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Caderno de Literatura

e
Cultura Russa
A revista Caderno de Literatura e Cultura Russa é uma publicação bienal do Curso de Língua e
Literatura Russa do dlo/fflch da Universidade de São Paulo.

USP – Universidade de São Paulo


Reitor: Adolpho José Melfi

FFLCH – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


Diretor: Prof. Dr. Sedi Hirano

Departamento de Letras Orientais


Chefe: Berta Waldman

direção editorial
Arlete Orlando Cavaliere
Elena Vássina
Homero Freitas de Andrade
Noé Silva

conselho editorial
Aurora Fornoni Bernardini – usp
Boris Schnaiderman – usp
George Nivat – universidade de genebra
Haroldo de Campos – puc
Jerusa Pires Ferreira – puc
Paulo Bezerra – uerj
Yúri N. Guírin – ilu-moscou

Apoio: capes

· ·
Caderno de Literatura e Cultura Russa n. 1 São Paulo março 2004 ·

Departamento de Letras Orientais – FFLCH-USP


Av. Prof. Luciano Gualberto, 403 – Cid. Universitária
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Caderno de Literatura
e
Cultura Russa
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ISSN 1806-2911 

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Printed in Brazil 2004


Foi feito o depósito legal
Sumário

Editorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Colaboradores do Caderno de Literatura e Cultura Russa . . . . . . . . . . . . . . 11

Literatura | Crítica | Tradução


El Modernismo Brasileño como Espejo de la Revolución Rusa – Yúri N. Guírin . . . . . . 15

Dossiê Púchkin (org. Homero Freitas de Andrade) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

Nota . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
Púchkin e o Começo da Literatura Russa – Aurora Bernardini . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
Notas à Margem da Lírica de Púchkin – Roman Jakobson . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
Como Foi Feita uma Quadra de Púchkin – Roman Jakobson . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
Notas à Margem do Evguiéni Oniéguin – Roman Jakobson . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53
Púchkin: A Poesia da Gramática – Haroldo de Campos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
Púchkin e Gonzaga. Da Sanfoninha ao Violão – Boris Schnaiderman . . . . . . . . . . . 69
Humor e Irreverência na Prosa de Púchkin – Helena Nazario . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
A Dama de Espadas e o Tema das Cartas e do Carteado na Literatura
Russa do Começo do Século XIX – Iúri Lotman . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85
Cronologia da Vida e da Obra de A. S. Púchkin – Homero Freitas de Andrade . . . . 123
Reminiscências e Materiais Biográficos sobre Púchkin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139
Púchkin em Português . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177
Do Evguiéni Oniéguin – Aleksandr Púchkin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185
Romance em Cartas – Aleksandr Púchkin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191
Sobre Poesia Clássica e Romântica – Aleksandr Púchkin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Esboços de um Prefácio a Boris Godunov – Aleksandr Púchkin . . . . . . . . . . . . . . . 209


Índice de Nomes e Referências – Homero Freitas de Andrade . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217

Cultura

Les Eurasiens hier et aujourd’hui – Georges Nivat . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239


A Pintura Paisagística Russa do Século XIX – Noé Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 257
Instituto de Pesquisa: Uma Forma da Arte, que nos é
Contemporânea – Kristina Dunáeva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 277
A Educação em Museus: A Exposição “500 Anos de Arte
Russa” – Mozart Alberto Bonazzi da Costa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 285
A Segunda Sinfonia de Chostakóvitch – Euro de Barros Couto Junior . . . . . . . . . . 301
O Teatro de Maiakóvski: O Cubofuturismo no Texto e na Cena
– Arlete Orlando Cavaliere . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 315
Herzen Ontem e Hoje – Danilo Morales . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 335
Boris Schnaiderman: Um Caso de Amor pela Literatura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 371
Discurso de Saudação – Aurora Bernardini . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 383

Tabela de Transliteração do Russo para o Português . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 393

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Púchkin e o Começo da Literatura Russa

Editorial

O Curso de Russo do Departamento de Letras Orientais da fflch-usp inicia a


publicação de seu Caderno de Literatura e Cultura Russa, revista bienal desti-
nada a estudiosos, pesquisadores e ao público interessado em assuntos russos.
Trata-se de páginas de apresentação, análise e discussão de temáticas referentes
às áreas de literatura, artes, filosofia e ciências humanas em geral, cujos autores
são especialistas, alguns já consagrados, que vêm-se dedicando incansavelmente
à divulgação e à pesquisa desses assuntos entre nós.
A idéia deste Caderno de Literatura e Cultura Russa nasceu justamente do
imperativo acadêmico de ampliar e aprofundar os estudos russos no Brasil,
com vistas a participar da construção de sua respectiva fortuna crítica. Ela foi
tomando corpo a partir do início das atividades de pós-graduação do Curso de
Russo em 1994 e almeja colaborar no processo de formação e aperfeiçoamen-
to de novos especialistas, pela divulgação sistemática de trabalhos científicos
relevantes. São metas desta publicação dar continuidade aos trabalhos nesse
campo do saber, iniciados com persistência por Boris Schnaiderman, e manter
seu padrão de excelência.
O Caderno de Literatura e Cultura Russa deverá contar sempre com algumas
seções fixas em seu corpus: a de literatura e a de cultura russa, a de publicações e a
de pesquisas realizadas. De acordo com sua pertinência e relevância, outras seções
poderão ser eventualmente criadas para um determinado número da revista.
Neste primeiro número, dedicado à memória de Sophia Angelides e de Paulo
Dal-Ri Peres – saudosos professores do Curso de Russo – publica-se na Seção
de LiteraturaCríticaTradução um Dossiê sobre Aleksandr Púchkin, consi-
derado o iniciador da literatura russa moderna. Onze ensaios e artigos escritos

9
Caderno de Literatura e Cultura Russa

por estudiosos brasileiros e russos (Jakobson e Lotman) esmiúçam a vida, ana-


lisam a obra e desvendam aspectos da criação poética de Púchkin. Compõem
ainda o Dossiê uma série de textos literários e críticos do poeta, a maioria de-
les especialmente traduzidos para esta edição. Um ensaio de Yúri Guírin (“El
Modernismo brasileño como espejo de la Revolución rusa”), que, num estudo
comparativo, trata das projeções da Revolução de Outubro no movimento
modernista brasileiro, abre esta Seção.
A Seção de Cultura traz a colaboração do professor Georges Nivat, da Uni-
versidade de Genebra (Suíça), com o artigo “Os Eurasianos Ontem e Hoje”. Dois
outros trabalhos, de Kristina Dunáeva e Noé Silva, tratam da pintura russa dos
séculos xix e xx, representada de forma expressiva na exposição “500 Anos de
Arte Russa”, realizada em São Paulo, em 2002, e discutida no artigo de Mozart
Alberto Bonazzi da Costa. Arlete Cavaliere contribui com um texto sobre o
cubofuturismo no teatro de V. Maiakóvski, e Euro de Barros Couto Junior apre-
senta uma “conversa” com a música de vanguarda. Por último, um panorama
dos princípios filosóficos contidos na obra de Aleksandr Herzen constitui a
primeira parte de um amplo ensaio de Danilo Morales, que pretende estudar
as influências exercidas pelo pensador russo na crítica brasileira.
Finalmente, há uma entrevista com Boris Schnaiderman, fundador do Cur-
so de Russo da usp, que recupera um pouco da história dos nossos estudos.
Segue-se o discurso proferido por Aurora Bernardini, na cerimônia de outorga
do título de Professor Emérito a ele.

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Púchkin e o Começo
Editorial
da Literatura Russa

Colaboradores do Caderno de
Literatura e Cultura Russa

Arlete Cavaliere: professora de Cultura Russa (fflch-usp), especialista em tea­


tro e arte russa.
Aurora Bernardini: professora titular de Literatura Russa e de Teoria Literária
(fflch-usp), tradutora.
Boris Schnaiderman: professor livre-docente de Literatura Russa e de Teoria Li­
terária (fflch-usp), fundador do Curso de Russo da usp, tradutor, ensaísta
e escritor.
Danilo Morales: doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada (fflch-usp).
Denise Regina Sales: jornalista, pós-graduanda em Literatura e Cultura Russa
(fflch-usp).
Euro de Barros Couto Júnior: estudioso de música, pós-graduando em Literatura
e Cultura Russa (fflch-usp).
Georges Nivat: professor da Universidade de Genebra (Suíça), ensaísta e tradutor.­
Haroldo de Campos: poeta, tradutor, ensaísta e crítico literário.
Helena Nazario: professora de Literatura Russa (fflch-usp), tradutora.
Homero Freitas de Andrade: professor de Literatura Russa (fflch-usp), tradutor.
Iúri Mikháilovitch Lotman (1922-1992): estudioso e teórico de Literatura Russa,
professor da Universidade de Tártu (Rússia).
Kristina Dunáeva: pós-graduanda do Instituto de Artes da Unicamp.
Mozart Alberto Bonazzi da Costa: professor das Faculdades Osvaldo Cruz, escultor.
Noé Silva: professor de Língua Russa (fflch-usp), tradutor.
Roman Óssipovitch Jakobson (1896-1982): lingüista, estudioso e teórico de lite­
ratura, poeta.
Yúri Nikoláievitch Guírin: professor do Instituto da Literatura Universal da
Academia de Ciências da Rússia.

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Literatura | Crítica |
Tradução
El Modernismo Brasileño como
Espejo de la Revolución Rusa
Yúri N. Guírin

Resumo: Neste ensaio são feitas aproximações entre o Modernismo russo e o brasileiro e
examinam-se as projeções da Revolução de 1917 no movimento literário brasileiro.
Palavras-chave: Modernismo Russo; Modernismo Brasileiro; Revolução Russa de 1917;
Vanguardas Literárias do século XX.

Vladimir Lenin sí que sabía acuñar frases. “León Tolstoi como espejo de la
Revolución rusa” fue un artículo erróneo pero metodológicamente acertado.
Bueno, preguntará asombrado el lector, ¿y Brasil con su Modernismo, qué tiene
que ver aquí Brasil? Lo que pasa es que los brasileños, aunque librados de las
catástrofes históricas rusas, por poco se pierden por su idea nacional que les
hizo experimentar una situación no exenta de interés desde el punto de vista
tipológico. Y es porque Brasil, lo mismo que Rusia, a comienzos de este siglo
representaba una especie de piedra de toque, una plaza de armas ideal como
para comprobar en la práctica ideologemas especulativos que había originado
la vieja civilización euroccidental cansada ya de su propio progreso.
A este período le corresponde la etapa más fervorosa del Modernismo brasi-
leño. Aunque, eso sí, la epónima “Semana de Arte Moderna” celebrada en 1922
en São Paulo para conmemorar el bicentenario de la Independencia de Brasil,
no fue comienzo ni auge del movimiento, sino un acto simbólico de bautismo
de una nueva realidad espiritual.
Tipológicamente, el Modernismo brasileño representaba una variante
nacional de la estética vanguardista, y esta definición bastaría para satisfacer
el interés por el tema si no fuera por otro enfoque, cada vez más insistente, a
saber: interpretar el vanguardismo como un estilo de cultura universal que
Caderno de Literatura e Cultura Russa

abarca todo un complejo de procesos espirituales, materiales, sociales y políti-


cos de los primeros decenios del siglo XX. A través de esta óptica, el Moder-
nismo brasileño deviene todo un modelo, donde en condiciones experimen-
talmente puras proliferaron las ideas rectoras de la estética y la ideología de la
vanguardia universal.
Tradicionalmente la crítica brasileña examina los pormenores de cronología,
evolución y transformación de grupos, ideas y prácticas opuestas de Pau-Brasil
y Verde-amarelo, de Antropofagia y Anta, respectivamente; las relaciones entre
sus líderes etc. Pero desde este enfoque las diferencias no son más significa-
tivas que las que separaban, digamos, las asociaciones “Oslini jvost” (“La cola
del asno”) y “Bubnovi valet” (“Sota de oros”) en la pintura rusa o bien a los
cubofuturistas y los “oberiuti” en la literatura. Lo que importa en este caso es
la génesis y el sentido histórico del fenómeno. Por eso cabe empezar por las
circunstancias en las que había aparecido el Modernismo brasileño.
A pesar de lo idéntico de sus nombres, el Modernismo brasileño y el
hispa­noa­mericano representan dos fenómenos cronológica y esencialmente
distintos. Si el hispanoamericano estaba amasado con muchos ingredientes
culturales propios del fin de siglo y en lo fundamental coincidía con la estética
del art nouveau, el brasileño (al menos en la literatura) rechazaba el eclecti-
cismo estético como un modo de expresión ajeno e impropio, puesto que en
la historia literaria brasileña fueron precisamente los préstamos culturales los
que impedían el libre desarrollo de la literatura nacional y la formación de
la identidad propia. Sin embargo, siendo dos fenómenos estéticamente dife-
rentes, el modernismo hispanoamericano y el brasileño son funcionalmente
análogos, porque en el proceso de la formación de la cultura nacional de Brasil,
su Modernismo jugó el mismo papel estimulante que en la etapa precedente
el his­panoamericano con respecto a su región, a saber: el de coadyuvar a la
crista­li­zación de su propia identidad.
Sería interesante compulsar dos actitudes ante la necesidad de la autodeter­
minación cultural. José Enrique Rodó, ideólogo del modernismo hispanoa­me­
ricano, se quejaba de que “falta tal vez, en nuestro carácter colectivo, el contorno
seguro de la ‘personalidad’ ”1, pero veía el camino hacia su recu­peración en el
inminente cosmopolitismo benefactor. El Modernismo brasileño, que cons­
tituía su rima cultural en cuanto a la afirmación de la identidad nacio­nal,
declaraba por boca de su líder Mario de Andrade una orientación completa-
mente opuesta: “O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civiliza-
ção própria nem consciência tradicional. Os franceses têm caráter e assim os

1. J . E. Rodó, Ariel, Montevideo, 1947, p. 115.

16
El Modernismo Brasileño como Espejo de la Revolución Rusa

jorubas e os mexicanos”, menos los brasileños2. De ahí surgía la necesidad de


“descobrir [...] a entidade nacional dos brasileiros”, la esencia del alma colec-
tiva de la nación en su elemento natural, autóctono. “Somos na realidade os
primitivos duma era nova”, decía M. de Andrade en el programático “Prefácio
interes­san­tísimo” a su Paulicea desvairada (1921)3. A este respecto Silvio Cas-
tro anota que en el movimiento modernista la categoría de “primitivismo”
coadyuva a la formación del concepto de nacionalismo interviniendo como
el centro axiológico de la autoconciencia nacional: “Na teoria modernista [...]
pri­mi­ti­vismo é aquele valor normativo e metodológico que permite a revi-
são da cultura nacional a partir da total tomada de consciência da realidade
brasileira”4.
En el modernismo hispanoamericano los valores autóctonos desempeñaban
el mismo papel de materiales de construcción que los asimilados, en tanto que
Brasil aspiraba a universalizarse, a entrar “no concerto das nações” mediante
el “abrasileiramento do brasileiro” (Mario de Andrade), valiéndose de una voz
cultural propia, individual; acudiendo al potencial interior, de la propia tierra
brasileña. De extrapolar la conocida antinomia rusa “eslavófilos” vs. “occiden­
talistas” (en la cultura hispanoamericana: americanismo – europeísmo) sobre
el caso brasileño, observamos que prevaleció la tendencia etnocentrista en su
manifestación ultratelúrica, casi biológica.
El problema de la “brasilidade” vertebra toda la historia del Modernismo
brasileño, encaminado a crear la individualidad nacional. Éste era su meollo
ideológico, su sentido principal y su meta final. La dolorosa sensación de falta
de entidad, carácter e integridad plasmados en la imagen de Macunaíma, “herói
sem nenhum caráter”, exigía imperantemente autoidentificación masiva con una
superimagen o un mitologema etnocultural que tuviese carácter íntegro, total
y comunmente válido. El ansia de la totalización nacional, de la autoexpresión
íntegra y terminante suponía, según se puede juzgar por las publicaciones de
la revista Festa relativas al 1928, apelación a “verdadeira Tradição” y “força da
Terra”, con la particularidad de que los conceptos de Tradición, Tierra y Raza
aparecían íntimamente ligados5.
En el día de hoy esto ya suena cómico, pero en aquel entonces los grupos
literarios opuestos expresaban sus ideales en declaraciones como éstas: los bra­-

2. M. de Andrade. “Prefácios para “Macunaíma”, – Brasil. 1° Tempo Modernista – 1917/29,


Documentação. São Paulo, 1972, p. 289.
3. M. de Andrade, Obras Completas, t. II, São Paulo, 1966, p. 29.
4. S. Castro, Teoria e Política do Modernismo Brasileiro, Petrópolis, 1979, p. 111.
5. N. P. Caccese, Festa. Contribuição para o Estudo do Modernismo, São Paulo, 1971, p. 37.

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Caderno de Literatura e Cultura Russa

si­leños somos fuertes y vengativos como la tortuga jabutí, decían unos. Al con-
trario, decían los otros, somos pacíficos y bonachones como el anta. Éstas y
otras no menos curiosas expresiones servían para resolver el problema real-
mente existencial, que trataba de vida o muerte de la nación: “Tupy or not tupy,
that is the question”, declaraban parafraseando la interrogación hamletiana los
autores del Manifesto Antropofágico, quienes veían en la cultura de los indios
tupy “uma verdadeira eucharistia: o homem commungando com a natureza”6.
¡Pero esta tendencia telúrica, el apoyo en las capas primitivas, arcaicas, prerra­
cionales del ser, la compenetración con los llamados del ritmo, la sangre, la
autoidentificación con el mundo de animales y plantas constituían por igual
el fondo paradigmático del vanguardismo ruso y el europeo en general!
Respondiendo a las leyes inmanentes del proceso autónomo de su evolución,
los modernistas brasileños reproducían el sistema universal de la poética van­
guar­dista en el seno de su propia cultura. El problema candente de la sociedad
brasileña, el de crear conscientemente una cultura y un tipo humano nuevos, se
correspondía plenamente con el ardor culturógeno de la vanguardia europea;
en cualesquiera de los casos la tarea universal de conseguir la plenitud utópica
del ser – una nueva integridad que requería previa desintegración y revisión del
sistema axiológico establecido – se realizaba mediante recursos comunes que
suponían colectivización, masificación, totalización, primitivismo, telu­rismo,
elaboración de un nuevo lenguaje cultural.
Sería interesante recordar a este respecto el que M. de Andrade, al fami­lia­
ri­zar­se con el artículo sobre “la poésie russe de journée bolcheviks” publicado
en la revista L’Esprit Nouveau, comentó: “Eis nosso primitivismo: trata-se de
desembaraçar o mecanismo da poesia e as leis exactas do lirismo para começar
a nova e verdadeira poética”7.
La tarea de crear la integridad nacional y cultural, o sea una identidad, fue
formulada por M. de Andrade en su famosa consigna “abrasileiramento do
Brasil”. Se suponía que el medio principal de “abrasileiramento” debería ser la
forja de un lenguaje esencialmente nuevo: plástico (en la pintura y la arquitec­
tura) y literario, al que le correspondía desempeñar el papel más importante en
la cohesión de la entidad nacional. Con tal propósito se emprenden tentativas
de crear cierta construcción lingüística que expresaría la auténtica identidad
brasileña. Es del todo evidente que en los experimentos literarios de aquella
época (como en Macunaíma, por ejemplo) se manifestaba el mismo impulso

6. Revista de Antropofagia, Reedição de revista literária publicada em São Paulo, 1a e 2a


“Dentições”, 1928-1929, São Paulo, 1975, p. 5.
7. Véase G. Mendonça Teles, Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro, Petrópolis,
1985, p. 302.

18
El Modernismo Brasileño como Espejo de la Revolución Rusa

de la construcción de una nueva cultura que se patentizaba en la literatura


so­viética del mismo periodo en forma de “zaum” (lenguaje transracional),
la mal llamada prosa ornamental, la poética del “scaz” (cuento estilizado), la
orien­tación a folklorismos, localismos, neologismos y simple jerga.
Ello no obstante, el caso brasileño sigue siendo único en el sentido de que
no representaba tan solo un acto de experimentación lingüística, sino todo un
programa – en buena parte realizado – de elaboración de una lengua nacional
realmente nueva y realmente total que incluyese formas de comportamiento
verbal de amplias masas populares. Nada de eso sucedió en la América hispánica
donde la búsqueda de la identidad cultural se realizaba por otros caminos, y
además el idioma heredado de la metrópoli no había sufrido transformaciones
esenciales – cosa que precisamente dificultó el proceso histórico del devenir de
la identidad cultural en Hispanoamérica.
Sin embargo, la prioridad de “abrasileiramento do Brasil” no le pertenece al
propio Modernismo, que no hizo otra cosa que expresar con vigor una exigencia
espiritual que venía madurando desde hace tiempo; el verdadero autor de la idea
fue el precursor ideológico de los modernistas, el escritor y filósofo José Pereira
da Graça Aranha, quien en 1921 fundamentó en su libro A Estética da Vida,
todo un programa del movimiento modernista. La filosofía de arte promovi-
da por Graça Aranha fue la de acción, activismo, y estaba orientada a la crea-
ción del carácter nacional, entendido como psicología colec­tiva o el alma de la
raza. En realidad, todo el Modernismo fue más bien una ideología de acción
que una estética y una práctica artística: toda su producción literaria tomada
en conjunto apenas basta para ilustrar mani­fiestos, declaraciones y la amplia
actividad político-social de sus adeptos.­Y fue precisamente Graça Aranha el
que introdujo el concepto de “inte­gración” en cuanto problema fundamental
de la cultura nacional. En sus ideas ra­di­caban las tendencias funda­mentales
del movimiento modernista, que de constructor de la entidad nacional­se
transformaría después en el mecanismo de la totalización de la vida nacional.­
Pero tampoco Graça Aranha fue el verdadero fundador del modelo utopista
brasileño. En 1922 en São Paulo vio la luz el libro de R.Teofilo O Reino de Kiato:
No País da Verdade, escrito aún en 1892. Era una obra típicamente utopista que
describía la benéfica transformación de la sociedad por un poder autoritario.
La misma idea subyace en la trama del libro de G. E. Barnsley São Paulo no ano
2000, ou Regeneração Nacional: crônica da sociedade brasileira futura escrito en
19098. Lo que las dos utopías tienen de común es la siguiente base conceptual:

8. Debemos estos datos a T. A. del Fiorentino, Utopia e Realidade: O Brasil no Começo do


Século XX, São Paulo, 1979.

19
Caderno de Literatura e Cultura Russa

el futuro ideal de la nación se supone que ha de alcanzarse mediante esfuerzos


man­­co­munados de los conciudadanos que, unidos por la idea nacional, encon­
tra­rían la felicidad total en un régimen de igualdad justiciera, en comunión con
su tierra y naturaleza y bajo el poder autoritario de un gobernante sabio y fuerte.
¿Será casual que semejantes ideas utopistas hayan madurado precisamente
en la sociedad brasileña? Es de recordar que en este país la cristalización de
la conciencia nacional se ha dificultado por una extraordinaria demora del
proceso natural de la consolidación nacional, dada la descentralización de
su organismo social, determinada tanto por factores etnoculturales como
histórico-geográficos. Es por eso que los movimientos populares espontáneos
(sublevaciones en Canudos y Contestado) adquirían tintes marcadamente
utópico-religiosos, y sus dirigentes también eran figuras de tipo mesiánico:
Conselheiro, João Maria, José Maria, padre Cícero. Por eso al aparecer en 1902
la obra literaria – épica nacional, novela-documento, novela-investigación,
novela-experimento – Os Sertões de Euclides da Cunha, que era un auténtico
análogo al estado espiritual de la nación, ya su poética y su ideología contenían
todo lo que iba a figurar tanto en el Modernismo brasileño de los 20, como en
la literatura rusa de los primeros años posrevolucionarios, o sea: el irraciona-
lismo del entusiasmo colectivo y el triunfo del utopismo popular, la fe ciega
en un “maestro” sabio y el ansia de consolidación en un cuerpo masiforme, la
identificación de la con­cien­cia nacional con la tierra natal, la semejanza entre
el lenguaje de la des­cripción artística a esa misma tierra y esa misma conciencia
en toda su tos­que­dad, brusquedad y primitivismo, afirmándose así en oposición
al mundo ordenado de la vieja civilización.
Este ambiente utópico-apocalíptico era una especie de magma espiritual que
en la literatura rusa generaba imágenes de héroe colectivo y en la brasileña era
la más propicia para proporcionar la consolidación del etnotipo de la nación
brasileña. La frustración del primer conato de la construcción de un mundo
nuevo en forma de comunas campesinas se compensó con la aparición de un
héroe nuevo y un idioma también nuevo, lo que en suma significaba la creación
de una nueva entidad cultural. Es de recalcar que la tarea de crear un nuevo
lenguaje fue realizada solo en dos casos: el de Brasil y el de Rusia. Lo de Brasil
queda obvio; en cuanto a Rusia, aquí el héroe colectivo, creador de un mun-
do sin precedentes, traía un nuevo lenguaje que evolucionaría desde la zaum
uto­pista (que se creía el futuro “idioma universal”) hacia el institucionalizado
news­peack orweliano, o sea el artificial y momificado lenguaje soviético, tanto
en el sentido idiomático como el cultural.
Los paralelos aquí trazados entre la cultura rusa y la brasileña, pese a toda
su disparidad fenoménica, parecen justificarse, sin embargo, por el hecho de

20
El Modernismo Brasileño como Espejo de la Revolución Rusa

que en ambos casos se trata de culturas de tipo periférico – de una “otredad”


civilizacional – con respecto a la civilización burguesa euroccidental. Tanto la
una como la otra corresponden a regiones con una población predominante
campesina, de conciencia cívica poco estructurada, pero con una idea utópica
hondamente enraizada; con inmensos espacios geográficos sin civilizar, que
exigían un constante control administrativo y dominación estatal, sin nombrar
muchos otros momentos de comunidad que tampoco excluyen diferencias
esenciales. La principal de estas últimas consiste en el hecho de que el mesia­
nis­mo ruso era algo así como una idea supranacional, global e incluso cósmica
(el “cosmismo” filosófico ruso es un tema aparte), en tanto que la difusa imagen
de “brasilidade” necesitaba precisamente una potente idea centrípeta, la de
identidad nacional.
A este respecto cabría recordar al filósofo ruso Nikolai A.Berdiaev quien
habló sobre dos tipos de mitos nacionales que determinaban los destinos de
los pueblos: “mito de origen” y “mito de fin”, o sea el escatológico. Este último
caracteriza, sin lugar a dudas, la conciencia nacional y el destino histórico del
pueblo ruso. En cuanto al mito nacional brasileño, este se cimentaba en la idea
telúrica, la raigal, aunque también tiende a realizarse en un más allá utópico.
La diferencia señalada no invalida en absoluto el postrer desenvolvimiento del
proyecto utópico según el modelo común. Con plena razón afirmó el ya citado
Silvio Castro:

O Modernismo se estabelece assim como vanguarda completa: criação e ação. Pela feliz
coincidência histórico-política, a vanguarda brasileira é a primeira entre as vanguardas
históricas ocidentais a completar-se como movimento revolucionário, associando o plano
artístico ao setor da ação socio-política [...] Atingiam-se no Brasil, em fatos fortemente
semelhantes [...] aquelas normas revolucionárias conquistadas e logo perdidas pelo Cubo-
futurismo russo, depois de 19179.

La experiencia de la vanguardia “histórica” o “íntegra” – tanto rusa como la


europea en general – demuestra que la idea de la utopía, felicidad total en igual­
dad común estaba condenada, a fuerza de la lógica interna de su propia evolu­
ción, a degenerar convirtiéndose en el cuerpo monolítico del Estado tota­li­tario.
Este proceso tampoco lo evitó el Modernismo brasileño. Ya en 1925 la revista
Belo Horizonte hace una declaración harto característica: “sentimos a necessida-
de do governo ser a função de uma vontade forte, de um espírito dominador...
No momento atual, o Brasil não comporta a socialização das massas populares.

9. S. Castro, op. cit., p. 134.

21
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Só uma personalidade inflexível dirigida por uma boa compreensão das nossas
necessidades pode resolver os problemas máximos da nacionalidade”10. Hacia
el año 30 – momento crucial en la historia brasileña (y no sólo la brasileña)
marcado por la victoria de la llamada Revolución liberal y afirmación del poder
au­to­ri­tario de Getulio Vargas – en los textos de O. de Andrade y Plinio Salgado
empiezan a figurar palabras como “chefe”, “Enviado” y aparecen ideas mesiánicas.
La filosofía de activismo que alimentaba el espíritu del Modernismo brasileño
acaba por plasmarse en la realidad política del cuerpo estatal.
La categoría “integralismo” define ya no sólo posiciones de Plínio Salgado,
sino de todo el movimiento modernista. Así, en 1929 los “antropófagos” encabe-
zados por O. de Andrade y que se consideraban en oposición a los “verde-ama-
relos” conducidos por P. Salgado hacia su “Integralismo” fascistoide, declaraban:
“Nós somos contra os fascistas de qualquer espécie e contra os bolcheviques
também de qualquer espécie. O que em nossas realidades políticas houver de
favorável ao homem biológico, consideramos bom. É nosso”11. Sin embargo,
las orientaciones telúrico-biológico-intuitivas, la utopía de autoi­den­tificación
en el colectivismo, en la comunión total a un ideal monista, no conducen a la
unión comunitaria, sino a la partidista. En 1932 P. Salgado organiza un partido
profascista bajo la consigna de “Activismo integralista”, y O. de Andrade ingresa
en el partido comunista creado en 1922. Ese contrapunto político duró hasta
el tristemente célebre 1937 (año también del mayor desenfreno del terror sta-
liniano), después de lo cual en el país se impuso el pleno régimen dictatorial,
que oficialmente proclamó a Brasil “Estado nuevo”.
Estas correspondencias resultan tanto más evidentes que el recrudecimiento
del régimen impuesto por G.Vargas se debe en buena parte a la política pro-
vocativa de Moscú, que soñaba con ver Brasil sumido en la hoguera de una
insurrección popular y convertida en el foco de la propagación de la revolución
mundial por todo el continente latinoamericano. Así, en 1931 Luís Carlos Prestes
al precio de $ 20 000 (por cierto, recibido en otro tiempo del mismo Vargas)
gana la aquiescencia del Komintern staliniano, que utiliza este dinero para
atraerse a los que serían en un futuro buenos “amigos de la Unión Soviética”
en países latinoamericanos12. Después siguió la aventura de Komintern para
organizar el levantamiento “popular” y el golpe de Estado en Brasil con tal de
poner a su criatura Prestes a la cabeza, y la intentona exigió muchos más recur-

10. Véase Mendonça Teles, op. cit., p. 340.


11. Revista de Antropofagia, op. cit., p. 26.
12. Véase W. Waack, Camaradas. Nos Arquivos de Moscou. A História Secreta de Revolução
Brasileira de 1935, São Paulo, 1993.

22
El Modernismo Brasileño como Espejo de la Revolución Rusa

sos monetarios y muchas víctimas inmoladas aquende y allende del océano por
el sistema común del terror totalitario.
Para completar el cuadro conocido por los avatares europeos de la utopía
vanguardista, metamorfoseada en el rígido mecanismo totalitario del estadis-
mo, falta tan sólo un detalle: el motivo de la trágica conciencia de personalidad
reflexiva condenada a sacrificarse en aras de su propia idea. A este propósito
cabría aducir una cita que ilustra la atmósfera de la época.

El régimen caído se apoyaba en un solo pilar – el individualismo. Este definía todos


los enfoques. El individuo era el factor determinante [...] El arte dejó de tomar en cuenta
al pueblo, el colectivo y por eso no sentía ligazón interna con él; mientras que la salvación
de la humanidad y del arte está en el colectivismo [...] Se trata de un ímpetu en el que
encuentra su expresión la maravillosísima virtud del periodo de los cambios revolucio-
narios, una virtud que permanecía callada cuando la guerra y ahora se ha convertido en
una dominante: la del colectivismo. Es un principio que puede revestir cualquer forma:
socialismo, unidad popular o camaradería. Pero dénse cuenta de que la cosa exigirá sa-
crificio de su parte: el relacionado con la integración en el colectivo. Sólo después podrán
considerarse miembros del colectivo.

Lo más curioso es que este fragmento relativo a 1933 está extraído de un


llamado que lanzaron los caudillos nazi alemanes a los intelectuales del país13.
En el mismo año en la Rusia soviética el partido comunista ya no tenía por qué
gastar pólvora en consignas: se la gastaba en millones de víctimas sacrificadas
en el ara del totalitarismo.
Este sacrificio de la individualidad ante el cuerpo totalitario lo sintió y ex-
presó como nadie M. de Andrade, la personalidad más rica, abierta y sensitiva
de la pléyade modernista. En una carta particular relativa al 1937 decía:

Felicidade é fenômeno puramente individual, de foro interior (“a própria dor é uma
felicidade”). Não pode haver felicidade coletiva...
Felicidade é pois isentar o ser individual de qualquer irracionalidade coletiva [...] A
humanidade como coletividade é a coisa mais irracional, mais basta, mais pútrida, mais
frágil, mais incapaz, mais sórdida que se pode imaginar [...] E eu sou humanidade. Com-
partilho dessa irracionalidade, dessa podridão, dessa incapacidade, dessa estupidez, dessa
sordidez, dessa dolorosa miséria [...] Não há socialismo, não há comunismo, não há fas-


13. Véase B. Reich, “Política y Práctica del Fascismo en las Artes”, Oktiabr, n. 9, 1933,
p. 184.

23
Caderno de Literatura e Cultura Russa

cismo que faça a humanidade melhorar [...] Mas sou humanidade e como tal ajo, penso,
sofro pra com a humanidade14.

En esta terrible sensación existencial de su propia crucifixión entre el senti-


do y la finalidad de la época, la conciencia del intelectual brasileño es suma-
mente congenial al estado de ánimos de muchos contemporáneos suyos fuera
del Brasil.
En resumidas cuentas, es de constar que la dimensión y el contenido del
proceso cultural brasileño lo ponen fuera de aquellas regularidades que se
suponían comunes al mecanismo de la culturogénesis en América Latina. Por
lo demás, en la cultura brasileña, el Modernismo en cuanto forma de la auto­
creación nacional adquirió una inusitada prolongación temporal, saliéndose
del marco cronológico del periodo propiamente vanguardista para determinar
el subsiguiente proceso de la cristalización de la conciencia nacional.­
En este aspecto es muy significativo el intento históricamente reciente de
realizar la idea de la Ciudad de la Utopía en forma de la construcción de la
ciudad de Brasilia (1957-1960), cuyo proyecto y el estilo arquitectónico mani­
fies­tan la tan característica megalomanía totalitaria. En este caso lo que importa
es la propia semántica de la ciudad en cuanto expresión arquitectónica de la
ideología estatal. Es que el urbanismo, más que cualquier otra de las ciencias y
artes, materializa el sentido de la política estatal, creando símbolos pétreos de
un mundo fantasmal. La gran utopía de la época vanguardista se vislumbraba
en los contornos de “la ciudad ideal”, “templo del futuro”, “ciudad resplan­de­
ciente” de Walter Gropius, Vasili Kandinski y Le Corbusier. Este último, siendo
como fue el arquitecto más grande del siglo XX, resulta una figura en extremo
interesante por su fusión de intenciones utopistas y totalitarias, articuladas en
sus ideas urbanísticas. Le Corbusier tuvo sucesores directos en Lucio Costa y
Oscar Niemeyer, los que crearon – o, más bien, trataron de crear – en la imagen
de la nueva capital el modelo del Estado nuevo.
De este modo, el Modernismo brasileño, al realizar prácticamente el proyecto
de la Utopía vanguardista que exigió la creación de un nuevo lenguaje cultural,
puede considerarse un modelo ejemplar de la vanguardia, un experimento con-
sumado que plasmó los sentidos principales de este paradigma universal ge­-
nerado por el impulso revolucionarista. En particular, el modelo del van­guar­
dismo brasileño permite superar la aparente antinomia de dos manifes­taciones
europeas de programas vanguardistas: el universalismo del proyecto totalitario


14. A. Saraiva, O Modernismo Brasileiro e o Modernismo Português, Documentos Inéditos,
Porto, 1986, pp. 124-125.

24
El Modernismo Brasileño como Espejo de la Revolución Rusa

comunista y el nacionalismo del totalitarismo fascista. Universalismo y nacio-


nalismo resultan ser dos factores bien correlacionados que pueden llenarse de
contenidos diversos que dependen de categorías tales como individualidad,
colectivismo masiforme y modos de su interrelación.
Por fin, la historia del Modernismo brasileño es muy significativa por haber
demostrado con toda claridad el proceso de la transformación, dentro del pa­ra­
dig­ma vanguardista, de la conciencia de tipo abierto, es decir, el mito utópico,­
en la de tipo cerrado, generadora de mitología totalitarista.
Mas, así y todo, en el espejo brasileño no quedó sino un reflejo de la Utopía
hecha realidad...

