela acção dos ingénuos/inocentes. Como tenho verificado, as consequências de os ingénuos/inocentes
serem como são, ocorrem no seu próprio mundo sob a forma de desilusões. No entanto, será que os ingé-
nuos/inocentes, como Isabel, estão mais perto da Casa do Pai por, apesar de tudo, já disporem da sereni-
dade decorrente da sua inocência?

Tu conheces a resposta a esta pergunta, claro, mas, como é costume, preferes que eu a encontre sem
ajuda alheia. Muito bem, seja feita a tua vontade em vez da minha. Mas, como já me conheces há imenso
tempo, sabes perfeitamente que gosto de reflectir sobre estas questões. E foi através da reflexão que
reparei que Deus sempre encorajou a Humanidade a ser boa e generosa. Tanto quanto sei, todavia, nunca
a aconselhou a ser ingénua. Estou em crer que Ele gostaria que nos limitássemos a ser simples.

Olhando outra vez, parece-me que Deus será tudo, menos ingénuo; certamente será inocente e sim-
ples; ingénuo, duvido. Ora, se nós somos um prolongamento Dele, se O trazemos no coração, por que
haveríamos de preferir a ingenuidade? Por outro lado, se o Todo abarca tudo, também abarca a ingenui-
dade. Quer dizer: o Pai deu-se a liberdade optar pela ingenuidade sempre que lhe apetecer. Agora a per-
gunta: terá sido Deus ingénuo quando resolveu criar o Homem?
Se eu conseguisse ouvir a tua resposta, decerto me dirias que toda este palavreado é pura perda de
tempo. Nada se pode dizer sobre o Pai, dado que nenhum atributo humano lhe pode ser atribuído. Como
se diz em certas zonas do Oriente, o Tao sobre o qual se pode falar é tudo menos o Tao!

Por conseguinte, embora ingénua, a Isabel estava longe de ser parva, como costuma ocorrer com os
ingénuos. Foi por isso que, poucas semanas após ter começado a namorar com Severino, quando se aper-
cebeu que ele estava a enjaular a sua liberdade, foi capaz de reconhecer que o filme das suas projecções
juvenis, afinal, estava irremediavelmente desfocado. Como o amava, preparou-se para aceitar esse desti-
no... embora mantivesse a esperança de se ter enganado quanto à desconfortável intuição enjaulamento.
Esperou pouco, porém, para que aquilo que os seus olhos interiores haviam visto se tornasse dolorosamen-
te real.

Efectivamente, o marido bem cedo lhe retirou a emancipação adquirida durante a infância e juventu-
de, obrigando-a a comportar-se como se, colocar uma aliança no dedo, implicasse a prestação de vassala-
gem assim como a disponibilidade necessária para se manter permanentemente ao seu serviço. E, dentro
da jaula, começou a nascer o medo da servidão prolongada. O cativeiro insinuou-se na vida da Isabel com
um sabor muitíssimo amargo porque pensava que a chave da sua liberdade estava guardada no cofre da
pessoa que amava.

Amava ou julgava amar, pois, como sabes muito bem, Mestre, é facílimo confundir amor com carência
afectiva ou necessidade de segurança. E, se bem te lembras, o áspero manto da solidão também costuma
ter uma palavra a dizer nestas questões. Um grande constrangimento, portanto, começou a fermentar no
coração de Isabel ao reconhecer como era frustrante ser manipulada pela pessoa que amava, como era
triste verificar que Severino se servia dela tirando partido da sua genuína dedicação e entrega.

Passa-se o mesmo, aliás, quando decidimos amar deuses. Quando assim é, com eles compartilhamos a
vida e o coração, o pensamento e a vontade na esperança de sentirmos apoio e protecção. Desejamos que
estejam connosco tal como ansiamos que a «outra metade» nos afague e ampare. Sequer nos aperceber-
mos que estamos a dizer «sim» a uma farsa de casamento divino, o qual esperamos que funcione às mil
maravilhas. Depois, convencidos de que esta cumplicidade com os deuses nos protege, desatamos a fazer
o que nos dá na gana. Lógico: por que iriam os deuses faltar com o seu celestial amparo? Então, baseados
nesta presunção, limitamo-nos a repetir, alegremente, os conceitos que nos ensinaram, a fazer o que
ouvimos dizer que deveria ser feito, a dizer o que ouvimos dizer que deveria ser dito. Esquecemo-nos,
porém, do mais importante: abrirmo-nos para os planos superiores para que, com a ajuda deles, fazermos
o que é devido ao nosso desenvolvimento... em vez daquilo que nos dá na gana!

A coisa torna-se ainda mais interessante quando nos apercebemos que mui tristes e lamentáveis con-
sequências nos caem sobre a cabeça quando pomos a repetir padrões que estão bons para levar à crema-
ção. Aí, ao acharmos que fomos traídos, desatamos a chorar a nossa sorte miserável porque os deuses, ou
nos abandonaram, ou se serviram da nossa «genuína dedicação e entrega».
Pois é muito bem feito! Quem nos manda ouvir o nosso eu-ego, que tudo faz para nos convencer de
que somos marionetas? Quem nos manda abdicar do poder do eu-espírito? Queremos tanto agradar a Deus,
deuses e demais entidades que acabamos por fazer exactamente o que é mais desaconselhado. Às vezes, é
tão patético que até dá vontade de rir. Ora, já que nós evitamos rir da nossa própria ingenuidade – prática
que deveríamos adoptar, evidentemente - riam-se vocês aí, que é para ver se ganhamos um pouco de ver-
gonha na cara!

O erro está no facto de colocarmos a Luz, exclusivamente, em alguma entidade «lá de cima», como se
nada tivéssemos a ver com ela. Portanto, se algum «deus» é o guardião dela (que sorte!), é claro que
temos de lhe suplicar uma dose, de vez em quando, para aliviar a escuridão em que estamos metidos. Mas
essa Luz tanto está em cima, como está em baixo, porque o «cima» e o «baixo» são feitos da mesma coi-
sa. Se há tantos séculos «sabemos» ser assim, porque somos incapazes de «sentir» que é assim?

Sem activarmos essa Luz residente nos nossos núcleos internos, passamos a vida pensar que ela nos
evita sistematicamente. O resultado, por vibrarmos fora da Luz, é desencadearmos uma ressonância nega-
tiva com os terrestres a quem nos afeiçoamos e para cima de quem projectamos carências e inseguranças.
Quando, finalmente, percebemos que tudo se passa nos planos internos do nosso ser, ganhamos a capaci-
dade de resolver todos os conflitos internamente. Só assim se evitam as velhas «causas» ambíguas... as
quais, apesar disso, desencadeiam «efeitos» muito concretos!

Mestre, eu sei que tudo está no centro do coração. É por isso que estou aqui a conversar contigo, ape-
sar de ter deixado de ouvir as tuas respostas nos meus ouvidos físicos. Por causa desta espécie de surdez,
tenho que sentir as respostas... o que vem a dar no mesmo. Vistas bem as coisas, é sozinho que reflicto
sobre esta questão do Cláudio e seus interessantíssimos pais.

Portanto, a cruz que Isabel haveria de carregar por muitos anos, só começou a ferir-lhe os ombros,
quando o namoro já ia avançado. Os primeiros arrufos foram digeridos e ultrapassados porque aquelas
criaturas apaixonadas - isto é, repletas de boa vontade! - encaravam as divergências de opinião como os
ajustes inerentes a qualquer relacionamento. Aquilo foi relativamente fácil de aguentar porque permane-
cia a esperança de que o ambiente haveria de melhorar. Portanto, para que a situação mostrasse toda a
sua nudez realista, foi preciso esperar que o casamento esfumasse as imagens irreais da paixão, através da
iluminação dos equívocos onde toda aquela salada de carências estava alicerçada desde o princípio.

Tinham-se conhecido num cinema, a propósito de uma troca de cadeiras. Ela, que chegara primeiro,
sentara-se inadvertidamente no lugar que estava destinado a Severino. Quando ele chegou, Isabel deu
pelo engano, pediu desculpa, procurou ceder-lhe o lugar, mas ele garantiu ser desnecessário, pois era-lhe
indiferente sentar-se fosse onde fosse... «...desde que seja ao seu lado», gracejou.
Ela sorriu; ele pensou: «Bom sinal!»

Nessa altura, Severino vivia os seus 36 anos enredado na solidão azeda e intragável de um divórcio
recente. O seu abatimento era evidente no ar amargurado e nas olheiras fundas, marcas de um grande
desamparo que logo muito impressionou a essência romântica e sentimental de Isabel. No fim da sessão,
Severino, mui respeitosamente, convidou-a para uma pequena ceia de omelete simples com cerveja; Isa-
bel, porque fosse cedo, aceitou de bom grado.

A ceia inesperada foi agradável, mas a coisa começou a desafinar a partir do momento em que saíram
da cervejaria. Aí, bem que Isabel tentou despedir-se, mas ele propôs um pequeno passeio, porque... «gos-
taria de a conhecer melhor. Importa-se?».
Isabel importava-se mas resolveu contrariar-se e aceder no «pequeno passeio». O desequilíbrio do Se-
verino veio então à superfície: pouco depois de começarem a andar pela avenida abaixo, puxou pela sua
pessoa e desatou a falar si mesmo, ainda por cima através da pior via, ou seja, despejando lamentações e
expondo carências, do tipo «sou um infeliz e ninguém me compreende». Completamente manietado pelos
encontrões do seu inconsciente, Severino limitou-se a expor a sua fragilidade e a sua visceral necessidade
de reconhecimento, convencido que estava a ser sedutor.

As horas foram passando, a madrugada chegou, e aquele homem que se via como um pobre desventu-
rado, teimava em arrastar a sua nova companhia pelas ruas da cidade, fazendo esticar a oportunidade
para desfiar queixumes. A esmerada educação de Isabel, misturada com a sua uterina timidez, impediu-a
de parar com aquilo e mandar o homem de volta para casa, pois já eram mais do que horas de estar a
dormir. Assim, aquele teatro de gosto duvidoso acabou por durar a noite inteira. Durante as frias horas
daquela noite só ele falou, só ele lamentou penas e maldisse a sorte, só ele descreveu prolixamente o
vazio para onde a má fortuna de um casamento falhado o atirara. Ela ouviu serenamente e, quando se
atreveu a fazer perguntas breves, ouviu respostas longas e elaboradas.