Abstract: In this essay, approaches between the Russian and the Brazilian Modernism
are made and the projections of the Revolution of 1917 in the Brazilian literary movement
are examined.
Keywords: Russian Modernism; Brazilian Modernism; Russian Revolution of 1917; Literary
Vanguards of the 20th century.

25
Dossiê Púchkin
Organizado por
Homero Freitas de Andrade
Auto-retrato de Púchkin.
Nota

Este Dossiê visa a propiciar ao pesquisador brasileiro acesso a informações e


reflexões fundamentais sobre a vida e a obra de Aleksandr Púchkin. Foram
reu­nidos aqui textos escritos por críticos russos (Jakobson, Lotman) e estudio­
sos brasileiros, que analisam vários aspectos da obra do escritor, bem como
ressaltam o importante papel que Púchkin desempenhou na formação da
literatura russa moderna.
Compõem ainda este Dossiê uma cronologia detalhada da vida e da obra
do poeta, uma seleta de reminiscências de seus contemporâneos e outros
documentos de caráter biográfico, além de uma bibliografia de suas obras
tradu­zidas e publicadas no Brasil. Em seguida, numa brevíssima coletânea,
são apresentadas algumas traduções para o português de textos do escritor:
estrofes do Evguiéni Oniéguin, um romance em cartas inacabado, esboços de
um prefácio e um texto crítico-teórico. Fecha o Dossiê um índice de referências,
constituído­de notas informativas sobre escritores, personalidades, periódicos
e círculos literários citados nos ensaios e demais textos.

Homero Freitas de Andrade


Organizador
Púchkin e o Começo da
Literatura Russa
Aurora Bernardini

Resumo: Este artigo apresenta um breve histórico da literatura russa até o aparecimento
de A. S. Púchkin e destaca a importância que teve sua obra para a formação da literatura
russa moderna. São tratadas ainda questões relativas à vida e à práxis poética do escritor,
no âmbito da poesia e da prosa.
Palavras-chave: A. S. Púchkin; literatura russa; prosa de Púchkin; poesia de Púchkin;
versificação russa.

Numa admirável introdução a The Oxford Book of Russian Verse1, Maurice Baring
sintetiza, dentro do panorama da literatura ocidental, o advento de Aleksandr
Serguéievitch Púchkin (1799-1837), explicando por que ele é considerado por
muitos estudiosos como o grande iniciador da literatura russa. É claro que ela
não nasceu no século XIX. Seu curso porém foi subterrâneo, durante muito
tempo, acompanhando o atormentado desenrolar da própria história da Rússia.
Já no século XI, após a consolidação da unificação das tribos eslavas, Kíev, o
primeiro grande centro da cultura russa, era comparável a qualquer outra gran-
de cidade da Europa ocidental, no mesmo período. Comerciantes, artistas, sábios
transitavam livremente de Leste a Oeste, e os manuscritos russos dessa época
competiam em pé de igualdade com os melhores manuscritos do Ocidente.
Quando, porém, deu-se o cisma religioso entre Roma e Bizâncio (que culminou
com a excomunhão de Cerulário em 1054), os eslavos – de rito ortodoxo – fo-
ram as vítimas acidentais. Ergueu-se uma barreira entre a Rússia e o Ocidente
que, reforçada pela invasão dos tártaros e pelo jugo sucessivo (1240-1480),

1. Oxford, Clarendon Press, 1958.


Caderno de Literatura e Cultura Russa

só começaria a ser demolida nada menos que em 1700, já no reinado de Pedro,


o Grande.
Kíev foi arrasada, a Polônia separou-se do Leste, o Sul da Rússia foi aban-
donado. No século XV, os principados sobreviventes agrupavam-se em torno
de Moscou, num desesperado esforço de sobrevivência. Obviamente, numa
configuração como essa, não se podia esperar que a literatura russa conhecesse
as fases que conheceu a literatura européia.
Houve, subterrâneo e rico, o filão da poesia popular, cujas manifestações se
concretizavam em obras que passavam de uma geração à outra, graças à tra-
dição oral. A introdução do alfabeto cirílico, levado à Rússia por dois monges
búlgaros, Cirilo e Metódio, enviados de Bizâncio para evangelizar os eslavos
no ano 870, permitiu o registro de uma surpreendente obra literária. Trata-se
de O Dito da Expedição de Ígor, um epos anônimo escrito durante o século XII
na língua literária oficial de então, o eslavo eclesiástico, mas com fortes inter-
ferências do russo. A grande originalidade dessa obra reside na utilização dos
métodos da poesia oral, numa épica que tem um ritmo e uma musicalidade
tão complexos que até hoje há estudiosos à procura de influências ou paralelos
que a expliquem.
Sempre em eslavo eclesiástico, foram escritos os Anais ou Crônicas da Galícia,
a civilização russa que sobreviveu à invasão tártara no Norte e no Leste, bem
como as de Nóvgorod e mais tarde as de Moscou, mas nem elas nem a vida dos
santos ou os relatos militares dos séculos seguintes podem ser comparados ao
Dito. Afora as vívidas descrições da vida russa na obra do arcipreste Avvakum –
escritas em língua vulgar, um russo híbrido em que se misturavam as expressões
bárbaras com as assimilações estrangeiras mais variadas (a língua russa oficial
só passará a vigorar em meados de 1700, após a compilação da primeira gra-
mática russa) – nada mais há de realmente original até o advento de Púchkin.
Até então, toda obra literária russa, após a libertação do jugo tártaro, refletirá
a história da tentativa paulatina de derrubar a barreira de incomunicabilidade
entre a Rússia e o mundo ocidental.
O caminho é longo: a primeira prensa é instalada em Moscou durante o
reinado de Ivan, o Terrível (1547-1584); Kíev ressurge das ruínas e volta a ser
um centro de atração cultural; escolas são fundadas em Moscou; e a influência
polonesa volta a se fazer sentir. Em fins do século XVII, uma numerosa colônia
alemã se estabelece nos arredores de Moscou, trazendo consigo suas técnicas
e tradições. Durante o reinado de Pedro, o Grande (1672-1725), governante
conhecedor de vários países europeus (Inglaterra, Alemanha, Holanda), onde
estudou arte naval e militar, a influência européia expande-se, até culminar com a
hegemonia francesa, no governo de Catarina II (1729-1762), que, confor­me é

32
Púchkin e o Começo da Literatura Russa

sabido, manteve longa correspondência com Voltaire e Diderot e convidou re-


petidamente artistas e estudiosos da França a São Petersburgo, que, desde a época
de Pedro, se tornara pouco tempo após sua fundação a capital do Império.
Não é de estranhar que alguns entre os primeiros poetas a escrever em russo2,
como Kantemir e Derjávin, o tenham feito nos moldes da versificação francesa
clássica. Viveram ambos o auge da hegemonia francesa na Rússia, quando reina-
va Catarina II (1729-1762). Mesmo Krylov, que publicou suas famosas fábulas
em 1806, utilizando expressões dos provérbios e das ruas, acabou mantendo
o esquema silábico de La Fontaine, sem acentos de intensidade capazes de
organizar os versos, mas com o final do verso e do hemistíquio discretamente
marcados, respectivamente, pela rima e pelo acento secundário.
A hegemonia da influência literária francesa será rompida por Jukóvski,
que, a partir das traduções que fez de obras de Gray, Bürger, Uhland, Schiller e
Goethe, firmará na literatura russa o uso da métrica baseada na sequência de
“pés”, sendo que sua distribuição e a distribuição dos acentos no verso serão
regidas pelo esquema do metro correspondente. Em meados do século XVIII,
Lomonóssov e Trediakóvski já haviam experimentado esse sistema denominado
sílabo-tônico3, que tem raízes na metrificação greco-latina clássica e também é
usado na poesia alemã e inglesa. Uma vez que em russo o acento de intensidade
desempenha um papel importante, como no inglês e no alemão, era natural que
esse tipo de metrificação se firmasse na Rússia como sendo o mais apropriado
para sua expressão poética. Os “pés” usados na poesia russa são, para os metros
binários, o iambo (sílaba breve, sílaba longa) e o troqueu (sílaba longa, sílaba
breve); para os metros ternários, o dátilo (uma sílaba longa e duas breves), o
anapesto (duas sílabas breves e uma longa) e o anfibráquio (sílaba breve, sílaba
longa e sílaba breve).
Foi justamente Aleksandr Púchkin quem consagrou esse novo modelo, le-
vado adiante por seus sucessores até a época contemporânea, amalgamando a

2. A poesia erudita, até então, era escrita em eslavão ou eslavo eclesiástico. Fora importada
dos Bálcãs no começo do século XI e transpunha para o eslavão versos literários gregos da épica
bizantina, cujo único princípio de versificação parece ter sido um número fixo de sílabas. Sua
segunda forma, já no começo do século XVII, apresentando a rima como único traço que a
separa da prosa (e não mais um determinado número de sílabas), aos poucos desaparece do uso
literário para ser assimilada pelo uso popular, desempenhando o papel de poesia não-cantada.
A poesia silábica propriamente dita apareceu na Rússia via Polônia e Ucrânia em meados
do século XVIII (número de sílabas fixo em cada verso, presença de uma cesura e de rima
obrigatoriamente feminina, sem regras de distribuição de acentos). Pouco natural para o russo,
tornava monótona a cadência da língua, e foi de duração efêmera, desaparecendo pouco depois.
3. Assim chamado, porque cada pé é formado por grupos convencionados de sílabas lon-
gas e breves.

33
Caderno de Literatura e Cultura Russa

herança do passado (diferente da tradição inglesa e alemã), inspirando-se, em


algumas de suas composições, nos poemas épicos e nas canções da poesia po-
pular medieval russa4 e inovando ele mesmo, ao introduzir alterações no metro
nos momentos de grande intensidade do sentido.
Assim, por exemplo, no poema O Anjo (1827), construído sobre quiasmos,
em que o poeta contrapõe o anjo meigo que reluz cabisbaixo, às portas do
Éden, e “o demônio sombrio e rebelde” que sobrevoa o abismo dos infernos, é
magistral a inversão métrica que ocorre no início da segunda estrofe, no verso
que qualifica o demônio como “espírito da negação e espírito da dúvida”, como
que saudando o herói ativo do poema.
Dos metros binários, o iâmbico é o mais corrente em russo, sendo que re-
presenta 84% da produção poética de Púchkin. Em tetrâmetros iâmbicos ele
compôs a maioria de seus versos, reservando o pentâmetro para o Boris Go-
dunov e para as “pequenas tragédias”: Mozart e Salieri, Festim durante a Peste,
O Cavaleiro Avaro e O Convidado de Pedra5.
A palavra em russo não pode ter mais do que um acento tônico, por isso po­
dem ocorrer sílabas longas não-acentuadas. Além disso, como licença poética,­o
acento tônico pode, às vezes, ser deslocado na palavra. Como conseqüência, não
é obrigatório em russo, num metro escolhido, um número estável de acentos6.
Do tetrâmetro iâmbico, por exemplo, que canonicamente deveria ter quatro
acentos tônicos, Púchkin usa seis combinações (nos metros binários é, po-
rém, obrigatório – note-se – o acento tônico na última sílaba do verso)7.

4. Eles eram cantados e sua estrutura rítmica era fundada sobre grupos de acentos e apenas
compreensível quando entendida em termos de sua função musical.
5. Também o metro trocaico foi utilizado por Púchkin (10,6% de seus versos), em particular
o tetrâmetro trocaico, justamente nos poemas que imitam ou retomam a poesia popular. Os
metros ternários representam 1,5% da produção poética puchkiniana. Neles o esquema métrico­
é mais rígido (a realização rítmica praticamente coincide, sem variações, com a grade métrica),
sendo portanto as sílabas acentuadas a ossatura imutável do verso. Eles se prestam particular-
mente à composição de baladas e romanças. Para outras estatísticas e explicações prosódicas
detalhadas cf. Книга о Русской Рифме (O Livro da Rima Russa), Moscou, Ed. Literatura, 1982.
6. Em La Versification Russe (Paris, Librairie des Cinq Continents, 1958, p. 57; tradução
francesa de Russian Versification, Oxford, Clarendon Press, 1956), comentando o acento no
verso russo, B. Unbegaum afirma: “É esta variabilidade do acento que cria o ritmo de um verso
russo e lhe confere sua individualidade. Cabe a cada poeta encontrar, nas molduras de um dado
metro, o ritmo mais apropriado às circunstâncias. À parte a questão do léxico e da eufonia, é
lá que reside em grande parte a arte da versificação russa”.
7. Um exemplo disso pode ser observado no seguinte esquema fornecido por B. Unbegaum
(cf. La Versification Russe, cit., p. 37):
Сердито бился дождь в окно /4 acentos/;
На берегу пустынных волн /3 acentos/;

34
Púchkin e o Começo da Literatura Russa

A propósito dos versos de Púchkin considera-se que:

A beleza e a harmonia são puramente verbais, repousando sobre um acordo perfeito


do ritmo e da sintaxe e sobre um sistema extremamente sutil daquilo que se poderia
chamar de aliteração, se é lícito usar este termo para designar um procedimento tão rico
quanto variado8.

Em termos de evolução literária, a obra do grande poeta representou o fe-


nômeno que Iúri Tyniánov, um dos teóricos mais afiados do Formalismo russo,
chama de deslocamento do sistema, ou seja, a construção de um novo modelo
(gênero) no qual são utilizados elementos dos velhos sistemas, interpretados
porém de maneira diferente:

Tentemos, por exemplo, dar a definição do conceito de poema, isto é, o conceito de


gênero. Qualquer tentativa de uma única definição estática está fadada ao fracasso. Basta
ver a literatura russa para se convencer disso. O caráter revolucionário do “poema” de
Púchkin Ruslan e Liudmila estava no fato de tratar-se de um “não-poema”. (O mesmo se
dava com O Prisioneiro do Cáucaso.) Quem estava pretendendo tomar o lugar do poema
heróico? O leve conto maravilhoso (skazka) do século XVIII, sem, por sinal, tentar justificar
esta sua leveza. A crítica sentiu nisso um desvio do sistema, mas, na verdade, tratava-se
de um deslocamento do sistema. O mesmo acontecia em relação aos elementos isolados
do poema [...]. Púchkin mudou intencionalmente o significado do “herói” e os críticos,
acostumados com o “herói” elevado, falaram em “rebaixamento”. Em Os Ciganos, uma
dama notou que em todo o poema só havia um único indivíduo honesto e este era o urso9.

Para situar melhor os elementos formadores da práxis poética de Púchkin,


no que se refere à transcriação de modelos e formas da literatura européia, vale
relatar uma “profecia” atribuída a Pedro, o Grande, certamente o vulto histó-
rico mais admirado pelo poeta. Em discurso durante um banquete em come-
moração da paz de Nystadt, o monarca teria dito que os historiadores conside-

В Европу прорубить окно /3 acentos/;


И плунша пламень голубой /3 acentos/;
Адмиралтейская игла /2 acentos/;
И кланялся непринуждённо /2 acentos/.
(Tradução literal: “Batia inclemente a chuva à janela / À margem de ondas deserta / Fender
uma janela para a Europa / E a chama azul do ponche / A agulha do Almirantado / Sauda-
va com desenvoltura”).
8. Cf. D. S. Mirsky, Histoire de la Littérature Russe, Paris, Fayard, 1969, p.105.
9. Cf. Texte der Russichen Formalisten, Band I, München, Fink Verlag, 1969.

35
Caderno de Literatura e Cultura Russa

ravam a Grécia o berço de todas as ciências, tendo elas depois migrado da


Grécia para a Itália e para o resto da Europa, parando na Polônia, sem atingir
a Rússia. Porém – completara o czar – haveria de chegar o dia em que a arte, a
ciência e a cultura viriam da Inglaterra, França, Itália e Alemanha para a Rússia,
seriam transformadas e daí acabariam voltando para a Grécia, num movimento
semelhante ao da circulação do sangue.
O caráter profético dessa anedota é duplo: por um lado, observou-se que,
realmente, a Rússia, sempre que as linhas de comunicação o permitiram, as-
similou vorazmente a cultura ocidental e a “devolveu” ao mundo diferente de
como a tinha recebido. Por outro, por uma dessas coincidências históricas que
só é possível explicar a posteriori, a poesia russa (e a música russa também,
segundo M. Baring), a despeito de qualquer outra influência mais ou menos
sensível, tem at its best as mesmas características da poesia grega. Esta também
é a opinião do historiador da literatura russa, D. S. Mirsky:

Não se trata de uma beleza de ornamento, mas de uma beleza de estrutura, uma beleza
de harmonia e de simplicidade... A poesia grega é estatuária no sentido em que depende
essencialmente de sua estrutura orgânica: isto não significa absolutamente que seja fria,
rígida, ou sem cor... Ela tem a mesma simplicidade e o mesmo despojamento de uma
escultura grega. O poeta tem algo a dizer e o diz no estilo mais apropriado e da forma
melhor e mais verdadeira possível. Se você gostar, gostou...10 

É justamente o que acontece com Púchkin, como bem notou M. Baring:

O senso de equilíbrio e proporção em que a palavra e o som se fundem lembra ao


leitor, quando lê Púchkin, a arte grega, e lhe dá a impressão de estar lendo um clássico11.

Aclamado incondicionalmente pelo público que o tornou, até hoje, o poeta


mais popular da Rússia, tão logo se afastou dos esquemas e dos temas conven-
cionais, passou a ser massacrado pela crítica e perseguido pela censura até o
fim de sua curta vida, que vamos acompanhar sucintamente.
Na época em que Púchkin nasceu (1799), o czar que reinava sobre a Rússia
ainda era Paulo I, o filho insano de Catarina II, que viria a ser morto dois anos

10. Cf. Mirsky, Histoire de la Littérature Russe, Paris, Fayard, 1969, p.53.
11. Cf. M. Baring, introdução a The Oxford Book of Russian Verse (cit., 1958, p. XXII).
Quanto ao conceito de clássico, é verdade que quem diz clássico na Rússia diz realista, como
muito bem observou Leo Schalfman em seu artigo sobre Púchkin (Jornal do Brasil, 23/1/93),
e é também verdade que quem fala na poesia de Púchkin tem em mente ao mesmo tempo os
ideais de seletividade, familiaridade e simplicidade.

36
Púchkin e o Começo da Literatura Russa

depois numa conspiração palaciana, da qual tomaria secretamente parte seu


filho e sucessor, Alexandre I. Moscou havia se tornado o centro da vida intelec-
tual e artística do país. A alta sociedade, que em São Petersburgo gravitava em
volta da Corte, em Moscou, via de regra, entediava-se. Os jovens promissores
liam os imitadores russos de Parny, Rousseau, Racine, Voltaire, enquanto as
jovens (e as velhas) suspiravam com os romances sentimentais que apareciam
aos montes, todos iguais e de qualidade duvidosa12. A mesmice dominava tam-
bém o cotidiano. De manhã, praticavam equitação e, à noite, em dias certos
da semana, quando não havia baile ou carteado, freqüentavam os salões. Os
chefes de família cuidavam da administração de suas propriedades rurais, onde
a família passava temporadas anuais, juntamente com numerosa criadagem,
parentes, servos e agregados. O povo, como sempre, sofria.
Foi nesse meio que nasceu Púchkin, numa casa da rua Alemanha, destruída
pelo incêndio de 1812. O pai, jovem oficial da guarda, revelou-se mau admi-
nistrador, colérico, medroso, atormentado pelas dívidas. A mãe, neta de Ibraim
Hannibal, o famoso Negro de Pedro, o Grande13, bonita, fútil e nervosa, não
soube ser boa mãe nem boa companheira.
Durante sua infância, entregue aos cuidados de preceptores improvisados
que só conseguem fazer com que ele aprenda o francês, o jovem Púchkin
torna-se desobediente, caprichoso, precoce. Abandona, embora com carinho,
as histórias maravilhosas que lhe contam a avó Hannibal e a babá, Arina Rodió­
novna, e devora os livros da biblioteca do pai: Plutarco, Homero, La Fon­taine,
Molière, Corneille, Racine, Beaumarchais, Parny, Diderot, Voltaire14. Começa a
escrever versos em francês. Aos doze anos, quando está para ser enviado a um
colégio de religiosos para completar sua educação, consegue ingressar, graças à
interferência de influentes amigos da família, no recém-criado Liceu de Tzárs­
koie Seló, próximo de São Petersburgo, cuja sede encontrava-se numa das de-
pendências da própria residência de verão dos czares.

12. Veja-se no conto A Dama de Espadas, a causticidade com que Púchkin satiriza essa
ambiência:
“– Paul! – gritou a condessa de trás dos biombos. – Manda-me algum romance que ainda
não li, mas, por favor, que não seja dos novos.
“– Como assim, grandmaman?
“– Quero dizer: um romance em que o herói não estrangule o pai, nem a mãe e em que
não haja afogados. Eu tenho um medo terrível de afogados.
“– Tais romances não existem mais. Não quer algum russo?
“– Mas existem romances russos? Manda-me um, meu caro, manda-me, por favor!” (trad.
Boris Schnaiderman, A Dama de Espadas, São Paulo, Editora 34, 1999, p. 176).
13. Leia-se o conto homônimo, publicado na já citada coletânea A Dama de Espadas.
14. Trata-se de originais e traduções francesas.

37
Caderno de Literatura e Cultura Russa

O Liceu, com número reduzido de vagas, recebia “jovens destinados aos


mais altos cargos do Estado e escolhidos entre as melhores famílias”. É ali que
Púchkin permanecerá até os dezoito anos. É apaixonante imaginar a evolução
de sua personalidade nessa época de aprendizado, que talvez tenha sido a mais
feliz de sua vida. Os professores, dessa vez não improvisados, alimentam-lhe o
estro poético. Um deles leva-o a compor suas Reminiscências de Tzárskoie Seló
para o exame de 1814, um trabalho poético que, embora seguindo as pegadas de
Derjávin e de Jukóvski, já demonstra a felicidade com que Púchkin harmoniza
ritmos, sons e sentido e, publicado por uma das mais importantes revistas da
época, consagra-o como fenômeno aos quinze anos.
Em Tzárskoie Seló travará as amizades que lhe serão de conforto e de estí-
mulo durante a vida inteira e fará sua iniciação política e sentimental. Em 1817,
terá escrito cento e vinte trabalhos, em verso ou em prosa, dominando todos
os gêneros conhecidos e começando a transgredi-los.
Saindo do Liceu com o cargo de adido ao Ministério do Exterior e o soldo
anual de setecentos rublos, começa a levar em São Petersburgo uma vida de
dissipação. No dizer de seus biógrafos, era “ativo, rápido, negligente, insolente,
atrevido e fútil, queria conhecer todos os homens célebres, possuir todas as
mulheres disponíveis, ouvir todas as vozes famosas e elevar a si mesmo ao mais
alto nível como poeta”15.
Sua popularidade era preocupante e a censura do czar não o perdia de vista.
Devido à interceptação de uma carta pessoal em que se declarava ateu e à pu-
blicação de sua Ode à Liberdade, que desagradou particularmente a Alexandre
I por conter alusões ao assassínio de seu pai (mas, na verdade, para evitar que
os versos ousados de Púchkin, repetidos por todos, fomentassem uma suble-
vação), em 1820 ele foi removido primeiro para o Sul da Rússia e depois para
outras regiões (Kichiniov, Odessa, Mikháilovskoie) até a morte do próprio
Alexandre I, em 1825.
O exílio e o deslocamento terão repercussões inevitáveis na natureza e na
intensidade de sua produção. Se Tzárskoie Seló representa a época neoclássica
de sua obra, o Cáucaso, o Mar Negro e os desertos da Bessarábia servem de
ambiência a seus poemas românticos, meridionais. Além dos já citados por
Ty­niánov, A Fonte de Bakhtchissarai foi um sucesso tão grande que rendeu ao
poeta milhares de rublos em direitos autorais que ele, pela primeira vez na
Rússia, passou a exigir dos editores. Apenas a crítica continuava não querendo
entender o caráter inovador de suas obras e a pedir-lhe odes que celebrassem
feitos nacionais. Escreve ele a um amigo em 1824:

15. Cf. Histoire de la Littérature Russe, cit., p. 17.

38
Púchkin e o Começo da Literatura Russa

A crítica confunde inspiração e entusiasmo – A inspiração é uma disposição do espí-


rito para captar vivamente as impressões e para melhor compreender as idéias... É preciso
inspiração tanto em geometria quanto em poesia. O entusiasmo exclui a tranqüilidade,
que é uma condição indispensável da criação artística. O entusiasmo não pressupõe o
trabalho da razão, que distribui as partes no interesse do todo. O entusiasmo é efêmero,
descontínuo, incapaz, portanto, de produzir uma obra verdadeiramente grande e perfeita.
Homero é incomparavelmente maior que Píndaro. A ode está nas esferas mais baixas da
criação artística. A ode exclui o trabalho contínuo, sem o qual não há nada de grande
nesse mundo.

Ironicamente, foi sua condição de desterrado que o salvou de se ver en-


volvido diretamente na conspiração dos dezembristas, que pretendia acabar
com o czarismo e que levou a maioria de seus ex-colegas de Liceu à forca ou à
Sibéria. O sucessor de Alexandre I, seu filho Nicolau I, acedeu aos pedidos do
poeta e permitiu-lhe voltar à capital, mas submeteu-o, até o fim de seus dias,
a uma censura incessante, exercida por ele mesmo e pelo terrível Benkendorf,
chefe da polícia secreta.
Por essa época, Púchkin já havia iniciado sua obra mais conhecida, o ro-
mance em versos Evguiéni Oniéguin, que levaria oito anos para concluir e que
marcaria o apogeu daquele inconfundível realismo de que falava Baring, e da
volta daquele antigo filão de poesia popular que não mais abandonará. Ao
mesmo tempo, porém, ele continuava compondo outros poemas, longos ou
curtos, sempre de primeira grandeza. Entre eles, a tragédia Boris Godunov, O
Conde Núlin, Poltava, A Tempestade, O Profeta. Pouco antes de se casar (1830),
recolheu-se à propriedade paterna em Boldino, onde trabalhou febrilmente.
Em menos de três meses escreveu mais de 30 poemas e as já citadas pequenas
tragédias, que revelam o artista no apogeu de sua arte. Pouco depois, escreveu
duas obras-primas: O Conto do Czar Saltan e O Cavaleiro de Bronze.
Na década de 1830, Púchkin passa a se dedicar mais sistematicamente à
prosa. Trata-se de uma prosa sóbria e essencial, de uma vivacidade inimitável.
Basta ver o juízo que dela faz Liev Tolstói, em carta a um amigo quarenta anos
após a morte de Púchkin:

Há muito que você não lê a prosa de Púchkin?... Comece lendo todos os Contos de
Biélkin. Eles devem ser estudados e todo escritor deve estudá-los... Por que esse estudo é
importante? O campo da arte é infinito como o da vida; mas todos os temas estilísticos
sempre foram distribuídos de acordo com uma determinada hierarquia; ora, misturar os
mais baixos com os mais altos ou tomar o mais baixo pelo mais alto é um dos erros que
mais acontecem. Nos grandes artistas, em Púchkin, esta harmoniosa regularidade na dis-

39
Caderno de Literatura e Cultura Russa

tribuição dos temas é levada à perfeição... A leitura de Homero e de Púchkin restringe o


campo e, se estimula ao trabalho, o faz no sentido certo, sem erro nenhum.

A natureza inquieta e vacilante do “sol da poesia russa”, como seria cogno­


mi­nado, impeliu-o a um casamento infeliz que lhe consumiu as poucas posses
e as energias vitais, levando-o a procurar a solução dos contínuos impasses
num duelo em que se viu envolvido, vindo a falecer com a idade de 38 anos.
Não fora isso, além do ciclo de Histórias do Falecido Ivan Petróvitch Biélkin16
(1830), do romance A Filha do Capitão17 (1836), dos contos A Dama de Espadas,
Dubróvski e Kirdjali, e de outras obras em prosa (e poesia) que viesse a escre-
ver, ele certamente teria terminado os romances O Negro de Pedro, o Grande e
Romance em Cartas.

Abstract: This essay presents a brief history of Russian literature up to the works of A. S.
Pushkin, pointing out their importance in the formation of modern Russian literature. Ques-
tions about the theory and practise of his poetics (in poetry and prose) are also analysed.
Keywords: A. S. Pushkin; Russian literature; Pushkin’s prose and poetry; Russian versification.

16. A maioria dos contos do ciclo foram traduzidos para o português por Boris Schnai­der­
man no volume A Dama de Espadas (São Paulo, Editora 34, 1999), do qual ainda fazem parte
o conto que dá nome à coletânea, além de O Negro de Pedro, o Grande, Dubróvski e Kirdjali.
17. Tradução brasileira de Helena Nazario (São Paulo, Perspectiva, 1980).

40
Notas à Margem da
Lírica de Púchkin1
Roman Jakobson

Resumo: Neste ensaio, que tem por base um estudo comparativo entre a poesia épica e a
lírica de Púchkin, são analisados os elementos e técnicas de composição da lírica puchki-
niana. São comentados também os aspectos da poesia lírica de Púchkin que encontram
suas raízes na tradição poética russa, bem como aqueles de caráter inovador.
Palavras-chave: A. Púchkin; lírica de Púchkin; poesia russa do século XIX.

A poesia lírica de Púchkin, de todos os gêneros literários por ele praticados,


continua sendo a menos estudada. Há muitas razões para isso. Identificá-las
aqui implica chamar a atenção para as características fundamentais do trabalho
lírico do poeta; este é o único objetivo das anotações que vêm a seguir. Se não
é dada à poesia lírica de Púchkin a merecida atenção, é por ser habitualmente
considerada uma digressão em relação ao restante de sua obra criadora – uma
inovação menor na história da arte verbal russa, e um impulso menos forte
para sua evolução posterior.

1. “Заметки на полях лирики Пушкина” (Работы по Поэтике, Moscou, Pro­gress, 1987,


pp. 213-218) foi escrito em tcheco e publicado pela primeira vez na revista Okraj (Praga, 1937).
A tradução baseou-se nas versões russa e francesa (Russie folie poésie, org. T. Todorov, Paris,
Seuil, 1986). Na tradução francesa, sob o título geral de “Pouchkine” (trad. Nancy Huston, pp.
107-121), foram reunidos o presente ensaio (“I. La poésie lyrique”, pp. 107-114), seguido do
ensaio “Notas à Margem do Evguiéni Oniéguin” (“II. Eugène Onéguine”, pp. 114-121), ambos
publicados originalmente em separado.
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Certamente, em sua primeira fase, a chamada fase do liceu2, Púchkin é qua-


se exclusivamente um poeta lírico; mas no trabalho de sua maturidade este
gênero­ocupa de fato, e de modo sempre mais evidente à medida que o tem-
po passa, um lugar secundário, cedendo o papel principal ora a poemas bem
longos do tipo épico, ora a experiências no campo do drama e, mais tarde,
da prosa. Sua tendência progressiva é, se não dominar, ao menos atenuar e
delimitar o elemento lírico; assim A Dama de Espadas, Oniéguin, Godunov etc.
surtem o efeito de dissimular o relevo lírico do mundo poético de Púchkin
para o observador que considera retrospectivamente seu trabalho e só vê nele
picos altís­simos e isolados, ao invés de toda a cadeia contínua. É verdade que,
ao longo de seu desenvolvimento criador, Púchkin rejeitou o lirismo, e que em
seus textos épicos ele muitas vezes suprimiu conscientemente as ressurgências
líricas, cortando e substituindo as passagens líricas por reticências; mas não resta
dúvida de que a obra toda provém daí, e que cada uma de suas composições
épicas tem origem num esboço lírico. E isso é válido não só do ponto de vista
da “oficina” de Púchkin, das condições históricas preexistentes ao apareci­mento
de suas obras-primas, mas também do ponto de vista do contexto literário que
foi, simultaneamente, uma de suas componentes ativas. O poeta, ao rejeitar por
completo o lirismo propriamente dito, contava com um leitor capaz de perceber
esse processo e de compreender exatamente aquilo que tinha sido rejeitado. A
poesia lírica de Púchkin é, antes de mais nada, uma chave indis­pensável para
a compreensão de seu simbolismo, que será bem mais complexo e velado nas
obras épicas. E o poema lírico é o único gênero literário que Púchkin cultivou
durante toda sua vida – desde a adolescência até os últimos dias; de modo que
ele constitui uma espécie de cimento de toda sua obra.
A poesia lírica de Púchkin apresenta vários pontos de semelhança com de-
terminados desenvolvimentos anteriores da poesia russa. É o que sem dúvida
alguma levou Púchkin a começar pela poesia lírica – a recorrer a ela durante
os tempos do liceu e a abandoná-la mais tarde; em outras palavras, o fato de
Púchkin ter estreado justamente sob o signo do lirismo está ligado à riqueza
da tradição lírica russa. O período que vai do início do século XVIII ao final do
XIX é o da grande eclosão da poesia lírica na Rússia. Púchkin, poeta lírico, é o
herdeiro do classicismo russo em toda sua variedade. E o que mais particular-
mente o influenciou foram as formas ditas baixas dessa literatura clássica, as
que pertencem à esfera da “poesia ligeira”, assim como as tentativas de sobre-
pujar as normas clássicas, tentativas intimamente ligadas a essas formas mais

2. A produção poética de Púchkin referente aos anos em que estudou no Liceu de Tzárskoie
Seló e freqüentou o círculo “Arzamás” (1811-1817).

42
Notas à Margem da Lírica de Púchkin

“baixas”. Nem para o drama, nem para a epopéia, nem para a prosa Púchkin
teve modelos russos tão marcantes e tão diversificados como o eram Gavrila
Derjávin, Konstantin Bátiuchkov e Vassíli Jukóvski para a poesia lírica. Púchkin
liga-se a seus eminentes predecessores por seu modo de conceber e de elaborar
gêneros líricos individuais. É claro que o jovem Púchkin apreendeu bastante
da poesia lírica estrangeira, sobretudo dos escritores franceses dos séculos
XVII e XVIII, bem como, um pouco mais tarde, da nova poesia lírica inglesa;
mas nunca teria podido fazer empréstimos eficazes dessas correntes sem uma
tradição local muito desenvolvida. Se, em sua poesia lírica, Púchkin foi menos
pioneiro e inventor de novas formas literárias do que viria a ser mais tarde no
drama histórico ou na epopéia, essa poesia, no entanto, é a síntese da evolução
centenária da poesia clássica russa; ela a consagra ao esgotar suas possibilidades
de criação. Nem a poesia lírica romântica e melódica (Baratýnski, Liérmon­tov,
Tiúttchev) – cuja evolução os simbolistas3 deveriam perfazer – nem a poesia
lírica de ressonâncias paródicas do realista Nekrássov precisavam passar por
Púchkin, ao passo que o Oniéguin, O Cavaleiro de Bronze, Godunov e os textos
em prosa do poeta tornaram-se passagens obrigatórias na história da literatura
russa e prepararam o caminho para novas conquistas artísticas.
Entretanto, se a poesia lírica de Púchkin causa perplexidade aos historiadores
de literatura não é simplesmente por ela não ter deixado herdeiros; é devido à
surpreendente estranheza de suas técnicas formais. Os procedimentos líricos
de Púchkin distanciam-se a tal ponto das idéias correntes sobre a composição
de um poema lírico que, como tais, eles constituem um dos problemas mais
difíceis de resolver, exigindo – da parte de um leitor contemporâneo que dese-
jasse assimilar plenamente um poema de Púchkin – um abandono consciente
dos critérios habituais. Permitido tal abandono, descobre-se não somente um
mundo singular de valores artísticos, mas também – e o que é muito mais im-
portante – se é levado a perceber o mundo da poesia lírica que habitamos como
apenas um entre todos os mundos líricos possíveis, e suas fronteiras como algo
passível de ser ampliado.
Uma confrontação entre dois mundos poéticos, como aquela que propo-
mos aqui ao leitor, é definitivamente a premissa criadora da poesia lírica de
Púchkin: é o Classicismo iluminado pelo Romantismo. O Classicismo de um
poeta que permanece fiel à tradição – mas que ao mesmo tempo conhece,
compreende, aprecia as conquistas do Romantismo e as experimenta – é funda-

3. O simbolismo manifestou-se na Rússia de 1890 a 1910, sendo responsável por todo


um processo de renovação da poesia lírica, após quase sessenta anos de domínio da prosa na
literatura russa.

43
Caderno de Literatura e Cultura Russa

mentalmente diferente do Classicismo pré-romântico, assim como os român-


ticos colocados numa ambiência realista (Baudelaire, Lautréamont, Dostoiévski)
distinguem-se com muita nitidez dos românticos como tais.
“O encanto da simplicidade despojada, diz Púchkin, continua sendo inin­
teligível para nós, de modo que até da prosa exigimos ornamentos surrados,
e teimamos em não compreender uma poesia livre dos ornamentos poéticos
convencionais”4. É este o nó da poética de Púchkin: é isso que imprime a seu
trabalho lírico um cunho raro, tão particular, e que complica imensamente sua
análise, pois não há matéria mais difícil de analisar que uma forma simples
que beira o ascetismo, sobretudo se a conhecemos de cor desde a infância.
Profundamente estranho à poesia lírica de Púchkin é o dualismo entre a nar-
rativa e os floreios narrativos, ou a oposição dos objetos e das imagens, de uma
categoria do real e de uma categoria figurada. (Significações lexicais às quais o
poema atribui um sentido objetivo pertenceriam à primeira categoria: é, por
assim dizer, o conteúdo da mensagem lírica; tropos, evocando objetos que não
estão realmente implicados no conteúdo material, mas que lhe são associados
por semelhança, por contraste ou por contigüidade, pertenceriam à segunda
categoria.) A relação entre essas duas categorias varia de acordo com as escolas
poéticas; a fronteira entre as duas pode, por exemplo, ser obliterada de modo
que as palavras oscilem de uma para outra. Porém Púchkin, partindo do lírico
para o épico, rejeita por assim dizer os tropos autônomos – ou, antes, ele os
projeta sobre uma realidade poética de modo tal que os objetos que formam
o “conteúdo” de um poema permanecem de fato diretamente ligados uns aos
outros por estreitas relações de contigüidade, de semelhança e de oposição.
Assim, as relações metafóricas e metonímicas acham-se reificadas, entrando
diretamente no “conteúdo” do poema para se tornar seu assunto, sua intriga
dramática. Uma viagem, uma vista panorâmica, uma sucessão temporal, por
exemplo, constituem motivos típicos para cadeias de imagens contíguas nos
poemas de Púchkin.
O gosto de Púchkin pela precisão, pelo despojamento e pelo valor infor-
mativo da palavra poética diferencia no geral sua poesia lírica do lirismo
romântico. Seu modo de narrar é sóbrio, “sem paixão ou cólera”; nem em
seu vocabulário nem na sintaxe ele recorre ao estratagema do discurso emo­
ti­vo e expressivo. Quanto à pontuação, evita ao máximo as reticências, os
pon­tos de exclamação e mesmo os de interrogação, e observa escrupulosa-
mente os limites das significações lexicais. Seus epítetos são precisos e sem-

4. Cf. N. V. Bogoslóvski (org.), Пушкин о Литературе (Púchkin sobre a Literatura),


Moscou-Leningrado, Academia de Ciências, 1934, p. 153 (N. do A.).

44
Notas à Margem da Lírica de Púchkin

pre motivados tematica­mente; sua textura sonora e suas entonações estão


intimamente ligadas ao sentido; a tendência para uma melodia e uma
ornamentação­autônomas é estranha a seu lirismo. As estrofes de Púchkin
são bem ordenadas e flexíveis, o que permite a ênfase no aspecto semântico.
Uma valorização surpreendente das oposições gramaticais, sobretudo entre
as formas verbais e pronominais, está associada a uma atenção aguda para
com o sentido. Os contrastes, as afinidades, as contigüidades de tempo e de
número desempenham um papel absolutamente primordial na composição
de alguns poemas; realçados por uma oposição entre categorias gramaticais,
eles adquirem a eficácia de imagens poéticas; a variação controlada das figuras
gramaticais torna-se desse modo um meio de densa dramatização. Dificil-
mente se encontraria um exemplo poético mais perfeito da exploração das
possibilidades da morfologia! Para obter maior carga semântica das palavras
e sua diferenciação mais sutil, Púchkin aproveita-se em larga medida, e com
grande eficácia, da particular riqueza estilística que a língua russa oferece,
graças à interpenetração de elementos locais e de elementos do eslavão, de
tradições espiritualistas e laicas, de modos de falar populares – de gíria e
folclóricos – e aristocráticos afrancesados. Muito consciente dos recursos
que essa estra­tificação lingüística proporciona, ele declara: “Na qualidade
de matéria para a arte verbal, a língua eslavo-russa apresenta uma vantagem
indiscutível sobre todas as línguas européias: seu destino foi surpreendente-
mente feliz”. Entretanto, esse caráter “feliz” da língua russa retardou a difusão
no Exterior­da obra de Púchkin, tão fortemente ligada à língua, e sobretudo
a difusão de sua poesia lírica, de todas a mais vinculada aos valores lingüísti-
cos. Esta apresenta penosas dificuldades – tanto para o tradutor, cuja língua
careça de uma estratificação estilística tão rica do vocabulário, como para o
leitor não iniciado nas infinitas nuances do russo.
Fala-se muito do realismo de Púchkin, mas na verdade os traços mais ca-
racterísticos da literatura e das artes visuais do “período realista” – a saber, a
presença de detalhes supérfluos de um ponto de vista temático, a tentativa de
desenhar e colorir de modo tão minucioso quanto possível todo objeto descri-
to – esses traços são ambos estranhos à poesia lírica e à imagética de Púchkin.
As imagens poéticas que ele utiliza são despojadas e estão mais próximas do
desenho que da pintura.
Ao projetar imagens heterogêneas sobre um mesmo plano, Púchkin anula a
hierarquia entre elas. As experiências subjetivas são relatadas num estilo obje-
tivo, de modo a se aproximarem das imagens da ação; com isso, o herói lírico
nos poemas de Púchkin perde sua posição central e dominante. A emoção
não passa de um entre outros objetos de representação poética; desse modo, a

45
Caderno de Literatura e Cultura Russa

poesia lírica de Púchkin às vezes é um discurso sobre a emoção, porém nunca


é um discurso emotivo. Os críticos têm por hábito estabelecer uma equi-
valência rigorosa entre a poética de um poeta e sua visão de mundo. Nesse
discurso que tenta passar uma impressão de neutralidade, nessa eqüidistância
de todas as imagens – o que permite a Púchkin comparar o papel do poeta ao
do eco reverberando todos os sons – pretendeu-se ver a prova de uma atitude
de “aprovação generalizada” de Púchkin em relação ao mundo – embora
saibamos que sua verdadeira atitude pessoal era absolutamente outra. Todo
leitor atento fica assombrado diante da riqueza de imagens heterogêneas que
habitam em pé de igualdade o mundo poético de Púchkin; um grande número
de objetos se interpenetram; o mesmo objeto é representado sob enfoques
diferentes. A polissemia de uma obra provém necessariamente da ausência de
uma hierarquia. “Toda imagem é contestada, diz um crítico, imagem nenhu-
ma pode ser interpretada de modo conclusivo a partir de um único ponto de
vista; toda interpretação abre caminho para uma outra, e nenhuma pode ser
aceita como definitiva”5. Entretanto, este crítico engana-se quando, a partir
da polissemia de uma obra poética, ele tira conclusões a respeito da indecisão
pessoal, da va­cilação e da indefinição ideológica do autor. A ambigüidade, ou,
mais precisamente, a multiplicidade de sentidos, é uma das componentes bá-
sicas das obras poéticas de Púchkin, e seria evidentemente fútil procurar num
eco uma ideologia unificada. De resto, é por essa razão que se pode desembo-
car em julgamentos infinitamente contraditórios sobre as opiniões políticas,
filosóficas ou religiosas do escritor a partir de suas obras poéticas; e nenhuma
tentativa de ultrapassar essas contradições, apelando ao estatuto “extraclasses”
do autor, ou ao fato de que ele se teria emancipado de seu meio, pode salvar
a situação. Os críticos ora condenam as “incoerências” ideológicas das obras
de Púchkin, ora tentam de um modo ou de outro perdoar nelas a “fraqueza”,
mas eles não se dão conta de que foi exatamente esta pluralidade semântica
deslumbrante que conferiu ao poeta seu lugar entre os eleitos, transcendendo
sua época e sua nação. Toda geração, toda classe, toda facção ideológica projeta
sua própria escala de valores sobre um trabalho que em si não comporta juízo
de valor.
O erudito, para quem cada estrofe da poesia lírica de Púchkin é um docu-
mento em si e que nela procura idéias contraditórias, acredita detectar uma
ruptura ideológica em 18256 e fala da revolta do poeta, seguida de sua capitu-

5. Cf. D. Mirsky, “Проблема Пушкина” (“O Problema de Púchkin”), Литературное


Наследство (Herança Literária), 16-18, 1934, p. 102 (N. do A.).
6. Ano da Revolta Dezembrista.

46
Notas à Margem da Lírica de Púchkin

lação. E, no entanto, o leitor, para quem Púchkin é uma fonte inesgotável, sabe
muito bem que o conjunto de sua obra é indissolúvel, e que sobretudo sua
poesia, desde os poemas de estréia do liceu até os derradeiros esboços, possui
um simbolismo incrivelmente homogêneo. De resto, é impossível, por assim
dizer, falar de formas menores em Púchkin, pois esses pequenos fragmentos se
fundem numa obra lírica monolítica, em cujas últimas páginas encontramos
a recorrência, o desenvolvimento e o esvanecimento de imagens que nela já
apareciam desde o primeiro momento. Sem a consciência dessa totalidade é
impossível compreender plenamente a poesia lírica de Púchkin.
Certas imagens encontram-se tão intimamente ligadas entre si que basta uma
delas aparecer num poema para que um segundo elo da corrente venha forçosa-
mente ao espírito. Desse modo, os temas da servidão, da revolta e da liberdade
estão invariavelmente ligados a imagens de ondas, inundações, barrancos, uma
prisão, uma jaula, Pedro, o Grande, e Napoleão; e isso também é válido quando
o assunto verdadeiro de um poema não vem explicitado, ou quando o autor o
suprime devido à censura (em O Prisioneiro do Cáucaso, por exemplo). A pro-
pósito, não se deve desprezar o fato de que uma censura importuna e implacável
constitui um elemento essencial da história da literatura russa (isso também se
aplica, e em grau bastante elevado, à época de Púchkin); a capacidade de ler nas
entrelinhas torna-se desde então excepcionalmente aguda no público, e o poeta
recorre às alusões, às omissões, ou – para usar a expressão russa – à “linguagem
esopiana”. Justamente por serem as relações entre as imagens sempre muito
estáveis é que o leitor consegue perceber com particular intensidade as diversas
variações às quais elas foram submetidas. No plano da composição, isso nos
faz lembrar a comédia clássica (commedia dell’arte), na qual as possibilidades
de improvisação adquirem maior relevo na medida em que atuam sobre um
fundo de componentes fixas. Assim, diferentes oposições de imagens – o re-
pouso e o movimento, o livre-arbítrio e a coação, a vida e a morte – reaparecem
a todo instante na poesia lírica de Púchkin, e, no entanto,­as relações entre os
membros de cada uma de suas oposições não deixam de nos encantar e de nos
surpreender­por suas transformações constantes e caprichosas. Tais relações se
refletem na grande mobilidade do mito do qual o próprio Púchkin é objeto, o
qual é arden­temente celebrado por um poeta (Dos­toiévski) como encarnação
eterna da humildade, e por um outro (Valiéri Briússov), a par de outras tantas
justificativas, como símbolo eterno da revolução. É justamente essa inexaurível
tensão interna que se chama comumente de “imortalidade do poeta”.

Abstract: In this essay that has for its base a comparative study of the epic poetry and the
lyrics of Pushkin, the elements and techniques of composition are analysed. The aspects of

47
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Pushkin’s lyric poetry that find their roots in Russian poetic tradition as well as those of
innovative character are also commented upon.
Keywords: A. S. Pushkin; Pushkin lyric; Russian poetry of the 19th century.

Tradução e Notas
Homero Freitas de Andrade

48
Como Foi Feita uma
Quadra de Púchkin1
Roman Jakobson

Resumo: Neste artigo, o estudioso R. Jakobson faz uma análise estrutural do poema O
Ouro e o Sabre, de Púchkin, a partir do exame dos elementos fonológicos, sintáticos e se-
mânticos que o compõem.
Palavras-chave: A. S. Púchkin; poesia de Púchkin.

ЗОЛОТО И БУЛАТ
“Всё моё”, — сказало злато;
“Всё моё”, — сказал булат.
“Всё куплю”, — сказало злато;
“Всё возьму”, — сказал булат.
Transliteração:
ZÓLOTO I BULAT
“Vsió moió”, — skazalo zlato;
“Vsió moió”, — skazal bulat.
“Vsió kupliú”, — skazalo zlato;
“Vsió vozmú”, — skazal bulat.

Tradução:
O OURO E O SABRE
“Tudo é meu”, – disse o oiro2;

1. Este artigo (“La facture d’un quatrain de Pouchkine”) foi traduzido da revista Poétique,
n. 34, avril 1978, Paris, Seuil, 1978.
2. Na tradução do poema, a opção pela forma oiro, registrada como variante de ouro nos
dicionários brasileiros, justifica-se como tentativa de recuperar o zlato (forma antiga e poéti-
ca) do original e manter o contraste entre este e o zóloto (ouro) do título.
Caderno de Literatura e Cultura Russa

“Tudo é meu”, – disse o sabre.


“Tudo comprarei”, – disse o oiro;
“Tudo tomarei”, – disse o sabre.

Este poema, que Púchkin publicou no jornal O Mensageiro de Moscou de


1827, compreende quatro tetrâmetros trocaicos, com rima feminina nos versos
ímpares e masculina nos pares. Cada verso é interseccionado em dois he­mis­
tíquios por uma cesura entre a terce ira e a quarta sílabas. Cada hemis­tí­quio
contém duas palavras e cada verso, quatro, cujos acentos recaem sobre as quatro
sílabas ímpares do verso. A quadra engloba duas frases, constituídas cada uma
de um dístico e marcadas, no final, por um ponto. A pontuação do autor indica
a hierarquia das subdivisões sintáticas: ponto-e-vírgulas separam os versos de
cada dístico e, no interior de cada verso, a vírgula mais o hífen entre seus dois
hemistíquios, que encerram, cada um por sua vez, uma oração.
O discurso direto predomina na primeira oração de cada verso; a terceira
palavra designa o ato da fala enquanto a quarta designa o sujeito falante. A
diferença entre as duas orações, a dicção do poeta, de um lado, e a de seus he-
róis, de outro, é ressaltada pelo contraste das vogais acentuadas. As oito vogais
fechadas do primeiro hemistíquio dos quatro versos – seis /ó/ e dois /ú/ – são
completamente opostas, por sua tonalidade sombria, ao som explosivo dos oito
/á/ do segundo hemistíquio. Observa-se ainda que no primeiro hemistíquio
a vogal pré-tônica /a/ alterna-se com /o/ (cf. /maió/, /vazmú/3), enquanto no
segundo a vogal pré-tônica /a/ está em alternância com /á/ (cf. /skazal/, /skazalo/).
O caráter lábial das nove consoantes (das quais sete são iniciais) no primeiro
hemistíquio, em confronto com as dez sibilantes (das quais seis são iniciais)
do segundo hemistíquio reforça o contraste.
Cada verso remete a três categorias morfológicas diferentes: a primeira
palavra de cada verso é um pronome, a terceira é um verbo e a quarta um
substantivo. Quanto à segunda palavra do verso, pertence a duas categorias
mor­fo­ló­gicas diferentes: nos dois versos do dístico inicial, trata-se de um pro-
nome, em consonância com a palavra anterior; nos versos do segundo dístico,
trata-se de um verbo, em consonância com a palavra posterior.
As dezesseis palavras da quadra estão todas no singular, os seis pronomes
encontram-se todos flexionados no neutro, as seis formas verbais são todas pes-
soais. Os substantivos – zlato (oiro) e bulat (sabre) – são inanimados: os nomes
desses dois metais, sujeitos falantes metonímicos, são substituídos – o primeiro
pela conotação de “ricaço” e o segundo pela de “guerreiro” – através da eloqüência.­

3. Em russo o /o/ átono é pronunciado como /a/ fechado.

50
Como Foi Feita uma Quadra de Púchkin

No que se refere ao léxico, as palavras ímpares dos versos são estáveis ao


longo de toda a quadra: vsió (tudo) e skazalo (disse), ao passo que a função
sintática da palavra vsió varia de um dístico para o outro: enquanto nos dois
primeiros versos esse pronome desempenha a função de sujeito, nos dois úl-
timos versos da quadra torna-se objeto direto. Quanto às palavras pares dos
versos, essas são mais estáveis na função sintática que desempenham. Assim,
a quarta palavra – zlato nos versos ímpares, bulat nos versos pares – é sujeito
gramatical em todos os versos da quadra. A segunda palavra – moió (pronome
no primeiro dístico), kupliú e vozmú (verbos no segundo dístico) – funciona
sempre como predicado e refere-se à primeira pessoa. É o último dístico, com
seus contrastes lexicais entre as palavras pares dos dois últimos versos, que
reforça a ação da quadra.
No interior de cada um desses dois pares, os antônimos revelam certa afini-
dade em sua estrutura fonológica: a ordem similar das consoantes e das vogais
liga os verbos kupliú e vozmú; o mesmo grupo /-lát/ com a única oclusiva dental
do poema, aproxima as raízes nominais zlát e bulat. Nos versos ímpares, as duas
palavras do segundo hemistíquio – skazalo zlato – encontram-se amalgamadas
por toda uma série de sons semelhantes (/a z á l a z l á/), enquanto na oração
skazal bulat a ligação entre as duas palavras reduz-se à dupla vizinhança dos
fonemas /á/ e /l/. A correspondência /ál/ – /lá/ é recorrente nos hemistíquios
finais de cada um dos quatro versos.
A categoria dos gêneros das palavras constitui elemento pertinente de cons-
trução da quadra. O feminino está ausente no poema e o papel dos gêneros
limita-se à oposição entre masculino e neutro, do mesmo modo que a distin-
ção entre as pessoas verbais reduz-se à oposição entre a primeira e a terceira
pessoa. As categorias verbais que participam do “processo do enunciado” estão
representadas no poema por uma única oposição entre o pretérito e o presente
perfectivo4. O verso inicial diferencia-se de todos os demais pelo neutro em
que estão flexionadas as quatro palavras que o compõem e que é formado pela
mesma desinência nominal /-ó/ /a/5. Esse predomínio do gênero neutro impõe
ao verso todo uma nuance de despersonalização. No segundo verso, o gênero
do substantivo bulat introduz um corte expressivo entre os dois hemistíquios:
as duas palavras neutras de um são confrontadas com os dois masculinos do
outro. A não-concordância gramatical entre os hemistíquios é compensada

4. Em russo, os verbos de aspecto perfectivo, que indicam uma ação completa no tempo,
quando conjugados no presente e no passado formam, respectivamente, o futuro do presente
e o pretérito perfeito (ou mais-que-perfeito) do modo indicativo.
5. Ver nota 3.

51
Caderno de Literatura e Cultura Russa

por sua uniformidade rítmica: no segundo (e quarto) verso, cada sílaba acen-
tuada tem como seqüência outra palavra6.
O segundo dístico muda o modelo sintático do primeiro hemistíquio de seus
versos, dotando-o de um predicado verbal. Em cada um desses dois versos, a
primeira oração termina e a segunda começa por um verbo; a primeira é ini-
ciada por um acusativo (objeto direto), enquanto a segunda é terminada por
um nominativo (sujeito); o tempo e a pessoa opõem um verbo ao outro. O
discurso direto atribuído ao oiro e ao sabre torna-se ativo e os verbos inseridos
tentam novamente afirmar-se no contexto. A forma kupliú é a única a dividir
com os hemistíquios de encerramento sua velar (skazalo), sua oclusiva labial,
sua lateral e seu /u/ átono (/kupl-/, /bulat/). No verso final, o verbo vozmú,
palavra de ordem do acumulador, consegue se entrelaçar com seu acusativo
(vsió / vs/ – vozmú / v z/ – skazal / s z/) e com o predicado correspondente aos
dois primeiros versos (moió): os três únicos /m/ e, no geral, os únicos fonemas
nasais da quadra.
O último verso do poema realiza não só a fusão fônica dos dois termos do
primeiro hemistíquio – vsió vozmú – mas também a associação entre o segundo
termo do início e o termo do final da quadra: moió – vozmú. Essas duas cor­
respondências fazem eco aos jogos fônicos do segundo hemistíquio, isto é: de
um lado, à série / a z á l a z l á / e, de outro, ao grupo de fonemas /-lát-/ que
aproxima as palavras finais dos versos pares e ímpares do poema.
Desse modo, seria possível interpretar as duas orações – skazalo zlato, uma
declaração imperiosa do capital, e vsió vozmú, um embargo viril e belicoso contra
a totalidade – como o nó e a solução do drama. Note-se ainda que deixamos
de lado a questão da analogia entre a quadra de Púchkin e o epigrama francês
de um autor anônimo do século XVIII que parece ter-lhe servido de modelo.

Abstract: In this article, the scholar R. Jakobson makes a structural analysis of the poem
“The Gold and the Sabre”, by Pushkin, from examination of the phonological, syntactic and
semantic elements that compose it.
Keywords: A. S. Pushkin; Poetry of Pushkin.

Tradução e Notas
Homero Freitas de Andrade

6. No segundo e no quarto verso da quadra todas as palavras são oxítonas, o que propicia o
efeito indicado por Jakobson. Essa uniformidade não se repete no primeiro e no terceiro verso,
em que as palavras oxítonas do primeiro hemistíquio vêm seguidas pelas paroxítonas do segundo.­

52
Notas à Margem do
Evguiéni Oniéguin1
Roman Jakobson

Resumo: Neste ensaio são estudadas questões referentes à composição do romance em


versos Evguiéni Oniéguin, a sua repercussão entre leitores, escritores e a crítica. São anali-
sados aqui, principalmente, os comentários e interpretações que o romance suscitou nos
críticos literários do século XIX.
Palavras-chave: A. Púchkin; Evguiéni Oniéguin; prosa de Púchkin; romance russo do
século XIX.

“A Criméia é o berço de meu Oniéguin”, escreve Púchkin pouco antes de mor-


rer2. O poeta considerava a viagem que fizera em 1820 ao Cáucaso e à Criméia
com a família Raiévski como o momento mais feliz de sua vida. Reminiscências­
a propósito de sua aventura crimeana, secreta mas não esquecida, com Maria
Raiévskaia acham-se em filigranas de seu romance – não só nas passagens líri-
cas, mas também em vários traços de Tatiana Lárina3. Em 1825, pouco antes da
revolta dos dezembristas, Maria Raiévskaia casara-se com o príncipe Volkónski,
vinte anos mais velho, e ela o acompanhou heroicamente à prisão siberiana,

1. “Заметки на полях Евгения Онегина” (Работы по Поэтике, Moscou, Pro­gress, 1987,


pp. 219-224) foi escrito em tcheco e publicado pela primeira vez na revista Okraj (Praga, 1937).
A tradução baseou-se nas versões russa e francesa (Russie folie poésie, org. T. Todorov, Paris,
Seuil, 1986). Na tradução francesa, sob o título geral de “Pouchkine” (trad. Nancy Huston, pp.
114-121), foram reunidos o presente ensaio (“II. Eugène Onéguine”, pp. 114-121), antecedido
pelo ensaio “Notas à margem da lírica de Púchkin” (“I. La poésie lyrique”, pp. 107-114), ambos
publicados originalmente em separado.
2. Carta a N. B. Golítsyn, de 10 de novembro de 1836 (N. do A.).
3. Heroína do referido romance em versos.
Caderno de Literatura e Cultura Russa

para onde ele foi enviado por sua participação na revolta. Os historiadores da
literatura também encontraram semelhanças entre Evguiéni Oniéguin e Alek-
sandr Raiévski, irmão de Maria e famoso como modelo para O Demônio de
Púchkin, poema lírico datado de 1823. Foi na propriedade dos Raiévski, na
Criméia, que Púchkin tomou conhecimento das obras de Byron, cuja influên­
cia devia atenuar em seguida para ser finalmente sobrepujada no Oniéguin. De
seus próprios esboços para Távrida (1822), romance lírico não elaborado sobre
tema crimeano, é que Púchkin extrairá a construção estrófica característica­do
Evguiéni Oniéguin, assim como a estrofe inteira que aparece no primeiro capítulo
(que o poeta começará a elaborar em maio do ano seguinte, em Kichi­niov).
Ele confessa estar satisfeito com o começo desse novo poema, algo que,
acrescenta, raramente acontece. É sua melhor obra, insiste convicto. À medida
que vão sendo publicados os primeiros capítulos, um a um, eles fazem grande
sucesso. “Eles constituem o principal tema das conversas, afirma O Mensageiro
de Moscou em 1828; moças e mulheres, homens de letras e homens de negó-
cios, ao se cruzarem na rua, perguntam-se: Conhece o Oniéguin? O que acha
do último capítulo? E Tánia? E Olga? E Liénski ?4 Etc.” Do mesmo modo, um
boletim de 1840 afirma: “Ele é lido em todos os cantos e recantos do Império
russo, por todos os estratos da sociedade russa, e dele todo mundo conhece
alguns versinhos de cor”. Eminentes críticos russos descrevem Oniéguin como
a obra mais original de Púchkin e o célebre Belínski declara: “Apreciar uma
obra como essa é apreciar o próprio poeta em toda a gama de sua atividade
criadora”5. Tanto o elogio como a rejeição da herança de Púchkin repousam
essencialmente no Oniéguin. E mesmo que seja verdade que, na época literária
a se iniciar com os simbolistas, o Oniéguin viria a dar uma impressão mais de
peça de museu que, por exemplo, O Cavaleiro de Bronze ou A Dama de Espadas,
considerados mais modernos, não resta dúvida de que essa afirmação de um
contemporâneo de Púchkin ainda é válida, cento e dez anos mais tarde: “Quer
seja um amante do delírio, da realidade ou da poesia, todos são fascinados pelo
sonho de Tatiana”. Neste sonho sufocante e premonitório, criado por Púchkin
na mesma época em que o terror oprimia os dezembristas vencidos, a reali-
dade do delírio transforma-se em poesia visionária, de modo que a imagem
apaixonada de Tatiana torna-se de repente incrivelmente próxima do lirismo
atual e que o esboço árido de suas visões espectrais evoca o grotesco moderno,
desvairado e com pinceladas de paranóia.

4. Personagens do romance.
5. Cf. N. I. Mordovtchenko (org.), Сочинения Александра Пушкина (As Obras de Aleksandr
Púchkin), Leningrado, 1927, p. 385 (N. do A.).

54
Notas à Margem do Evguiéni Oniéguin

Em março de 1824, de seu exílio em Odessa, Púchkin escreve a um amigo:


“Estou redigindo as estrofes pitorescas de uma epopéia romântica e tomo aulas
de ateísmo puro”6. Trata-se da epopéia, ou do “romance em versos”, Evguiéni
Oniéguin. O que o liga ao Romantismo? Modernas pesquisas em história da li­
te­ratura destacam, com razão, o fato de que a força motriz dessa obra não passa
da ironia romântica, que apresenta um mesmo objeto de diferentes pontos de
vista contraditórios: ora grotesco, ora sério, e ora ambos ao mesmo tempo. Essa
ironia constitui o traço distintivo do herói, que é desesperadamente cético; mas
ela extrapola sua função de caracterização para matizar, de fato, toda a intriga
do romance, como se esta fosse percebida através dos olhos do herói. Um crítico
contemporâneo compara com muita justiça o Oniéguin a um capriccio musical,
entendendo que “o poeta está sempre jogando ora com uma idéia, ora com
uma emoção, ora com a imaginação; ele é sucessivamente alegre e pensativo,
frívolo e profundo, sarcástico e sentimental, vingativo e benevolente; ele não
permite o cochilo de nenhuma de nossas faculdades mentais, mas nunca se
apodera de nenhuma delas e nem tampouco as satisfaz”. O desaparecimento
de uma ordem fixa de valores, a interpenetração constante de visões elevadas
e baixas, até mesmo caricaturais, do próprio objeto anulam as fronteiras entre
o solene e o vulgar, o trágico e o cômico. O que se vê aqui é ao mesmo tempo a
arte suprema do proprie communia dicere (é o que Mérimée e Turguéniev mais
admiravam em Púchkin), e também a arte de dizer as coisas mais complicadas
de modo simples (o traço de Oniéguin que cativava os românticos russos mais
refinados). Os estratagemas lingüísticos de Púchkin dão a impressão de que
as palavras se encontram ali por acaso, de modo natural e descuidado, mas
também de que elas são deliberadas, disciplinadas e apropria­das ao máximo.
No romance do poeta, como justamente notou Belínski, a negação asseme-
lha-se à admiração. Assim, embora o romance de Púchkin ofereça uma ima-
gem deprimente da sociedade russa – tanto a da cidade como a do campo –,
os críticos que nele saudaram um contrapeso da literatura nitidamente satíri-
ca (Drujínin) não se enganaram. De resto, o próprio poeta fornece respostas
contraditórias à questão de saber se há sátira no Oniéguin. As estrofes elegíacas
sobre a morte de Liénski são matizadas pela sugestão de outro final possível – o
esboço de um happy end, a negação da morte absurda, a visão do futuro glorioso
que talvez espere o jovem poeta – e não obstante a possibilidade contrária, a
saber, a lenta degradação espiritual de Liénski, vir esboçada logo depois. O pathos

6. Cf. carta a P. A. Viázemski, março de 1824, em N. V. Bogoslóvski (org.), Пушкин о


Литературе (Púchkin sobre a Literatura), Moscou-Leningrado, Academia de Ciências, 1934,
p. 46. (N. do A.)

55
Caderno de Literatura e Cultura Russa

a respeito da imagem precedente acha-se anulado, e a morte trágica do rapaz


adquire por isso uma certa justificação. O derradeiro drama de Evguiéni – sua
paixão amorosa por Tatiana – desenrola-se em dois planos, a tragédia e a farsa,
enquanto a ação do romance se reduz ao assunto cômico de um pretendente
surpreendido pelo marido da mulher que ele ama. A ação está concluída desde
então, porém o romance só termina com a evocação dos dois principais moti-
vos líricos da obra toda. Trata-se, de um lado, da imagem ideal de Tánia com a
sombra ao longe das reminiscências do poeta, que de vez em quando estremece
atrás dela, e, de outro, do tema da mocidade efêmera, sempre irrecuperável, e
que rejeita como uma blasfêmia tudo o que se lhe queira pôr no lugar. Esse tema
encontra-se presente de cabo a rabo no romance; também Herzen observou com
perspicácia que Oniéguin mata em Liénski o ideal de sua própria juventude, e
que, Oniéguin envelhecendo, seu amor por Tatiana não passa de um derradeiro
sonho trágico da juventude irrecuperável. A imagem da juventude e a imagem
de Tánia são, no romance de Púchkin, dois fios de puro lirismo.
A estrutura poética atrai voluntariamente a atenção do leitor sobre o
poeta-narrador: “Neste momento, estou escrevendo não um romance, mas
um romance em versos – o que é bem diferente”7, revela Púchkin. O autor e
o leitor, assim como os verdadeiros protagonistas da intriga, são personagens
ativas e constantes do Evguiéni Oniéguin. Seus pontos de vista se entrecruzam
de diversas maneiras, e essa interpenetração de significações subjetivas cria a
impressão de que a obra advém de uma objetividade suprapessoal, olímpica. As
inconsistências internas constituem um elemento consciente do texto, como o
próprio Púchkin reconhece (de acordo, neste ponto, com a poética romântica):
deve-se permitir uma certa oscilação do sentido. Se o poema fosse demasia­
damente coerente, sua eclosão teria sido freada; ao contrário, era necessário fazer
de tudo para reforçar a impressão de um romance livre, de estrutura vaga e de
evolução imprevisível. Em seu prefácio original ao primeiro capítulo, Púchkin
afirma duvidar que o poema termine algum dia.
De acordo com seus próprios cálculos, Púchkin trabalhou no Oniéguin
durante sete anos, quatro meses e dezessete dias (de 9 de maio de 1823 a 25 de
setembro de 1830); a revisão final do último capítulo tomou-lhe mais de ano.
No decorrer desse período, inúmeros acontecimentos tiveram lugar na vida
de Pú­chkin e de seus amigos, do Império Russo e da Europa. Suas opiniões e
a­ti­tudes sofrem uma transformação considerável. Sua concepção do romance
e sua relação com os heróis também se transformam: a intriga se cristaliza de
diferentes maneiras e toma rumos imprevisíveis. A idade do poeta aumenta à

7. Cf. carta a P. A. Viázemski, de 4 de novembro de 1823 (N. do A.).

56
Notas à Margem do Evguiéni Oniéguin

medida que ele escreve os capítulos sobre a juventude desperdiçada, perdida


de Oniéguin. O curso de sua vida torna-se a própria dinâmica de seu trabalho;
as mudanças em sua visão de mundo produzem incoerências entre as várias
partes do livro, insuflando-lhe um excesso de vida. A alternância de pontos de
vista diferentes sobre um único e mesmo objeto combina perfeitamente com
a poética de Púchkin; assim, o brilhante paradoxo de Belínski revela-se ver-
dadeiro: são os próprios defeitos do Oniéguin que constituem sua maior qua­-
lidade.­
Cada imagem de Púchkin é de uma polissemia tão elástica, e de uma ca-
pacidade assimilatória tão espantosa, que ela se insere facilmente nos mais
varia­dos contextos. O célebre talento que Púchkin tinha para a transformação
poé­tica liga-se igualmente a esse fato: é por isso que as características do autor de
Oniéguin diferem de um crítico para o outro, a ponto de torná-lo irreco­nhecível.
Em sua famosa diatribe com o Oniéguin, Píssariev afirma que Belínski gostava­
de um Púchkin criado por ele mesmo; porém se poderia dizer, e com toda
justiça, que Píssariev detestava um Púchkin de sua própria invenção, e repetir
o mesmo, mutatis mutandis, a propósito de qualquer tentativa de elaborar uma
interpretação unilateral da obra puchkiniana. Se se levar em conta, como fez
o atento Dobroliúbov, que Púchkin não introduzia um sentido uni­ficador em
suas imagens, será possível compreender a inutilidade das inter­mináveis discus-
sões a respeito da melhor maneira de interpretar a mul­ti­pli­cidade de sentidos
de seu romance, seja no plano epistemológico (co­mo riqueza ou pobreza de
conteúdo), seja no plano ético (como lição de moral ou profissão de amora­
lidade). Também será possível compreender como Evguiéni Oniéguin pôde ser,
para um crítico de renome, uma manifestação de desespero impotente e, para
outro, a expressão de um epicurismo profundo; e como puderam ser emitidos
julgamentos tão contraditórios sobre o herói quanto o elogio de Belínski e as
objeções de Píssariev. A reflexão de Tatiana sobre Onié­guin na estrofe XXIV
do sétimo capítulo, com seu encadeamento de questões e de dúvidas contradi-
tórias, é um exemplo significativo da caracterização oscilante em Púchkin. Tal
dicotomia – motivada, entretanto, no plano do desenvolvimento – caracteriza
a personagem de Tatiana no último capítulo: “É realmente a mesma Tatiana?”
(XX); “Como Tatiana está mudada!” (XXVIII).
Esse gênero de caracterização oscilante evoca a noção de uma individualidade
especial, complexa, irrepetível; mas, se o leitor está acostumado aos tipos cla-
ramente delineados, ele terá a impressão (para citar várias expressões notórias
na época) de que o romance “é carente de personagens”, de que “o herói não
passa de um elo que serve para unir descrições”, de que “as caracterizações
não têm vigor”, de que “a personagem de Oniéguin carece de profundidade” e

57
Caderno de Literatura e Cultura Russa

de que “Tatiana é desprovida de traços típicos” etc. Tentativas mais tardias de


perceber Oniéguin como um tipo chegarão a resultados comicamente contra­
ditórios,­ou a fórmulas paradoxais como: “exceção típica”. É exatamente a
premissa segundo a qual Oniéguin seria um tipo essencialmente histórico que
leva ao erro freqüente – retomada após Herzen até pelo célebre historiador
Kliut­chévski: o onieguismo deve ser o resultado da malograda revolta de 1825;
Oniéguin, segundo esses autores, seria um dezembrista vencido. Mas os estudos
de história da literatura indicam que, de acordo com as informações detalhadas
fornecidas pelo romance, a ação se desenrola no decorrer da primeira metade
da década de 1820 e que sua conclusão se dá na primavera de 1825. Além disso,
dois terços do Oniéguin foram escritos antes do término desse mesmo ano.
Como atestam com eloqüência as cartas de Ryléiev e de Bestújev, o derrotismo
generalizado de Evguiéni era totalmente inaceitável e inoportuno aos olhos dos
futuros dezembristas, como também o eram seus frios conselhos à amorosa
Tatiana, sua declaração à “princesa indiferente” e, de resto (e nisso Herzen tinha
razão), toda a existência de Oniéguin.
Os esforços para descrever de modo inequívoco as tendências sociais do
romance resultaram igualmente num fracasso. Púchkin inicia o Oniéguin sob
o signo da impetuosa rebelião. Ele informa isso aos amigos em linguagem
cifrada (para o caso de suas cartas caírem nas mãos da polícia). Escreve que
anda saturado de bílis e que, “se um dia o poema for publicado, certamente
não o será nem em Moscou, nem em São Petersburgo”8. Devido à crescente
reação na Rússia e às derrotas do movimento revolucionário na Europa, há uma
aura de desespero que paira sobre o exilado da Bessarábia e o faz associar-se
à rebelião. Isso se reflete com muita nitidez na poesia lírica de Púchkin dessa
época. Intensificando-se o desespero, o poeta se conforma aos poucos com as
determinações da censura, sua revolta torna-se cada vez mais discreta. Por fim,
até uma frase perfeitamente inocente, lida à luz dos acontecimentos sinistros
de 1825, torna-se com freqüência uma alusão trágica. Na última estrofe do ro-
mance, uma citação de Saadi, que pouco antes parecera puramente decorativa
– “Uns já não existem mais, e outros estão longe”9 – torna-se uma evocação
dos dezembristas aprisionados e executados, e a morte de Liénski associa-se à
detenção de seu modelo, Kiukhelbéker.
O tema da resignação intensifica-se a cada capítulo sucessivo, para culminar
nas últimas palavras de Tatiana:

8. Cf. carta a N. A. Bestújev, de 8 de fevereiro de 1924 (N. do A.).


9. Antes Púchkin havia utilizado essa citação de Saadi em A Fonte de Bakhtchissarai (N.
do A.).

58
Notas à Margem do Evguiéni Oniéguin

Mas fui dada a outro em casamento,


E ser-lhe-ei fiel para todo o sempre10. 