Às tantas, enquanto iam passeando, Isabel permitiu que Severino lhe passasse o braço sobre os
ombros; dez minutos depois, quando atravessavam um pequeno jardim naturalmente deserto, viu-se a
corresponder, atabalhoadamente, a um fogoso beijo que lhe chegara aos lábios sem aviso prévio. Resulta-
do: quando aquele frémito entontecedor acabou de endurecer as fibras dos seus músculos accionando
alarmes em todas as saliências e reentrâncias do seu corpo... começou a sentir pena dele!

Ah! para algumas jovens é irresistível ouvir um homem a denunciar as costuras rotas, vê-lo a despejar
dores e frustrações nos seus ouvidos bem intencionados!

Ora, como este estratagema raramente falha, a algaraviada inconsciente do discurso destrambelhado
de Severino, acabou por despertar os sentimentos maternais de Isabel. Assim sendo, estava-se mesmo a
ver que, perante a carência daquele homem, o seu coração começaria a vibrar no mesmo comprimento de
onda. Para ajudar à festa, e a julgar pela forma como a abraçara e beijara, a ternura também fazia parte
do seu carácter; isto, sem esquecer a inteligência. Que Deus fosse louvado, por lhe ter enviado um homem
tão interessante!
No final da noite, enquanto trocavam os números de telefone, ele garantia que entraria em contacto.
Depois, ali ficaram, que tempos, trocando mais beijos molhadíssimos, adiando o inevitável momento da
despedida.
O Severino regressou a casa todo entusiasmado, contente por ter encontrado uma alma sensível que
se mostrara disposta a ser o receptáculo dos frutos bichosos do seu autodesconhecimento. Mais: o machão
que habitava descaradamente dentro dele, garantia-lhe que o «borrachinho estava no papo»!

Quando Isabel, com os ouvidos a zumbir, meteu a chave à porta, já ia bastante tentada a ajudar
aquele homem a sair do lodaçal para onde a incompreensão de outra mulher e os cordelinhos dos tais deu-
ses o haviam atirado. No dia seguinte, porém, quando ele telefonou para, sedutoramente, lhe perguntar
se dormira bem e se gostaria de jantar com ele, o coração liquefez-se-lhe e escorreu até empapar-lhe as
entranhas. Perturbadíssima, aceitou o convite com a voz embargada por uma inqualificável sensação nos
intestinos. Foi nesse estado de espírito lamentável que correu para a escrivaninha, puxou por uma folha
de papel e, numa espécie de estado de graça, desabafou um poema, com título e tudo:

AMOR

Ainda soletro o verbo amar com vontade medrosa.

Aprendo com a Luz porque faz vibrar a minha Água.


Aguardo ser Luz porque sou Terra e me sinto opaca.

Se eu dominasse este idioma de quatro letras,


seria a alegria suprema do Amor ser semente e ser fruto.

Quer isto dizer, em linguagem prática, que a tentação de reconduzir aquele homem caído de volta à
alegria, se transformou numa resolução inabalável. De repente, depois de tantos anos de mesmice, sentia-
se possuída pela graciosa sensação de que a vida merece a pena ser vivida e que, afinal, a felicidade exis-
te!

Isabel, porém, desconhecia um detalhe importante: antes de alguém poder entrar harmoniosamente
dentro da vida de outra pessoa, precisa encontrar primeiro a luz dentro de si. Sem esta condição essencial
é impossível compartilhar saudavelmente seja o que for; apenas é possível explorar, sugar, exigir, enfim,
vampirizar. Como seria de prever, a sua vibração «ingenuidade ignorante» atraíra uma criatura com um
padrão vibratório do tipo «ignorante ingenuidade»!

Deste modo, se Isabel foi incapaz de perceber que Severino se preparava para a usar como bengala e
ornamento, Severino foi perfeitamente capaz de perceber que Isabel reunia todas as condições para col-
matar a sua monumental carência e compensar o seu baixíssimo QI espiritual que tanto disparate lhe
aconselhava. Com estas premissas, facilmente se conclui que o desequilíbrio do macho Severino foi trans-
ferido para a bem intencionada Isabel... pessoa a quem, afinal, até essa altura, a vida até nem corria mal
de todo!

Mas como poderiam eles aperceber-se de tudo isto? É a tal coisa: sempre que estamos prestes a
metermo-nos em sarilhos, lamentamos que ninguém apareça para nos alertar para os riscos da situação.
Esperamos uma voz que, vinda de fora, nos advirta... mas somos incapazes de criar o silêncio necessário
para ouvir a voz que, vinda de dentro, nos sussurra! Nestas condições, ao eu-ego só lhe resta desistir ou ir
em frente. Regra geral, vamos em frente porque a carência nos empurra. E já é muito bom quando esse
eu-ego é capaz de reconhecer que todas as experiências vividas, sejam de que género forem, tenham o
sabor que tiverem, são uma fonte inesgotável de ensinamentos. Isabel e Severino, porém, ingenuamente,
ainda viviam as suas vidas respeitando o desgastado axioma: é tentando que se erra; é tentando que se
acerta.

E continua-se a dizer que «esta vida é assim», que «estas coisas acontecem a toda a gente; como que-
rias que fosse?», pois ainda são muitos aqueles que passam de vida para vida sem sair do sono, mantendo-
se acordados apenas para a irrealidade do que os olhos vêem. Que Deus, ou quem estiver encarregado
dessa tarefa os acorde gentilmente, pois está-me cá a parecer que a dor de acordar desse sonho é tão
grande como a dor que acaba por se sentir por dormir para além da conta.

Adiante. É claro que o relacionamento entre Severino e Isabel partiu à desfilada e, em breve, come-
çaram os preparativos para o casamento. A mãe da Isabel, Dona Herculana, quando viu a filha na disposi-
ção de casar, determinou que o enlace tinha de ocorrer na igreja. Tamanho entusiasmo levou-a a atrelar a
carroça à frente dos bois e, como católica eficiente que se orgulhava de ser, foi a correr falar com o
padre. A intenção desta pressa era boa: reservar o dia dedicado a Judas Tadeu, santo da sua devoção, e
aproximar-se ainda mais do céu, marcando uma hora para as reuniões de aconselhamento matrimonial.
Mas logo verificou que se precipitara, que deitara foguetes antes da festa, que confiara demasiado,
no seu entusiasmo. Realmente, quando Severino recusou terminantemente a ideia justificando que as
reuniões de aconselhamento matrimonial com o padre eram uma treta pegada, viu-se na obrigação de
correr outra vez para a igreja, desta vez para pedir perdão a S. Judas Tadeu, para desmarcar as datas das
reuniões com o padre e reconfortá-lo através da garantia de que o mundo estava perdido.

É claro que, quando ouviu esta ímpia rejeição do futuro genro, ficou logo de pé atrás com ele. En-
quanto pensava nas ralações que estas divergências espirituais trariam no futuro, defendeu-se o melhor
que pôde enumerando-lhe as vantagens de considerar os pios argumentos de um sacerdote acerca do
matrimónio. E afiançou que, apesar de o voto de castidade o impedir de ter experiência sobre a vida ínti-
ma de um casal, um padre sabe sempre muitíssimo bem o que está a dizer. E, do alto da sua experiência
de mulher casada, assegurou que os problemas matrimoniais derivam da falta de tolerância entre as pes-
soas, área onde um padre está perfeitamente à vontade. E estava cheia de razão a Dona Herculana. Mas a
conversa terminou quando Severino, afivelando o ar triunfal de quem detinha o argumento irrefutável, lhe
comunicou que já passara pelo altar por ocasião do primeiro casamento. Portanto, desta vez, a mesa do
notário chegava muito bem.

Casaram. Foi uma cerimónia singela no que tocou a convidados, já que apenas os familiares e os ami-
gos mais íntimos estiveram presentes.

Com tanta pressa e cegueira, é claro que ainda os lençóis conservavam o aquecimento provocado
pelos atritos frenéticos da lua-de-mel, e já Isabel obedecia incondicionalmente ao marido: tinha de supor-
tar os seus gostos, hábitos e opiniões, os quais, além disso, - começava a reparar agora - nada tinham a
ver com os seus. Era evidente que a sua vida passaria a ser condicionada pela presença egocêntrica, pelos
compulsões intempestivas, pelos desejos obsessivos e pelas opções individualistas daquela criatura que
considerava as mulheres como seres subalternos, óptimos para estarem em casa a cuidar da estética e da
cútis, orientando a criadagem e tratando dos filhos.

Severino poderia ser discreto em relação a esta filosofia, mas dava-se ao luxo de opinar em público -
inclusivamente à frente da esposa - que só assim as mulheres poderiam aperfeiçoar a função que sempre
lhes fora destinada, a qual era a de serem belos, atenciosos, dedicados e disponíveis suportes dos homens
com quem haviam casado. Estes, por sua vez, deveriam corresponder responsavelmente, proporcionando-
lhes segurança financeira, estatuto social e satisfação na cama. Se a vida de casados decorresse em obe-
diência a este padrão, nenhuma das partes teria de que se queixar.

Mestre: vê bem como eram as coisas: se assim era Severino, assim deveria ser Isabel!

Com os dados lançados com este tipo de impulso, o primeiro sintoma sério do envenenamento da
relação deu-se logo em Madrid, a cidade para onde viajaram em lua-de-mel: num domingo, quando o
romantismo inerente à situação convidava a um passeio pelas jardins do Retiro, Severino entrou no quarto
e comunicou à esposa que comprara um bilhete para o jogo de futebol entre o Real Madrid e o Barcelona!

A névoa cor-de-rosa começava a esfumar-se. E este levantamento da cerração fez com que, pela pri-
meira vez, Isabel batesse com a cabeça no muro da realidade: ouviu aquilo e duvidou que semelhante
coisa estivesse a passar-se com ela. Passado o primeiro momento de espanto, atreveu-se a confessar que
achava incorrecto ter de ficar sozinha no hotel, à espera que ele regressasse do jogo de futebol.
- E depois? O que é que isso tem de mais? - perguntou Severino.
A desamparada Isabel tentou sensibilizá-lo para a aberração de passarem assim, separados, o primeiro
domingo de casados:
- Pois é. Mas sabe-se lá quando terei outra oportunidade de ver um jogo desta importância? Olha, sa-
bes que mais? Acho melhor começares a gostar de futebol!

Perante o absurdo da cena, Isabel foi incapaz de desmobilizar o marido; ele já tinha decidido e, por-
tanto, nada conseguiria demovê-lo dos seus intentos. Por isso, quando chegou a hora de Severino sair para
o estádio, Isabel limitou-se a ficar carrancuda; à despedida, disse-lhe que achava aquilo de muito mau
gosto e - o que era mais grave - de muito mau agoiro. No entanto, depois de o marido ter saído com um
boné do Real enfiado na cabeça, logo se perguntou que direito tinha ela de «achar» fosse o que fosse?!

A luta interna começara. Naquele momento, lembrou-se que assinara de livre vontade a declaração
de casamento; e, na sua maneira de ver, isso implicava obediência ao marido. Portanto, respirou fundo e,
agindo de acordo com este preceito, passou a tarde recostada na cama a repousar os rins, enquanto pas-
sava os olhos enfastiados pelo número da Hola que o marido lhe comprara para que ficasse a conhecer os
dramas e os sucessos tremendos da alta sociedade espanhola. Quando o sol começou a aproximar-se do
horizonte, pôs a revista de lado, encomendou o jantar e começou a preparar-se para a sessão nocturna de
obediência sexo-matrimonial: tomou um banho, perfumou-se e passou que tempos a pôr creme hidratante
nas coxas, que já estavam cheias de cieiro.

Ah, Mestre, quantas vezes me pergunto porque é que continuam a permitir que os nossos eu-ego
façam semelhantes coisas uns aos outros? Sei perfeitamente que a lei do livre-arbítrio vos impede de
intervir, que temos de ser nós a decidir acabar com estes comportamentos, mas - Pai! - quando acabará
esta demência?

Bom, a partir daí, mesmo sem sair de Madrid, a prensa jamais parou de apertar a cabeça de Isabel.
Depois do episódio do futebol, a coisa continuou com o marido a desprezar o desejo de Isabel de assistir a
um espectáculo de zarzuelas, justificando: «tens lá muitos discos em casa!», e terminou com ele a deter-
minar que regressariam a Portugal antes da data prevista. E, como para Severino, coisa dita é coisa feita,
mandou fechar a conta do hotel, pegou na mulher e nas malas, meteu tudo dentro do Porsche descapotá-
vel e regressou a casa, cinco dias antes da data prevista. Enquanto punha o motor a trabalhar, alegou:
- Isto aqui está muito perigoso com esta história da ETA; em Portugal está mais tranquilo. Além disso,
regressando mais cedo, faço uma surpresa ao pessoal lá do bar!
- Então e eu?
- Tu? Quanto mais cedo chegares a casa, mais depressa organizas as coisas p'ra que o teu maridinho se
sinta lá bem!

Por conseguinte, aquela mulher que, mais brevemente do que supunha, iria ser a mãe do Cláudio, lá
veio recambiada para casa. Durante o caminho, passou os olhos pela paisagem e roeu tantos bombons
quantos os necessários para disfarçar a amargura que lhe punha nódoas de lixa na língua.

2 - ...do Filho...
Os meses foram passando, e Severino manteve-se ao leme da família, isto é, dava dinheiro, reprimia
contestações e exigia o almoço, enquanto se deixava cair no sofá com o jornal desportivo aberto à frente
dos olhos avermelhados. Para completar o quadro do marido socialmente reconhecido e manter a esposa
apresentável, continuou a dar-lhe todos os perfumes, cosméticos e vestidos que ela pedia, ou era suposto
desejar, pois a sua imagem de homem bem sucedido na vida tinha de manter-se impoluta aos olhos da
sociedade. Mantendo os hábitos de solteiro - o que, para ele, só demonstrava a firmeza do seu carácter -
persistia em passar os serões com os amigos. Além disto, como também havia «amigas», tirava para si uma
noite por semana. Naturalmente, a hora de chegada a casa era sempre imprevisível, tal como eram im-
previsíveis as suas reacções se Isabel lhe pedisse explicações sobre este desaforo. Escusado será dizer que
continuou a utilizar a sua gabadíssima e compulsiva virilidade para violentar Isabel, apesar de ela lhe
pedir que fosse carinhoso, esperasse mais um bocadinho e evitasse adormecer logo a seguir. Enfim, conti-
nuou a ser aquilo que considerava que um homem deveria ser: alguém que mantém erecta a sua vontade,
pois sabe que domina.

Um dia, Isabel, toda contente, comunicou-lhe que estava grávida. Severino limitou-se a responder en-
quanto palitava os dentes:
- Agora, vê lá se cais!
Esta postura alheada, típica de quem evita envolvimentos emocionais – coisa que considerava uma in-
desculpável fraqueza - teve consequência dramáticas. Assim, quem pousou o ouvido sobre o umbigo da
grávida, quem deu massagens para evitar as estrias, quem prestou todo o apoio e se assustou ao menor
enjoo, quem ansiou nervosamente a chegada a criança foi Dona Herculana. Cada vez que se lembrava que
ia ser avó, meditava num baptizado sumptuoso que compensaria o prior do que se passara com o casamen-
to. Nestas tarefas indispensáveis a uma gravidez sem sobressaltos, Isabel também recebia o apoio da sua
irmã Catarina, da empregada Cesaltina e da Dona Carla, a vizinha do apartamento em frente.

Apenas um aparte, um tanto ou quando à margem desta história, para dizer que esta Carla, por ser
muito bem casada financeiramente, levava uma vida de tal forma alienada que se permitia gastar os anos
como se nada devesse a si própria. Dizia-se feliz só porque nada lhe faltava materialmente. Porém, nunca
engravidara; o seu campo emocional estava tão destrambelhado que o útero, evidentemente, recusava-se
a funcionar. Por isso, quando soube que a vizinha estava grávida, em vez de encarar os bloqueios e desen-
volver-se no plano afectivo - o que contribuiria para destravar o seu útero renitente! – tratou de viver a
sua maternidade frustrada através da barriga de Isabel.
Portanto, ainda o Cláudio estava escondido, já estas quatro mulheres dormiam com um olho aberto e
o outro fechado, antecipando as noites de vigília dos primeiros meses de vida do Cláudio.
Todas desejavam, é claro, que nascesse uma menina. Então, certas de que o Criador satisfaria tão
insignificante desejo, trataram de coleccionar um enxoval exclusivamente em tons de rosa e mandaram
pintar o quartinho a condizer. Uma boneca enorme, comprada em Madrid, que arrotava quando a inclina-
vam para frente, foi sentada em cima do guarda-roupa; ali ficou, na passividade do seu plástico e na bele-
za duvidosa dos folhos do seu vestido vermelho com pintinhas pretas, à espera sabe-se lá de quê.

Por conseguinte, estava Cláudio a esforçar-se por organizar, convenientemente, uma babilónia de
células e humores dentro da barriga da mãe, e já aquelas mulheres saltitavam numa roda viva preparan-
do-lhe um ambiente acolhedor, confortável e protegido, no interior do qual pudessem apaparicá-lo e
mimá-lo o mais possível. Por fim, Isabel e Dona Herculana cometeram o último e mais grave erro: passa-
ram a acreditar que a chegada da criança curaria Severino da sua estroinice, recomporia a família e aca-
baria com o marasmo da vida que se levava naquela casa.

A clamorosa falta de comunicação existente naquela casa, devia-se a que o clã das mulheres olhava
para um lado e o individualismo do único homem mirava no sentido oposto. Severino, convencido de que o
ambiente do lar reflectia o domínio que ele lhe impunha, cobria o mulherio com a sua presença de galo
desdenhoso. Claro que o interesse e o empenho das mulheres pela gravidez de Isabel o tranquilizava, pois
sabia que o filho estava e estaria protegido. Orgulhava-se de ver a esposa bem inserida no esquema fami-
liar que preconizara e envaidecia-se por nunca ter detectado o mais leve sinal de rebelião. A isto somava-
se a tranquilidade de ver o seu estúdio de arquitectura reconhecido socialmente, assim como a felicidade
de verificar que o seu nunca suficientemente louvado Sport Lisboa e Benfica caminhava, imparável, para a
conquista de mais um título nacional de futebol. Uma vez que os amigos e o gim permaneciam fiéis, e as
amantes disponíveis, achava que a vida lhe corria bem.

Contudo, o casulo que as fêmeas estavam a tecer por fora da barriga da grávida, era uma teia armadi-
lhada de onde iria sair uma borboleta geradora de consequências lamentáveis. Desde muito cedo aquelas
quatro mulheres tinham pedido ao obstetra que se limitasse a controlar o crescimento da criança sem
revelar de que sexo era; em relação a este assunto, aguardar para ver. De forma que todos esperaram
com a paciência possível nestas condições: enquanto as mulheres tinham a certeza que Deus lhes daria um
corpo feminino, Severino tinha a certeza que iria ter um rapagão a quem passaria todos os valores da sua
máscula personalidade.

Com este cenário montado, o momento da revelação do sexo da criança foi inesquecível: quando o
Cláudio nasceu, as mulheres tiveram uma desagradável surpresa e viram-se obrigadas a deglutir silencio-
samente a sua decepção, enquanto se confrontavam com os gestos de júbilo de Severino, os quais, inequi-
vocamente, queriam dizer: «Consegui!». Contudo, este vitorioso cerrar de punhos impediu-o de perceber
que estava condenado a perder o desafio contra a mulher, a sogra, a nora, a empregada e a vizinha. Nos
primeiros dias mantiveram-se conformadas com a ausência de uma menina, mas logo começaram a con-
geminar uma saída que compensasse a rasteira que a cegonha lhes pregara. Portanto, achando que nada é
irreparável - até uma decisão da Natureza! - a mãe Isabel, a avó Herculana, a tia Catarina, a empregada
Cesaltina e a vizinha Carla depressa chegaram à conclusão que, para compensar o desejo frustrado, ape-
nas tinham de lidar com o Cláudio como se ele fosse do sexo oposto.

O pai, nos primeiros meses, nem se apercebeu desta resolução; quando deu por isso, o governo femi-
nino já estava instalado e cristalizado. Numa tentativa de evitar que as consequências daquela situação se
projectassem no futuro, refugiou-se na esperança de que a masculinidade do filho - que tinha de ser in-
trínseca, pois dele provinha - em breve haveria de se manifestar espontaneamente. Assim, revoltando-se
contra aquelas interferências femininas e apaparicadoras, o Cláudio certamente acabaria por espernear
quando o amassassem com beijocas repenicadas; rejeitaria os bibes cor-de-rosa e arrancaria os laços no
cabelo; mais tarde, daria safanões nos frascos de perfume e recusaria as tranças; quando soubesse falar,
exigiria que pintassem o quarto de vermelho e manifestaria uma vontade irredutível de usar o cabelo cor-
tado à homem. Finalmente: quando visse o filho a espreitar para dentro do decote da Dona Carla ou o
ouvisse dizer à avó que, apesar da idade, ainda estava bastante comestível, então sim, poderia descansar
em paz para o resto da vida, pois teria a certeza de que o seu filho se encontrava em condições de conti-
nuar a sua estirpe.