Em seu célebre discurso sobre Púchkin, Dostoiévski – contrastando com


Belínski – lê nessas palavras não a tragédia mas a apoteose da resignação diante
da vida; ele tenta fundamentar esteticamente tal hipótese e estendê-la ao conjun-
to da obra de Púchkin. Mas a posição de Tatiana é novamente retomada pouco
depois do capítulo final do Oniéguin (concluído em fins de 1830): na prosa
do poeta – de um lado A Nevasca11 (outubro de 1830) e de outro Du­bróvski12
(1832-1833) – encontra-se a expressão nua da resignação, e, no entanto, aqui
não é possível aplicar no plano ético a interpretação de Dostoiévski. Além do
mais, essa atitude é totalmente estranha às obras da juventude de Púchkin:
ela é claramente transformada em pilhéria em O Conde Núlin (1825); e em
Os Ciganos, obra à qual Dostoiévski se refere, é justamente aquele que busca a
fidelidade eterna que é condenado com dureza.
Se o autor de Os Possuídos pretende atribuir ao trabalho de Púchkin um
ataque resoluto contra toda e qualquer ação revolucionária “fantasista”, Pís-
sariev – que se encontra por sua vez nos antípodas de Dostoiévski – também
se propõe descobrir a mesma tendência: “Todo o Evguiéni Oniéguin não passa
de uma apoteose colorida e fulgurante do status quo mais desesperado e mais
desprovido de sentido”13. Os fragmentos recém-decifrados de um capítulo
suplementar do Oniéguin revelam nitidamente o caráter equivocado dessa in-
terpretação unilateral e arrevesada. Este capítulo, um sobrevôo conciso da luta
revolucionária contra a reação na Rússia e na Europa, responde às necessidades
íntimas do poeta; era impossível publicar uma reflexão tão descaradamente
incendiária e anticzarista; de resto, até a circulação do manuscrito ameaçara o
poeta de severa punição. Em outubro de 1830, com receio de uma revista a sua
casa, ele queimou e guardou apenas os inícios de algumas estrofes, transcritos
em código:­

10. É justamente este tema da resignação desesperada que Púchkin liga diretamente, em sua
“Viagem de Oniéguin”, à decisão de se afastar do romantismo, decisão esta que, por um curioso
mal-entendido, os críticos soviéticos puderam descrever como um elemento revolucio­nário
no desenvolvimento do poeta (N. do A.).
11. Conto pertencente ao ciclo dos Contos de Biélkin.
12. Projetado inicialmente como romance, posteriormente foi publicado como conto.
13. D. I. Píssariev, “Púchkin e Belínski” (1865), Obras Completas, 6 vols., 4a ed., São
Petersburgo, 1904, t. V, p. 63 (N. do A.).

59
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Um chefe fraco e insidioso,


Velho galo careca, inimigo do trabalho,
Escaldado por uma glória inesperada,
Reinava sobre nós naquele tempo.

Aparentemente, a revolta dos dezembristas devia formar o núcleo desse


capítulo; a ação do capítulo precedente termina apenas a alguns meses da re-
volta. Que papel devia Evguiéni representar nela? O papel heróico da princesa
Volkónskaia devia caber à princesa Tatiana? Aqui, para terminar, podemos reto-
mar as célebres palavras de Dostoiévski: Púchkin levou consigo para o túmulo
um profundo mistério que doravante nós tentamos resolver sem ele.

Abstract: In this essay, questions referring to the composition of the romance in verse
Eugene Onegin are studied, its repercussion between readers, writers and critics. Here are
analysed mainly the commentaries and interpretations that the romance produced in
literary criticism of the 19th century.
Keywords: Pushkin; Eugene Onegin; Pushkin’s prose; Russian novel of the 19th century.

Tradução
Homero Freitas de Andrade e
Hugo Camargo Rocha

Notas
Homero Freitas de Andrade

60
Púchkin: A Poesia da Gramática
Haroldo de Campos

Resumo: Discutem-se neste ensaio questões relativas à práxis poética de Púchkin, sobre-
tudo em seu romance em versos Evguiéni Oniéguin, bem como propõe-se um método de
tradução (recriação) de seus poemas.
Palavras-chave: Poética de Púchkin; Evguiéni Oniéguin; tradução de Púchkin.

Traduzir algumas estrofes, particularmente desafiadoras e, por isso mesmo,


bastante características da questão do estilo no Evguiéni Oniéguin de Púchkin,
é uma operação fascinante.
Traduzi-las, como eu o fiz, a partir de uma primeira versão, literal, de Boris
Schnaiderman, alertamente sinalizada, a cada passo relevante, por uma indi-
cação das ambigüidades semânticas a considerar e das dificuldades sintáticas
a transpor, resultou num exercício lúdico e também numa oportunidade de
reflexão crítica1.
De fato, para o trabalho de “trans-criação”, fui necessariamente levado ao
escrutínio micrológico do original russo, a deter-me na consulta paciente do
dicionário e de outras eventuais traduções (para o inglês e o francês). Esse
confronto minucioso com a escritura puchkiniana persuadiu-me, a cada mo-
mento, de que a única forma de resolver, em nível esteticamente eficaz, os pro-
blemas da transposição do texto seria assumi-los como tais e radicalizá-los em
seus vários parâmetros de exigência.

1. A tradução de algumas estrofes do Evguiéni Oniéguin, comentadas no presente ensaio,


encontra-se em “Do Evguiéni Oniéguin”, na parte final deste Dossiê (N. do O.).
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Não há outra opção com respeito ao Oniéguin. No plano do seu mero con-
teúdo anedótico, despojado de sua forma significante, a obra-prima de Púchkin
parece trivial e previsível em seu argumento romanesco quase elementar, basea­
do nas alternativas do amor não-correspondido e da paixão sem horizonte,
que a virtude conjugal torna impossível. Chega-se a dar razão, num primeiro
pensamento, ao juízo depreciativo de Flaubert manifestado a Turguéniev: “Il
est plat, votre poète”2.
Daí a tese da intraduzibilidade do poeta, de sua inacessibilidade a quem
desconheça o original russo. É o ponto de vista de Hubert Juin, autor do volu-
me dedicado ao autor do Oniéguin na série “Poètes d’Aujourd’Hui” (“Púchkin!
Um poeta célebre cujos poemas não podem ser lidos: eles são intraduzíveis”).
É a opinião de Vladímir Nabókov, que realizou uma versão literal, em prosa
não-rimada, do “romance em versos” puchkiniano, copiosamente anotada, e
descartou com desdém, com sobranceria crítica, as tentativas anteriores de
tradução poética do Oniéguin.
A uma visão orientada por um diferente conceito de tradução como prática
recriadora, a dificuldade especial do texto de Púchkin, ao invés de ser drama-
tizada e convertida em impasse, pode ser identificada de modo objetivo, o que
permite delinear táticas poéticas adequadas a enfrentá-la.
Trata-se, sobretudo, parece-me, de uma poesia em que a qualidade distintiva
não é tanto a imagem, a metáfora, mas a logopéia, a “dança do intelecto entre as
palavras”, como diria Pound, e sua música disseminada e sutil. É a jakobso­­niana
“poesia da gramática” (da sintaxe e das categorias morfológicas em parale­lismo
e contraste), das “formas do conteúdo”, como as denominou o lingüista dina-
marquês Hjelmslev. Aliás, foi em Púchkin, ao supervisionar uma antologia de
traduções do poeta a ser publicada em Praga no centenário de sua morte, que
Jakobson encontrou exemplos frisantes de uma “poesia sem imagens”, baseada
preferencialmente no “papel autônomo do arcabouço gramatical”. Esse traço
distintivo tornava claudicantes as tentativas de tradução em tcheco e em polonês
de alguns dos versos mais fortes do original3.
Graças à logopéia, a poesia se permite um aspecto cursivo de prosa. Acolhe
efeitos de narração, de contraponto dialógico, de caracterização psicológica de
personagens, de descrição costumbrista. Mas, por outro lado, esse tipo de poe­
sia exige uma perícia na articulação e desarticulação das frases; uma argúcia na
estratégia das digressões e dilações que suspendem em arabesco a linearidade

2. Ver, a propósito, o prefácio de Boris Schnaiderman à tradução, por Helena S. Nazario, de


A Filha do Capitão.
3. É o que se lê nos Diálogos (São Paulo, Cultrix, 1980) entre Jakobson e Krystyna Pomorska.

62
Púchkin: A Poesia da Gramática

narrativa; uma sabedoria na técnica das pausas e entonações, enfim, uma ca-
pacidade coreográfica precisa na manipulação e desenho do discurso, mesmo
onde este pareça mais solto, mais inconexo e abandonadamente casual.
A observância, freqüentemente por inesperados atalhos, do esquema rí-
mico e rítmico, a “bravura” com que o poeta se propõe empecilhos e deles se
safa, com uma leveza desenvolta e irônica de dançarino em corda bamba, faz
do jogo da linguagem o principal fator de “suspense” e interesse da narração,
a principal personagem do híbrido “romance em versos” puchkiniano. Tyniá-
nov, falando da “essência compositiva da obra”, afirma que ela se encontra “na
dinâmica da palavra em seu significado poético; não no desenvolvimento da
ação, mas da evolução da composição verbal”. Nesse sentido, explica as alusões
“semi-irônicas” do poeta à “insuficiência” e à “incompletude” do seu projeto.
Púchkin parece ter sido extremamente alerta quanto a esses aspectos. Não à
toa Chklóvski, na Teoria da Prosa, no capítulo dedicado ao “romance paródico”
(Tristram Shandy, de Stern), conclui por dizer, tomando o Oniéguin como exem-
plo: “Na realidade, a fábula é somente o material para a formação do entrecho
(siujet). Assim, o entrecho de Evguiéni Oniéguin não é o romance do herói com
Tatiana, mas sim a elaboração do entrecho desse material fabular, operada pela
inserção de digressões que o interrompem”. Jakobson, em seu estudo sobre a
“Nova Poesia Russa”, mostra como a crítica da época de Púchkin havia sido
sensível à renovação byroniana, citando um artigo de 1829 publicado na revista
Filho da Pátria, periódico literário do tempo:

Compreendendo plenamente as necessidades de seus contemporâneos, ele (Byron)


criou uma nova linguagem para a expressão de novas formas. A descrição metódica, deta-
lhada, os preliminares da exposição, introduções, exploração ab ovo, tudo isso foi deixado
de lado. Ele começava a narração dos eventos pelo meio ou pelo fim, com um aparente
descaso pelas partes integrantes. Seus poemas eram feitos de fragmentos...

Quando Púchkin se refere ao seu “romance livre” como sendo uma “diabó-
lica diferença”, por não enquadrar-se meramente como romance, mas consistir­
num “romance em versos” do tipo do Don Juan, estava pensando num dia­bo­
lis­mo do fazer literário muito diferente do superficial “satanismo” biográfico
a que outras representações, mais vulgarizadas, do poeta inglês nos acostu-
maram, sobretudo aquelas inspiradas numa recepção poética de tonalidade
romântica. Não por acaso Oniéguin é apresentado no poema como um russo
ennuyé, travestido dos traços melancólicos de Childe Harold (4/45; 7/24), ao
mesmo tempo que essa característica é desinvestida de pathos, por não ceder à
retórica sentimental, à sombria eloqüência dos versos da “Pilgrimage”, mas

63
Caderno de Literatura e Cultura Russa

antes se recortar contra o pano de fundo crispado e sardônico de um estilo


poético que se afina com o modo dessacralizador e autocrítico do Byron ma-
duro.
Imaginemos, por um momento e por um passe de anacronia, um Machado
de Assis compondo em versos seu irresolvido Dom Casmurro, cuja principal
personagem, como eu costumo dizer, não é Capitu, mas o capítulo: esse capítulo
gaguejante, antecipador e antecipado, interrompido, suspenso, rememo­rado,
tão metonimicamente ressaltado pelo velho Machado em sua lógica da parte
pelo todo, do efeito pela causa, como os olhos e os braços de Capitu/Capitoli-
na4. Isto poderia dar ao leitor brasileiro uma idéia da empreitada de Púchkin,
devoto – como o nosso zombeteiro e cético Machado – de Laurence Sterne,
e empenhado na linha do Tristam Shandy, em conferir função construtiva à
digressão, à interrupção, à lacuna, ao estilo fragmentário e ironicamente “dis-
tanciado”. Chklóvski, no já citado capítulo da Teoria da Prosa, põe em relevo
um desses característicos “desvios” metonímicos, que acabam tomando o pri-
meiro plano composicional no Oniéguin, aludindo, com aplauso, ao projeto
de um ilustrador do livro que se propusera concentrar a atenção exatamente
nesses detalhes autonomizados (os “pezinhos” de certa dama da sociedade, por
exemplo, que fazem o poeta divagar à solta em 1, 30-34 e 5, 15).
Mas essa é também a lição do Byron do Don Juan, cujo gênio, no dizer de
W. H. Auden, era “essencialmente cômico”. O uso da ottava rima como para-
digma estrófico no Beppo e no Don Juan serviu à maravilha aos propósitos de
Byron. Esse mesmo padrão estrófico fora adotado com escopo esteticamente
elevado por Ariosto, Camões e Tasso, mas se prestara também a fins paródicos
e burlescos nas mãos de Luigi Pulci, no Quatrocentos, e de Giambattista Casti,
no Setecentos, poetas italianos estimados por Byron. Segundo Auden, a ottava
rima, em inglês, embora inadequada ao gênero sério, mostrou-se o “veículo
ideal” para o estro cômico de Byron, já que as exigências dessa forma, por si
mesmas, compeliam o poeta a “interromper constantemente a narrativa com
comentários sobre assuntos gerais e sobre sua própria pessoa, de tal modo que
nessas digressões residia o verdadeiro cerne desses poemas”.
A famosa “estrofe puchkiniana” é uma invenção do autor do Oniéguin que
replica, com inflexões singulares e pessoais, ao modelo byroniano. Em poesia,
observe-se, não existe originalidade absoluta, mas tampouco existe influência
de mão única, que não implique uma dialética do mesmo e da diferença. Pú­ch­
kin engendrou uma estança de 14 versos, rimando a b a b c c d d e f f e g g. Sua
medida básica era o tetrâmetro iâmbico, mas o poeta era capaz de utilizá-la

4. Veja-se o meu estudo “Arte Pobre, Tempo de Pobreza, Poesia Menos”.

64
Púchkin: A Poesia da Gramática

com grande flexibilidade rítmico-entonacional. O primeiro quarteto, em ver-


sos cruzados, contrasta com o segundo, em rimas emparelhadas. Segue-se um
terceiro quarteto, no qual o 9o verso rima com o 12o e os versos 10o e 11o são
emparelhados. A estrofe remata com um dístico rimado, freqüentemente mais
elusivo do que conclusivo. O caráter antitético desse módulo estrófico, envol-
vendo a combinação variada de pequenas unidades num todo maior e o jogo
de correspondências e oposições, chamou a atenção de Tyniánov, que viu na
sua “duplicidade de coloratura”, a explicação para a facilidade de mudança do
registro emotivo, responsável pelo contraste entre um tom “alto”(resíduos da
ode cultivada na tradição clássica russa) e um tom paródico, ao longo do texto.
O estudioso inglês John Bayley, prefaciador da nova tradução integral do Onié-
guin por Charles Johnston (Penguin Classics, 1979; uma tentativa competente,
já sensível aos efeitos da crítica de Nabókov, ainda que não suficientemente
ousada no plano estético), esse estudioso identifica na estrofe puchki­niana
“um formidável desafio” para o tradutor. Isto porque, com sua regularidade e
coordenação, ela se presta, não obstante, a complexas harmonizações e múltiplas
variações de tom e movimento. Recorda, nesse sentido, a imagem de Nabókov,
que compara a andadura dessa estrofe à de um pião colorido, cujo desenho só
se torna reconhecível quando ele está girando lentamente, no começo ou no
fim de cada movimento. À medida que o girar se intensifica, o fraseado variado
e fluente dissolve o contorno das linhas, fazendo com que o esquema de base
dificilmente possa ser identificado com clareza.
Um moderno teórico da tradução, o poeticista russo Efim Etkind, que
também se detém na descrição da riqueza entonacional contida no módulo
estrófico puchkiniano, faz questão de salientar: “Na prática, a sintaxe pode
entrar em conflito com a construção da estrofe, e essa contradição é fonte de
achados expressivos, assim como de soluções inesperadas”. Como teórico e
partidário da tradução como re-criação, ele não vê nesses problemas um obs-
táculo intrans­ponível. Antes, prefere citar uma belíssima declaração de Marina
Tzvetáieva:

Ouço afirmar que Púchkin é intraduzível. Mas como seria impossível de traduzir
alguém que de fato já traduziu, já transpôs na sua própria língua (uma língua universal)
o inédito assim como o indizível? Porém, para traduzir um tal tradutor, é necessário um
poeta.

O tradutor inglês antes mencionado, Charles Johnston, tem a oferecer uma


observação pertinente sobre a questão do léxico inusitado e das rimas puchki­
nianas. Adverte:

65
Caderno de Literatura e Cultura Russa

O brio do texto russo depende em parte do uso pródigo não apenas de palavras fran-
cesas e outros estrangeirismos, mas de coloquialismos e de rimas audazes de tipo
byroniano.

Podemos tornar isso mais claro com exemplos. No Canto 6/2, do Don Juan,
Byron define a sua “narrativa” (“tale”) como uma composição rimada (“rhy-
me”) híbrida e sempre cambiante (“a nondescript and ever varying rhyme”),
uma “aurora boreal versificada” (“a versified aurora borealis”), e neste passo
rima “borealis” com “is” (terceira pessoa do singular do presente do verbo “to
be”). No Canto 1/13, descrevendo a mãe de Juan, Donna Inez (uma caricatura
da ex-mulher do poeta, a savante Lady Byron, née Anne Isabella Milbanke), o
poe­ta rima “problem” com “ennoble’em” (“enobrecê-los”), na seguinte conexão:

Her toughts were theorems, her words a problem,


As if she deemed that mystery would ennoble’em

Ou seja, literalmente: “Seus pensamentos eram teoremas, suas palavras um


problema, / Como se ela imaginasse que o mistério fosse enobrecê-las”. O efei-
to resultante é digno da verve conversacional irônica que distinguiria, muito
posteriormente, o vers de societé do simbolista Laforgue, admirado por Eliot e
Pound. Uma adaptação tentativa em português poderia dar:

Sua mente: um teorema. A fala? Que problema!


Enobrecê-la de mistério, seu diadema...

Quando Maiakóvski, no seu poema dedicado ao “Jubileu” de Púchkin,


passado o primeiro momento de irritação futurista contra os “generais clássi-
cos”, convida o autor de Evguiéni Oniéguin a descer do pedestal de sua estátua
e a participar com ele da revista LEF e da composição de poemas-cartazes de
agitação:­

Se você
       fosse vivo,
                eu o faria
co-redator da LEF,
                e seria capaz
de confiar-lhe
            até
              a poesia-cartaz.

66
Púchkin: A Poesia da Gramática

Mostrava como se faz:


                   – e zás! –
                            com esse estilo,
não duvido
          você aprenderia!

não está senão rendendo um tributo de reconhecimento à extraordinária con-


tribuição inventiva do “Africano”, o orgulhoso bisneto do “Negro de Pedro, o
Grande”, à renovação das letras russas. Na imprevisibilidade das chamadas “ri-
mas maiakovskianas”, na abolição de fronteiras entre verso e prosa que os seus
poemas acabam propondo, na variedade rítmica e entonacional de sua dicção
trepidante (uma dicção já agora liberta da clausura estrófica e escalonada em
pleno espaço gráfico, embora sem jamais dispensar o apoio das rimas terminais
e o jogo interno das figuras de som e sentido), em tudo isso Maiakóvski parece
estar reconhecendo a percursão de um miglior fabbro: Aleksandr Ser­guéievitch
Púchkin. Não o Púchkin dos puchkinistas acadêmicos. O Púchkin “vivo, não
múmia / sem o verniz dos florilégios-catacumba”. O poeta do Onié­guin, o au-
tor desconcertante dos capítulos “furta-cor” de um romance-livre (livro-livre é
minha tradução), que, como ele próprio, Maiakóvski, soubera partir da vida
sem esgotar a sua taça e sem ler até o fim o seu romance...
Estas reflexões acompanham a minha tradução, elaborada com o auxílio
inicial de Boris Schnaiderman, das estrofes 49, 50 e 51 do oitavo capítulo (o
último) do Oniéguin5. Recriei também, segundo o mesmo percurso, a impor-
tante “Dedicatória” do poema-romance ao historiador literário e amigo do
poeta Piotr A. Pletniov. Essa peça introdutória, contida numa estrofe especial
de dezessete versos, tem um cunho deliberadamente auto-reflexivo e metalin­
güístico (“metapoético” é a expressão preferida por Victor Erlich em The Double
Image, para definir essa dimensão crítico-irônica, “protéica” da arte puch­­ki­-
niana).
Meu intuito, desde logo, foi providenciar um paradigma, um modelo in-
tensificado, ainda que em escala reduzida, do que poderia ser dado ao poeta-
-tradutor fazer nesse campo.
Preferi usar um verso de nove sílabas por ser o verso octossilábico, em por-
tuguês, de uso freqüente de nossos parnasianos e conotar algo de sua estética.
Por outro lado, o eneassílabo, apesar das restrições de Castilho (que só o admitia
com pausas regulares na terceira e na sexta sílabas, como o praticou Gon-

5. Haroldo de Campos cedeu gentilmente para este Caderno a tradução que fez recente-
mente da estrofe 26 do Capítulo 3 (N. do O.).

67
Caderno de Literatura e Cultura Russa

çalves Dias nos versos de seqüência martelada do I-Juca-Pirama), mostra-se


adaptável a outras pausas interiores menos óbvias, como o demonstrou Manuel
Bandeira, para quem, no caso, “tudo depende da habilidade e gosto do poeta”.
Pareceu-me a medida mais consentânea ao “verso-prosa” puchkiniano. Fica ren-
te ao decassílabo épico, criando e rompendo constantemente essa expectativa.
De fato, o diabolismo de Byron e de Púchkin, num sentido essencial, consistia
em providenciar para o epos, o inviável no Romantismo, uma espécie de ne-
gativo, uma epicomédia (mock-epic), que, não se rendendo à prosa (alternativa
oferecida à epopéia clássica pelo romance burguês), parodiava ao mesmo tempo
a ineludível caducidade épica e o seu prestígio sucedâneo romanesco. Assim,
criava-se uma hesitação entre dois pólos, um produto híbrido dificilmente
classificável, onde a própria sustentação da dominante poética (estrofação,
esquema de rimas, orquestração fônica disseminada, enjambement como re-
curso de agilização sintática) passava a ser uma componente preferencial da
construção do enredo, prendendo tanto ou mais a atenção do leitor do que
a composição das personagens e a definição dos encadeamentos narrativos.
Como se observará, fui “ultrapuchkiniano” no uso de assonâncias e rimas im-
perfeitas, como também no tirar partido dos cortes bruscos de verso. Ambas
essas táticas, girando no eixo de coincidências ou aproximações fônicas, visa
manter sempre “intrigante” o movimento das frases em português, descartando
as resoluções banais num texto onde, originalmente, o forte é o “suspense” e
a irresolução. É um modo de fazer reverter a Púchkin em nossa língua, a lição
aprendida com a tradução de Maiakóvski para o português e com a meditação
do ensaio maiakovskiano “Como Fazer Versos?”. Uma lição, em última instância,
que devolve a Púchkin o que talvez nunca tenha deixado de pertencer a ele,
enquanto extensão radicalizada das próprias intuições e virtualidades da poé-
tica puchkiniana.

Abstract: Questions relative to the poetical praxis of Pushkin are viewed in this essay;
above all in his romance in verse, Eugene Onegin, as well as a method of translation (re-
creation) being proposed.
Keywords: Poetics of Pushkin; Eugene Onegin; translation of Pushkin.

68
Púchkin e Gonzaga.
Da Sanfoninha ao Violão
Boris Schnaiderman

Resumo: Este texto aborda questões de tradução, sobretudo algumas referentes à versão para
o russo de um poema de Tomás Antonio Gonzaga, realizada por Púchkin.
Palavras-chave: A. S. Púchkin; Tomás Antonio Gonzaga; poesia russa; poesia brasileira;
tradução poética.

С ПОРТУГАЛЬСКОГО1

Там звезда зари взошла,


Пышно роза процвела.
Это время нас, бывало,
Друг ко другу призывало.

На постеле пуховой
Дева сонной рукой
Отирала сонны очи,
Удаляя грезы ночи.

И являлася она
У дверей иль у окна
Ранней звёздочки светлее,
Розы утренней свежее.

1. Aleksandr Púchkin, Obras Completas em 10 volumes, Moscou, Academia de Ciências,


1956-1958; vol. II, p. 298.
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Лишь её завижу я,
Мнилось, легче вкруг меня
Воздух утренний струился;
Я вольнее становился.

Меж овец деревни всей


Я красавицы моей
Знал любимую овечку
Я водил её на речку.

На тенистые брега,
На зелёные луга;
Я поил её, лелеял,
Перед ней цветы я сеял.

Дева издали ко мне


Приближалась в тишине,
Я, прекрасную встречая,
Пел, гитарою бряцая:

«Девы, радости моей,


Нет! На свете нет милей!
Кто посмеет под луною
Спорить в счастии со мною?

Не завидую царям,
Не завидую богам,
Как увижу очи томны,
Тонки стан и косы темны».

Так певал бы вало ей,


И красавицы моей
Сердце песнью любовалось;
Но блаженство миновалось.

Где ж красавица моя!


Одинокий плачу я
Заменили песни нежны
Стон и слёзы безнадежны.

70
Púchkin e Gonzaga. Da Sanfoninha ao Violão

O segundo centenário do nascimento de A. S. Púchkin, celebrado em 1999, foi


acompanhado da publicação de muitos materiais importantes sobre o poe­ta
russo, mas não vi qualquer referência a um fato que nos interessa de perto: a tra-
dução por ele de uma das liras de Gonzaga. Publiquei na década de 60 um artigo
sobre esse tema2, e ele teve alguns desdobramentos, que vou recapitular aqui.
Baseei-me então em materiais russos que me chegavam, com discussões
sobre a relação entre os dois poetas, embora fosse então bem limitado o inter-
câmbio com instituições culturais soviéticas. A lira traduzida é a de número
LXXI3 e, segundo alguns estudos russos, ele se teria baseado na tradução, em
prosa francesa, de E. de Monglave e P. Chalas4. Pude convencer-me da exatidão
desta referência, graças a um cotejo de textos, que efetivei a partir de uma indi-
cação bibliográfica em formação da Literatura Brasileira, de Antonio Candido.
Este me informou então que havia um exemplar da tradução francesa na seção
de livros raros da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro.
Ela é precedida de um curioso prefácio, onde se lê:

Nous ne parlerons pas de notre traduction; le droit de la juger appartient tout entier au
public. Fidèles au précepte d’Horace, nous ne nous sommes pas servilement astreints à rendre
mot par mot, phrase par phrase. C’est le génie du poète le plus aimable de Portugal que nous
avons essayé de faire passer dans notre langue, en regrettant que le peu de flexibilité de la prose
française ne nous ait permis de donner à nos lecteurs qu’une bien faible idée de son harmonie
imitative, de son rythme souple et varié, de son style tour à tour gracieux, profond et énergique.

Evidentemente, era muito vago, e Púchkin usou com muita liberdade o texto
de Monglave e Chalas. Sem dúvida, este é fluente, harmonioso, muito legível até
hoje, mas, além das diferenças devidas a uma tradução declaradamente livre,
apresenta algumas incorreções.
Eis ao que ficou reduzida (foi o erro mais grave na tradução desta lira) a
estrofe “Na quente sesta, / dela defronte, / eu me entretinha / movendo o ferro
/ da sanfoninha”: “Dans les chaleurs de l’été, m’entretenant avec elle, je frappais
négligemment les cordes de ma guitarre”.

2. Boris Schnaiderman, “Púchkin, Tradutor de Gonzaga”, Suplemento Literário de O


Estado­de S. Paulo, 16.6.1962. O presente trabalho é um desenvolvimento desse artigo, que foi
reproduzido com alguns acréscimos no no 1 da revista Tradterm, desta Universidade (1994),
na publicação Fortaleza Voadora (Fortaleza, s.d.) e na Revista USP n. 45 (2000).
3. Tomás Antonio Gonzaga, p. 127, vol. I, da edição crítica de M. Rodrigues Lapa (Rio de
Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1957). Em outras edições, a numeração é diferente.
4. Marilie – chants élégiaques de Gonzaga traduits du portugais par E. de Monglave et P.
Chalas, Paris, C. L. I. Panckoucke, éditeurs, 1825.

71
Caderno de Literatura e Cultura Russa

É claro que os tradutores franceses estranharam aquela “sanfoninha”, que


lhes pareceu pouco ibérica ou sul-americana, embora ela seja bastante en­
con­tra­diça nos versos de gonzaga, marcando com sua presença aquele “ideal­
familiar e burguês” que M. Rodrigues Lapa encontrou em suas liras. Aliás, ela
surge logo na Parte I, Lira 1, onde o poeta afirma: “Com tal destreza toco a
sanfoninha” etc. Certamente, o ilustre magistrado se comprazia afirmando esta
sua destreza. Mas, com toda a sensibilidade que tinha para tais pormenores,
Púchkin só pôde colocar em suas mãos uma guitarra, devido à incorreção dos
tradutores franceses.
A ausência, também, de outros pormenores característicos de gonzaga e
do arcadismo brasileiro empobreceu inevitavelmente o poema, mas isto foi
substituído por elementos típicos de Púchkin, que se guiou mais pela intuição
poética do que pelo conhecimento do tema. Realmente, mesmo como homem
de vastíssima cultura, a par de sua fama de boêmio incorrigível, ele só poderia
saber muito pouco a respeito de gonzaga, da escola mineira de poesia e das
circunstâncias reais em que o poema se baseava. E assim mesmo, trabalhando
com material tão precário, ele criou sem dúvida um dos poemas curtos mais
belos da poesia russa.
A par do impacto que lhe causou a leitura dos poetas ocidentais seus con-
temporâneos, Púchkin estava muito marcado pela poesia do século XVIII e
percebe-se nele, pelo menos na primeira fase de sua obra, um gosto pelos ele-
mentos típicos do arcadismo, com uma freqüência grande de pastores e pastoras,
geralmente com um toque erótico mais desbragado que o dos nossos árcades e
um acentuado espírito brincalhão. Mas, tendo por baliza o texto francês, acabou
expressando um lirismo bem mais comedido.
Em meu artigo de 1962, escrevi: “É provável que apareça algum dia em russo
uma tradução integral das liras de Gonzaga, pois a arte da tradução poética está
particularmente desenvolvida na Rússia”. Realmente, não era necessário para
afirmar isto nenhum dom divinatório, e já em 1964 a editora Literatura, de
Moscou, publicava a tradução de I. A. Tyniánova das liras e das Cartas Chilenas.
E no prefácio ela expunha uma concepção diametralmente oposta à minha,
depois de se referir às edições portuguesas de Gonzaga, aparecidas antes do
poe­meto puchkiniano: “Talvez algumas das pessoas chegadas a Púchkin, e que
se interessavam pela literatura portuguesa, tenham tomado conhecimento de
algumas dessas edições? Ademais, é difícil supor que uma tradução do francês,
sem nenhuma consulta ao original, tenha sido designada por Púchkin não como
uma imitação ou um poema a partir de gonzaga, mas, sim, com uma indicação
precisa da língua da qual se fez a tradução: ‘Do português’, embora o poeta
cuidasse com tanta meticulosidade de cada nuance no significado das palavras”.