Porém, Mestre, nada disso se verificou. Nesse tempo, foi decisivo para a educação do Cláudio o facto
de Severino passar o dia (e a maior parte das noites!) fora de casa. Embora jamais tenha reconhecido,
quer por si mesmo, quer pela boca de outras pessoas, foi o seu estilo de vida que o impossibilitou de con-
trariar a educação que a criança estava a receber daquelas mulheres. O que podia ele fazer sem alterar os
hábitos diários de trabalho, farra, copos e jogo? De que lhe servia barafustar contra as mariquices com
que elas empapavam a criança? Qual a vantagem de bramar a sua posição de macho dominante se era o
mulherio que conduzia a educação do Cláudio, manobrando-o a seu belo prazer?

Como é óbvio, o desvario de Severino tentava-o a dar bordoada nas mulheres sempre que via o filho
vestido de cor-de-rosa, quando o ouvia a imitar, com voz aflautada, o arroto da boneca de pilhas, quando
elas decoravam os seus caracóis louros com laços de veludo negro. Foi escusado ripostar oferecendo bolas
de futebol e carrinhos de Fórmula 1, assim como foi escusado falar grosso e abanar-lhe o corpinho para
que espevitasse. Para grande desespero de Severino, todas estas manifestações de virilidade apenas assus-
tavam perdidamente o Cláu.

A partir de certa altura, sempre que encontrava o pai, a criança desatava a fazer beicinho, subia-lhe
um rubor às facezinhas, já de si muito rosadas, e fugia para junto daquelas que se dedicavam a incremen-
tar a natureza feminina nascida naquele corpo masculino. Perante este comportamento, Severino sofria
duplamente: primeiro, o carácter do filho estava em total contradição com as expectativas que criara;
segundo, mesmo que conseguisse aceitar o filho como era, como poderia educá-lo, se ele o rejeitava?

Quando o Cláudio fez sete anos, já Severino estava completamente desiludido. Começou a acreditar
que houvera um erro qualquer na secção do céu que trata da atribuição do sexo às almas que se preparam
para reencarnar. Por que seria ele pai de um filho que, afinal, era uma filha num corpo masculino? Até lhe
vinham as lágrimas aos olhos quando o via sentado no jardim, com a cabecinha de lado, segurando uma
florzinha e apreciando as nuvens.

Assim que reconheceu como iria ser o futuro do filho, no auge do desespero, decidiu engravidar a mu-
lher outra vez. Isabel, contudo, achava que já tivera a sua conta ao aguentar uma gravidez dolorosa e um
parto complicado. De facto, ao suportar uma cesariana, Isabel evitou que o resto da família vivesse longas
e penosas horas de luto, já que o Cláudio estava enrolado no cordão umbilical e esteve prestes a ir desta
para melhor, como costuma dizer-se - com muito acerto, convenhamos.

E porque já reparara no estado de espírito do marido e na forma como ele vivia a relação com o filho,
foi-lhe fácil depreender que andava com desejos de repetir a paternidade para limpar a vergonha de ter
posto neste mundo uma criatura frágil, delicada e sensível; portanto, Isabel sabia que, mais tarde ou mais
cedo, acabaria por ter enfrentar as investidas de reincidência do marido. Então, sem lhe dizer nada, co-
meçou a tomar a pílula. Como lhe faltou a coragem para ir mais longe e recusar-se a ter relações sexuais
com ele, resignou-se a compartilhar a cama com uma pessoa que a desrespeitava: continuou a abrir as
pernas para que o marido pudesse servir-se à vontade, enquanto virava a cabeça para o lado, para fugir ao
seu olhar esbugalhado.

Por conseguinte, Severino teimava em cobrir inesgotavelmente uma mulher para quem aquilo já era
perfeitamente indiferente. Ela aguentava porque nem queria pensar no que aconteceria se tivesse o atre-
vimento de pedir o divórcio. Como iria o marido reagir? O que é que as outras pessoas iriam pensar? Como
se sustentaria? Assim, sentindo-se encurralada, suportava-lhe o peso, chorava às escondidas e deixava que
o marido se contraísse e urrasse sempre que lhe apetecia. Enquanto mulher, o seu prazer estava em saber
que aquela espécie de parceiro ignorava a acção do contraceptivo e que, por isso, eram escusadas tantas
e porfiadas tentativas para vê-la enjoada novamente. Estranha vingança!

Diga-se em abono da verdade que Severino, cheio de olheiras, também já nem se importava se a mu-
lher gemia ou deixava de gemer, se gostava ou deixava de gostar, se lhe doía ou dava prazer; o que ele
procurava, afincadamente, era voltar a sentir a alegria da paternidade... desde que fosse de uma criança
macho. Para isso precisava de uma mulher; ora, se era casado com aquela, devia exigir o seu legítimo
direito de fazer o que tinha de ser feito, usando os métodos que sempre utilizara e sempre haviam resul-
tado. Para reforçar esta posição, estava seguro do seu desempenho na cama, porquanto nunca antes ouvi-
ra queixas fosse de quem fosse. Aliás, curiosamente, das muitas mulheres que cobrira, antes e depois de
casado, fora a própria esposa a primeira a chamar-lhe a atenção para o facto de, invariavelmente, ele
adormecer em cima dela, depois se ter aliviado; e, levando ainda mais longe o descaramento, começou a
pedir-lhe que, antes de adormecer, ao menos se deixasse cair para o lado para que ela pudesse respirar!

O nosso arquitecto achava estranho e incompreensível este comportamento da esposa, na medida em


que as outras mulheres tinham o cuidado de se esgueirarem de debaixo dele, devagarinho, sem o acordar.
Portanto, se a sua legítima mulher decidira protestar contra o facto de ele adormecer em cima dela, tam-
bém tinha o dever de o ajudar a restaurar a sua honra masculina. Por conseguinte, jurou que haveria de
emprenhar a mulher outra vez e que jamais abdicaria de um filho garanhão.

Meu bom Mestre, embora tu conheças perfeitamente o funcionamento do nosso corpo de desejos,
desculpa-me estar aqui a referir estes crus comportamentos eivados de baixíssima energia. Poderá até
parecer uma imperdoável falta de respeito. Mas, porque estás definitivamente acima destes comporta-
mentos com que os humanos adoram perder-se, parto do princípio que nada disto te apoquenta. Se estiver
errado, avisa.

Então, perante o insucesso da sua cruzada fertilizante, Severino - que nem lhe passava pela cabeça
quantas vezes terá de bater com os costados neste planeta até ficar em condições de chegar onde tu es-
tás! - começou à procura de razões que justificassem aquele fracasso. De duas, uma: ou o útero da mulher
deixara de funcionar, ou - que Deus o livrasse de semelhante coisa! – os seus espermatozóides andavam
fraquinhos.

Quando Isabel começou a perceber que as dúvidas do marido estavam a chegar a este ponto, foi ter
com o seu ginecologista. Aproveitando o facto de ele ser um amigo de longa data, contou-lhe o sucedido e
pediu-lhe um laqueação das trompas. O médico alinhou na proposta da amiga, a intervenção foi feita re-
catada e secretamente, de forma que, quando o marido exigiu saber de quem era a responsabilidade do
desastre, foi impossível desembrulhar a questão.

Ao verificar que as saídas para a crise estavam todas bloqueadas, Severino optou por reconfortar a
frustração na boémia: cada vez eram mais noites fora casa até mais tarde, mais gim e mais mulheres... a
quem também já começava a faltar disposição para o aturar. As olheiras aprofundaram-se, a voz enrou-
queceu com a gritaria, a respiração passou a chiar lamentavelmente devido ao excesso de tabaco. O cabe-
lo oleou-se e os lábios, finos e severos, arroxearam-se mortalmente. Por fim, fruto das noites mal dormi-
das, os olhos passaram a andar aflitivamente injectados de sangue. Enfim, uma lástima de homem; um
complexo energético moribundo, um ser espiritualmente morto.

Nestas condições, como se sabe, a sacrossanta virilidade tende a ir por água abaixo. Assim sendo,
quando caiu este último bastião da máscula resistência, ou seja, quando o sexo cravou os olhos no chão, a
psique do Severino retraiu-se, retorceu-se, enovelou-se até ao ponto de nem prostitutas, nem amigalhaços
terem pachorra para conviver com semelhante frangalho.

3 - ... e do Espírito Santo.


Os anos foram passando e o Cláu, às tantas, já tinha 17 anos. Severino, embora sem deixar de morar
naquela casa, afastou-se da família e de tudo o que a ela dizia respeito. Justificando-se com imensos afa-
zeres no estúdio, raramente se sentava à mesa para uma refeição familiar. Todavia, de vez em quando,
sempre que se tornava insuportável a dor de ter um filho maricas (como ele dizia), voltava à carga ten-
tando regenerá-lo. De nada servia, porém; bem pelo contrário.

Viu-se obrigado a reconhecer-se pai de um filho abstruso quando, numa última tentativa para lhe des-
pertar a masculinidade, foi buscar a sua preciosa colecção de fotografias pornográficas. Mas, quando abriu
o álbum e se preparava para fazer uma dissertação sobre a matéria, reparou que o filho corou, começou a
torcer os anéis do cabelo dando sinais de querer sair dali. Então, sem saber donde vinha aquilo, Severino
sentiu um fogo abrasador a invadir-lhe o corpo todo e uma coisa negra a passar-lhe em frente dos olhos
que o levou a dar um violento par de estalos no filho. Cláudio, constrangido pela onda de crueldade ema-
nada pelo pai, encaixou as estaladas sem qualquer reacção.

Ao constatar a passividade do filho em face da sua agressão – outro sinal de que era muito pouco
homem! - o seu inconsciente activou o vulcão que há anos esperava uma oportunidade para entrar em
erupção descontrolada. O resultado foi de uma violência inexplicável, pois todo o ferro-velho psíquico foi
projectado para exterior através de uma explosão inaudita. Severino perdeu as estribeiras: com o olhar
inflamado por uma fúria descomedida, pôs o filho fora do quarto ao murro e pontapé, gritando «Recuso-
me a ser pai de uma bicha! Desaparece mas é da minha frente, antes que te mate!», e outras bestialida-
des do género, que me recuso a transcrever. Depois do filho sair, fechou a porta à chave, pegou no atiça-
dor da lareira e, carpindo convulsivamente as suas mágoas de séculos, partiu tudo o que podia ser partido.
Quando tudo ficou destruído e chorado, sentou-se na cama a fumar um cigarro. E ali ficou, a tremer,
olhando-se fixamente num caco do espelho que estava aos seus pés.
A Isabel, quando chegou do cabeleireiro, foi imediatamente avisada da tempestade que assolara o an-
dar de cima. Respirou fundo angariando energia, subiu as escadas e conseguiu persuadir o marido a abrir a
porta. Entrou e, ao reparar no estado em que a fúria animal deixara o aposento, limitou-se a ficar calada.
Então, coisa estranha, sentiu a sua consciência a ser invadida pela noção da gigantesca indiferença e des-
prezo que nutria pelo marido. Naquele momento, e pela primeira vez, o medo que ele lhe incutia desapa-
receu como por encanto. De facto, que razões haveria para ter medo de uma pessoa tão frágil? Sem dizer
uma só palavra, começou calmamente a apanhar as suas roupas espalhadas pelo chão levou-as para o
quarto de visitas. Antes de sair pela derradeira vez, abriu a boca para dizer àquela cavalgadura com quem
se casara que, a partir dessa noite iria passar a dormir sozinho. Que se aguentasse como pudesse!

Sim, Mestre, já sei que se o amor incondicional reinasse naquela casa, Isabel teria sido capaz de ver o
Espírito por detrás do eu-ego besta do marido. Mas que queres? Estamos todos a aprender e alguns estão
imensamente atrasados... Aliás, se o amor incondicional reinasse naquela casa, as coisas nunca teriam
chegado onde chegaram.

Enquanto isto se passava, Cláudio sentia-se sincera e profundamente abalado com a reacção do pai.
Manteve-se fechado no seu quarto, reflectindo sobre o que se passara. Quando se acalmou, e enquanto
esperava pela hora de jantar, decidiu fazer o que já sabia ser inevitável: assumir o que, há muitos anos,
estava à vista de todos! Depois de ter passado tantos anos a lutar para perceber por que razão a sua natu-
reza contrariava o que esperavam dele, finalmente, decidiu assumir o que sentia ser. Dava, assim, um
importantíssimo passo na integração da sua verdadeira natureza. E como estava muito mais desenvolvido
espiritualmente do que aquelas criaturas que davam pelos nomes de Isabel e Severino, sentia-se agradeci-
do ao pai por, embora sem intenção, ter desencadeado o seu processo de libertação.

Desceu para jantar - o pai, felizmente, faltou à refeição - sentou-se à mesa com um ar muito digno,
comeu em silêncio e ninguém reparou na determinação que transparecia das suas feições. A mãe e a avó,
demonstraram cumplicidade na troca de olhares e apaparicaram-no mais do que era costume com o intui-
to de o compensar da brutalidade paterna. Nem por um momento, porém, suspeitaram que aquela seria a
última refeição que tomavam em conjunto. Findo o jantar, Cláudio esquivou-se a ajudar a dobar os nove-
los de lã dos trabalhos da avó, como era costume, despediu-se beijando fugazmente aquelas duas mulhe-
res e subiu para o seu quarto.

Devido à perturbação resultante da cena com o pai, mãe e avó acharam natural que ele quisesse ficar
sozinho. Sabiam que, no dia seguinte, com a tempestade emocional já amainada, as coisas se recompo-
riam. Mas iriam ter outra surpresa: o Cláudio esperou que toda a gente estivesse a dormir, pegou na
pequena mala que arrumara previamente, saiu silenciosamente para a rua e foi bater à porta da casa do
seu professor de inglês.

Este professor estava a par do que se passava. Tinha a sensibilidade aguçada para tudo o que fosse
segregação de minorias e defendia a opinião, correctíssima aliás, de que toda a gente tem direito à sua
singularidade, quer por opção, quer por natureza. Recusava, veementemente, a segregação fosse de quem
fosse, pelo que considerava uma aberração intolerável alguém ser rejeitado pelo pai só porque possui uma
natureza que contraria as expectativas. Oferecera-lhe apoio e acolhimento porque o Cláudio lhe denuncia-
ra a intolerância paterna e porque reconhecia a dificuldade de lidar com alguém para quem um homem
tem de ser mais viril do que todos os outros homens e dominar sobre todas as mulheres ou perde o direito
de ser considerado do sexo masculino. Nesta base, de facto, era impossível. E, porque conhecia o pai do
Cláudio, suspeitava que, mais dia menos dia, o seu aluno haveria de romper com a família. Assim, quando,
naquela madrugada, ele lhe bateu à porta, constrangido e lívido, recebeu-o carinhosamente e tudo fez
para que se sentisse confortável.

Entretanto, Severino, depois de se ter cansado de olhar para o caco de espelho, foi à garrafeira bus-
car uma garrafa de gim e voltou a enfiar-se no quarto para curtir a desventura. Cerca da meia-noite, a
garrafa estava vazia. Então, ao verificar que também se tinham acabado os cigarros, saiu de casa em bus-
ca de um bar onde pudesse abastecer-se e beber mais um copo. Assim que chegou à rua, porém, ao atra-
vessar a ponte sobre o canal, apercebeu-se que, bêbedo como estava, jamais conseguiria chegar fosse
onde fosse. Por isso, achou melhor desistir dos cigarros e da bebida.

Então, aproveitando a maré de desistências, ocorreu-lhe que o melhor era desistir também da vida.
Era uma opção a considerar perante o descalabro que suportava. Mas, antes de se decidir, tinha de livrar-
se daquela má disposição; depois, mais aliviado, ponderaria nos prós e nos contras dessa tentação. Ago-
niadíssimo como estava, debruçou-se no parapeito da ponte e enfiou dois dedos pela garganta abaixo. Mas
o impulso do vómito foi tão violento que se desequilibrou para a frente, galgou a vedação e caiu desampa-
rado dentro de água. O brusco choque térmico fundiu-lhe a consciência; sem tempo para se debater,
afundou-se rapidamente. Deram com ele no dia seguinte, encalhado na represa à saída da cidade.

Como seria de esperar, Isabel afligiu-se com o desaparecimento de casa do marido e do filho. Ao con-
siderar as recentes cenas de violência e destruição, ocorreu-lhe que poderiam ter-se encontrado na rua e
reacendido o litígio que os desunia, que se tivessem engalfinhado à pancada e ido parar à esquadra ou ao
hospital. Por isso, sentiu um grande alivio quando recebeu um telefonema do Cláudio a confessar a opção
que tomara. Logo depois, o telefone voltou a tocar: era da morgue a convocarem-na para ir reconhecer o
corpo da pessoa que, ainda na véspera, era o seu marido.

A D. Herculana em vão procurou entender que raio de ideia passara pela cabeça do neto para ter ido
alojar-se em casa do professor de inglês. Em relação ao maldito genro, porém, o quadro mostrava-se tão
claro que passou uma semana a reafirmar que há anos andava a dizer que aquilo havia de acabar mal.
Ficou toda contente por ter razão.

O Cláudio, entretanto, depois de ter passado aquela noite em casa do amigo, tratou de pôr em práti-
ca a segunda parte do seu plano: na manhã seguinte, assim que abriram as agências de viagens, comprou
uma bilhete de avião para Londres e foi para o aeroporto. Telefonou à mãe dando conta da sua decisão e,
no dia seguinte, estava em casa do amigo Frederic, um gay da comunidade londrina que conhecera duran-
te as últimas férias, no Algarve.

Assim que chegou a Londres, voltou a telefonar à mãe dizendo onde estava e que ali iria ficar. Pre-
tendia encetar uma nova fase da sua vida, sem se preocupar com o abandono dos estudos no seu país na-
tal. Sem qualificações profissionais específicas, aceitou um emprego ao balcão de um bar onde paravam
indivíduos que lidavam com o mesmo problema familiar que ele conhecera e tivera a coragem de se liber-
tar.

A Isabel compreendeu e aceitou a opção do filho, até porque esta atitude de libertação fê-la reflectir
sobre a sua própria condição de dependência do marido, um homem com quem, desde muito cedo, deixa-
ra de se identificar, que deixara de amar, e por quem, depois da indiferença, começara a sentir uma re-
pulsa enjoativa. A morte do marido, no entanto, fora insuficiente para a libertar completamente: ainda
incapaz de se livrar desse laço, tentou sentir a sua liberdade possível através da real liberdade do filho.

Os anos foram passando e a vida, como sempre, seguiu o seu rumo sem se preocupar com estas dra-
matizações do baixo-astral humano. Sempre que podia, voava até Londres, passava uns dias com o filho,
deixava-lhe algum dinheiro e reiterava a sua disponibilidade e apoio para o que fosse preciso.

Soube recentemente que o Cláudio, depois de se ter submetido a uma intervenção cirúrgica, passou a
chamar-se Cláudia. Presentemente namora com um cidadão, a quem fez questão de relatar toda a sua
história. Vive feliz porque o seu novo companheiro aceita-a como ele foi e como ela é agora, sendo que
até lhe arranjou trabalho como secretária de administração de um sólido consórcio de arquitectura!

4 - Ámen.
Agora, Mestre, mata a minha malvada curiosidade: o que se passou por aí para se ter armado, aqui na
Terra, toda esta confusão?
ANNARUMMA
Século XXIV d.C.
1 – Em nome do Pai...