72
Púchkin e Gonzaga. Da Sanfoninha ao Violão

Realmente, Púchkin tinha diversos amigos que se interessavam pela poesia


portuguesa e chegaram a aprender a nossa língua. E esse fato tem sido apontado
por estudiosos russos. Um deles, N. O. Lerner, escreveu num artigo de 1916
(minha citação é indireta) que, sendo o texto posterior à estada de Púchkin
em Odessa, ele poderia ter se encontrado ali com “portugueses ou levantinos
que falavam português”.
Todas essas lucubrações me parecem fantasiosas e pouco verossímeis. É
verdade que Tyniánova está certa ao afirmar que Púchkin era muito rigoroso
em matéria de tradução, asserção esta que se baseou tanto na atividade tradu-
tória do poeta como em artigos seus sobre poesia traduzida. Mas, a par desta
atitude severa, aparecia nele, às vezes, um gosto histriônico pela mistificação,
pelo disfarce, pelo jogo livre com os textos, e que não se pode deixar de lado.
Aliás, ambos estes aspectos aparecem claramente nos versos que traduzi com
Nelson Ascher para uma coletânea de prosa e poesia de Púchkin5. Se o poema
“Antchar” traz referência exata ao texto de Coleridge que lhe serviu de ponto
de partida, “Corvos” é na realidade paráfrase de uma balada escocesa, sem que
isto seja referido no texto.
Todavia, as suposições de Tyniánova tiveram bastante aceitação. As di-
ficuldades de comunicação entre o Brasil e a Rússia, mesmo antes de 1964,
impediram-me de tomar conhecimento, na época, de dois estudos sobre esse
tema publicados pelo importante comparatista M. P. Alekséiev (recentemente
falecido) nos anais da Academia de Ciências da URSS, um deles anterior ao
meu texto e outro um pouco posterior. No entanto, ele os reelaborou e trans-
formou num ensaio que aparece em seu livro Púchkin e a Literatura Mundial 6.
Finalizando o ensaio, ele escreveu: “As observações feitas por I. A. Tyniánova a
respeito do original português são interessantes, mas apesar disso não decidem
definitivamente o problema do texto que Púchkin teve em mãos. Observemos,
em relação a isto, que eslavistas brasileiros atuais continuam achando que a
tradução de Púchkin tenha sido feita a partir da tradução francesa em prosa”7.
Segue-se uma citação de meu artigo de 1962.
A meu ver, tanto no caso de Alekséiev como de Tyniánova, faltou um cotejo
do poema de Púchkin com a tradução de Monglave e Chalas. No artigo em
questão, eu me recusava categoricamente a expor em prosa algo que fora escri-

5. A Dama de Espadas. Prosa e Poemas, São Paulo, Editora 34, 1999.


6. M. P. Alekséiev, “Пушкин и Бразильский Поэт” (“Púchkin e um Poeta Brasilei-
ro”), Пушкин и Мировая Литература (Púchkin e a Literatura Mundial),  grado, editora
Naúka (Ciência), 1987.
7. Op. cit., p. 559.

73
Caderno de Literatura e Cultura Russa

to em versos (e que versos!). Mas agora não posso deixar de recorrer à “despre-
zível prosa”, como dizia o próprio Púchkin, tão cônscio do limiar entre uma
e outra8.
Na passagem citada, temos: “Vindo de longe, a donzela aproximava-se de
mim. Eu cantava ao encontro de minha bela, tangendo a guitarra”. (Aliás, Pú-
chkin utiliza um termo russo bem onomatopaico para “tangendo”: “briat­zaia”.)
Nesta passagem, ele afasta-se tanto do original de gonzaga como de sua
tradução francesa. Mas o aparecimento daquela “guitarra”, em lugar da pitoresca
“sanfoninha”, parece indicar maior proximidade com o texto de Monglave e
Chalas. No caso, uma coincidência é bastante inverossímil.
Em todo caso, isso nos confirma que ele chegava a tratar os textos estran-
geiros com bastante liberdade.
O seu gosto pronunciado pelo jogo e pela mistificação deu origem a diversas
situações bem curiosas. Foi o caso, por exemplo, dos seus Cantos dos Eslavos
Ocidentais. Segundo nota a uma das edições das obras completas pela Acade-
mia de Ciências da URSS9, eles consistem em três textos criados pelo próprio
poeta, dois traduzidos de uma coletânea de canções sérvias e doze paráfrases
de poemas que Prosper Mérimée publicou, sem assinatura, no livro La guzla,
ou choix de poésies lyriques, récueillies dans la Dalmatie, la Bosnie, la Croatie
et l’Hérzégovine. Depois de concluir a sua coletânea, Púchkin pediu a um
amigo comum que se informasse com o escritor francês sobre o organizador
e tradutor do livro. Esse amigo recebeu então uma carta muito espirituosa de
Mérimée, onde este confessava ter forjado os textos e dizia: “Faites mes excuses
à M. Pouchkine. Je suis fier et honteux à la fois de l’avoir attrapé” etc. O poeta
russo incluiu essa carta no prefácio à sua coletânea, dando conta assim daquela
mistificação de Mérimée, mas sem dizer nada sobre os três poemas que ele
mesmo havia forjado10.
Também a paráfrase do poema de gonzaga faz parte daquela busca da con-
tribuição poética dos mais diversos povos, que Púchkin absorveu vorazmente
e transmitiu a seu público. Assim, muitos momentos da poesia mundial são
assimilados pelos russos como parte de seu próprio universo poético graças a
este crivo puchkiniano tão pessoal e, ao mesmo tempo, tão ligado às culturas
mais diversas.

  8.  No poema narrativo O Conde Núlin aparecem os versos “Nos últimos dias de setembro
/ (Falando em desprezível prosa)”.
 9. Obras Completas de A. S. Púchkin em 10 volumes, Moscou, edição da Academia de
Ciências da URSS, 1956-1958.
10. Op. cit., vol. III, p. 286.

74
Púchkin e Gonzaga. Da Sanfoninha ao Violão

Abstract: In the present essay, questions referring to translation into Russian are dealt
with in a poem by Tomás Antonio Gonzaga, translated by Pushkin.
Keywords: A. S. Pushkin; Tomás Antonio Gonzaga; Russian poetry; Brazilian poetry; po-
etical translation.

75
Humor e Irreverência na
Prosa de Púchkin
Helena Nazario

Resumo: Este artigo trata de questões relativas à prosa de Púchkin e procura explicitar
alguns dos principais procedimentos de composição de seus contos.
Palavras-chave: A. S. Púchkin; literatura russa do século XIX; conto.

Aleksandr Serguéievitch Púchkin nasceu em Moscou em 1799, no limiar en-


tre dois séculos, marcando o fim de uma época (a culminância de um longo
processo de desenvolvimento literário do século XVIII russo) e o início de
outra.­
Considerado o poeta nacional, “o sol da poesia russa”, foi nesse campo que
Púchkin mais sobressaiu; no entanto, a sua evolução da poesia para a prosa se
teria processado desde cedo, desde o primeiro poema, Ruslan e Liudmila (publi-
cado em 1820), até o famoso romance em versos Evguiéni Oniéguin. Baseando-
-se nos planos e rascunhos do autor, Iú. Tyniánov examinou a interferência da
prosa na poesia de Púchkin, mostrando como, com o passar dos anos, o poeta
se lançava cada vez mais em direção às séries extraliterárias, tornando-se a
anotação de simples anedota a base da trama de seus contos.
Gógol também se preocupou em explicar a transição do poeta para a prosa:
“Ela é o oposto do verso, em lugar de estar contaminada por este. Na verdade, é
ela que contamina os versos de Púchkin, nos últimos anos”. Assim, ao contrário
da maioria dos poetas cuja ficção se aproximava da poesia, Púchkin criou uma
prosa que é precisamente o contrário do verso.
Apesar do período curto em que se dedicou à prosa (1827-1837), pode-se
dizer que o escritor a tornou mais leve, em comparação com os autores que o
antecederam; no entanto, o seu estilo, que agora se afigura bastante fluente, na
Caderno de Literatura e Cultura Russa

época abalou os leitores, parecendo-lhes desigual e estranho pela mistura sin-


gular de eslavismos e expressões populares.
Descendente de uma família da nobreza antiga, Púchkin sentia-se orgulhoso­
de sua genealogia. Foi este um dos motivos (a par da incontestável admiração
pela figura de Pedro) que levou Púchkin a escrever O Negro de Pedro, o Grande,
uma reconstituição da vida de seu bisavô, Abraão Hannibal, e sua primeira
tentativa com o romance histórico. A obra, escrita em 1827, não foi terminada
e apenas dois fragmentos apareceram em vida do autor.
Conforme evidencia o título, O Negro de Pedro, o Grande1, a personagem
principal do relato é o negro, Ibraim, favorito de Pedro, enviado à França com
outros oficiais da nobreza “a fim de obter informações indispensáveis à refor-
ma do Estado”, ao passo que a figura histórica do imperador contenta-se com
algumas aparições episódicas na narrativa. Neste sentido é que Púchkin conflita
com a “afetação romântica” (o termo é de Lukács) de colocar os grandes vultos
históricos no centro de suas descrições. No entanto, apesar das breves irrupções
de Pedro, percebe-se sua presença dominando o cenário, enquanto Ibraim
aparece mais como sombra do czar e instrumento das vontades deste. Note-
-se, neste sentido, o genitivo de posse no título (O Negro de Pedro, o Grande).
Dois ambientes marcam o desenvolvimento da ação (a Rússia e a França),
evidenciando o choque que se origina quando os elementos de um (a França)
são transpostos artificialmente para o outro (a Rússia). Enquanto na primeira
parte o relato é dedicado à exaltação do imperador, glorificado pelo olhar ad-
mirativo de Ibraim, na segunda, o autor desloca o enfoque e Pedro passa a ser
visto pelo olho crítico de uma aristocracia aferrada às tradições e refratária às
mudanças que o reformador da Rússia lutava por introduzir. Nesse contraste
de enfoques, o dialogismo do autor empenha-se em oferecer um duplo juízo
avaliando as ações do czar. Referências irônicas ao processo de ocidentalização
imposto por Pedro surgem durante um banquete em casa de um dos nobres:
os julgamentos se acirram e explodem com toda causticidade na figura da anã
(a boba da casa); toda pintada e devidamente fantasiada, com uma tampa de
travessa debaixo do braço, ela irrompe como um elemento burlesco, fazendo
caretas, mesuras e imitações da fala francesa (“mussiê”... “mamzel”... “assem-
bléia”... “pardon”) e ridicularizando o “estrangeiro”, “o macaco de além-mar”,
que voltou “daquelas Alemanhas para a Santa Rússia feito um verdadeiro
histrião” (alusão a um dos jovens enviados à França, pelo imperador, e que
volta imbuído de maneirismos contrários às tradições russas).

1. Os contos aqui citados foram traduzidos por Boris Schnaiderman e reunidos no volume
A Dama de Espadas (São Paulo, Editora 34, 1999).

78
Humor e Irreverência na Prosa de Púchkin

Servindo-se da figura da anã, Púchkin introduz um elemento caricatural


feroz contra as imitações do Ocidente. Por via indireta é questionada a autori-
dade do czar, a própria autocracia. Por alguns instantes, o autor permite que se
revire a ordem e a hierarquia; bruscamente, porém, com a chegada imprevista
de Pedro, o deboche cessa e reina a ordem; o silêncio e o constrangimento­
aba­­­­­­­­­fam o riso impudente. Delineia-se a hierarquia que cava um fosso in­trans­­­­
ponível entre o czar e os demais comensais. Do deboche para o solene a passa-
gem é abrupta. Numa violenta colisão de cenas, um salto no sentido inverso, o
escritor destaca a imbricação dos dois níveis (o sério no cômico), projetando
a figura “sublime” do autocrata contra o pano de fundo grotesco da cena an-
terior.
O gosto pelo jocoso que, à maneira inversa, irrompe de forma intem­
pes­tiva em circunstâncias solenes, evidencia-se em A Dama de Espadas,
nove­la­que, “pela força da imaginação, destaca-se na ficção de Púchkin” (nas
pa­la­vras de D. S. Mirsky). Mesclando o fantástico ao cotidiano da forma­mais
natural (para uma narrativa escrita em 1833), Púchkin insere a fábula numa
forma a tal ponto condensada que até mesmo Prosper Mérimée, um escritor
bastante preocupado com a concisão, não teve o ânimo de traduzir a obra em
sua forma original, inserindo vários ornamentos e acréscimos em sua versão
francesa.
A personagem principal da história, Hermann, apresenta certas caracte-
rísticas diabólicas (“perfil de Napoleão e alma de Mefistófeles” e “pelo menos
três crimes na consciência”). Obcecado pela idéia de obter o segredo das cartas
que garantem sucesso no jogo, Hermann tenta convencer a velha condessa, de
posse do miraculoso segredo, a revelar-lhe as cartas, ameaçando-a com uma
arma. A velha não resiste ao susto e morre. Levado pela superstição, Hermann
comparece ao velório para pedir-lhe perdão.
O narrador detém-se na descrição da igreja, caracterizando um espaço
sombrio e ao mesmo tempo pomposo:

o ataúde [...] sobre um rico catafalco, sob um dossel de veludo. A morta [...] as mãos cru-
zadas sobre o peito, com touca de renda e um vestido de cetim branco [...] os criados de
cafetãs negros, guarnecidos nos ombros com listões brasonados; [...] os parentes, filhos,
netos e bisnetos, todos de luto profundo.

Segue-se “o discurso fúnebre do arcebispo [...] o ofício divino executado


com um decoro dolente”, e finalmente a despedida da morta. No exato mo-
mento em que chega a vez de o “vilão” aproximar-se da defunta, a ironia de
Púchkin explode sem complacência:

79
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Hermann [...] teve a impressão de que a morta lhe dirigia um olhar de mofa, entre­
cer­rando o olho [...] recuou apressadamente, deu um passo em falso e caiu de costas [...]
Ergueu-se [...] um murmúrio abafado, e um camarista [...] segredou no ouvido de um
inglês ao seu lado que o jovem oficial era filho ilegítimo da velha, ao que o inglês respon-
deu friamente: “Oh?”

A zombaria de Púchkin se alastra em cadeia, por acumulação dos detalhes


engraçados: o gesto divertido da defunta, o tombo que rompe as normas da
etiqueta e, finalmente, o malicioso comentário em relação à morta (onde se
inclui, “de quebra”, ainda, uma alusão zombeteira ao típico humour britânico).
Invadindo a seriedade da cerimônia mortuária, o escritor diverte-se em gracejar
do aparato que cerca o rito fúnebre, numa atitude de profanação do sagrado
(a igreja, o arcebispo, o defunto, o próprio mistério da morte).
Referindo-se a A Dama de Espadas, M. Bakhtin mostra a influência de
Púchkin sobre Dostoiévski, no episódio de Crime e Castigo em que Raskólni-
kov está assassinando a velha, a golpes de machadinha: “a velha ria, torcia-se
num riso silencioso, sem voz [...] a cada golpe [...] a velha se sacudia com um
riso convulsivo”. Segundo o crítico, a lógica fantástica do sonho, utilizada por
Dostoiévski, lhe teria permitido criar a imagem da velha assassinada que ri,
aliando o riso à morte. A imagem dostoievskiana teria um ponto em comum
com a velha condessa de Púchkin (que pisca o olho no enterro) e também com
a dama de espadas (o duplo carnavalesco da condessa), que faz o mesmo na
carta do baralho.
Bakhtin atribui as motivações das duas imagens fantásticas (as duas velhas
mortas que riem) à loucura, em Púchkin, ao sonho-delírio, em Dostoiévski,
e acaba por estabelecer, na comparação entre as duas obras, não apenas uma
semelhança exterior, mas uma semelhança de substância, uma afinidade geral
de atmosfera, de imagens e de conteúdo ideológico (ou seja, o “napoleonismo”
no âmbito do jovem capitalismo russo).
Para o crítico, além de A Dama de Espadas, os Contos de Biélkin estariam
incluídos entre os relatos de Púchkin onde os elementos de carnavalização apa-
recem com maior evidência. A autoria dos contos (escritos em 1830) é atribuí­da
ao falecido Ivan Petróvitch Biélkin, “um jovem gentil e honrado”, enquanto o
próprio autor se oculta sob a máscara de mero editor dos textos.
Num desses contos, O Fazedor de Caixões, o narrador começa por fazer
uso de um procedimento ilusório: no momento em que ocorre a passagem do
real para o sonho (“dito isto, o fabricante de ataúdes foi para a cama e pouco
depois roncava”), o narrador “distraído” esquece de avisar que tem início uma
nova ordem de acontecimentos e desnorteia o leitor com uma informação “sus-

80
Humor e Irreverência na Prosa de Púchkin

peita”: “Ainda estava escuro quando acordaram Adrian”. Na verdade, trata-se


do preciso instante em que a personagem, voltando de uma bebedeira, adormece
e começa a sonhar. Ao camuflar a ordem do acontecimento noturno (o sonho),
o narrador não faz senão inserir da forma mais natural o episódio fantástico
na ordem do cotidiano, dos acontecimentos diurnos.­­
Na vida real, o fabricante de ataúdes deseja a morte da velha comerciante
Triúkhina, cujos funerais permitiriam cobrir o prejuízo que tivera com seus
apetrechos de luto num dia de chuva. O sonho vai justamente possibilitar a
realização metafórica desse desejo do cotidiano. Note-se a malícia do escritor
no “batismo” do fabricante de ataúdes: a semelhança fônica do seu sobrenome
Prókhorov com pókhoroni, que significa enterro.
Em seu ensaio sobre a poética de Púchkin, S. G. Botcharóv explica o processo
de reificação que ocorre no conto. Diabolicamente, o escritor vai desvelando
uma atitude profana: do lucro em face da morte (o corpo da velha reificado em
função do dinheiro). Aliás, no brinde proposto ao fabricante de ataúdes, durante
o banquete em casa do sapateiro alemão, também é sublinhada essa atitude: “bebe
à saúde de teus defuntos”. O trocadilho em que vida e morte se cruzam (saúde
dos defuntos) desencadeia a ruptura da separação dos dois níveis (vida/morte)
para o fabricante de ataúdes e ele, por sua vez, decide oferecer um banquete aos
mortos. A confrontação com os “antigos clientes”, no sonho, assume contornos
macabros, na medida em que suas máscaras mortuárias ganham relevo, ao serem
focalizadas contra o luar, o qual “iluminava pelas janelas os seus rostos amarelos e
azuis, as bocas encovadas, os olhos turvos, entrecerrados, e os narizes pendidos”.­
Baralhando as duas zonas (da vida e da morte), o autor confunde os limites
entre elas: ora satirizando com humor brejeiro as atitudes terrenas dos “convi-
dados”, no apuro de suas roupas (“As defuntas com toucas e fitas, os mortos
funcio­nários de uniforme...”), ora insinuando, maldoso, um detalhe lúbrico re-
ferente à morte (“os mortos funcionários de uniforme mas de barba por fazer”).
Dessacralizando o status que a morte confere aos defuntos, Púchkin busca
nos objetos considerados “baixos”(o pilão, o espeto) as comparações para a
vulgarização de um pequeno esqueleto cujos frangalhos “pendiam aqui e ali,
como num espeto, e os ossos das pernas debatiam-se dentro de grandes polainas,
como um pilão de almofariz”. Trata-se exatamente do “justiceiro” que vem punir
o ganancioso fabricante de ataúdes por sua desonestidade (Prókhorov forne-
cera ao antigo cliente um caixão de pinho em lugar de um caixão de carvalho).
Os limites que separam os dois mundos acabam confundindo-se numa lin-
guagem que desliza de um léxico para o outro: num gesto pertinente à vida, o
defunto “alonga os seus ossos para um abraço em Prókhorov”, mas em “ossos”
tropeça num léxico referente a “outro mundo” e acaba “desfazendo-se em pó”.

81
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Presos às atitudes da vida, os demais defuntos defendem “indignados” a “hon-


ra” do companheiro, investindo “com censuras e ameaças” contra o fabricante
de ataúdes.
Julgando talvez suficiente o “castigo” do horrorizado Prókhorov, o escritor
lhe oferece uma chance, e o seu desmaio se torna o salvo-conduto que lhe ga-
rante a fuga do fantástico episódio noturno (desse mundo às avessas) para a
tranqüilidade diurna.
Desta vez, o narrador procede corretamente no seu informe, anunciando o
despertar da personagem: “O sol havia muito iluminava a cama em que estava
deitado o fabricante de ataúdes. Finalmente, ele abriu os olhos”. A última frase
pode ser desdobrada num duplo sentido. No início da narrativa, Prókhorov
era um homem “sombrio e calado [...] imerso [...] em tristes divagações [...]
de gênio que condizia de modo absoluto com o seu lúgubre ofício”. Depois da
reviravolta do mergulho no sonho (ou, melhor, no pesadelo) sabe-se que o
fabricante retoma seus afazeres “com alegria”. Supõe-se, então, que, liberado de
seus fantasmas diurnos através dos fantasmas noturnos, Prókhorov “finalmente
abriu os olhos”, despertando para uma nova realidade.
Também no início da história, conforme o narrador declara, Prókhorov
não se enquadrava no modelo proposto por Shakespeare e Walter Scott, “que
representaram seus coveiros como homens alegres e brincalhões”. Agora, no
entanto, o fabricante de ataúdes aproxima-se das dimensões dos modelos
citados, na medida em que sua “alegria” passa a contrastar com seu “lúgubre
ofício”. Isto apenas confirma uma constante de Púchkin, sua eterna preocupa-
ção com a mistura dos níveis (o trágico e o cômico) bastante explícita, aliás,
no “esclarecimento” do narrador:

[...] o leitor culto sabe que tanto Shakespeare como Walter Scott representaram seus co-
veiros como homens alegres e brincalhões, a fim de impressionar mais fortemente com o
contraste a nossa imaginação.

Alguns elementos de O Fazedor de Caixões parecem repercutir num conto


de Dostoiévski, Bobók, em que o narrador escuta a conversa subterrânea dos
defuntos num cemitério. Segundo Bakhtin, esse conto, que ele examina deta-
lhadamente em Problemas da Poética de Dostoiévski, representa o exemplo mais
vivo da sátira menipéia, podendo se reconhecer nele um verdadeiro inferno
carnavalizado:

[...] uma multidão variegada de mortos, incapazes de se desligar de suas situações


hierárquicas da Terra, os conflitos cômicos que se originam disso, as injúrias e os es-

82
Humor e Irreverência na Prosa de Púchkin

cândalos [...] uma total irresponsabilidade, um erotismo macabro e franco – o riso


dos túmulos.

***

É famosa a citação dos versos do Evguiéni Oniéguin, em que Púchkin se


refere com escárnio à automatização do leitor em relação ao procedimento:
“O leitor já espera a rima rosas. / Aí está, tome-a, segure-a, rapidamente”. No
conto O Chefe da Estação (que também pertence ao ciclo dos Contos de Biélkin),
Púchkin se serve de seu “honrado narrador” para oferecer ao leitor um deter-
minado modelo literário (a parábola do filho pródigo, incorporada ao Novo
Testamento) que, em seguida, será contrariado, da maneira mais “inocente”.
Assim, nas duas visitas que o narrador/viajante realiza à casa do chefe da
estação, ele ressalta com insistência a presença, na parede, dos quadros que
compõem as cenas da passagem bíblica, descrevendo-os com minúcia incomum:

No primeiro, um respeitável velho [...] deixa partir um jovem inquieto [...]. No seguinte,
representa-se [...] o comportamento dissoluto do jovem: está sentado à mesa, rodeado de
falsos amigos e mulheres desavergonhadas. Adiante, o jovem que malbaratou todo o seu
dinheiro está esfarrapado [...] pastando porcos e repartindo com eles a refeição; em seu
rosto estão representados o arrependimento e profunda tristeza. Finalmente, representa-
-se o seu regresso à casa paterna; o bom velho corre ao seu encontro [...] o filho pródigo
está ajoelhado; em perspectiva vê-se um cozinheiro matando um vitelo gordo, enquanto
o irmão [...] interroga os criados sobre o motivo de tal alegria.

Na narrativa engendrada por Púchkin, as coisas não se passam bem assim;


pelo contrário, a cada passo, o leitor aguarda em vão a reprodução das cenas
dos quadrinhos da parábola na história do chefe da estação. Aliás, o leitor se
defronta com um desvio completo na interpretação do texto da tradição evan-
gélica, pois o escritor “trapaceia”, oferecendo-lhe uma estrutura para logo em
seguida destruí-la, erguendo uma outra no lugar. Ao contrário do filho pródigo,
a filha do chefe de estação, Dúnia, não abandona a casa por vontade própria;
é o próprio pai quem a lança, ainda que involuntariamente, nos braços de um
hussardo (“Do que é que tens medo? Sua Alta Nobreza não é um lobo e não
vai te devorar. Vai com ele até a igreja”). É flagrante o prejuízo que a saída de
Dúnia ocasiona ao lar – “tudo em volta denotava decrepitude e relaxamento”
– e ao próprio pai – transformado num “velho débil”, que afoga sua mágoa
em bebida. É o pai quem sai em busca da filha, reproduzindo em sua fala o
discurso da tradição e da moralidade:

83
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Talvez eu traga para casa a minha ovelhinha desgarrada [...] Não é a primeira nem a
última a ser seduzida [...] e abandonada [...]; há muitas dessas mocinhas tolas, que hoje
andam de cetim e veludo e amanhã, quando menos se espera, vão varrer a rua com a ralé
dos botequins.

Dúnia, por sua vez, contrariando todas as predições, apresenta sinais de ter
atingido visível prosperidade: “trajada com todo o luxo da moda [...] os dedos
faiscantes”. Sua volta ao local de origem, que se resume a uma breve visita,
ocorre numa pungente inversão dramática da parábola: no encontro com o
pai, a ausência deste é preenchida pelo túmulo no cemitério, “um lugar nu e
extremamente triste”. Chegando numa carruagem de seis cavalos, “com três
pequenos senhorezinhos e mais a ama-de-leite”, Dúnia aparenta estar plena-
mente realizada tanto no nível social como no econômico.
Talvez Púchkin tenha mesmo frustrado o leitor cuja expectativa foi ajus-
tada a um modelo já conhecido (a parábola). Parece certo, no entanto, que,
ao desmanchar as regras do jogo, o autor oferece em troca uma nova leitura,
cria­tiva e surpreendente, opondo à estética do clichê, da repetição, uma estética
da oposição, a recusa da norma.

Abstract: This article deals with questions relevant to Pushkin’s prose and attempts to
explain some of the main stylistic features encountered in the author’s stories.
Keywords: A. S. Pushkin; Russian literature of the19th century; short story.

84
A Dama de Espadas e o Tema das
Cartas e do Carteado na
Literatura Russa do Começo do
Século XIX1
Iúri Lotman

Resumo: Lotman toma como ponto de partida para sua pesquisa o jogo de cartas,
rastreando nele um modelo universal que dominou o imaginário dos contemporâneos
e da literatura russa no final do século XVIII-começo do século XIX. Em seguida, faz um
estudo­da cultura do período imperial petersburguês, mostrando que esta poderia ser
interpretada como uma cadeia de casualidades que faz lembrar o papel do acaso nos jogos
de azar. Baseando-se, então, nos conceitos de determinismo e acaso, o autor se concentra
na análise de A Dama de Espadas, para apontar como esses elementos conflitantes foram
trabalhados por Púchkin na construção do enredo desta novela.
Palavras-chave: A prosa de Púchkin; A Dama de Espadas; os jogos de azar na literatura
russa.

É necessário, antes de mais nada, estabelecer o significado que será atribuído


à noção de “tema” na exposição que se segue. Ao examinar textos de enredos
diferentes, convencemo-nos facilmente de que estão reduzidos a um certo
número, surpreendentemente limitado, de enredos invariáveis. Estes enredos
não apenas se repetem nas mais diferentes culturas nacionais, mas também,
revelando uma constância excepcional, perpassam os textos literários desde
os mais antigos mitos reconstituídos até as narrativas do século XX. As causas
desse fenômeno reiteradamente observado extrapolam os limites dos problemas
que nos interessam neste caso. No entanto, existe também um outro lado desse
fenômeno: a tarefa do pesquisador, ao transpor os níveis da abstração, não se
limita apenas a reconstruir uma base invariável dos diferentes textos. Não dei-

1. “Пиковая Дама“ и тема карт и карточной игры в русской литературе начала XIX
века”, in Пушкин (S. Petersburgo, Iskússtvo SPb, 1995, pp. 787-814) (N. do T.).
Caderno de Literatura e Cultura Russa

xa de ser importante também um outro aspecto: o exame dos mecanismos de


desenvolvimento de um esquema original do enredo em textos extremamente
distintos.
Os mecanismos que asseguram a individualidade da configuração do enredo­
de um dado texto são complexos e multiformes. Neste caso, nosso objetivo foi
dirigir a atenção para um deles: no nível da realização do enredo no texto, apa-
recem incluídas na narrativa palavras de um determinado significado material
que, por força de sua importância específica e de sua freqüente repetição na
cultura de um dado tipo, ganharam significados fixos, ligações situacionais, so-
freram um processo de “mitologização”; são elas que se tornam sinais-símbolos
de outros textos e se associam a determinados enredos, externos em relação ao
enredo em questão. Tais palavras podem condensar em si todo um conjunto de
textos. Ao serem inseridas na narrativa, por força da necessidade de nomear este
ou aquele elemento, elas começam a se desenvolver em construções de enredo
não-vinculadas ao enredo original, formando com ele situações complexas
conflitantes. Assim, no movimento de embate desses começos, o enredo original
pode ser bastante deformado. A essas palavras vamos denominar “temas” da
narrativa. Semelhante noção de tema faz lembrar alguns aspectos do “motivo”,
segundo a interpretação de A. N. Vesselóvski, o qual, ao ressaltar a situação dos
diferentes níveis do enredo e do motivo, escreveu ser o enredo a base “em que se
tecem as diferentes situações-motivos”2. Mais adiante trataremos da correlação
de “tema” e “motivo” em nossa exposição.
A capacidade de qualquer realia do enredo transformar-se em tema depende­
de vários fatores. Em primeiro lugar, trata-se de assinalar aqui a importância
de um dado elemento em um determinado sistema de cultura. Ao perpassar
toda a massa da cultura humana, adquirindo todo um conjunto de relações
em cada um de seus estratos de época, realiae como “casa”, “estrada”, “fogo”
impregnaram-se de ligações associativas tão ricas e complexas que, tendo em
vista o enredo original, sua inserção no texto cria imediatamente inúmeras
possibilidades potenciais de desvios imprevisíveis da narrativa.
Se temas desse tipo estão ligados a um movimento contínuo, que perpassa
todos os estratos da cultura, e assumem um aspecto que extrapola a época
(concretizando-se inevitavelmente nas formas de uma dada cultura), então,
ao lado deles, há temas que se caracterizam por uma concretização historica-
mente marcada e que se referem a estruturas menos profundas do texto. Como

2. A. N. Vesselóvski, Историческая Поэтика (Poética Histórica), Leningrado, 1940; p.


500. A partir da fórmula de Vesselóvski, B. V. Tomachévski e A. P. Tchudakov definiram motivo
como a mais simples unidade narrativa.

86
A Dama de Espadas e o Tema das Cartas e do Carteado...

exemplos de temas com uma concretização historicamente marcada, podem


ser citados “o duelo”, “o desfile militar”, “o automóvel”, ou ainda “a tourada”, “o
harém”, que, para a literatura do romantismo europeu, tornaram-se referência
a determinadas culturas “exóticas”.
O fundamental é que, dependendo da natureza dessa ou daquela realia, de
sua estrutura, função, freqüência de emprego no texto e do aspecto exterior
de sua transformação em tema do texto, isso pode estimular determinados
caminhos de seu funcionamento artístico: alguns temas tornam-se formas de
modelização do espaço (“a casa”, “a estrada”); outros, da estrutura interna do
coletivo (“a fila”, “o desfile militar”, “a enfermaria número 6”, “a prisão”); outros,
ainda, da natureza dos conflitos (“o duelo”, “o combate”, “o jogo”).
Examinaremos neste artigo um aspecto bastante concreto do tema e bem
específico de uma determinada época histórica nitidamente caracterizada. Isso
nos permitirá individualizar alguns problemas teóricos.

***

As cartas constituem uma realia cultural determinada. No entanto, a combi-


nação da organização interna que lhes é imanente, da função que desempenham
na sociedade de uma determinada época e das associações histórico-culturais,
que eram percebidas como análogos substanciais do carteado, transformou-as
em fato semiótico. Da mesma forma que no barroco o mundo era percebido
como um enorme livro criado por Deus e a imagem desse livro tornava-se
modelo de inúmeras noções complexas (e, ao penetrar no texto, torna­va-se
o tema do enredo), as cartas e o carteado assumem no final do século XVIII-
-começo do XIX, características de um modelo universal – o Jogo de Cartas –,
tornando-se o centro de uma formação mítica peculiar a uma época.

Não me falem em Voltaire ou Descartes:


Para mim o mundo é jogo, descarte,
A vida é banca; no destino aposto
E as regras do jogo a todos imponho3.

Que as cartas, como tema determinado com função social própria e meca-
nismo imanente, tenham delimitado não só os atos de pessoas reais mas tam-
bém de personagens da literatura, que a mera introdução do baralho na ação
tenha possibilitado uma certa previsibilidade de seu desenvolvimento ulterior,

3. M. I. Liérmontov, Obras (6 volumes), Moscou/Leningrado, 1956, vol. 5, p. 339.

87
Caderno de Literatura e Cultura Russa

pode ser ilustrado de modo convincente pelo seguinte episódio: em 1820,


Hoffmann publicou a novela Spielerglück. As traduções russas não se fizeram
esperar: em 1822 apareceu a tradução de V. Poliakov no número 13/14 de O
Mensageiro da Europa; em 1836, a de I. Bezsomíkin, num livro de E. T. A. Ho-
ffmann (Os Irmãos Serapiões). O enredo desenvolvido na novela – da perda da
mulher amada no carteado – não passou despercebido. É mais do que provável
que tenha despertado o interesse de Liérmontov que, pelo visto, na segunda
metade de 1837, iniciou a elaboração de A Tesoureira de Tambovsk4. Contudo,
ao elaborar sua obra, Hoffmann evidentemente não conhecia a história que
fazia sensação em Moscou, em 1802, quando o príncipe Aleksandr Nikoláievitch
Golítsyn, o famoso Cosa-rara, um perdulário, jogador e malandro da alta-
-roda, perdeu na jogatina sua mulher, a princesa Maria Grigórievna (nascida
Viázemskaia), para um dos mais ilustres fidalgos de Moscou – o príncipe Lev
Kirílovitch Razumóvski, conhecido na sociedade como le Comte Léon, filho de
um hetmã, maçon, um mecenas, cujas festas na casa da Rua Tvierskaia e em
Pietrovsk-Razumóvski eram objeto de falatório em toda a Moscou. O divórcio
da princesa, que se sucedeu a isto, e o seu segundo casamento conferiram ao
escândalo um colorido sensacionalista. Se os mesmos enredos ocorrem de modo
independente na literatura e na vida, é possível tão-somente concluir que se
estabelece um certo mecanismo, o qual restringe nitidamente a variedade das
condutas possíveis e, por assim dizer, filtra a situação, reduzindo praticamente
o número ilimitado de impulsos e estímulos a um círculo de ações bastante
limitado. Neste caso, “o filtro” vai se apresentar como um código especial, que
determina a cifragem das inúmeras situações “na entrada”, fazendo a corres-
pondência delas com um número limitado de enredos “na saída”. A somatória
dos desdobramentos dos enredos já existe potencialmente contida em tal códi-
go. Como código adicional estabelecido no texto, originando os movimentos
do enredo que, segundo expressão de Vesselóvski, “se tecem” no esquema
básico deste, é que se manifesta todo e qualquer “tema”. Assim, por exemplo,
do ponto de vista do esquema invariável do enredo do conto maravilhoso,
construído por V. I. Propp, não importa no que consiste o recurso mágico: o
corcel, a espada, a gusla ou o aço de ferir o lume5. Evidentemente, porém, no
momento em que, no texto real, se faz qualquer tipo de escolha desse repertó-
rio, toda uma série de acontecimentos é predeterminada no movimento pos-

4. Vide primeira comparação dos enredos dessas obras em: Schtein, S. Púchkin e Hoffmann:
Estudos Comparativos de História e Literatura, Derpt, 1927, p. 275.
5. Cf. V. Propp, Morfologia do Conto Maravilhoso, Moscou, 19692, p. 43. [Há tradução bra-
sileira de Jasna Paravich Sarhan: Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1984 (N. da T.).]

88
A Dama de Espadas e o Tema das Cartas e do Carteado...

terior do texto. No caso em questão, o mecanismo filtrante, cuja introdução


assegura uma nítida limitação na variedade dos enredos, é o tema das cartas.