Hoje, 4 de Dezembro, é o dia do meu aniversário e verifico com agrado que o calor voltou.
Acabo de chegar de mais uma viagem para este lugarejo do interior e aqui estou, sentada a esta pe-
quena mesa. Enquanto espero a hora de começar a cumprir a tarefa que devo cumprir, resolvi entrar em
contacto contigo. Enfrento o espelho deste quarto de pensão onde costumo trabalhar e reconheço que
tenho falado pouco contigo. Acontece que...
Ora, para quê procurar desculpas? Decerto mentiria.
Daqui a pouco, conhecerás a razão que me levou a quebrar este interregno.
Gostaria, primeiro, de dizer-te outra coisa. Estas visitas são uma obrigação que tenho que cumprir
regularmente. Se falhar, retiram-me a carteira profissional.
Recentemente, tive um novo contencioso com a Justiça. Desta vez por ter recusado o uso da cabeleira
obrigatória. Consegui que o juiz substituísse a pena de prisão, por cinco anos de visitas mensais a esta
aldeia perdida no mapa.
Do mal o menos.
Os homens daqui sabem que venho no dia 4 de cada mês. O quarto da pensão está sempre reservado.
Tenho poucas preocupações. É forçoso, porém, chegar ao princípio da tarde e permanecer de serviço
até ao dia seguinte. Antes de apanhar o Expresso de volta, ainda tenho que passar pelo posto da polícia
para fazer a prova de presença.
Tanto me faz.
O que faço aqui, faço na cidade onde vivo. Uma coisa é igual à outra. Só que lá ganho muito, muito
mais dinheiro.
Homens carentes é o que mais há. O dinheiro, tal como o Tempo, é incapaz de fazer a diferença.
O Tempo ainda está presente na nossa vida. Diariamente.
Repara na obstinação dele em oferecer mistérios e paixões. Nota como se deleita em distribuir logros,
surpresas e cutiladas.
Venho todos os meses a esta terra.
Será isto uma paixão? Se fosse paixão, apetecia vir todos os dias.
Será um logro? Se fosse logro, desconheceria o que estou a fazer.
Será isto uma surpresa? Duvido. Que graça teve e tem?
Será uma cutilada? Pedi ao juiz que sentenciasse neste sentido.
É então um mistério!
A razão de ser dos mistérios está guardada muito fundo. Mesmo para as almas velhas.
Como alcançar o significado dos mistérios? Só o acesso ao Profundo faz dos mistérios uma coisa co-
mum.
A realidade, como o corpo, interessa pouco.
Por que venho todos os meses a esta terra?
Venho e pronto!
Mato dois coelhos com uma cajadada. Com a primeira, cumpro a pena de um juiz da Terra; com a
segunda, respeito o compromisso assumido antes de vir para a Terra.
Isso foi noutra dimensão, quando ainda estava contigo, livre deste corpo físico que foi plasmado para
servir os outros.
Como vês, insisto nisso! O círculo fecha-se. Comecei como Nark, a grande curadora, acabo como An-
narumma... curando também.
Por outras vias, mas curando.
Desde que sejamos capazes de sentir os outros, tudo é curar.
O caminho para esta aldeia já foi feito tantas vezes que os aliciantes da paisagem perderam o interes-
se. É muito aborrecido.
O Expresso passa por planícies e montanhas. Também atravessa complexos residenciais. São muitas
horas de viagem cruzando as nuvens de fumo das fábricas. São tão densas que pairam sobre o solo.
O hábito de observar a paisagem roubou o interesse pelas diferenças entre montes e vales. Montes e
vales são diferentes de uma viagem para outra mas parece que tudo está na mesma.
Há imensos séculos que se sabe que tudo muda. Estranho é estarmos no século XXIV e ainda me pare-
cer sempre a mesma coisa. É porque lido mal com o Tempo.
Continuo a lidar mal com o Tempo.
Já foi assim, de facto, mas a tua postura mudou radicalmente. Acredita nisto, porque sou eu quem
to diz.

Acredito, mas falta sentir. Aguardo, pois esse sentimento já vem a caminho.

Nesta viagem aconteceu um episódio muito estranho quando caí na sonolência. Foi um torpor que se
instalou, porque a paisagem já nem merece que se olhe para ela.
Perdi a paciência para ler. No princípio, é preciso saber; depois, é preciso conhecer. Por fim, basta
intuir.
A última vez que me dediquei a esse passatempo, li um romance de uma escritora dos finais do século
XX. Às tantas, deparei com uma passagem onde a personagem central confessava a sua forma particular
de lidar com as emoções e os desejos.
Essa espécie de constatação fez-me recordar algumas das minhas encarnações passadas. Principal-
mente aquela em que respondi pelo nome de Chuva Prateada. Estou a referir-me àquele tempo em que
ainda me faltava abrir incondicionalmente o coração ao Amor, à Tolerância e à Aceitação de todas as cria-
turas vivas.

Esse tempo já passou, Annarumma! Agora, estás a um passo da Luz. Continua.

Porque me parece já ter integrado isso, o dito texto impressionou-me profundamente.


Passei a viagem inteira a reflectir sobre essas palavras, para que esta minha postura actual de dedica-
ção, entrega e abnegação se possa consolidar.
Dizia ela:

«As emoções são ácidas, porque me sinto como uma velha rabugenta, antepassada de mim mesma. As
emoções são como pedaços de limão, porque o limão é o fruto das vidas que fui. Deles extraio, agora,
o sumo impossível de recusar. Já reparei que muitos de nós pegam nas emoções, nesses pedaços de
limão, e misturam-nos com as sementes donde nasce o gelo. Será que quem mistura as emoções com
as sementes do gelo, espera que uma germinação translúcida as ajude a libertarem-se? Será de admi-
rar que, neste tempo frio que vamos vivendo, apesar da elevação da temperatura do planeta, as emo-
ções sejam associadas às sementes do gelo, que sejam vividas e vistas como água emocional cristali-
zada? Pela parte que me toca, sou diferente: os bizarros seios que transporto no peito - agora erectos
e tão revoltados que nunca os meus olhos assim os viram! - convidam-me a rodar o corpo e a reorien-
tá-lo noutro rumo. Sei o que isso significa, pois leio as mensagens de medo que os mamilos escrevem
nas paredes de ar gelado! Se eles procuram o berço do gelo, é porque querem sacrificar-se expondo-
se ao frio glacial até que se queimem. Com essa atitude dolorosa me tentam acordar! Com razão me
pedem que, antes que comece a doer, eu respeite o bafo quente do seu desejo antigo e procure umas
mãos em concha que, finalmente, os afaguem. Os meus mamilos querem que eu ouse a emoção!
Porém, se procuro o frio é precisamente para que ele me arrefeça este fogo aceso, este fogo que con-
tinuamente arde por si, que gera em mim o desejo... mas nunca mais me purifica! Se, até ao escre-
ver, procuro o frio, é para que a neve envolva o meu desejo de Paz e o soterre, assim o conservan-
do... Céus! Como estou cansada!... No fundo, se para o gelo caído e para o frio soprado oriento a bus-
ca, é porque a Paz se insinua, mas nunca mais acontece!»

Apesar de também eu desejar a Paz, decidi que, depois das reflexões feitas sobre o texto que acabei
de citar, o melhor era baixar a cabeça e fechar os olhos.

O teu desejo de Paz em breve será cumprido, pelo menos para ti. Para milhões de outros irmãos
teus, ainda é cedo!

Quando fechei os olhos, logo as ondas alfa invadiram do meu cérebro. Queria descansar, mas ainda
estava a pensar na forma como se vivem as emoções. Isso tem que ver com o Tempo. Esse pensamento
aflorou e foi para aí que as ondas me levaram.
Jamais perdi a noção de onde estava. Jamais me distraí do que se passava à minha volta. Nesta terra,
o estado de alerta nunca deve ser descorado.
Cansa imenso, mas é indispensável. É assim nos tempos que correm.

Sossega, Annarumma. Em breve poderás descansar. Vamos! Um último esforço.

Obrigado por essas palavras de encorajamento...


Tive de interromper, porque alguém bateu à porta do quarto. Em vez do primeiro cliente, era a
empregada da recepção. Amanhã, antes de me ir embora, devo acertar as contas do aluguer.
Que estava eu a dizer?

... Mergulhei nas ondas alfa e caí dentro de um torvelinho confuso...


... ... Estávamos bem lixados se cada bandido que crucificamos tivesse o poder de mudar o rumo da
história!... ... Und olhou com aquele ar matreiro, e perguntou: Olha lá, Nark, tu achas que a nossa
base de sustentação está podre?... ... Quando pararás de fazer perguntas, Chuva Prateada? ... ... Und
é apenas um gémeo de si mesmo, um capitão de bobos, um fraco domador de deuses!... ... Tu deves
ser, em meu Nome, um criador de normas, um descobridor de Leis; o revelador das analogias existen-
tes entre os vários fragmentos do Mundo... ... Vês como se eleva finalmente a maior e a mais destrui-
dora de todas as ondas?... ... Antes do mais, é incorrecto dizer que a morte existe. Será que temos de
estar a dizer sempre a mesma coisa? ... ... Como havia alguma ironia naquela pergunta, respondi com
outra pergunta: Qual base de sustentação? A tua... ou a nossa? Ele sorriu e respondeu ternamente: A
nossa claro! Assustei-me e preferi contornar a questão... ... lembra-te, um dia terás de preencher os
compartimentos que permanecem vazios... ... Pois é, mas sabe-se lá quando surgirá oportunidade
doutro jogão com esta importância? Olha, p'ra evitar merdas no futuro, seria bom que passasses a gos-
tar de futebol!... ... Mas como pode Chuva Prateada interagir positivamente com quem entrega à mor-
te os seus irmãos de tribo?... ... Quando a primeira pedra de Und foi lançada, a Inquietação foi decre-
tada. Cá está! Hei-la rastejando lentamente, dia a dia... dia a dia, exactamente.... ... Já te disse que
Ele continua vivo!...

Então, ocorreu-me que o Tempo deve ter nascido cego.


É um conceito abstracto.

Essa é a prova de que estás pronta, Annarumma!

Custou!
Se o Tempo tivesse olhos, teria visto as Espirais dos Primórdios a desenrolarem-se no seio do seu irmão
Espaço. Havia tanta luz e o Tempo era incapaz de ver!!
Engraçado.
Senti que o Tempo foi obrigado a esperar. Esperou até que alguns braços das espirais se individualizas-
sem. Aguardou que se desprendessem.
Os braços das espirais começaram a rodopiar sozinhos e o Tempo esperou que eles se enrolassem e
contraíssem.
Demora imenso tempo percorrer o caminho que leva à esfericidade.
O Tempo só se livrou da cegueira quando estralejaram as estrelas.
Há quantos milénios isso foi? Quantos se contam desde essa época?
Pouco importa. Importa que me lembro desse tempo.

Sim, agora já te é permitido ter acesso à história completa da tua odisseia, da odisseia do espírito
que és!

Recordo esse tempo mas, desde que me chamei Vitorino de Sousa, abandonei o interesse pelo Tempo,
pelos ciclos, pelos astros, pela Astrologia.

Todas as coisas são importantes na sua devida altura. Mas tudo passa! Os interesses mudam de acordo
com o grau de evolução. É totalmente desaconselhado estagnar.

Quando brilharam as estrelas, o Tempo acreditou que via. O Divino segredou-lhe que ser capaz de ver,
era o mesmo que pôr-se a correr ao encontro do Homem.
O Homem ainda estava sem corpo, mas o Tempo jurou que o seu destino seria gerir o Futuro vindou-
ro...

Senhor, o primeiro cliente já devia ter chegado. Que se passará? A esta hora já costumam fazer fila no
corredor. Ora, assim, tenho tempo para continuar.