***

A especificidade semiótica do jogo de cartas, em sua essência imanente,


refere-se a sua natureza dupla. De um lado, o carteado é um jogo, isto é, re-
presenta em si um modelo de situação conflitante. Neste sentido, apresenta-se
em sua unicidade como análogo a algumas situações conflitantes reais. Possui
regras no seu interior, que incluem um sistema hierárquico de valores relativos
das cartas isoladas, e regras de combinação destas, que em seu conjunto ori-
ginam situações de “ganho” e de “perda”. Dentro dos limites do jogo, porém,
as cartas isoladas não possuem relações semânticas com as denotações que
se encontram fora delas. Quando na imaginação perturbada de Hermann as
cartas assumem uma semântica externa ao jogo (“o três floria diante dele qual
esplêndida magnólia, o sete aparecia-lhe como um portão gótico, o ás, como
uma aranha enorme”), é sinal de que ele lhes atribui significados que elas não
possuem no sistema em questão6. Por outro lado, entretanto, as cartas são utili-
zadas não somente no jogo, mas também na adivinhação7. Nesta sua hipóstase
diferentes funções são ativadas: uma que prognostica e outra que programa.

6. Não existe uma história das cartas escrita na Rússia, tampouco existem pesquisas particula-
res da história da vida cotidiana neste campo, e isso dificulta o entendimento da função das cartas
como imagem literária. No cotidiano russo do século XVIII-começo do XIX, defrontamo-nos
com a diferenciação entre as cartas da adivinhação e as do baralho. No entanto, as primeiras
eram utilizadas, em regra, apenas na adivinhação de profissionais. Era significativamente mais
difundida a adivinhação, feita por amadores no dia-a-dia, que utilizava as cartas do baralho.
Estas últimas se diferenciavam quanto à natureza do desenho e do preço. Havia em circulação
tanto as cartas trazidas do exterior como as mais baratas, nacionais, produzidas por pequenas
empresas particulares, do tipo da fábrica de I. A. Toltchenov em Moscou. Nos jogos de azar,
visto que cada mão exigia baralhos novos em folha e o gasto com eles era enorme, utilizavam-
-se cartas nacionais baratas, enquanto que nos jogos “decentes” utilizavam-se, em regra, cartas
importadas. No final dos anos 1820, a produção de cartas e os lucros gerados eram monopo-
lizados pela divisão filantrópica da imperatriz Maria Fiódorovna, sendo que o desenho das
cartas produzidas – pois era justamente com elas que se jogava em A Dama de Espadas – foi
estabilizado e ganhou forma canônica semelhante à atual.
7. Cf. M. I. Lekomtsev, B. A. Uspénski, “Описание одной системы с простым
синтаксисом” // Учен. Зап. Тартуского гос. Ун-та 1965 Вып. 181; Труды по знаковым
системам. Ò. 2 (“Descrição de um sistema de sintaxe simples” // Notas Científicas da Uni-
versidade Estatal de Tartu, 1965, Caderno 181; Trabalhos sobre os Sistemas de Signos, vol. 2);
B. F. Egorov, “Простейшие семиотические системы и типология сюжетов” (“Os sistemas
semióticos mais simples e uma tipologia dos enredos”), idem.

89
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Simultaneamente surge em primeiro plano um outro tipo de modelização, por


meio da qual se ativa a semântica das cartas isoladas.
No funcionamento das cartas como um mecanismo semiótico único, esses
dois aspectos possuem uma tendência a se interpenetrarem. Quando em Pú-
chkin encontramos a epígrafe a A Dama de Espadas – “Dama de espadas sig-
nifica malevolência secreta. O Novíssimo Livro do Cartomante” – e, em seguida,
no texto da obra a dama de espadas aparece como uma carta do jogo, temos
diante de nós um caso típico da influência recíproca desses dois planos. Nisto,
em particular, pode-se perceber um dos motivos pelos quais o jogo de cartas
ocupou um lugar absolutamente especial na imaginação dos contemporâneos
e na literatura de ficção, em comparação com os outros jogos em moda na épo-
ca, como, por exemplo, o popular xadrez, no final do século XVIII. Pelo visto,
aqui teve um papel importante também o fato de a própria noção do “jogo
de cartas” compreender a modelização de dois tipos de situações con­fli­tan­tes
bastante distintas: os assim chamados jogos de cálculo e os de azar. Podem-se
citar numerosos dados quanto à questão de os primeiros serem julgados “de-
centes” e os segundos se defrontarem com uma condenação moral explícita.
Ao mesmo tempo, os primeiros são atribuídos a “homens respeitáveis” e o
gosto por eles não tem o caráter de moda universal atribuído ao segundo. Em
seu Dictionnaire Critique et Raisonné des Étiquettes de la Cour, Genlis escreveu:
“Tenhamos fé que as donas de hospedaria possuam mérito suficiente para não
tolerar os jogos de azar em suas casas: é mais do que suficiente permitir o jogo
de bilhar e o uíste, os quais nos últimos dez-doze anos tornaram-se, de pre-
ferência, jogos a dinheiro, aproximando-se dos jogos de azar e incorporando
um sem-número de inovações que os corromperam. O respeitável piquet foi
o único que permaneceu intocado em sua pureza original – não por acaso,
atualmente não desfruta de grande consideração”8. Na Correspondência da
Moda..., de N. Strákhov9, o Jogo de Cartas apresenta à Moda as folhas de servi-
ço de seus súditos:­

8. Dictionnaire critique et raisonné des étiquettes de la cour, des usages du monde, des amuse-
ments, des modes, de moeurs etc., des françois, depuis la mort de Louis XIII jusqu’à nos jours [...]
ou l’esprit des etiquettes et des usages anciens, comparés aux modernes. Par Mme la comtèsse de
Genlis, Paris, 1818, t. 1, pp. 304-305.
9. N. A. Strákhov, Correspondência da moda, que compreende as cartas das Modas desen-
gonçadas, as reflexões dos trajes inanimados, as conversas das toucas mudas, os sentimentos dos
móveis, das carruagens, dos cadernos de anotações, dos botões e das toucas antiquadas, dos cafetãs
de mangas largas, dos roupões, e etc. Obra de costumes e de crítica, na qual se revelam, de um ponto
de vista fidedigno, os costumes, o modo de vida, assim como diversas cenas cômicas e sérias do
século da moda, Moscou, 1791, pp. 31-32.

90
A Dama de Espadas e o Tema das Cartas e do Carteado...

I
Jogos a dinheiro dignos de promoção:
1. Banca
2.  Rest
3.  Quintet
4. Vinte-e-um
5. Rouba-montinho
6.  Iurdon
7. Monte
8.  Macau, que de certa forma se mostra muito ressentido por estar fora de uso

II
Jogos inovadores dignos de serem aprovados no serviço e incluídos no uso comum:
 1. Stuss
  2.  Três mais três
 3. Rocambole

III
Jogos que apresentaram pedido de aprovação ao serviço de homens sérios, respei-táveis:
 1. Hombre
 2. Uíste
 3. Piquet
 4. Tentere
 5. À la mouche

IV
Jogos que apresentaram pedido de dispensa para as províncias e aldeias:
 1. Panfil
 2. Tresset
 3. Basset
 4. Chnip-chnap-chnur
 5.  Mariage
  6.  Burro aos pares
  7.  Burro aos montes
  8.  Burro com todas as cartas
 9. Ieróchki ou khriúchki
10.  Três folhinhas
11.  Sete folhas

91
Caderno de Literatura e Cultura Russa

12.  Nikítichni
13.  V nosski – v tchístuiu otstávku10.

Ambas as citações acima referidas delimitam rigidamente os jogos de cál-


culo, “respeitáveis” e “morais”, e os jogos de azar, “da moda” e perigosos (note-
-se que para Strákhov, em primeiro lugar entre os últimos, aparecem a banca e
o stuss – variedades do faraó). Sabe-se que os jogos de azar, na Rússia dos fins
do século XVIII-começo do XIX, eram expressamente proibidos como jogos
imorais, apesar de florescerem na prática.
A diferença entre estas espécies de jogo, que também condicionava as
desigualdades em sua função social, resume-se ao grau de informação que os
jogadores possuem e, conseqüentemente, à maneira como se determina uma
perda: pelo cálculo ou pelo acaso. Nos jogos de cálculo a tarefa do parceiro
consiste em adivinhar a estratégia do adversário; é no arranjo de cada parceiro
que se têm os dados suficientes para, diante da possibilidade de examinar as va-
riantes e fazer os cômputos necessários, adivinhar essa estratégia: em primeiro
lugar, na medida em que os jogos de cálculo são jogos com regras relativamente
complexas (em comparação com os de azar), o número de estratégias possíveis é
neles limitado pela própria essência do jogo; em segundo lugar, a psicologia do
parceiro impõe restrições à sua escolha estratégica; em terceiro lugar, a escolha
depende também de um elemento do acaso – da natureza das cartas atribuídas
ao parceiro. Este último aspecto da questão permanece oculto ao máximo.
Contudo, também se podem fazer prováveis conjecturas a seu respeito, com
base no andamento do jogo. Ao mesmo tempo em que, no jogo de cálculo, o
jogador determina a sua estratégia, ele procura igualmente ocultá-la de seu
adversário.
Dessa forma, o jogo de cálculo, por ser um duelo intelectual, pode-se apre-
sentar como modelo de um determinado tipo de conflitos.
1.  Conflitos entre adversários equivalentes, isto é, entre pessoas.
2.  Conflitos que pressupõem a possibilidade de uma informação completa
(melhor dizendo, suficientemente completa) dos participantes relativamente
aos aspectos do conflito que lhes interessam e, por conseguinte, de uma possi-
bilidade de ganho ajustada racionalmente. Os jogos de cálculo modelizam con-
flitos de tal ordem, em que o sucesso é garantido pela superioridade intelectual

10. V nosski... deriva da palavra nos (nariz). Neste jogo, o perdedor sujeita-se a ser golpeado
no nariz com as cartas dos demais jogadores, enquanto protege o restante do rosto com as
cartas que segura em ambas as mãos. Durante a “execução”, todos explodem em gritos e garga-
lhadas.

92
A Dama de Espadas e o Tema das Cartas e do Carteado...

e por um grau de informação maior da parte de um dos jogadores. Não por acaso
o século XVIII celebrou com O Jogador à Mesa do Jogo, de V. Máikov, não só o jogo
de cálculo como também a rígida obediência às regras, o cálculo, e a moderação:

[...] tem garantida a morada aquele


que, no jogo, age com moderação;
E se agir assim, moderadamente,
Sem ter os quatro jogos, deixar de comprar cartas,
E sem os cinco, jamais jogar o sans prendre.
[...]
No futuro, se for inda mais moderado,
Talvez tenha mais sorte, no jogo, que antes11.

B. V. Tomachévski tinha todos os motivos para afirmar que Máikov se coloca


no poema do ponto de vista de um jogo de cartas comedido, ao recomendar no
jogo “o cálculo e não o entusiasmo”12. O aparecimento de poemas que dizem
respeito às regras dos jogos, como, por exemplo, do xadrez13, neste sentido é
perfeitamente normal.
Os jogos de azar se constroem de tal modo que o apostador é obrigado a
tomar decisões sem possuir praticamente nenhuma (ou quase nenhuma) infor-
mação. Existem diferentes formas de estratégia (elas são designadas por termos
do jogo da banca, tais como “jogo em mirandol”, “paroli”, “paroli pe”, “rute”,
“quinz’il va” etc.14); no entanto, na medida em que cada mão representa um
acontecimento independente em relação à outra (pode-se dizer o mesmo tam-
bém sobre a seqüência das cartas, ao se bancar uma determinada mão), a eficiên­
cia da escolha desta ou daquela estratégia depende do acaso. Ao determinar o

11. Citação de: Iroi – poema cômico / Redação e notas de B. Tomachévski, Leningrado,
1933, p. 109.
12. Idem, p. 704.
13. Cf., por exemplo, B. Éikhenbaum, Мой Временник (Meu Periódico), Leningrado,
1929, pp. 15-16.
14. A respeito do jargão no jogo de cartas, cf. V. I. Tchemychévski, “Тёмные слова в русском
языке” (“Palavras obscuras na língua russa”, in A. N. Ia. Marr da Academia de Ciências da
URSS: col. de artigos; Moscou/Leningrado, 1935, pp. 402-404); N. S. Achúkin, “Карточная
игра // Путеводитель по Пушкину” (“O jogo de cartas // Um guia de Púchkin”, in Obras
Completas de A. S. Púchkin em 6 volumes, Moscou/Leningrado, 1931, vol. 6, pp. 172-173);
com algumas imprecisões: L. V. Tchkhaidze, “О реальном значении мотива трёх карт в
‘Пиковой Даме’ ” // Пушкин: Исследования и Материалы (“Sobre o significado real do
motivo das três cartas em A Dama de Espadas”, in Púchkin: Estudos e Materiais, vol. 3).

93
Caderno de Literatura e Cultura Russa

teor desse conceito, U. Dj. Reickhman escreve: “A avaliação pressupõe a obser-


vância de determinadas regras. O filósofo francês J. Bertrand certa vez pergun-
tou: Como se pode falar em regras do acaso? Porventura o acaso não representa
a antítese de qualquer regra? Dizer que o resultado de um acontecimento é
determinado pelo acaso significa reconhecer que não fazemos idéia de como
ele é determinado”15.
Deste modo, o apostador não joga com uma outra pessoa, mas com o Acaso.
E se lembrarmos que o mesmo autor escreve abaixo: “O acaso se revela como
sinônimo [...] de fatores desconhecidos e, em certa medida, é justamente isto
que o homem comum pressupõe como a sorte”16, ficará evidente que o jogo de
azar é um modelo do confronto do homem com os Fatores Desconhecidos. É
justamente aqui que nos aproximamos da essência de qual conflito se modelou
na vida russa da época que nos interessa, por meio dos jogos de azar, e por que
estes jogos se tornaram a paixão de gerações inteiras (comparar a declaração
de Púchkin a Vulf: “A paixão pelo jogo é a mais forte das paixões”) bem como
um motivo bastante recorrente na literatura.
Reflexões sobre o acaso, a sorte e suas ligações com o destino pessoal e a
atividade do homem ecoaram reiteradamente na literatura mundial. O romance
da Antiguidade, a novela do Renascimento, o romance picaresco dos séculos
XVII-XVIII, a prosa psicológica de Balzac e Stendhal refletiram aspectos e
etapas de interesse distintos em relação a este problema. Em cada um destes
fenômenos é fácil desvendar os aspectos de um princípio histórico. No entanto,
na exacerbação do problema, poderiam existir não apenas causas históricas mas
também nacionais. Não se pode deixar de observar que todo o assim chamado
período imperial petersburguês da história russa é assinalado por considera-
ções sobre a função do acaso (e no século XVIII – sobre a sua manifestação
concreta17, pela forma específica de arranjo do destino pessoal nas condições

15. U. Dj. Reickhman, O Emprego da Estatística, Moscou, 1969, p. 168.


16. Idem, pp. 168-169.
17. Cf. Nóvikov: “A sucessão de amantes da velha coquete [...] virou a cabeça de muitos de
nossos fidalgotes” – “querem precipitar-se a cavalo de posta para Petersburgo a fim de não deixar
escapar um caso a eles tão propício” (Revistas Satíricas de N. I. Nóvikov, Moscou/Lenin­grado,
1951, p. 105); em comentário a esta passagem, P. N. Berkov supõe tratar-se de uma referência
aos favoritos da Imperatriz. Em O Correio dos Espíritos, de I. A. Krylov (Obras Completas, em
3 volumes, Moscou, 1945, vol. 1, p. 43), o anão Zor escreve a Malikulmulk: “Eu me fiz passar
por um homem jovem e belo porque a juventude em flor, os prazeres e a beleza nos tempos
atuais contam igualmente com um alto apreço, e em alguns casos, conforme dizem por aí,
operam milagres poderosos” (I. A. Krylov, Obras Completas, em 3 volumes, Moscou, 1945,
vol. 1, p. 43); cf.

94
A Dama de Espadas e o Tema das Cartas e do Carteado...

“de um domínio feminino”), pelo fado, pela contradição entre as leis férreas
do mundo exterior e a sede de sucesso pessoal, de auto-afirmação, pelo jogo
da personalidade com as circunstâncias, pela história, pelo Todo, cujas regras
permanecem como Fatores Desconhecidos. E é quase no decorrer de todo esse
período que se concretizam as colisões dos enredos mais comuns – ao lado de
alguns outros temas-imagens-chaves dos jogos de azar – mediante o tema da
banca, do faraó, do stuss, da roleta.
Trata-se aqui, de um lado, do complexo destino do problema da casualidade
na consciência europeizada não-religiosa das épocas do Iluminismo e do ro-
mantismo, da liberação do jogo das vontades individuais no mundo burguês­
pós-revolucionário da Europa (a prosa de Balzac revela muito claramente como
um determinado indivíduo é regido pelo egoísmo, cuja estratégia pode ser
perfeitamente adivinhada em cada caso; porém o todo social estabelecido com
isto torna-se, para cada indivíduo, um parceiro da parte dos Fatores Desconhe-
cidos, cuja estratégia de ação assume uma natureza irracional). No entanto, de
outro lado, delineava-se também a situação especificamente russa. Começan-
do pela reforma de Pedro, a vida da sociedade russa instruída desenvolvia-se
em dois planos: o desenvolvimento intelectual, filosófico, seguia o curso e a
cadência do movimento europeu, enquanto a base sociopo­lítica da sociedade
modificava-se lentamente e em correspondência com outros princípios. Isso
causou uma súbita projeção do papel da casualidade no movimento histórico.
Cada fator de uma série, do ponto de vista do outro, era indeterminado, casual,
mas uma constante intromissão mútua dos fenômenos destas séries levava a
uma transição brusca, semelhante a uma indeterminação dos acontecimentos,
que obrigava os contemporâneos a declarar como “ilimitados”, fantásticos,
inexistentes, um sem-número de aspectos da vida russa. Citemos como exem-
plo as afirmações de Púchkin de que na Rússia não existia uma aristocracia
autêntica, de Andrei Turguêniev, dos críticos-dezembristas, de Polevoi, de
Nadiéjdin, de Venevitínov, do jovem Belínski, de Púchkin – cada um a seu
tempo – de que na Rússia não existia uma literatura; de Tchaadáev, sobre a
história russa, dos eslavófilos, sobre o governo e a organização social depois
de Pedro etc. Todas as vezes é evidente que o fato negado existe e os próprios
homens que o negam sabem muito bem disto. Porém ele é percebido como
inorgânico, fantástico, ilusório. Tais considerações impõem um marco na per-
cepção literária das duas esferas básicas, nas quais se realizavam as colisões de

Mas como foste, Juju, parar num caso,


Sendo tão fraco e tão pequeno... (Idem, vol. 3, p. 170).
Grifos de Iú. M. Lotman.

95
Caderno de Literatura e Cultura Russa

enredos na Rússia do século XVIII-começo do XIX: de um lado, a esfera do


serviço militar, dos cargos, da carreira, de outro, a do dinheiro.
Já na segunda metade do século XVIII, constituiu-se um cânone literário
da percepção do “acaso” e da “carreira” (palavra que era mais freqüentemente
usada no gênero masculino) como resultados de um jogo imprevisível das
circunstâncias,­dos caprichos da Fortuna. “A Sorte” do nobre russo do século
XVIII consiste na colisão de múltiplos arranjos da vida social que muitas vezes
são interexcludentes. Existe o “serviço militar” – o sistema da Tabela das Classes,
a hierarquia dos cargos, o poder dos chefes, a ordem de produção, que represen-
tam um mecanismo relativamente regulamentado e bastante ativo. Já na época
de Nicolau I, ele se transforma na mola mestra do Estado – a burocracia. No
entanto, até mesmo nas questões de promoção no serviço militar as regras da
máquina administrativa não se revelam as únicas em vigor. Lembremos uma
famosa passagem de Guerra e Paz: “Boris, neste momento, entendeu claramente
aquilo que já havia pressentido antes, ou seja, que no exército, além da subor-
dinação e disciplina que constava do regulamento, conhecida pelo regimento
e por ele próprio, havia uma outra, uma subordinação de importância vital,
que obrigava este general empertigado, de rosto vermelho, a ficar aguardando
respeitoso, enquanto o capitão, o príncipe Andrei, a seu bel prazer, achava
mais conveniente ficar conversando com o sargento Drubiéntski”18. Vínculos
de família e parentesco constituíam na vida da nobreza russa do século XVIII-
-começo do XIX uma forma perfeitamente real de organização social, a qual
revelava ao indivíduo outros caminhos e possibilidades que não os da Tabela
das Classes. A possibilidade de qualquer chefe ora comportar-se de acordo
com certas normas de conduta (por exemplo, tratando um jovem oficial­em
correspondência com o seu cargo), ora apelar para regras diferentes (vendo
nele um parente, um membro de uma determinada família influente etc.)
transformava a vida no serviço militar numa cadeia de excessos e não no desen-
volvimento normal de um texto previsível. Noções tais como “sorte”, “sucesso”,
bem como os atos que as outorgam – “o favor” – eram entendidas não como
uma realização de leis inexoráveis, mas como um excesso, uma transgressão
imprevisível das regras. O jogo dos diferentes arranjos não-interligados trans-
formava o imprevisto num mecanismo constantemente ativo. Esperavam-no,
alegravam-se ou entristeciam-se com ele, mas não se surpreendiam diante dele,
na medida em que ele entrava no círculo do possível, como alguém que parti-
cipa da loteria, alegra-se, mas não se surpreende com o prêmio ganho.

18. L. N. Tolstói, Obras Reunidas, em 22 vols., Moscou, 1979, vol. 4, p. 314.

96
A Dama de Espadas e o Tema das Cartas e do Carteado...

A possibilidade de um favor extra-regulamentar, existente em cada elo da


hierarquia do serviço, é coroada por um fenômeno bastante característico dos
governantes russos do século XVIII, qual seja, o favoritismo. Este fenômeno, do
ponto de vista da norma governamental fortalecida por leis, manifesta-se como
uma transgressão. E é justamente a partir dessas posições que será submetida
à crítica por parte dos constitucionalistas russos do século XVIII. No entanto,
descrita “de seu interior”, revela um sistema nítido. Púchkin tinha todos os
fundamentos para constatar que: “A própria sensualidade desta mulher esperta
[Catarina II – Iú. Lotman] consolidava o seu poderio” (XI, 15).
A penetração das regras do favoritismo na esfera de atividade do Estado era
aí percebida como uma transgressão de toda espécie de regras, o domínio do
imprevisível, do “acaso”. Na mesma observação, Púchkin escrevia mais adiante:
“não eram necessários nem a inteligência, nem o mérito, nem o talento para
conseguir um lugar secundário no governo” (XI, 15). Num breve, mas bastante
perspicaz prefácio à publicação das cartas de Catarina II ao conde P. V. Zavodó-
vski, Ia. L. Barskov escrevia que o favoritismo na Rússia distinguia-se bastante
de um fenômeno análogo em outros governos europeus. Era “uma instituição
sui generis, com um círculo de negócios amplo, ainda que inconstante, com um
orçamento enorme, ainda que indeterminado”. Confirmando que “a corrupção
era um índice secundário do favoritismo e este último, do ponto de vista moral,
uma manifestação particular da decadência geral dos costumes, seu ‘fruto’, e não
‘raiz’ ”19, Ia. L. Barskov aponta a essência do favoritismo como uma instituição
governamental da monarquia absoluta.
A intersecção desses arranjos no destino de um determinado indivíduo
apresenta-se para os contemporâneos, os participantes vivos da época, como
a supremacia do Acaso. É assim que surge a imagem da vida política como
uma cadeia de casualidades, que inevitavelmente trazem à lembrança o jogo
de cartas, o qual se manifesta aqui como um modelo natural deste aspecto da
existência. Defrontamo-nos com tal cenário, o de um “faraó” universal, na ode
de Derjávin, “À sorte” (1789):

Nestes dias, quando tudo, em toda parte, é orgia:


A política e a justiça,
A razão, a consciência e a Santa Escritura,
E a lógica banqueteiam-se em festins,
Colocam em jogo o século de ouro,

19. Русский Исторический Журнал, Кн. 5 (Revista Russa de História, 1918, Livro 5), p.
223.

97
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Apostam20 com os destinos dos mortais,


Dobram o Universo no trent’il va;
Quando os pólos, os meridianos,
As ciências, as musas, os deuses – embriagados,
Só fazem pular, dançar e cantar...

O processo de enriquecimento também representava para os contemporâ-


neos uma transição igualmente brusca, sem motivação interna. Fortunas imen-
sas eram feitas da noite para o dia, ao sabor das alterações bruscas da sorte, em
esferas muito distantes da economia. De acordo com os dados de Kaster, os Orlov
receberam da imperatriz 17 milhões de rublos; Vassíltchikov – 1 milhão e 100
mil; Potiômkin – 50 milhões; Zavodóvski – 1 milhão e 380 mil; Zórin – 1 milhão
e 420 mil; Lánskoi – 7 milhões e 260 mil; os irmãos Zubov – 3 milhões e 500 mil.
Ao todo, de acordo com os seus dados, durante os anos do reinado de Catarina
II foram concedidos 92 milhões e 500 mil rublos aos diferentes favoritos. A isso
devem-se acrescentar os favores concedidos aos parentes destes, os presentes dos
próprios favoritos, os arrendamentos e outros meios de enriquecimento fácil.
Púchkin registrou a conversa de N. K. Zagriájskaia: “Potiômkin, ao me visitar,
disse-me certa vez: ‘Natália Kirílovna, você quer umas terras?’ – Que terras? – ‘Eu
tenho algumas, lá na Criméia.’ – Por que eu iria aceitar as tuas terras? – ‘Obvia-
mente, é a imperatriz quem vai presentear; eu apenas vou falar com ela.’ – Pois
vejam só [...] Passa-se um ano; trazem-me 80 rublos. ‘De onde vem isso, pai-
zinho?’ – ‘Das vossas terras novas, onde correm os rebanhos; e por conta disso
aqui está o seu dinheiro’. [...] Naquela época Kotchubei pedira Macha em casa-
mento. Então, eu disse a ele: ‘Kotchubei, fique com as minhas terras da Criméia,
elas só me causam preocupação’. Pois bem. Mais tarde estas terras renderam a
Kotchubei um lucro de 50.000. Eu fiquei muito contente” (XII, 176). Grandes
fortunas, acumuladas nessas ou naquelas mãos, raramente eram conservadas
pelos descendentes diretos por um tempo superior ao de duas gerações. Esta
caprichosa transferência de riquezas fazia lembrar inevitavelmente a transferên-
cia do ouro e das cédulas no feltro verde durante o carteado. E se a ação das leis
da economia, do cálculo, dos esforços de produção para obter riquezas estava
associada ao jogo de cálculo, no qual o cômputo e a habilidade constituíam o
caminho para o ganho, então os enriquecimentos repentinos e ilícitos (e justa-
mente tais ponderações eram características do próprio conceito de riqueza dos

20. Puntíruiut; pontíruiut; trent’il va é uma aposta aumentada em trinta vezes. [No ver-
so em questão aparece a palavra puntíruiut, que seria uma variante de pontíruiut. O verbo
pontírovat significa, no jogo de cartas, fazer apostas contra a banca. (N. da T.)]

98
A Dama de Espadas e o Tema das Cartas e do Carteado...

nobres: não é por acaso que o “comprador” Tchítchikov21, que desde a infância
tinha aprendido a poupar os copeques, não se torna um industrial mas, sim, um
trapaceiro – ansioso por um enriquecimento repentino e ilícito), decorrentes
da banca ou do stuss, eram tidos como análogos.
Porém não apenas tais esferas da vida – o serviço militar e o dinheiro –
submetiam-se à lei da não-motivação, do inesperado, que transformava a cadeia
dos acontecimentos não no desenvolvimento de uma certa estrutura com um
excedente que se acumulava, mas numa sucessão de excessos interindepen-
dentes. Tchaadáev percebia nisto algo mais geral: “É próprio do homem ficar
desorien­tado quando não encontra um meio de estabelecer relações com aquilo
que o precede, e com aquilo que a ele se segue. Priva-se, então, de toda firmeza,
de toda certeza. Uma vez que não é orientado pelo sentimento da continuidade
[o grifo é meu. – Iú. Lotman], ele se vê perdido no mundo. Indivíduos assim
desnorteados encontram-se em todos os países; entre nós, esta é uma caracte-
rística geral. [...] Nas nossas cabeças não existe decididamente nada em comum;
tudo nelas é individual e tudo é precário e deficiente”22.
Ao tentar compreender a cultura da nobreza “do período petersburguês”
desta forma, os contemporâneos com freqüência justificaram-na pela firmeza do
rompimento com a tradição da cultura russa, o qual sobreveio como resultado
das reformas do começo do século XVIII. Pode-se arriscar a suposição de que
o motivo se ocultava num fenômeno diretamente oposto: no fato de toda uma
série de estruturas sociais – em primeiro lugar, sociopolíticas – ter se revelado
extraordinariamente constante. Como resultado da reforma, exacerbou-se in-
tensamente o poliglotismo cultural. Em conseqüência, surgiu, de um lado, uma
semioticidade exacerbada da cultura do século XVIII na Rússia e, de outro, o
seu caráter de não muitas vozes – porém dissonantes – que se revelava para os
contemporâneos sob a forma de um todo contraditório, modelado nos níveis
superiores da vida, com a ajuda de modelos nítidos e compreensíveis, mas
que, na vida real, apresentava as feições do caos, do triunfo das casualidades,
cuja imagem constitui o mundo do jogo de azar das cartas. A teoria raciona-
lista (“Voltaire ou Descartes”) e o baralho nas mãos do banqueiro são uma
forma dúplice que, precisamente por sua intercorrelação, abrange, de acordo
com a fórmula de Liérmontov, a totalidade da vida russa da época, desde as
teorias lógicas da razão até o jogo com os Fatores Desconhecidos da vida real.


21. Protagonista do romance Almas Mortas de N. Gógol (N. da T.).
22. P. Ia. Tchaadáev, Сочинения и Письма в 2 томах (Obras e Correspondência em 2
volumes), Moscou, 1914, vol. 1, pp. 114-115.

99
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Desse modo, o jogo de azar era percebido como um modelo tanto do mun-
do social como do universo. De um lado, conforme já observou, isso era de-
terminado pelo fato de alguns aspectos desses mundos serem compreendidos
como análogos ao jogo de cartas. No entanto, originava-se também uma ana-
logia de sentido contrário: ao tornar-se uma língua, para a qual se traduziam
diversos fenômenos do mundo exterior a ela, o carteado exercia uma influência
mode­lizante ativa na representação do próprio objeto. Sobre a influência mo-
delizante do léxico desta língua, que dividia a imagem de mundo criada em
unidades, V. V. Vinográdov escreveu de maneira incisiva: “É característica de
todo jargão uma dualidade de planos de sentido de um sistema de concepção
do mundo. A linguagem do jargão personifica em si a realidade, a estrutura
de seu mundo profissional, sob a forma de uma correlação irônica, de um
confronto seu com a cultura e os costumes do ambiente social. No entanto,
também, inversamente, ela detecta os princípios gerais da vida, até mesmo os
fundamentos de uma ordem mundial nas formas simbólicas interiores dos
processos de produção e de seus instrumentos, de seus acessórios, que pre-
enchem a noção de jargão. Em essência, são dois lados de um único processo
de representação simbólica do mundo, através do prisma de uma ideologia
profissional que, às vezes, se contrapõe de maneira polêmica às normas da visão
de mundo daquela ‘sociedade’, ou daquelas suas classes que se aproveitam da
posição dominante no governo”23.
A situação do faraó – antes de tudo – é a situação de um duelo: modeliza-se
o conflito de dois adversários. Contudo, na própria essência deste modelo leva-
-se em conta a sua desigualdade: o apostador – aquele que deseja ganhar tudo,
embora com isto se arrisque a perder tudo – comporta-se como alguém obri-
gado a tomar decisões importantes, sem possuir a informação necessária para
isto; ele pode atuar a esmo, pode fazer conjecturas, tentando deduzir certas leis
estatísticas (sabe-se que na biblioteca de Púchkin havia livros sobre a teoria da
probabilidade, o que, pelo visto, se relacionava às suas tentativas de estabelecer
uma estratégia preferencial como apostador). O banqueiro, por sua vez, não
elege nenhuma estratégia. Além do mais, certamente, aquele que está bancan-
do não sabe qual será o arranjo das cartas. Representa uma espécie de títere nas
mãos dos Fatores Desconhecidos que se encontram por trás dele. Tal modelo
por si só já ocultava determinadas interpretações dos conflitos da vida. O jogo

23. V. V. Vinográdov, “Стиль ‘Пиковой Дамы’” // О Языке художественной Прозы


(“O estilo de ‘A Dama de Espadas’ ”, in A Língua da Prosa Literária), Moscou, 1980, pp. 198-
199.

100
A Dama de Espadas e o Tema das Cartas e do Carteado...

tornava-se um confronto com uma força poderosa e irracional, percebida amiú­-


de como demo­níaca:­

[...] são artes do demônio [...]


neste jogo sem sentido24.

A sensação do absurdo da conduta do “banqueiro” constituía uma particu-


laridade importante da consciência livre-pensadora do século XVIII-começo
do XIX. Púchkin, ao ficar sabendo do falecimento do filhinho de Viázemski,
escreveu para o príncipe Piotr Andréievitch: “O destino não pára de lhe pregar
peças. Não se zangue com ele, pois não sabe o que faz. Imagine-o como um
enorme macaco a quem foi dada total liberdade. Quem vai acorrentá-lo? Não
será você, nem eu, nem ninguém” (XIII, 278). Porém, justamente este absurdo,
a não-previsibilidade da estratégia do adversário, obrigava a perceber em sua
conduta um traço de zombaria, o que facilmente permitia atribuir uma natureza
infernal aos Fatores Desconhecidos.
Desta maneira é modelizado o adversário. Observe-se que o modelo do tipo
“faraó” é orientado: qualquer um que opere com ele pode-se colocar num único
lugar – o do apostador – pois o lugar do banqueiro se concede, na maioria das
vezes, à terceira pessoa; como exemplo de raras exceções temos Sílvio, em O
Tiro, o que é perfeitamente explicável, na medida em que ele desempenha o
papel do “homem fatal”, representante do destino, e não o seu joguete. É sig-
nificativo que na cena do jogo de cartas ele se apresente como o dono da casa
(o banqueiro, tanto na vida cotidiana como na literatura, é sempre o dono do
recinto, onde tem lugar o jogo – enquanto que o herói do enredo, via de regra,
é o hóspede). Dólokhov, também, ao jogar com Nicolai Rostov, se reconhece
como o “homem fatal” romântico.
O faraó modeliza também o seu universo próprio. Antes de mais nada, ele é
assinalado por uma fragmentação máxima (assim como qualquer modelização
dos fenômenos da vida com a ajuda da língua): uma unidade se destaca – “a
parada” – situada entre o “começo” e o “fim” da ação, sendo que o primeiro é
assinalado pela transição de uma situação plana e sem importância (o nada,
do ponto de vista do Jogo) para ações que visam a uma melhoria abrupta do
seu status (o ganho). A condição psicológica do herói nesse ponto do enredo
baseia-se na esperança. O momento do encerramento é assinalado pela destrui-
ção final (a perda, que nunca é nem parcial, nem muito significativa, mas acar-

24. M. Tsvetáieva, Сочинения в 2 томах (Obras em 2 volumes), Moscou, 1980, vol. 1, p.


369.