Neste ponto do devaneio, vi o Tempo começar a passar. Coisa bonita de se ver. Era bonito, porque a si
próprio se passava.
Mas o Tempo apaixonou-se pela função que o Criador lhe dera e continuou a passar-se seguramente,
todo senhor de si, permanentemente.
Como era agradável deixar-se passar, começou a ganhar confiança em si mesmo. O Tempo foi bem
sucedido nesta empresa. Toda a gente sabe.
Com os resultados obtidos durante os milhões de séculos, ainda hoje se pavoneia. Ao pavonear-se,
deixa escorrer pelos ombros abaixo o resistente manto do Destino.
É compensador.
Todavia, eu nunca vi o manto do Destino. Deve ser invisível, pois tenho que o tecer... Tenho que o te-
cer?... Sim, a cada momento... A cada momento?... Frequentemente tenho dúvidas sobre isso!
Pouco importa. A Vida é uma sequência interminável de provas e escolhas!
Se me fosse possível ver o manto do Destino, veria violeta?
Como tu estás numa posição diferente da minha, ensina-me mais isso. Peço-te. Gostava de saber.
Por que é que nunca te coloquei esta questão? Deve ser complicado responder a esta pergunta.

Talvez, mas o violeta é apenas uma das cores!...

Também foi complicado responder às outras perguntas que te fui fazendo?

Foi mais complicado chegares tu ao ponto de saber o que devias perguntar, do que darmos nós as res-
postas. É impossível responder antes das perguntas serem formuladas. Foi preciso esperar. Esperar, tem
que ver com o Tempo, mas o Tempo desconhece o lugar onde me encontro.

Há séculos atrás fui monge copista. Na abadia tinha de calar o meu interesse intelectual por argumen-
tos classificados de heresia. Lembras-te? Preocupado com a minha identidade mais profunda, perguntei
qual era o meu verdadeiro Nome.
Lembro-me como se fosse hoje.
O meu Guia de então deu-me uma resposta exemplar revelando que o Nome, a Aceitação e a Paz são
uma e a mesma coisa.

Certo!

Deixei de preocupar-me sobre essa questão dos nomes quando me habituei a ver-me como uma súmula
de Nark, Caius, Juan, Chuva Prateada, Vitorino, das outras e dos outros todos.

É errado dizer que te habituaste. Apenas aprendeste a reconhecer uma lei da Natureza.

Agora, deram-me o nome de Annarumma e desconheço o que ainda virei a ser.

Já te disse, Annarumma: aí, na Terra, nada mais!

A dificuldade é que já tive centenas de nomes. É difícil fixar todos. A coisa complica-se quando pre-
tendo respeitar a sua ordem no alinhamento do Tempo.
Detesto confusões, equívocos e...

Tive que interromper, porque chegou o primeiro cliente. Agora já se foi embora. Felizmente.
Jamais me custou exercer esta profissão. Mas este homem foi muito bruto. Ferrou-me uma dentada no
ombro. Doeu, porque me entreguei a ele.
Ora, que pode esperar-se de um desterrado nos confins da floresta? Nesta terra, a linha do horizonte é
um quotidiano penoso e rude.
Sou solidária quando recebo os homens. Eles merecem isso. São meus semelhantes.
O corpo interessa pouco. Quanto àquilo que levou este a morder-me, só posso lamentar.
Quero apenas que os homens, ao saírem aliviados, pensem na gigantesca sensação de vazio que levam
daqui. Devem perceber que, estando comigo, só satisfazem o Ser Animal. Devem notar, também, como
têm esquecido o Ser Humano. Ao saírem daqui, devem sentir que desconhecem o Ser Espírito, o topo das
três dimensões do Ser.
Recebo estes homens e continuarei a recebê-los, se eles voltarem.
Senhor, será impossível acordar estes irmãos?

Já foste como eles. Nesse tempo, julgavas-te a dormir ou acordado? Lembra-te de tudo por que pas-
saste!

Estava eu a falar sobre o Tempo e sobre as visões da sonolência da viagem.


Naquele torpor percebi por que o Tempo continua colado aos humanos. Continua, porque sempre
acreditámos na sua existência.
Os gregos até inventaram Cronos para justificar isso mesmo.
Outro ensinamento me dispensaste durante o devaneio. Esse, prende-se com o foro mais íntimo da
Consciência, pois incrementa decisivamente a sua evolução. Foi quando te perguntei acerca do Tempo. Aí,
respondeste:

Em verdade te digo: o desfecho da peleja que durante tantos séculos travaste com o Tempo, sempre
de ti dependeu. A Quietude e a Serenidade, que tanto almejavas, só chegaram quando te libertaste da
trama urticante da Ignorância. Aprendeste!
Aprendeste que Sabedoria é o conhecimento acumulado que se pratica.
Aprendeste que Iluminação é a Sabedoria através do Amor.
Assim está escrito, de resto.

A tua revelação deu-me conforto espiritual. Obrigado, Senhor.

Na viagem, às tantas, descartei-me das ondas alfa. Ajeitei-me no assento e virei-me para a janela. Lá
fora, numa clareira da floresta, um grupo de pessoas fazia um ritual.
Fechei os olhos e perguntei: Poderá a Vida fugir a uma ideia obsessiva?
Respondeste:

Quando se fala da Vida fala-se da Beleza. Porque, ambas, jamais deixarão de existir, são ideias obses-
sivas.

Voltei a perguntar: Quando se viu a Vida obrigada a encarar a Humanidade como ideia obsessiva?
Respondeste:

A Humanidade faz parte da Vida - que é Beleza - porque tudo é uma coisa só. Apesar de o Tempo já
se ter passado tanto desde a Primeira Ordem do Divino, como poderia a Vida livrar-se da Humanidade, se
ambos são uma e a mesma coisa?
A Vida/Beleza precisa de vós; o Criador precisa de vós, puros, para se manifestar.
Se, durante milénios, a Humanidade foi a taça para dentro da qual foi vazada a prolífera calda rubra
da inquietação, a verdade é que, desde os finais do século XX, essa mesma Humanidade passou a ser
capaz – finalmente - de captar as vibrações da Transparência e da Fraternidade. Passou a ser o largo mol-
de onde se fazem e refazem todos os feitos possíveis.
Todavia, evita inferir destas palavras que a Humanidade terrena é a única manifestação de Vida inte-
ligente que existe no Universo.
Mantém a vigília sobre o facto de seres imortal e lembra-te de mim.

Senhor, ter visões dos primórdios do Universo é muito perturbador; é inquietante perceber quando
nasceram os olhos ao Tempo. Isso remete-me para a época do embrião de tudo o que existe.
Nessa altura, a Queda do Homem já estaria prevista? Se Deus é omnisciente e concebeu o plano glo-
balmente, então, a Queda estava prevista.
Por que razão Ele nada fez no sentido de a evitar?

Vós todos sois livres de procurar uma justificação para o facto de as coisas serem como são. É natural
que o enigma vos intrigue. Podereis descobrir, encontrar ou inventar vários mecanismos que expliquem e
justifiquem perfeitamente o movimento dos ponteiros de um relógio, mas jamais chegareis a saber se
algum desses mecanismos corresponde, peça por peça, àquele que se encerra dentro da caixa do relógio.
Assim, porque os frutos dos vossos pensamentos são feitos com a pele dos deuses, várias têm sido as reli-
giões criadas para explicar e justificar o movimento dos ponteiros dos vossos destinos. Estais satisfeitos
com esse esforço? Se sim, lamento dizer-vos que estais a incorrer num erro. A grande sabedoria está em
evitar rejubilar por ter apanhado um peixe, mas sim em persistir no acto de pescar. Doutra forma, no dia
em que apanhásseis um peixe, decerto abandonaríeis cana e anzol para recolherdes a casa, reconfortados
por terdes encontrado uma resposta. Poderá acontecer que alguns de vós, fruto do aturado trabalho de
purificação a que se dedicaram, tenham chegado perto da Resposta. Mas, para que servirá? Conhecer, ou
julgar que se conhece, a Resposta é totalmente diferente de fazer parte dela. Quando se dá a fusão com
a Resposta, a pergunta deixa de fazer sentido. Ora, se vós sabeis que alguns seres humanos, poucos em-
bora, se fundiram com a Resposta, por que razão continuais a perguntar? Chegai onde esses chegaram.
Conhecei-vos e purificai-vos! Pouco interessa onde fica a chegada, interessa que deveis ir andando. Quan-
do decidis vestir o traje de Peregrino, quando vos pondes em movimento e quando optais por vos orientar
pelo Ser Espiritual, estais a cumprir a derradeira essência do Homem. Estais a praticar a essência do Ho-
mem, quando, com a força do querer, mas sem a força do desejo, vos entregais ao eterno movimento
ascensional. Cada criatura que vós sois dispõe de uma alma. Portanto, Annarumma, permite-me exortar
todos vós a manterem-se «animados»! Passareis a fluir com a vida quando vos contentardes com a reali-
dade de serdes uma gota caída do Oceano chamado Tudo. Essa gota há séculos passa por metamorfoses,
sofre convulsões e cumpre renascimentos, num esforço insano de retornar à fonte. É impossível chegar à
Luz sem passar pelas Trevas. Passareis a fluir com a vida quando conseguirdes agradecer a forma como vos
é dado viver cada minuto que passa. Em verdade vos digo: fluir com a Vida, é a única condição necessária
para a Vida vos levar onde deveis ir. Mas, por que razão vos preocupais tanto com o irremediável? Estais
criados, sois criaturas, logo, em vez de perguntar, deveis criar. Preocupai-vos com as questões do momen-
to e deixai de lado as inquirições sobre o Princípio e o Fim. Jamais devereis esquecer que sois o Princípio,
o Meio e o Fim. É abraçando o Grande Livro da Verdade, da Paz e do Amor que vos rogo: Esforçai-vos por
serdes uma caudalosa fonte da mais pura Brandura e Suavidade, para que melhor possais assimilar as re-
gras dos novos jogos, decisivos e amorosos em vez de perigosos e trágicos, que estão chegando. Um dia
descobrireis que, afinal, a paz do Todo, toda no vosso coração se acumula.

Senhor, eu sou uma simples mulher deste século que pratica uma profissão como outra qualquer.
Evito errar.
Ao longo das encarnações que aceitei cumprir, busquei a libertação do que me prende a este planeta.
Mas ao tentar endireitar as questões inclinadas, gerei os ossos que depois tive de roer.
Então, porque este é o esquema, volto a perguntar-te: Para quando a Transparência? Quando soltarei
os nós das experiências falhadas? Para quando a Luz e o ficar eternamente contigo?

Annarumma: quem pergunta é preguiçoso!

2 - ...do Filho...
Senhor, vou agora contar-te o episódio ocorrido no Expresso.
Quando comecei a vir a esta aldeia, ocupava o tempo a apreciar a paisagem. Foi bonito enquanto sen-
ti a sensação de novidade.
Em breve porém optei pela leitura. Depois, desisti. Passei a preferir o devaneio mental.
Estes anos que vivemos, em nada favorecem a conversa. Nem é aconselhável.
Como este povoado fica longe dos grandes centros, são raros os cidadãos que utilizam este Expresso.
Mas devo estar atenta ao que me rodeia.
Desta vez, só embarcaram três homens maduros e uma jovem. Como havia muito espaço dentro do
veículo, todos se sentaram e comportaram convenientemente. A jovem instalou-se à minha frente, do
outro lado da coxia.
O pica-bilhetes, depois de ter feito o seu trabalho, arrecadou o alicate, sentou-se num lugar vazio e
pôs a mala de couro entre as coxas. Guardou a cabeleira na caixa regulamentar e entalou a nuca cónica
entre o banco e o vidro da janela.
Como mais ninguém deveria entrar até chegarmos ao destino, acabou por adormecer. Os outros tam-
bém. Só eu fiquei acordada. Reparei que a jovem adormecera sem tirar a cabeleira.
Falta de experiência, pensei.
Passou uma hora. Quando os homens acordaram com o calor, abriram as janelas dos respectivos luga-
res e voltaram a adormecer.
É sempre um risco abrir as janelas. Mas fizeram bem. O ambiente melhorou imenso. Senti a corrente
de ar nos tornozelos. Comecei a sorrir, pois apercebi-me do que iria acontecer.
Como seria de esperar, a cabeleira da rapariga percebeu que a dona estava a dormir. O impulso de
liberdade deu-lhe o comportamento do passarinho que vê a porta da gaiola escancarada.
Soltou-se do crânio. Pairou um pouco, abriu-se em risco ao meio e bateu as asas. Por fim, fugiu pela
janela e voou para o ar livre. Fiquei contente. É o costume.
Tu já me conheces, Senhor. Sabes que sempre fui sensível à questão da liberdade.
Também deves saber como é raro uma cabeleira libertar-se. Infelizmente.
Mas raramente deixam escapar uma oportunidade. Toda a gente sabe disto.

A cabeleira voou para a liberdade e a dona continuou a dormir como uma santa dormirá nas fofas ca-
mas do céu. Sem se aperceber do sucedido. Pensei: Vai ser bonito quando a jovem acordar. Veremos no
que isto vai dar.
Cruzei os dedos para dar sorte. Fingi-me distraída com as cintilações do rio que corria ao longo da es-
trada e apurei a vigilância.
O Expresso continuou no seu andamento habitual. O motorista ia entretido com a monotonia da con-
dução. Nem se apercebeu do sucedido.
O alarme do Expresso permaneceu calado porque todos dormiam. Excepto eu.
Como a cabeleira tinha falta de hábito de voar, foi-lhe impossível elevar-se no espaço.
Consegui observar a trajectória dela através dos vidros das janelas. Acabei por me virar completamen-
te para trás. Só assim pude apreciar os acontecimentos subsequentes.
Senti nitidamente que a cabeleira rejubilava pela sua nova situação. Pudera!
Mas as correntes de ar desencontradas pelo deslocamento do Expresso impediram-na de aguentar-se
no ar. Era a condição essencial para poder afastar-se e atingir a liberdade.
Nitidamente desesperada, entrou em perda. Acabou por estatelar-se desastradamente no alcatrão.
Estremeci quando a pobrezinha se enrolou pelo chão fora.
Reparei nos seus esforços desesperados para levantar-se, mas apenas conseguiu arrastar-se para a
berma fugindo do meio da estrada. Do mal, o menos.
A queda transformou-a num monte desgrenhado de cabelos. Apesar da refrescante juventude, foi in-
capaz de levantar-se. Rapidamente se transformou um ponto grisalho.
Passou a ser difícil detectá-la na confusão de pó, pedras, tronquinhos e demais lixarada da berma da
estrada. Virei-me para a frente e...

Desculpa, mas voltaram a bater à porta. Tive de atender outro cliente.


Este portou-se decentemente. Nem sequer me bateu. Foi muito simpático quando disse: Ainda tens
um corpo digno de ser visto e desfrutado. Apesar da idade.
O pobre homem estava mais carente do que nunca. Apesar de ser sempre correcto, jamais me tinha
presenteado com uma mentira simpática.
É um guarda da fronteira, seco de palavras e emocionalmente retraído. Detestaria estar na posição
dele quando, usando a arma, tem de fazer parar os fugitivos.
Já matei o que tinha a matar. O centurião Caius esgotou essa fase.
Quando deixar de vir aqui, sentirei saudades deste guarda da fronteira.
Mas quero acabar a história que estava a contar.

Convenci-me de que a coisa ia ficar por ali, que a cabeleira encontraria o seu caminho e conservaria a
liberdade. Mas, subitamente, comecei a ouvir o guincho esganiçado das sirenes do exterior.
Os vigias, empoleirados nas torres, tinham-se apercebido do sucedido e cumpriram o seu odioso dever
de accionar o alarme. Era de esperar.
O Expresso continuou a afastar-se do local. Fiquei impedida de ver o que se passou a seguir.
Sei, porém, que, segundo a legislação em vigor para estas circunstâncias, uma brigada do Corpo de
Intervenção deve recuperar imediatamente a fugitiva. As falhas são nenhumas.
A chinfrineira do alarme fez-me arrepios. Pior, acordou o pica-bilhetes. Desentalou a cabeça cónica e
virou-se para trás com o olhar esbugalhado. Queria perceber o que se passara.
Deu de caras comigo. Franziu o sobrolho à minha embaraçosa palidez. Nada disse, obviamente. Deve
ter julgado que era do enjoo dos solavancos.
A jovem acordou e, claro, deu pela falta da cabeleira de cabelos escorridos. Ficou inconsolável e
assustada. Tirou logo da maleta a que trazia de reserva e enfiou-a na cabeça...

Quando chegámos ao destino, fui dar-lhe apoio e oferecer ajuda. Dentro da medida das minhas limita-
ções. Conversámos um pouco e ouvi-a dizer: Sabe, isto é muito desagradável. Imagine a senhora que aque-
la cabeleira que fugiu era um presente do meu namoradao. Ele é tão bom, se a senhora soubesse! Ofere-
ceu-me aquela cabeleira de cabelo negro asa-de-corvo porque, quando nos conhecemos, detestou a cabe-
leira de carrapito que eu usava na altura. E sabe por quê? A história é muito engraçada. Ele investiu numa
cabeleira nova para mim, porque a de carrapito lembrava-lhe a Helena Blavatsky, sabe, aquela senhora
que há centenas de anos... ora, você sabe. Já leu, decerto. O mais curioso é que ele foi obrigado a estu-
dar aquilo quando tinha 14 anos. Imagine! Foi tal o sacrifício que passou a odiar os carrapitos!... Agora
reparo: a senhora traz a cabeça ao léu? Como é possível, com este controlo tão apertado?
Retribuí a confiança dizendo que preferia o crânio tal como tinha nascido. Sem cabelos. Isto, apesar
de a lei obrigar o uso de cabeleira.

Pelos vistos, os nossos dirigentes recusam-se a aceitar que os humanos se tenham libertado de todas
as pilosidades.
Foi por causa desta minha opção, que me castigaram com um dia de trabalho mensal em favor das
comunidades mais isoladas. Durante cinco anos.
À despedida, disse à jovem que conhecia um primoroso artesão de cabeleiras. Aceitou o contacto.
Dissemos adeus. Restou a esperança de um novo encontro. Numa das próximas viagens. Talvez.
Afaguei a minha cabeça escrupulosamente polida e fui beber um café. Depois, vim para aqui.
Quando chegou a hora de os clientes começarem a chegar, ninguém apareceu.
Então, lembrei-me de ti. Olhei-me no espelho e apeteceu-me agradecer por ser o que sou.
3 - ... e do Espírito Santo.
De cada vez que nasci, encarei o Dom da Vida como se tivesse recebido uma corda.
Como é natural, pensei que a corda fosse para atar ou para subir. Assustei-me, claro.
Esqueci-me que podia brincar com ela.
Porque me proibi o jogo de saltar à corda, tive que fazer o esforço de subi-la.
Como estava cheia de nós, eles ajudaram a subida. Alguns desses nós eram bem grandes e antigos.
Vinham dos tempos em que morei noutros corpos e tive outros nomes. A subida foi a pulso.
No princípio, a força esvaiu-se-me no lidar com inutilidades. As mãos acabaram por ficar ensebadas.
Às tantas, deixei de saber o que fosse vontade ou apetência. Encarquilhei-me com a angústia que me fez
estremecer. Voltei a ouvir a gritaria feita à nascença.
Tinha-me esquecido de ti.
Quando foi tempo de te fazeres presente em mim, percebi finalmente que tudo o que sofrera tivera a
ver com a arte de Perdoar, que é a causa do Amor, a razão de existir.
Esquecera que Perdoar é o propósito último de Viver.
Então, enrolei e prendi essa corda no meu cavalo de ir ao país do Carinho, do Afecto e aos outros luga-
res da Realidade.
E porque agora sou assim, até acho natural que esteja a decair o entusiasmo destes clientes primitivos
pela minha pessoa.
No entanto, apesar da distância ser enorme, continuarei a vir aqui, servi-los.
Todos os meses.

Descansa, Annarumma. Essa é a tua derradeira tarefa na Terra.


Quanto à pergunta que atrás colocaste, fica sabendo que o manto do Destino é branco!

4 - ... Ámen
HÁ LUZ NA SUPERFÍCIE DOS MEUS OLHOS PRATEADOS!

HÁ dias, depois de muitas vidas, coloquei ao espelho


a última pergunta. Quem esperava o chamamento, abriu a
LUZ NA SUPERFÍCIE espelhada, e perguntou: Que queres?
Apesar da ansiedade e da dança nervosa
DOS MEUS pés, aos OLHOS perguntámos: Espelho meu, é verdade que curei a le-
PRA que me vinha apodrecendo?
É verdade, sim! A tua alma ganhou os raios mereci-
TEA DOS da Verdade e reflecte, agora, o que sempre esteve iluminado!

Parabéns, Annarumma. Chegaste ao fim do Caminho, nesse planeta. A tua purificação chegou a um
ponto que nunca mais terás necessidade de voltar aí. Porém, ainda há muito caminho para percorrer.
Tantas vidas, tantos corpos, tantas dores e alegrias para aprender que, afinal, aquilo que a Vida exige é
somente que cada um integre o que a maturação, aos poucos, lhe for revelando. Isso já tu aprendeste.
Agora, quando terminares o que tens a fazer aí, quando encerrares essa última passagem pela Terra,
deves continuar noutros lugares. Sabes isso, também.
Adeus, até breve. Vem quando tiveres que vir. Tudo está preparado para a tua chegada.
Estamos à tua espera.

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