101
Caderno de Literatura e Cultura Russa

reta a ruína ou a loucura do personagem) ou pela vitória, que também possui


um caráter escatológico.
Entre essas duas fronteiras o texto também não é contínuo; ele se divide
em situações-signos isoladas, indivisíveis: as cartas – e os intervalos entre elas.
Além disso, na medida em que cada carta tem um certo significado num outro
sistema – o da adivinhação – a alternância das cartas distribuídas organiza uma
espécie de narrativa que, tanto por seus significados (“uma longa estrada”, “a casa
do tesouro” etc.) como pela desconexão dos episódios, faz lembrar o romance
picaresco. Seria possível mostrar um evidente paralelismo de composição do
romance picaresco com o modelo constituído por elementos das cartas de
adivinhar e com a parada do faraó.
A essência do objeto no texto é dupla: pode apresentar-se em sua realidade
cotidiana, constituindo um elemento entre tantos outros, e pode tornar-se um
signo de determinados significados culturais. Se, com isso, um dado significado
for motivado pela natureza do próprio objeto, por seu arranjo ou função, aos
fenômenos que ela designa será atribuído um arranjo, ou função análoga – ele
vai manifestar-se no papel de modelo deles. A essência desses fenômenos é inter-
pretada por analogia com um dado elemento mencionado no texto. É justamente
este modelo-objeto-signo que se torna o tema do enredo. Além disto, ele pode
manifestar uma influência do enredo quer sobre os episódios circunvizinhos,
destacando-se na qualidade de tema local, quer sobre o enredo como tal.
A habilidade do faraó de se tornar tema de um enredo, tanto de significado
local como geral, determinou a especificidade de seu aproveitamento no texto.
A exegese da composição do romance picaresco ou, em geral, do romance rico
em alternância de episódios variados, como as paradas do faraó, por um lado
conferia ao jogo de cartas o caráter de uma unidade composicional, por outro,
porém, obrigava a ressaltar na vida a desagregação, a sua fragmentação em
episó­dios isolados, pouco ligados entre si – “uma reunião de capítulos varie-
­gados”.

E, pouco a pouco, ele mergulha


Num torpor dos sentidos e da mente,
Enquanto a Imaginação, à sua frente,
Desvenda seu variegado faraó.
Ora ele vê: na neve semiderretida,
Imóvel, como que adormecido,
Um jovem jaz exangue num abrigo,
E ouve uma voz: então? está morto.
Ora ele vê inimigos desprezíveis,

102
A Dama de Espadas e o Tema das Cartas e do Carteado...

Caluniadores, e covardes cruéis,


E um bando de mulheres infiéis,
E um círculo de companheiros vis... (VI, 183-184)

Comparar também a imitação:

[...] da prisão, das viagens em cavalos de posta


Um variegado e traiçoeiro faraó...
                 (Vs. Rojdéstvenski, Manon Lescaut)

Os contrastes da sociedade burguesa, o conflito entre a pobreza e a riqueza


e o poder do dinheiro se tornam uma das esferas motrizes dos enredos de toda
a literatura européia dos anos 1830-1840. Na literatura russa, esta problemática
ora é associada ao material do Ocidente europeu (O Cavaleiro Avaro, Maria
Schoning25, Cenas dos Tempos da Cavalaria etc.) ora à realidade russa. Cada
uma destas espécies de enredo possui sua especificidade própria: o material do
Ocidente europeu, na maioria das vezes, vai estimular o interesse do escritor
pelos enredos históricos, e o russo – pelos contemporâneos –,­até ocorrer uma
confluência perfeita do tempo do enredo e do leitor. Contudo, existe um outro
fator ainda mais importante: os enredos do primeiro tipo são consagrados
ao predeterminado, os segundos – ao casual; os primeiros revelam a essência
ima­nente “do século do dinheiro”, os segundos, os excessos gerados por este. O
con­fronto entre pai e filho, as mortes no cadafalso das inocentes Maria Scho-
ning e Anna Harlin decorrem inevitavelmente do mecanismo de dominação
do dinheiro sobre o homem. Nos enredos extraídos da realidade russa, entre as
causas sociais e as conseqüências dos enredos, foi introduzido mais um elo – o
acaso, “os acontecimentos que podem ou não ocorrer como resultado de um
experimento realizado”26. Não é à toa que a partir de Púchkin e de Gógol surge
uma tradição, que associa, justamente nos enredos russos, a idéia do enriqueci-
mento com as cartas (desde A Dama de Espadas até O Jogador, de Dostoiévski)
ou com os negócios escusos (desde Tchítchikov até Kretchínski). Observe-se
que o “cavaleiro do dinheiro” – o Barão de O Cavaleiro Avaro – ressalta, no
enriquecimento, a duração longa, o aspecto gradual e os esforços orientados
para um objetivo de cunho econômico:

25. Entre os papéis deixados por Púchkin foi encontrado um breve relato sobre as trági-
cas vidas de Maria Schoning e Anna Harlin que, mesmo sendo inocentes, foram julgadas em
Nuremberg em 1787 e condenadas à execução na forca. (N. da T.)
26. A. M. Iáglom e I. M. Iáglom, Вероятность и Информация (Probabilidade e Informa-
ção), Moscou, 19733, pp. 21-22.

103
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Assim, trazendo um frugal punhado,


Tributo meu usual, aqui ao subterrâneo,
Ergui o meu outeiro... (VII, 110)

Aqui temos um doublon antigo... ei-lo.


Um dia desses uma viúva deu-mo... (VII, 111)

E este? Este quem me trouxe foi Tibault... (VII, 111)

Entretanto, na conduta de Hermann, quando este se tornou um jogador,


domina a aspiração a um enriquecimento momentâneo e não economicamente
condicionado: “[...] quando o sono se apossou dele, sonhou com cartas, uma
mesa verde, maços de cédulas e pilhas de moedas de ouro. Jogava uma carta
após outra, dobrava decididamente as paradas, ganhava sem cessar, puxava
para si o ouro e punha as cédulas no bolso” (p. 182)27. O aparecimento e o
desaparecimento momentâneo “da riqueza fantástica” (p. 182) também ca-
racteriza Tchítchikov. Além disso, se em Hermann o cálculo e o entusiasmo
entram em disputa, em Tchítchikov triunfa o cálculo, enquanto em Kretchínski
o entusias­mo prevalece (comparar as palavras de Fiódor: “E quando a gente
vivia em Petersburgo – Senhor, Deus meu! – quanto dinheiro havia! que joga-
tina rolava!... E não é que a vida toda foi sempre assim: dinheiro – para ele era
como se fosse palha, uma lenha qualquer. Já na universidade farreava à beça,
mas quando saiu da universidade, aí foi um não acabar mais de farras, feito um
turbilhão! Os conhecidos, os condes, os príncipes, as amizades, as bebedeiras, o
carteado”28 (comparar com o rebaixamento paródico nas palavras de Raspliúiev:
“O dinheiro... as cartas... o destino... a sorte... um pesadelo ruim, terrível!”29).
Em sentido oposto a esta tradição, terá lugar a transformação do “alemão rus-
sificado” Hermann num outro “alemão russificado” – Andrei Schtoltz.
Não seria oportuno examinar aqui a colisão dos enredos de A Dama de
Espadas em toda a sua complexidade, sobretudo porque esta questão tornou-
-se objeto de análise recorrente30. Pode-se concordar com uma série de pesqui-

27. As citações e respectiva paginação referem-se à tradução brasileira de A Dama de Es-


padas, realizada por Boris Schnaiderman, em A Dama de Espadas: Prosa e Poemas (tradução
de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher), São Paulo, Editora 34, 1999, pp. 169-204 (N. da T.).
28. A. V. Sukhovó-Kobýlin, Картины Прошедшего (Cenas do Passado), Leningrado,
1989, p. 29.
29. Idem, p. 30.
30. Cf., por exemplo: G. A. Gukóvski, Пушкин и Проблемы Реалистического Стиля
(Púchkin e os Problemas do Estilo Realista), Moscou, 1957, pp. 337-365; V. V. Vinográdov, “Стиль
‘Пиковой Дамы’” // О Языке художественной Прозы (“O estilo de ‘A Dama de Espadas’ ”,

104
A Dama de Espadas e o Tema das Cartas e do Carteado...

sadores que perceberam no conflito de Hermann e da velha condessa um con-


flito de épocas (as décadas de 1770 e 1830); ou seja, a época dos “pastores de
porcelana, relógios de mesa fabricados pelo famoso Leroy, caixinhas, carretéis
de fitas, leques e toda a sorte de brinquedos de senhora”, inventados no século
XVIII, “a par do balão de Montgolfier e do magnetismo de Mesmer” (p. 187) –
e o século do dinheiro. Pode-se assinalar que para a construção deste conflito
histórico foi escolhida, como língua do enredo, a colisão de duas gerações, da
mesma forma que em O Cavaleiro Avaro ou em Para o Grão-senhor; através
desta colisão de enredos, seria possível distinguir o antigo arquétipo da luta
do pai com o filho31.

in A Língua da Prosa Literária); Idem, Стиль Пушкина (O Estilo de Púchkin), Moscou, 1941;
A. I. Slonímski, “О композиции ‘Пиковой Дамы’” // Пушкинский Сб. Памяти Проф. С.
А. Венгерова (“Sobre a composição de ‘A Dama de Espadas’”, in Coletânea de Púchkin em Me-
mória do Prof. S. A. Venguerov), Moscou/Petrogrado, 1922, pp. 171-180); (Пушкинист, t. 4) (O
Puchkinista, vol. 4). Uma problemática geral de A Dama de Espadas é também examinada nos
trabalhos de D. Iakubóvitch, “Литературный фон ‘Пиковой Дамы’” // Лит. Современник
(“Fundo Literário de ‘A Dama de Espadas’”, in Periódico Literário), n. 1, 1935; N. O. Lerner,
“История ‘Пиковой Дамы’” // Рассказы о Пушкине (“A História de ‘A Dama de Espadas’”,
in Relatos sobre Púchkin), Leningrado, 1929; L. S. Sidiakov, Художественная Проза А. С.
Пушкина (A Prosa Literária de A. S. Púchkin), Riga, 1973, cap. 5 (aqui é apresentada uma aná-
lise penetrante da estrutura literária da novela; cf., em particular, a análise da alternância dos
pontos de vista e da estrutura complexa da imagem do autor (pp. 115-121), assim como uma
bibliografia sumária (p. 124)). Aproveito o ensejo para manifestar meu cordial agradecimento
a L. S. Sidiakov, que se prontificou gentilmente a examinar o original deste trabalho e emitiu
uma série de considerações valiosas a respeito.
31. A alusão à presença de uma possibilidade não realizada aparece no texto de A Dama de
Espadas onde, no momento em que Hermann cai desmaiado ao lado do ataúde da condessa,
“um camarista esquálido, parente próximo da morta, segredou no ouvido de um inglês ao seu
lado que o jovem oficial era filho ilegítimo da velha” (p. 97). V. V. Vinográdov observa com
perspicácia que o leitor dos anos 1830 percebia uma possibilidade não realizada de construção
do enredo, como um conflito que rompia as relações familiares: “A imagem do assassino invo-
luntário da mãe, a cena do duelo de cartas entre os irmãos – filhos bastardos da velha bruxa,
com um final de efeito, – a loucura de um deles, – eis o que seria produzido pelo ‘romance
de horror’ francês com base no material de A Dama de Espadas” (V. V. Vinográdov, O Estilo
de Púchkin, p. 587). A possibilidade de interpretar o enredo em confronto com a sua versão
para uma língua de tradição anterior pode ser rastreada até um arquétipo mitológico – cf.: “O
herói é aquele que enfrenta com ousadia o pai e no final das contas vence-o” (S. Freud, Moise
et le monothéisme. Paris, 1966, p. 13). Além disso, sempre a tradição anterior vai manifestar-
-se como uma língua, ao passo que a obra analisada, como um texto, que em parte pertence
a esta língua e em certo grau é decifrado com a ajuda desta; por outro lado, porém, ele surge
também como texto numa outra língua que requer a construção de um sistema especial
de decifração para ser compreendida. Antes de um dado texto gerar sua tradição, ele surge

105
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Todavia, isso não nos interessa agora, mas, sim, uma questão significativa-
mente mais específica: que influência exerceu, sobre um dado tipo de enredo,
aquela circunstância inevitavelmente histórica, porém tipologicamente casual,
de modo a se tornarem as cartas o mecanismo que movimenta o enredo.
O tema do jogo de cartas introduz no mecanismo do enredo, no elo contido
entre os desejos do herói e os resultados de suas ações, o acaso, o movimento
imprevisível dos acontecimentos. A casualidade se torna não apenas um me-
canismo do enredo, mas também um objeto das reflexões do herói e do autor.
O enredo começa a ser construído como uma aproximação do herói do seu
objetivo, após o que segue-se a catástrofe inesperada (“de repente – a loucura”,
em Gógol; ou o “Descarrilhou!!!” de Kretchínski, em Sukhovó-Kobýlin).
Em conseqüência do mecanismo do enredo instituído, surge como caracte-
rística do herói uma personalidade volitiva, a qual se precipita num movimento
browniano da vida ao redor, em direção ao objetivo que ele se impôs. Um qua-
dro de “probabilístico” do mundo, a noção de que o Acaso dirige a vida, abre
diante de um determinado indivíduo as possibilidades de um sucesso ilimi­
tado e separa nitidamente os homens em escravos passivos das circunstâncias
e “homens predestinados”, cuja personalidade na cultura européia da primeira
metade do século XIX associa-se invariavelmente a Napoleão. Esta característica
do herói exige que ao seu lado, no texto, encontre-se um personagem passivo,
em relação ao qual o herói revela suas características bonapartistas. Num outro
aspecto da construção do enredo, o herói vai estabelecer uma correlação com
o Jogo e com a força que conduz este jogo. Esta força – irracional pela própria
essência das relações do banqueiro e do apostador – facilmente será interpre-
tada como uma força infernal, que zomba do herói do tipo napoleônico e que
brinca com ele. Deste modo, determina-se a necessidade do enredo de uma
corrente de heróis (Lisa – Hermann – a velha condessa), que mais tarde, depois
de gerar uma determinada tradição na prosa russa, vai refletir-se numa série
de personagens: Sónia – Raskólnikov – a velha usurária32.

como texto único naquela língua, que ainda espera ser reconstruída com base nele. Trata-se de
outra questão se esta nova língua, como regra, já se manifestou numa antiga – na qualidade
de suas subestruturas extra-sistemáticas ou periféricas, que são imperceptíveis numa descrição
sincrônica e se evidenciam apenas à luz de uma perspectiva histórica.
32. O relacionamento Hermann velha condessa tem também um outro paralelo, um
tanto paródico, que foi observado ainda por Andriéi Biély: Tchítchikov Koróbotchk (cf.
Мастерство Гоголя (A Maestria de Gógol), Moscou/Leningrado, 1934, pp. 99-100); não
deixa de ser interessante que, no entender de Dostoiévski, não apenas Hermann participava na
produção da colisão “Raskólnikov–velha”, mas também Tchítchikov, a respeito de quem real-

106
A Dama de Espadas e o Tema das Cartas e do Carteado...

No entanto, essa questão torna-se mais complexa na medida em que a velha


condessa se apresenta, na novela de Púchkin, em duas funções distintas: como
vítima de Hermann e como representante daquelas forças com as quais Her-
mann faz o jogo: “Vim à tua casa contra a minha vontade...”, “tenho ordem...”
(p. 198).
A influência do tema das cartas no enredo de A Dama de Espadas revela-se
tanto no conflito do casual e do predeterminado, como na própria interpretação
da noção da casualidade. Hermann é um engenheiro de raciocínio preciso e
frio. Na consciência de Hermann o cálculo e o entusiasmo colidem. Todavia,
ele percebe a si mesmo como uma personalidade de inteligência desapaixona-
da, automatizada. Ele gostaria de banir o acaso do mundo e do seu destino.
Arrisca-se a sentar-se à mesa de pano verde tão-somente para um jogo que
dará certo. O aspecto ético das ações não o perturba. Ele expõe seu credo, já
na primeira página da novela, numa frase, admirável pelo rigor da lógica, pela
expressão exata e pelo estilo absolutamente neutro, que sobressaem nitidamente
em contraste com as falas expressivas dos outros jogadores: “O jogo me inte-
ressa muito – disse Hermann – mas sou incapaz de sacrificar o indispensável,
na esperança de conseguir o supérfluo” (p. 170). “Cálculo, moderação e ope-
rosidade: eis as minhas três cartas seguras” – ele reflete mais adiante (p. 181).
O cálculo aparece em primeiro lugar. Hermann não somente não arrisca a ter
esperança no acaso, ele nega a própria existência deste: “Puro acaso! – disse um
dos convivas. – Balelas! – observou Hermann” (p. 172).
Púchkin salienta que a cabeça de Hermann permanece fria mesmo num
momento de tensão exacerbada das paixões e da fantasia. Assim, após a visita
que lhe faz a aparição, ele “voltou para o quarto, acendeu a vela e tomou nota
da sua visão” (p. 198). Após o primeiro ganho, que era não apenas a realização
de um sonho de riqueza, mas também a evidência da realidade dos fenômenos
sobrenaturais, na medida em que significava que o segredo das três cartas real-
mente existia e que a aparição da velha não havia sido uma alucinação de uma
imaginação exaltada, “Hermann tomou um copo de limonada e foi para casa”
(p. 202). Hermann nasceu para um duelo de tal ordem com o destino, no qual
serão úteis seu raciocínio frio e cálculo férreo –, para um embate intelectual

­ ente dizem que ele é “Napoleão disfarçado” (N. V. Gógol, Obras Completas em 14 vols.,
m
Moscou, 1951, vol. 6, p. 205). Cf.: Hermann tem “perfil de Napoleão”, e Tchítchikov, “se ele se
virasse e ficasse de lado, lembrava muito o retrato de Napoleão” (idem, p. 206 [Na tradução de
Tatiana Belinky, São Paulo, Abril, 1972, p. 245 (N. da T.)]. Um possível registro inconsciente
das imagens de Almas Mortas é ilustrado pela alcunha “o chapeleiro alemão”, que um bêbado
atribui a Raskólnikov no início do romance e que perifraseia “o calceiro alemão” (bem como
“Bonaparte” – nome que o cocheiro Selifan dá ao cavalo em Almas Mortas).

107
Caderno de Literatura e Cultura Russa

com o mundo. Não por acaso ao lado do motivo do cálculo um outro motivo
percorre a novela – o do jogo de cálculo: afinal o duelo de Hermann e Tcheká­
linski é acompanhado pela representação paralela de um jogo de outro tipo,
que se desenrola no aposento vizinho: “Alguns generais e conselheiros privados
jogavam uíste” (primeiro dia do jogo de Hermann); “Os generais e os conse-
lheiros privados deixaram o seu uíste, a fim de apreciar um jogo tão extraor-
dinário” (terceiro dia) – (pp. 200, 202). Diante disso, é evidente que o uíste – o
qual ainda em Strákhov consta como um jogo “ao serviço de homens sérios,­
respeitáveis” – não é um meio de enriquecimento rápido e desmotivado. Mas
Hermann – homem de dupla natureza, um alemão russificado, de raciocínio
frio e imaginação exaltada – tem sede de um enriquecimento repentino. Isso
o obriga a ingressar numa esfera que lhe é estranha: do Acaso.
Em 1869, A. Sukhovó-Kobýlin exprimiu sua zombaria a respeito da crença na
racionalidade do mundo, na epígrafe que colocou à frente de sua trilogia: “Wer
die Natur mit Vernunft ansieht, den sieht sie auch vernünftig an. Hegel, Logik.
Tal voz, tal eco. Tradução russa”. Hermann, que aspirava olhar para o mundo
mit Vernunft, é forçado a atuar nas condições de um mundo da casualidade,
da probabilidade, o qual para um determinado indivíduo, que observa apenas
os fragmentos não significativos de processos isolados, aparenta ser caó­tico.
A necessidade de eleger uma tática efetiva, nas condições de um mundo que
dá uma informação demasiado insignificante a seu respeito (e justamente
por isso é modelizado pelo faraó), obriga Hermann a lançar-se às crendices
(“Possuindo pouca fé autêntica, tinha, porém, muitas superstições”, p. 196).
Nesse sentido, V. V. Vinográdov apontou com perspicácia para a equivalência
dos enredos construídos com base na penetração matemática ou mística no
segredo da “carta certa”. Tanto a matemática como a cabalística apresentam-se
aqui numa função única – como um meio de banir o Acaso do seu próprio
domínio. A aspiração de “encontrar fórmulas matemáticas rígidas e leis para
os casos em que ocorre o ganho, de livrar o jogo do poder do acaso e da casua­
lidade” representava num sistema geral o mesmo papel que “uma atitude mís-
tica em relação às cartas que possibilitam o ganho”33.

33. V. V. Vinográdov, “O Estilo de ‘A Dama de Espadas’ ”, in A Língua da Prosa Literária,


pp. 87 e 88.
A tendência do homem, que perdeu a fé na racionalidade de uma organização do mundo,
de amaldiçoar o Caos circundante e submetê-lo a si pode dar impulso tanto à magia como à
investigação científica. Não por acaso o embate do homem com a irracionalidade imprevisível
que lhe cabe no ganha-perde nos jogos de azar, por um lado fez das cartas e dos dados, os
acessórios da adivinhação, da feitiçaria e das atividades mágicas, desde os tempos mais anti-

108
A Dama de Espadas e o Tema das Cartas e do Carteado...

Contudo, se o faraó se torna o modelo ideal de uma situação conflitante


“homem-mundo externo”, fica evidente que a probabilidade de ganho das partes
é distinta. Possuindo uma inesgotável reserva de tempo e uma possibilidade
ilimitada de recomeçar o jogo, o mundo externo inevitavelmente vence cada
indivíduo em particular. Naquele instante em que Hermann tem a impressão
de estar fazendo o jogo (além disso, para valer), acontece de estarem fazendo o
jogo com ele. Isso é acentuado pela complexa estrutura do enredo. Na primeira
parte dos capítulos, Hermann conduz o jogo com os parceiros que se encontram
em seu poder (Lisa, a velha condessa na cena do quarto de dormir). Lisa acha
que estão jogando um jogo com ela (a palavra “jogo” aqui não denota abso-
lutamente o grau de sinceridade dos sentimentos, mas a identificação de um
tipo de comportamento e a escolha de seu sistema de retribuição das ações) – o
amor. Hermann realmente imita este tipo de comportamento, reproduzindo
cuidadosamente o ritual de “assédio do coração” confirmado pela tradição
literária, ao permanecer sob a janela, ao escrever as cartas de amor etc. A ga-
rantia do sucesso de Hermann consiste no fato de ele estar fazendo um jogo
completamente diferente, cuja essência e cujas regras permanecem incompreen­
síveis para Lisa até o último instante. Com isso, ele a transforma de parceira em
instrumento. A situação no quarto de dormir da condessa é mais complexa:
Hermann, neste caso também, tenta oferecer ao interlocutor um lance falso –
uma parceria no conjunto dos jogos: ele se prontifica de antemão a tornar-se
amante da velha, apela para “os sentimentos de esposa, amante, mãe”, sabendo
de antemão que ele próprio, na realidade, fará um jogo totalmente diferente
– a luta pelo seu enriquecimento, em que a condessa deverá apresentar-se na
qualidade de instrumento, e não de parceira34. No entanto, a velha condessa –
que um instante antes da chegada de Hermann “estava sentada, toda amarela,
movendo os lábios pendidos e balançando-se para a direita e para a esquerda”
(p. 188 [o grifo é meu – Iu. L.]) – já não é apenas uma pessoa, mas também

gos, e, por outro, serviu de estímulo ao desenvolvimento das teorias matemáticas. Vide o arti-
go extremamente interessante de L. E. Maisterov, “A função dos jogos de azar na origem da
teoria das probabilidades” (Acta Universitatis Debreceniensis, Debrecen, 1962, vol. 7/2, pp.
1-24). Púchkin mostrou à risca na imagem de Hermann a congruência na psique do indivíduo,
colocado diante do Acaso, de um racionalismo exacerbado e de uma superstição igualmente
exacerbada.
34. A propósito, é justamente nisto que Púchkin via a essência do “bonapartismo”:
Todos nos damos ares de Napoleões;
Bípedes canalhas aos milhões
Para nós existe uma só arma... (VI, 37).

109
Caderno de Literatura e Cultura Russa

uma carta, um instrumento, não no jogo de Hermann, porém no de um outro


alguém, onde o próprio Hermann há de se ver como um joguete.
Hermann empenha-se em transferir a situação do modelo de seu relaciona-
mento com Lisa para o pano verde: ele imita o risco do jogo do faraó, mas na
verdade joga a sério. No entanto, na realidade ele mesmo encontra-se na posi-
ção de Lisa – alguém que ignora o jogo que o mundo está fazendo com ele. O
fantástico aqui não é a “coisa em si” (o testemunho da crença ingênua do autor
na intromissão espontânea das forças sobrenaturais na realidade), mas o signo:
como seu significado, pode manifestar-se qualquer força: histórica, econômica,
psicológica, ou mística – irracional, do ponto de vista do “cálculo, moderação
e operosidade” como programa de conduta de um determinado indivíduo. A
isto não se contrapõe a própria zombaria daquelas forças que Hermann pen-
sou superar (a piscadela da velha): pois do ponto de vista de Evguêni, em O
Cavaleiro de Bronze, pode-se interpretar a inundação de Petersburgo como uma
“zombaria do céu em relação à terra”.
Na época em que Púchkin trabalhava em A Dama de Espadas, o seu interesse
com referência ao papel do acaso já possuía uma longa história. Tinham sido
renegadas não só as representações românticas sobre o papel determinante
do livre-arbítrio e do acaso na marcha dos acontecimentos históricos35, como
também um determinismo histórico extremado, que foi por ele contraposto
nos primeiros tempos, e que levou a diferentes formas e graus de “conciliação
com a realidade”. No pensamento complexo e do ponto de vista filosófico amplo
de Púchkin dos anos 1830, o “acaso” deixou de ser tão-somente sinônimo do
caos, e o “predeterminado” – da ordem. Púchkin reiteradamente contrapôs a
ordem morta, inflexível, à casualidade, como “morte-vida”. Para ele, a entropia
surgia não apenas sob a forma de uma completa desorganização, mas também
como uma superordem rigorosa. Isso deu origem à consideração pela antítese
do morto-vivo, do imóvel-móvel, assim como do previsível-imprevisível, que

35. Dos múltiplos exemplos de interpretação romântica deste problema vamos nos referir
às palavras de A. A. Bestújev, mantidas nas declarações de G. S. Bátenkov. Após o assassinato
de Nastássia Mínkina, em um dos almoços literários, “a mesa inteira comentava as mudanças
que poderiam seguir-se em conseqüência da renúncia do conde Araktchéiev. A. Bestújev dis-
se, na ocasião, que a conduta decidida de uma jovem rapariga produzira uma mudança tão
importante no destino de 50 milhões. Após o almoço começaram a falar que no nosso meio
desapareceram completamente as grandes personalidades e os homens de iniciativa” (citado por
G. S. Bátenkov, I. I. Púchkin; E. G. Toll, Cartas, Moscou, 1936, p. 215). Na verdade, foi de uma
polêmica com essas idéias que surgiu o projeto de O Conde Núlin (cf. B. M. Éikhenbaum, “О
замысле ‘Графа Нулина’”// Пушкин Временник Пушкинской Комиссии (“Sobre o projeto
de ‘O Conde Núlin’”, in Periódico da Comissão de Púchkin), Moscou/Leningrado, 19373).

110
A Dama de Espadas e o Tema das Cartas e do Carteado...

foi tão bem deslindada por R. O. Jakobson no estudo do elemento temático da


estátua e do motivo de sua vivificação36.
Por esta razão, também, torna-se claro o significado de um outro tratamen-
to – apologético – do acaso, como um meio de intensificação da flexibilidade
interna do mecanismo social, da introdução nele da imprevisibilidade. Ao re-
fletir sobre os caminhos do pensamento humano, Púchkin concedeu ao acaso
um lugar ao lado dos três mais importantes fatores do progresso deste:

Ó quantas descobertas admiráveis


Preparam-nos o espírito das luzes
E o Gênio, amigo (dos paradoxos),
E a experiência, (filha) dos árduos erros,
[E o acaso, o deus inventor!] (III, 1060)37

Nas variantes anteriores da última linha:

E o Acaso, amigo [I slútchai, drug]38


E o Acaso, guia – [I slútchai, vójd] (III, 1059)

pode-se adivinhar, em linhas gerais, o caráter de algo inacabado, na medida


em que o seu desenho rítmico, aparentemente, deveria apresentar-se como:

U ´U ´U ´U ´U

ou:

U ´U ´U U ´U

Gramaticalmente, porém, a continuação deveria conter um grupo de de-


terminação (do tipo: “amigo de novos conhecimentos”) ou um aposto (do

36. R. O. Jakobson, “Статуя в поэтической мифологии Пушкина” // Работы по Поэтике


(“A estátua na mitologia poética de Púchkin”, in Trabalhos de Poética), Moscou, 1987.
37. Cf. as palavras de S. I. Vavílov sobre o fato de que o fragmento citado “é testemunho
da percepção arguta de Púchkin a respeito dos métodos de criação científica” (А. С. Пушкин,
1799-1949: Материалы Юбилейных Торжеств) (A. S. Púchkin, 1799-1949: Materiais das
Comemorações do Jubileu), Moscou/Leningrado, 1951, p. 33); sobre o estudo deste fragmento
em conexão com o problema da ciência e em relação a A Dama de Espadas, cf. M. P. Alekséiev,
Пушкин: Сравн. Ист. Исследования (Púchkin: Pesquisas de História Comparada), Leningrado,
1972, pp. 80, 95-109.
38. Procedeu-se à transliteração dos versos, para melhor compreensão do desenho rítmico
apresentado em seguida (N. da T.).

111
Caderno de Literatura e Cultura Russa

tipo: “guia – dirigente”), enquanto que o conteúdo poderia ser apenas o que
determina, por meio desta ou daquela fórmula, um lugar positivo do acaso no
progresso do saber. No entanto, no intervalo entre o primeiro esboço e uma
camada superior (igualmente riscada e, portanto, não final) Púchkin encontrou
uma fórmula bem mais expressiva:

E o Acaso pai (I slútchai otiéts)


Inventor cego (III, 1060)

(variante: “E tu cego inventor”). O espaço em branco na primeira linha é facil-


mente preenchido de sentido por palavras do tipo (znánia) “do conhecimento”,
(ístini) “da verdade”. Todavia, justamente o fato de o poeta não ter utilizado
estas palavras, que surgem automaticamente no pensamento, demonstra que
elas não constituíam para ele uma nuança de sentido indispensável – um mo-
mento de invenção, um novo achado, inesperado para o próprio indivíduo
que busca (cf. Cenas dos Tempos da Cavalaria: o irmão Bertoldo deveria desco-
brir a pólvora durante a busca da pedra filosofal).
Por esse motivo, também, a relação de Púchkin com o casual na história
tornava-se muito mais complexa. Num artigo inacabado, dedicado à História
do Povo Russo, de N. A. Polevoi, ele percebeu no casual um estrato superficial,
que obscurecia a essência do processo histórico, por um lado, e um mecanismo
profundo de manifestação dos princípios deste processo, por outro. Púchkin
escreveu: “Guizot elucidou um dos acontecimentos da história cristã: o século
das luzes europeu. Ele descobre seu embrião, descreve-lhe o desenvolvimento
gradual e, afastando tudo que é remoto, tudo que é estranho, casual, o traz
até nós...” E mais adiante: “O intelecto h[umano], de acordo com expressão
popular, não é um profeta, mas um adivinho; ele vê o movimento geral das
coisas e disto consegue deduzir conjecturas de grande alcance, muitas vezes
comprovadas pelo tempo, mas é-lhe impossível prever o acaso – instrumento
poderoso, momentâneo da Providência” (XI, 127).
O segundo aspecto de uma interpretação filosófica do acaso não podia deixar
de refletir-se na discussão do seu modelo de enredo – o jogo de azar. Seria uma
simplificação unilateral ver neste apenas um começo negativo – a irrupção das
forças caóticas no macrocosmo cultural e a aspiração egoísta de um enriqueci-
mento momentâneo no microcosmo humano. O mesmo mecanismo do jogo
serve igualmente a outros objetivos: no mundo externo ao homem ele serve
como manifestação de princípios superiores – irracionais apenas do ponto
de vista da ignorância humana; no interno, ele é condicionado não somente
pela sede de dinheiro, como pelo desejo do risco, pela necessidade de desauto-

112
A Dama de Espadas e o Tema das Cartas e do Carteado...

­ atizar a vida e abrir espaço para o jogo das forças reprimidas pelo peso da
m
rotina.
Desse ponto de vista, os personagens e acontecimentos de A Dama de Espadas
apresentam-se sob uma luz diferente. Se no enredo de A Dama de Espa­das, na
antítese “racional (predeterminado) – caótico (casual)”, o primeiro membro­
da oposição representava uma informação, e o segundo, uma entropia, então
diante da contraposição: “morto (imóvel, que se move automaticamente)↔vivo
(móvel, mutável)” as posições destas categorias vão se alterar. Por esse moti-
vo, o casual (o imprevisível) no primeiro caso vai aparecer como um fator de
entropia e, no segundo, de informação. Na antítese ao curso mecânico que
permeia a vida previsível, morta, do “mundo” petersburguês, o faraó comparece
como um mecanismo de inclusão no cotidiano do elemento da alternativa, do
imprevisível, da desautomatização.
Deste ponto de vista, os episódios, acontecimentos e personagens da novela
dividem-se em algo vivo (móvel, mutável) e morto (imóvel, automatizado) ou,
então, em determinadas situações, transitam de uma categoria para outra. Todo
o enredo da novela representa em si uma certa irrupção de circunstâncias­casuais­
que, ao mesmo tempo, podem ser interpretadas também como “um instrumento
poderoso, momentâneo da Providência”. Considerando-se que “a história­das
três cartas atuou fortemente” sobre a imaginação de Hermann, ao contrapor o
cálculo à tentação, ele decidiu renunciar às esperanças de um enriquecimento
imprevisto: “Não! Cálculo, moderação e operosidade: eis as minhas três cartas
seguras...” (p. 181). No entanto, é justamente neste instante que Hermann se vê
em poder do acaso: “Raciocinando assim, foi parar numa das ruas principais
de Petersburgo, diante de um prédio de construção antiga. [...] ‘– De quem é
esta casa?’ perguntou ele ao vigia que ficava na guarita da esquina.
‘– Da condessa...’ – respondeu o vigia. Hermann ficou perturbado. A sur-
preendente história apresentou-se-lhe mais uma vez à imaginação” (p. 182).
No dia seguinte, novamente por acaso ele se viu diante da casa: “Uma força
ignota parecia atraí-lo para ela” (p. 182). Lisavieta Ivánovna neste instante, por
acaso, apareceu à janela – “olhou sem querer para a rua”(p. 181). “Esse instante
decidiu o seu destino” (p. 182).
Os heróis transitam alternadamente da esfera do previsível para a região
do imprevisível e vice-versa, ora ganhando vida, ora transformando-se em
autômatos mortos (direta e metaforicamente). Já na situação inicial, Hermann
– homem calculista e alma de jogador – caracteriza-se por palavras da semân-
tica da imobilidade (“fica aqui [...] vendo-nos jogar” (p. 170); “a sua firmeza
salvou-o” (p. 181) e do movimento reprimido (“seguia com uma perturbação
febril os diferentes lances” (p. 181).

113
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Os heróis de A Dama de Espadas ora ficam petrificados, ora palpitantes:


“No coração dele ressoou algo parecido com remorso, mas tornou-se a calar.
Fez-se de pedra” (p. 188).
“[...] suas pernas e braços ficaram gelados” (p. 192).
“[...] A velha morta estava sentada, com uma rigidez de pedra” (p. 195).
“[...] Hermann apertou-lhe a mão fria, inerte” (p. 194).
“[...] Hermann [...] inclinou-se até o chão e passou algum tempo deitado”
(p. 197).
“[...] Lisavieta Ivánovna era carregada sem sentidos” (p. 197).
“[...] sentou-se na carruagem, presa de inexplicável palpitação” (p. 180).
“[...] seguia com uma perturbação febril” (p. 181).
“[...] Hermann ficou perturbado” (p. 182).
“[...] Hermann fremia como um tigre” (p. 186).
“[...] Esperou fremindo a sua resposta” (p. 190).
“[...] A moça estremeceu” (p. 193).
A transição da vida para a morte realizada várias vezes é característica da
velha condessa. R. O. Jakobson, no trabalho acima mencionado, mostrou que
nos títulos de três obras de Púchkin – O Cavaleiro de Bronze, O Convidado de
Pedra e A História do Galo de Ouro – é assinalada a contradição entre a de-
signação dos materiais inanimados (bronze, pedra, ouro) e dos personagens
animados, por meio dos quais é predeterminado o motivo de vivificar aquilo
que não tem vida. Numa forma um tanto diferente, a mesma contradição é
assinalada também no título de A Dama de Espadas, que designa tanto a velha
condessa como a carta do baralho. Já a transformação alternada da condessa
em carta e da carta em condessa atualiza o sinal semântico do vivo-sem-vida,
do animado-inanimado. Entretanto, também nos limites de sua “encarnação
humana”, a condessa modifica sua condição com referência a estes sinais: “De
repente, aquele rosto de cadáver transformou-se inexplicavelmente [...] os
olhos ficaram mais vivos”; – “A velha olhava-o em silêncio e parecia não ou-
vir...”; – “A condessa pareceu perturbada. Os seus traços expressaram uma viva
emoção, mas logo ela recaiu em seu estado de insensibilidade”; – “A condessa
continuava calada”; – “Vendo a arma, a condessa manifestou pela segunda vez
forte emoção. Balançou a cabeça e levantou o braço, como se protegendo do
tiro... Em seguida caiu de costas... e ficou imóvel”; – “A condessa não respondeu.
Hermann percebeu que estava morta” (pp. 188-190). A transição da insensibili-
dade, da imobilidade, do mecanizado, da morte – para a agitação, o movimento
interior, a vida –, assim como uma alteração em sentido contrário, ocorre
várias vezes durante esta cena. Posteriormente, já morta, a condessa vai movi-
mentar-se, arrastando os chinelos; deitada no ataúde, vai piscar para Hermann.

114
A Dama de Espadas e o Tema das Cartas e do Carteado...

A aptidão para os movimentos da alma, contraposta à insensibilidade do egoís­


mo, vai exprimir-se no fato de que apenas depois de morta ela demonstrará
preocupação com a vítima de seus caprichos, Lisavieta Ivánovna. Submetendo-
-se a um comando (“tenho ordem de cumprir”), ela revela as três cartas a
Hermann, mas “de sua parte” perdoa-o, com a condição de que ele se case com
Lisavieta Ivánovna. As transições da máscara mortuária de polidez mundana e
de aparente cordialidade para um sentimento vivo também caracteriza Tcheká-
linski: “[...] o rosto cheio e fresco expressava bonacheirice; os olhos brilhavam,
avivados por um eterno sorriso”; – “Tchekálinski sorriu e inclinou-se calado,
em sinal de pleno assentimento”; – “Permita observar-lhe – disse Tcheká­linski
com o seu sorriso invariável – que o seu jogo é forte”; – “Tchekálinski franziu
o cenho, mas o sorriso voltou-lhe no mesmo instante ao rosto”; – “Tcheká­linski
cumprimentou-o afavelmente”; – “Tchekálinski ficou evidentemente confuso.
Contou noventa e quatro rublos e passou-os a Hermann”; – “Hermann estava
em pé junto à mesa, preparando-se para jogar sozinho contra o pálido, mas
sempre sorridente Tchekálinski”; – “Tchekálinski pôs-se a bancar, as mãos trê-
mulas”; – “A sua dama está morta – disse afável Tchekálinski” (pp. 200-203)
[o grifo é sempre meu – Iú. L.]. No início, um sorriso parece “avivar” o rosto
de Tchekálinski. Mas em seguida (confrontar o epíteto “invariável”) torna-se
evidente tratar-se de uma máscara, permanente e imóvel, isto é, morta, que
encobre os movimentos vitais autênticos da alma.
No autômato reprimido, mecanicamente móvel, mas interiormente imóvel
e morto do cotidiano da vida mundana, as “fortes paixões e a imaginação exal-
tada” de Hermann introduzem a imprevisibilidade, isto é, a vida. E é o faraó
que se faz instrumento desta intrusão.
O objeto que ganha vida, o cadáver que se movimenta, a estátua que salta – não
são seres vivos, mas, sim, máquinas, no significado da palavra “máquina” elabo-
rado pela era da mecânica. Seu movimento antinatural tão-somente acentua o
entorpecimento da essência. Neste sentido, a situação de A Dama de Espadas, em
princípio, é diferente de O Cavaleiro de Bronze. Em O Cavaleiro de Bronze, o não-
-humano contrapõe-se ao humano, “o cavaleiro de bronze” – à “pobre riqueza”
(Gógol) da alma simples de um ser humano. Em A Dama de Espadas, todos os
heróis são autômatos, apenas temporariamente vivificados, sob a influência de
ações que exacerbam as paixões, do acaso, dessa imprevisi­bilidade que se oculta
não só no âmago de suas almas, como além dos limites do mundo artificial, mecâ-
nico, de Peters­burgo. Após ter calculado que lhe é indispensável penetrar na casa
da condessa, Hermann aciona o mecanismo de sedução da jovem. Escreve “uma
declaração de amor: era terna, respeitosa e tirada palavra por palavra de um ro-
mance alemão” (p. 183). No embate com a máquina, Lisa comporta-se como gente

115
Caderno de Literatura e Cultura Russa

– ela se apaixona. Sua carta é ditada pelo sentimento. Porém, na realidade,


verifica-se que sua reação é automática: Hermann pôde prevê-la e contar com
ela. “Era o que esperava” (p. 184). No entanto, as cartas são baralhadas, visto que
as forças que se ocultam na alma do próprio Hermann entram em cena, e ele
deixa de ser um autômato. Suas cartas “não eram mais traduzidas do alemão.
Hermann escrevia-as inspirado na paixão, e expressava-se na linguagem que
lhe era própria; manifestava-se nelas tanto o incoercível dos seus desejos como
a desordem de uma imaginação desenfreada” (p. 185).
O jogo, porém, ao explodir a ordem mecânica da vida, ao perturbar a
cordialidade automática de Tchekálinski, ao conclamar um afluxo de vida na
mori­bunda condessa e matá-la – ou seja, ao permitir que Hermann se insi-
nue no mundo que o cerca “como um cometa não-periódico” – transforma o
próprio num autômato, pois o faraó é, também, uma máquina: é sua carac-
terística uma vida ilusória, de movimento mecânico (à direita – à esquerda) e
a capacidade de congelar, de matar a alma; no quarto de dormir da condessa,
Hermann fez-se de pedra, no quarto de Lisa “lembrava surpreendentemente
o retrato” (p. 194), durante o jogo, quanto mais a máscara de Tchekálinski se
anima tanto mais Hermann se enrijece, transformando-se numa estátua móvel.
Os sentimentos humanos perdem o sentido para ele: “nem as lágrimas da pobre
moça, nem o surpreendente encanto da sua aflição perturbaram-lhe a alma
rude. Ele não sentia remorso, ao lembrar-se da velha morta” (p. 194). E se, em
O Cavaleiro de Bronze, “a zombaria do céu em relação à terra” é uma zombaria
do não-humano em relação ao vivo, então o escárnio da dama de espadas – que
“entrecerrou um olho e dirigiu-lhe um olhar de mofa” – é o riso do autômato
que ganha vida diante daquele que se petrificou.
Tudo termina com a vitória absoluta do mundo automatizado: “o jogo pros-
seguiu como de costume” (p. 203), todos os heróis encontram seu lugar na imo-
bilidade das repetições cíclicas da vida: Hermann está internado num manicô-
mio e repete as mesmas palavras, Lisavieta Ivánovna repete o caminho da velha
condessa (“Lisavieta Ivánovna mantém uma pobre parenta” (p. 204)), Tómski
repete o caminho comum a um jovem – foi promovido a capitão e vai se casar.
Púchkin nos oferece dois modelos que se superpõem mutuamente.

1. O mundo do cotidiano (“o espaço interno” da cultura) – ordenado e com-


preensível; a ele se contrapõe o mundo caótico do irracional, do acaso, do
jogo. Este segundo mundo representa em si a entropia. Ele é que vence,
baralhando os cálculos das pessoas: a condessa morre, Hermann rompe
com o mundo do cálculo e da moderação e vai parar no manicômio – o
enredo termina numa catástrofe.

116
A Dama de Espadas e o Tema das Cartas e do Carteado...

2. O mundo do cotidiano, que constitui “o espaço interno” da cultura, é todo


ele ordenado, privado de flexibilidade, morto. É o reino da entropia. A ele
contrapõe-se o Acaso – “instrumento poderoso, momentâneo da Provi-
dência”. Este irrompe na existência mecânica, vivificando-a. No entanto, a
ordem automática vence, “o jogo” prossegue “como de costume”. A entropia
do automatismo da rotina triunfa. O mundo onde tudo é caoticamente
casual e o mundo onde tudo é tão petrificado que não sobra lugar para o
“acontecimento” transparecem um no outro.
A superposição mútua desses modelos torna-se mais complexa, também,
pelo fato de que os espaços “externo” e “interno” apresentam-se não só no exte­
rior de cada herói, como o mundo que o cerca, mas também no seu interior,­
como uma contradição imanente.
Ambas as interpretações possíveis materializam-se na novela de Púchkin
numa mesma “máquina do enredo” – no tema das cartas e do jogo de azar. Isto
confere à imagem do faraó, em A Dama de Espadas, uma capacidade exclusiva
de significado e uma força de ação modelizante sobre o texto. Isto também
condiciona a possibilidade de interpretações contraditórias desse tema nas
diferentes tradições literárias que, em igual medida, remontam a Púchkin.

Ao descrever a última partida, Púchkin escreve: “Parecia um duelo” (p. 202).


Realmente, em todos os textos que incluem o tema do jogo de azar, tem-se
uma certa semelhança com o tema do enredo do duelo: o resultado do embate
é mortal para uma das partes (à diferença do tema do jogo de cálculo, onde
surge apenas o problema de transformações pouco significativas)39. Contudo,
um papel totalmente diferente da casualidade torna bastante remota uma
comparação do duelo e do faraó. Significativamente mais orgânica parece uma
aproximação do tema das cartas com o conflito básico do enredo de O Fatalista,
de Liérmontov40.
A antítese do casual e do predeterminado adquire nesta novela uma inter-
pretação filosófica, como uma contraposição do conceito do livre-arbítrio não-
-determinado do indivíduo, por um lado, e, por outro, de sua total submissão
a uma cadeia fatal de causas e efeitos, de um movimento predeterminado dos
acontecimentos. K. A. Kumpan, em sua monografia de conclusão de curso,
mostrou de maneira convincente que o primeiro conceito vinculava-se à idéia

39. Confrontar a idéia da imutabilidade do ser, da impossibilidade de realizar-se algo em


seu interior que modifique a essência da vida, no conto de L. Andréiev, A Grande Vaza (1899).
40. Em O Herói do Nosso Tempo (trad. Paulo Bezerra), Rio de Janeiro, Guanabara, 1988.
Doravante, as citações do conto remeterão às páginas desta edição brasileira (N. da T.).

117
Caderno de Literatura e Cultura Russa

do indivíduo da civilização ocidental – com sua personalidade desenvolvida de


modo hipertrofiado, seu individualismo, sua ânsia de felicidade e perda dos
estímulos externos à personalidade –, enquanto que o segundo dizia respeito
ao homem do Oriente, inseparável da tradição, avesso não só à polaridade,
como à responsabilidade pessoal por suas ações, mergulhadas no fatalismo41.
O tema do jogo de azar é “a máquina do enredo” da novela. Já o começo da
novela introduz a antítese do jogo de cálculo (“Certa noite, saturados do bós-
ton e tendo atirado as cartas sobre a mesa, ficamos [...] palestrando em casa do
Major S.”), que se associa à maioria da plebe, e do jogo de azar – apanágio das
naturezas apaixonadas. Se com referência a Petchórin isto pode ser pressentido
(pelo menos, no decorrer da novela, por duas vezes ele põe o destino à prova: ao
fazer uma aposta mortal com Vúlitch e ao lançar-se sobre o cossaco-assassino),
na índole de seu antípoda “oriental” – o sérvio Vúlitch – isso é salientado: “Havia
apenas uma paixão, que ele não ocultava, a paixão pelo jogo”42.
Já Sumarókov escrevia sobre o fato de a banca, em essência, resumir-se a
uma escolha casual num sistema de código duplo: “Bem cedo eu entendi este
jogo de invenção tola e pensei: para que eles precisam de cartas, para que todos
esses esforços, utilizados neste jogo; pode-se jogá-lo, também, sem as cartas e eis
como: basta escrever quaisquer signos – sino, língua, língua, sino, – baralhá-los
e perguntar – sinos ou línguas: se o apostador souber o que o banqueiro tem
por escrito, ele pode dobrar a aposta, o sept il va etc.”43.
Se acrescentarmos às condições da casualidade da escolha (de um dos dois
resultados de igual probabilidade) a crença comum ao tema literário do jogo
de azar no fato de que na banca se encontra a vida e a morte, teremos o esque-
ma da aposta de Petchórin e Vúlitch. O confronto é realizado pelos próprios
heróis: Vúlitch, tendo ganho a aposta, depois que a pistola apontada à testa
não disparou, acrescentou, “com um sorriso satisfeito: – Isto é melhor do que
a banca e o stuss” (p. 142).
A identificação do jogo com o homicídio, o suicídio, a destruição (A Dama
de Espadas, A Mascarada, O Fatalista), e do adversário – com as forças infernais

41. Cf. “Два аспекта ‘лермонтовской личности’” // Сб. Студ. Работ (Краткие Сообщ.)
(“Dois aspectos da ‘personalidade de Liérmontov’”, in Coletânea de Trabalhos Estudantis (Co-
municações Breves), Tartu, 1973; “Проблема русского национального харатера в творчестве
М. Ю. Лермонтова” // (“O problema do caráter nacional russo na obra de M. Iu. Liérmontov”)
// Tallinna Pedagoogiline Institut, 17; üliöpilaste teaduslik konverents, Tallinn, 1972.
42. M. Iu. Liérmontov, Obras, vol. 6, p. 339. A seguir as referências a esta edição são feitas
no texto com a indicação do volume em algarismo romano e da página, em arábico.
43. Cf. “О почтении Автора к приказному роду” (“Do apreço do Autor pela categoria
do funcionalismo”), Obras Completas em Verso e Prosa, Moscou, 17872, vol. 10, pp. 138-139.

118
A Dama de Espadas e o Tema das Cartas e do Carteado...

(A Dama de Espadas, O Stuss) – vincula-se à interpretação do casual como o


caótico, o destruidor, a esfera da entropia – do mal. Todavia, é possível um
modelo de mundo no qual a casualidade não tenha um cunho negativo mas
ambivalente: ao representar a origem do mal, ela será também o caminho para
a superação deste.
A noção escatológica, para a qual o triunfo do mal é, ao mesmo tempo,
um sinal da aproximação do momento do seu total extermínio – e esta trans-
formação do mundo, em si, é imaginada como um ato momentâneo e defi-
nitivo – não pode prescindir de um milagre. E o milagre, por sua própria na-
tureza, na ordem dos acontecimentos que o antecederam, deve apresentar-se
como absolutamente não-motivado e, na perspectiva das ligações naturais,
casual.
Há muito tempo foi observado que, nos romances de Dostoiévski, o estrato
do cotidiano do enredo desenvolve-se como uma sucessão de acontecimentos
casuais, de “escândalos” que se alternam mutuamente, de um modo aparente-
mente caótico44. A abundância dos encontros inesperados, das coincidências
dos enredos “casuais”, da confluência “absurda” das situações é que organiza
este estrato da narrativa de Dostoiévski. No entanto, a lógica dessa sucessão de
episódios, em que a probabilidade do dia-a-dia e do excepcional se nivelam,
pode caracterizar não apenas o mundo negativo de Dostoiévski. Assim também
é a lógica do milagre. Recordemos em Khomiakov:

Ó escolha indigna,
Tu foste a escolhida!...45

Por isso, o mesmo mecanismo – o mecanismo do jogo de azar – pode descrever


tanto o abominável mundo do absurdo do cotidiano, como a destruição escato-
lógica deste mundo, à qual se segue a criação miraculosa “de uma nova terra e de
um novo céu”. Neste sentido, O Jogador, de Dostoiévski, é muito interessante.
De um lado, Roletemburgo é a quintessência daquele mundo de absurdos e
de escândalos, que é tão próprio a Dostoiévski, e a roleta é o centro e o modelo
desse mundo. A frase que dá início ao quarto capítulo do romance: “Hoje foi

44. A. Slonímski, “‘Вдруг’ у Достоевского” // Книга и Революция (“O ‘de repente’ em


Dostoiévski”, in O Livro e a Revolução), 1022, n. 8; Iu. M. Lotman, “Происхождение сюжета
в типологическом освещении” // Избр. Статьи (“A origem do enredo numa interpretação
tipológica”, in Seleta de Artigos), 3 vols., Talin, 1992, vol. 1, pp. 224-242.
45. Стихотворения и Драмы (Poemas e Dramas), Leningrado, 1969, p. 137.

119
Caderno de Literatura e Cultura Russa

um dia ridículo, grotesco, absurdo”46, poderia servir de epígrafe a toda uma


linha do cotidiano do enredo. As características de uma situação do tipo: “E
que de gritos, barulho, falatório, rumores! E toda essa confusão, toda essa de­
sordem, essa estupidez e essa vulgaridade” (p. 37) – perpassam todo o romance.­
Por outro lado, a roleta caracteriza-se como um recurso de salvação, é com
a sua ajuda que se realiza o milagre: “Então insistem em acreditar que a roleta é
a sua única saída, sua única tábua de salvação?” (p. 15); “só tenho esperança na
roleta” (p. 15); “comigo àquela noite [...] aconteceu uma aventura miraculosa.
Embora ela se explique perfeitamente pela aritmética, não deixa de ser, a meus
olhos, miraculosa” (p. 113). Trata-se de um tema que já nos é conhecido, o jogo
mortal (“Era toda minha vida que estava em jogo!” (p. 115)). Ao mesmo tempo,
trata-se também de um acontecimento descrito de modo escatológico – não
só como milagre, mas como morte e ressurreição sob uma forma nova: “Posso
ressurgir dos mortos e recomeçar a viver! Posso descobrir o homem em mim,
antes que ele se perca!” (p. 140). “Renascer, ressuscitar” (p. 146).
Porém, não acontece um milagre autêntico em O Jogador: o herói, da mes-
ma forma que Raskólnikov, achando que o dinheiro é a origem do mal, dele
espera também a salvação (“o dinheiro é tudo!” (p. 32)). A transformação do
mundo – a substituição da falta pela abundância de dinheiro, ou por sua fe-
liz redistribuição – foi um pensamento que originou a alquimia utópica dos
maçons no fim do século XVIII, tendo sido parodiado por Goethe na segunda
parte do Fausto47. Nas obras de Dostoiévski esse caminho é rejeitado. Contudo,
permanece o mesmo princípio de salvação do milagre – uma transformação
imotivada e repentina do mundo. Além do mais, Dostoiévski considera jus-
tamente a crença na natureza imotivada e repentina da salvação um traço
tipicamente russo. Neste sentido, devem ser entendidas as constatações: “uma
terrível sede de arriscar” (p. 117) – um traço psicológico tipicamente russo –,
e “a roleta é um jogo essencialmente russo” (p. 146), baseado no anseio de que
“numa hora” “poderia mudar toda a minha vida” (p. 147).
O lugar dos jogos de cálculo em O Jogador é assumido pela antítese insis-
tente da acumulação burguesa da Europa e do anseio russo de mudar o destino

46. As passagens do romance de Dostoiévski aqui citadas foram reproduzidas a partir da


tradução brasileira de Moacir Wernek de Castro (O Jogador, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil,
1987) (N. da T.).
47. Cf. O Simpatizante, de A. N. Radíchtchev. A. M. Kutúzov e suas cartas para I. P. Turgu-
êniev / Artigo introdutório de Iu. M. Lotman, preparação do texto e notas de V. V. Furcenko //
Relatório de Pesquisas da Universidade Estatal de Tartu,1963, n. 139, pp. 293-294. (Trabalhos de
filologia russa e eslava, vol. 6.)

120
A Dama de Espadas e o Tema das Cartas e do Carteado...

“numa hora”: “Por que seria o jogo pior do que qualquer outro meio de ganhar
dinheiro como, por exemplo, o comércio?” (p. 12). “Ao catecismo das virtudes
e dos méritos do homem ocidental civilizado [...] incorporou-se a capacidade
de acumular capitais” (p. 25), a qual se contrapõe à crença na sorte repentina,
“que permite enriquecer subitamente, em duas horas, sem ter que trabalhar”.
Mais adiante o herói acrescenta: “Não sei o que é mais repulsivo, se a desor-
dem dos russos ou a capacidade dos alemães de juntar dinheiro trabalhando
honestamente” (p. 26).

O tema das cartas já existia na literatura anterior a A Dama de Espadas – como


um tema satírico, de costumes ou filosófico-fantástico. No entanto, apenas em
Púchkin ganhou uma polissemia fundamental que lhe permitiu preencher-se
de um conteúdo surpreendentemente amplo.
Albert Einstein falava da correlação entre os romances de Dostoiévski e a
teoria da relatividade. As descobertas artísticas de Púchkin, em sua fase tardia,
poderiam ser comparadas ao princípio da complementaridade de Nils Bor. O
fato de um mesmo símbolo (por exemplo, o jogo de cartas) – ao se preencher
de significados contrários – poder representar o incompatível como aspectos
de um todo único transforma as obras de Púchkin não só em fatos da história
da arte, como também em etapas da evolução do pensamento humano.­
(1975)

Abstract: Lotman takes as a starting point for his research the game of cards, traced by
him to a universal model which took hold of contemporary Russian thought and literature
from the end of the 18th to the beginning of the 19th century. Once this is done he proceeds
to a study of the culture of the Imperial period in Petersburg, in order to show how this
culture could be used to interpret a chain of casual events, somewhat similar to the role
chance plays in games of hazard. Based then on concepts of chance and determinism, by
means of an analysis of The Queen of Spades, Lotman points to the use made by Pushkin of
these conflicting elements as he composed the plot of his novel.
Keywords: The prose of Pushkin; The Queen of Spades; the games of hazard in Russian
literature.

Tradução e Notas
Helena Nazario

121
Cronologia da Vida e da Obra de
A. S. Púchkin
Homero Freitas de Andrade

Resumo: Este texto apresenta uma cronologia da vida e da obra de Aleksandr Púchkin,
elaborada a partir de materiais biográficos do escritor publicados na Rússia e no Ocidente.
São relacionados ainda acontecimentos da história russa e da literatura russa e européia,
ocorridos no período de vida do escritor.
Palavras-chave: Aleksandr S. Púchkin; literatura russa do século XIX; vida de Púchkin;
obra de Púchkin.

1799 – Moscou, 26 de maio (6 de junho): nascimento de Aleksandr Serguéie­­­


vitch Púchkin, filho de Serguei Lvóvitch, membro da pequena nobreza e oficial
da guarda, e de Nadiejda Óssipovna Hannibal, neta do famoso general negro de
Pedro, o Grande. O casal costuma reunir em casa artistas e escritores para saraus.­
1801 – (Anexação da Geórgia; Paulo I é assassinado; Alexandre I é o novo
czar.)
1806 – Púchkin escreve em francês seus primeiros poemas.
– (Início da guerra russo-turca.)
1811 – Púchkin ingressa como interno na primeira turma do Liceu de Tzár­
skoie Seló, instalado no palácio de verão da família imperial. Fazem parte da
mesma classe os futuros escritores A. A. Diélvig e V. K. Kiukhelbéker.
1812 – (Paz de Bucarest entre a Rússia e a Turquia; a Bessarábia começa a
fazer parte do Império Russo; invasão de Napoleão; incêndio de Moscou; derrota
de Napoleão.)
– (Byron publica Childe Harold.)
1813 – Púchkin colabora com textos e poemas para o jornal literário do
Liceu (1813-1817); não é dos mais aplicados nos estudos, mas agita a vida es-
Caderno de Literatura e Cultura Russa

tudantil com suas disputas poéticas, seu espírito irreverente e o interesse pre-
coce pelas mulheres; participa ativamente de festas e bailes organizados na corte.­
1814 – Púchkin publica o poema “A um Amigo Poeta” no jornal O Men-
sageiro da Europa, sob o pseudônimo 1.14.16; continua a colaborar no jornal
com freqüência; escreve ao todo vinte e seis poemas durante o ano.
– (Abertura da Biblioteca Imperial de São Petersburgo ao público.)
1815 – Púchkin declama seus versos patrióticos Reminiscências de Tzárskoie
Seló (“Воспоминание в Царском Селе”), diante do poeta Derjávin, numa
cerimônia do Liceu. O poema é publicado na revista Museum Russo. Escreve,
durante o ano, vinte e sete poemas; o adolescente fogoso protagoniza seu pri­
meiro escândalo na corte de Alexandre I1.

1. Segundo o biógrafo do poeta, H. Troyat, “Uma noite, sem ter o que fazer, Púchkin per­
corria os corredores escuros do palácio em direção ao corpo da guarda, onde se apresentava
uma banda militar. Para o corredor davam as portas dos aposentos ocupados pelas damas
de honra. Uma delas, a princesa Volkónski, tinha a serviço uma criadinha viçosa e atirada,
chamada Natacha. Uma das diversões freqüentes de Púchkin era abraçar e bolinar a moça no
escuro, enquanto ela soltava gritinhos de susto. Ao passar diante do apartamento da princesa,
ele diminuiu o passo, os ouvidos atentos. Bem perto, escutou um suspiro, um frufru de saias.
Decerto Natacha estava à sua espera. Tateando na escuridão, avançou as mãos para aquele corpo
tépido, cujo calor irradiava até ele. Envolveu-o nos braços, apertou-o contra o peito. Seus lábios
procuravam uma boca que se negava. Nesse instante, abriu-se uma porta, que lançou uma rés­
tia de luz forte no corredor abobadado. E Púchkin viu horrorizado que estava abraçando um
velho manequim coberto de rugas, pó-de-arroz e plumas: a princesa Volkónski em pessoa. Ele
se sentiu desfalecer, largou-a, deu um grito e saiu correndo feito um doido, enquanto a dama
de honra tripudiava ali parada e berrava imprecações em francês e em russo. Naquela mesma
noite, a princesa Volkónski queixava-se ao irmão, e o irmão punha o czar a par dos ultrajes
aos quais se expunham as damas de honra de Sua Majestade Imperial. Na manhã seguinte,
Alexandre I convocava o diretor do Liceu para uma reprimenda:
“– O que significa isso? – diz o czar. Seus alunos não se limitam mais a pular as cercas para
surrupiar minhas maçãs, nem a surrar os vigias do jardineiro Liámin... mas deram agora para
perseguir as damas de honra de minha mulher?
“O escândalo era evidente. Alexandre I falava em mandar açoitar o atrevido Púchkin. Mas
o diretor soube defender seu aluno. O czar se enterneceu. Na verdade, ele estava mais divertido
que contrariado com a aventura, pois a princesa Volkónski era velha, feia e temível.
“Ele determinou: ‘Está bem. Que Púchkin escreva um pedido de desculpas, eu serei seu
advogado; mas diga-lhe que fatos assim não devem mais se repetir’. E murmurou ainda, sor­
rindo com malícia: ‘Cá entre nós, a velha deve ter ficado encantada com o qüiproquó’. [...]
“Furioso com a velha princesa que o denunciara ao czar, Púchkin escreveu em francês a
seguinte quadrinha, indecente e desajeitada, que durante muito tempo divertiu seus colegas:
Mademoiselle, nenhum desatino
Há em tomar-vos por cafetina,
Ou por macaca de certa idade,
Mas sim por uma grande beldade!”(op. cit., pp. 105-106).

124
Cronologia da Vida e da Obra de A. S. Púchkin

– (V. Jukóvski publica nova antologia de poemas, que o consagra como grande
poeta do Sentimentalismo.)
1816 – Púchkin é admitido no grupo literário “Arzamás”; declama seus versos
para N. Karamzin, que fora ao Liceu especialmente para ouvi-los, e começa a
freqüentar sua casa; em suas noitadas de farra, trava amizade com oficiais do
Exército que defendem idéias liberais e uma abertura do regime autocrático,
passando a freqüentar suas reuniões; sua produção atinge neste ano a marca
de cinqüenta poemas.
– (Início da conspiração dos Dezembristas.)
1817 – Púchkin termina o Liceu, recita seu poema “O Ateísmo” (“Атеизм”)
na cerimônia de formatura e comove o czar. Com o diploma, é nomeado as­
sessor do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Império, com um salário
de 700 rublos anuais, mas não se interessa pelo trabalho, que é indefinido e
lhe dá muitas horas de folga. Passa o tempo contraindo dívidas, freqüentando
teatros, cabarés, saraus literários, reuniões políticas, bailes, jogatinas e bordéis.
1818 – Púchkin convalesce em janeiro de uma febre decorrente de doenças
venéreas mal curadas, que quase o leva à morte; aproveita o repouso forçado
para escrever o poema longo Ruslan e Liudmila. Mal se recupera, retoma a vida
desregrada de dandy romântico; deixa crescer as unhas, fantasia-se e realiza
performances cômicas em suas aparições públicas, escandalizando S. Petersburgo
e criando incidentes, que o levam a provocar seus primeiros duelos. Com o
fim do “Arzamás”, ingressa no grupo “Lamparina Verde”, que reúne escritores,
oficiais do Exército, jovens desocupados e intelectuais em torno de discussões
políticas de caráter conspiratório, saraus literários e farras. Uma cartomante
alemã deixa o Poeta intrigado ao prever que ele conheceria a fama, seria de­
portado duas vezes e poderia viver por muito tempo, caso soubesse evitar aos
trinta e sete anos um grande perigo que viria de uma cabeça branca, de um
cavalo branco ou de um homem branco2.
– (Alexandre I pronuncia discurso de teor liberal na inauguração do parlamento
polonês; instituição das colônias militares.)
– (N. Karamzin inicia a publicação da História do Estado Russo; Lamartine
publica Méditations Poétiques; W. Scott publica Ivanhoe.)
1819 – Púchkin freqüenta esporadicamente a “União para a Prosperidade”,
grupo que defende idéias revolucionárias; escreve seus primeiros poemas re­
volucionários de caráter liberal, criticando os desmandos da autocracia, a ser-
vidão da gleba, a miséria em que o povo vive; os poemas circulam entre os

2. A previsão tornou-se obsessiva para o Poeta durante sua vida e cumpriu-se integral­
mente.

125
Caderno de Literatura e Cultura Russa

leitores em manuscritos sem a assinatura do Poeta e são decorados, ou lidos


nas casernas, nos salões, nas sociedades secretas e nos meios estudantis. Seus
epigramas e versos satíricos sobre autoridades do Império irritam o czar; o
irrequieto Poeta entedia-se com a vida mundana da capital.
– (Fundação da Universidade de Petersburgo; supressão da liberdade de opinião
nas universidades russas.)
1820 – Púchkin é perseguido por seus poemas subversivos e ameaçado de
deportação e trabalhos forçados na Sibéria. O czar resolve transferi-lo de S.
Petersburgo para Ekaterinoslav, no sul da Rússia, e colocá-lo sob as ordens do
general Inzov, que deverá “regenerá-lo”. Ali, Púchkin pouco trabalha, escreve
muito e promove suas excêntricas performances, que escandalizam a socie­
dade local. O poema Ruslan e Liudmila é publicado em junho, consagrando
definitivamente o Poeta entre seus pares. Enquanto isso, depois de um banho
nas águas do Dniéper, Púchkin apanha uma febre perniciosa e o médico
recomenda-lhe viajar em busca de ares melhores com uma família que se dirige
para o Cáucaso. Durante sua estada de dois meses numa estação de águas do
Cáucaso, entre crises de febre que o deixam acamado, o Poeta lê obras de Byron
e de Ché­nier, além de tomar contato com os costumes das populações locais:
tcher­guises, cossacos, persas, calmucos etc. Parte em agosto para a Criméia,
hospeda-se na propriedade do general Raiévski. A viagem prolonga-se até
Bakht­chis­s­arai. Entretanto, o general Inzov é transferido para Kichiniov (Mol­
dávia), onde Púchkin vai encontrá-lo em setembro. Quinze dias depois, ainda
doente, Púchkin parte para Kámenka, na província de Kíev. Novas aventuras
amorosas e conspirações políticas. O Poeta inicia a redação de seu primeiro
poema longo com influências de Byron, O Prisioneiro do Cáucaso (Кавказский
Пленник).
1821 – Púchkin termina O Prisioneiro do Cáucaso. Volta a Kichiniov e é
recebido por Inzov como se fosse um filho. Está com os salários atrasados e
não recebe qualquer ajuda da família. Entra para a loja maçônica de Kichiniov
e participa das discussões políticas. Gasta o resto do tempo a traduzir para
o russo as leis da Moldávia por encomenda de Inzov, a compor o poema A
Fonte de Bakhtchissarai (Бахчисарайский Фонтан), a cortejar as mulheres,
a suscitar escândalos e a provocar duelos nos quatro cantos da cidade. Num
deles, enfrenta o adversário comendo cerejas e cuspindo os caroços em sua di­
reção3. Não vê a hora de poder voltar a S. Petersburgo. Escreve poemas líricos e
satíricos.­

3. Este episódio será elaborado literariamente por Púchkin no conto O Tiro (1830).

126
Cronologia da Vida e da Obra de A. S. Púchkin

1822 – Púchkin publica O Prisioneiro do Cáucaso, com os cortes e modifi­


cações impostos pela censura. Para espantar o tédio, além dos duelos, o Poeta
diverte-se, vestindo-se e comportando-se ora como turco, ora como moldavo,
ora como judeu; o que ganha mal dá para viver. Termina o poema satírico
Ga­bri­líada (Гавриилиада), iniciado na semana santa do ano anterior, em que
ridiculariza a Virgem Maria, o anjo Gabriel e a religião cristã em geral.
– (Decreto imperial proibindo o funcionamento de lojas maçônicas e de so-
ciedades secretas.)
1823 – Púchkin inicia em maio a redação de Evguiéni Oniéguin, um romance
em versos. O czar nega solicitação do Poeta para voltar a S. Petersburgo. Púchkin
muda-se para Odessa, a mais européia das cidades russas, e coloca-se a serviço
do governador local, conde Vorontsov. A miséria ronda seus dias; como em
Kichiniov, leva a vida a escrever, a passear, a beber e a jogar. Compõe o poema
lírico “A Noite” (“Ночь”), em homenagem a uma de suas amantes, mulher
casada com um rico comerciante do lugar.
– (O herdeiro do trono, grão-príncipe Konstantin, renuncia aos seus direitos
sucessórios; a renúncia não é divulgada.)
1824 – Púchkin inicia um romance com a condessa Vorontsova (que
continua por carta após sua partida de Odessa) e compõe para ela o poema
“Talismã” (“Талисман”). Enciumado, o marido traído inicia tratativas para
remover Púchkin da cidade. Consegue enviá-lo por algum tempo aos arredores
de Kherson para fiscalizar o combate a uma invasão de gafanhotos. Sentindo-se
ultrajado, Púchkin resolve demitir-se ao voltar para Odessa. Escreve uma carta
de demissão a seus superiores, que segue acompanhada por outra de Voront­
sov, nada elogiosa. Simultaneamente, a polícia intercepta a correspondência
do Poeta e interessa-se por um bilhete em que Púckin faz comentários sobre
o ateísmo. Púchkin é destituído por má conduta no funcionalismo público e
confinado na propriedade da família em Mikháilovskoie, perto de Pskov. No
final de julho, ele parte para lá, levando na bagagem, além dos dois primeiros
capítulos de Evguiéni Oniéguin, alguns poemas curtos, como “Conversa entre
um Livreiro e o Poeta” (“Разговор книгопродавца с поэтом”), em que expõe
os princípios de sua criação poética, “O Demônio” (“Демон”), “Ao Mar” (“К
морю”), “Imitações do Corão” (“Подражания Корану”), e um poema longo
ainda inacabado, Os Ciganos (Циганы). Em Petersburgo, seu poema A Fonte
de Bakhtchissarai é publicado com sucesso e rende-lhe uma pequena fortuna.
Na propriedade familiar, longe da vida social, Púchkin lê W. Scott, Shakespeare,
Schiller, Goethe, Moore, Dante, Cervantes, Petrarca, Milton; escreve poemas
líricos e o início da tragédia Boris Godunov; ouve os contos maravilhosos que
sua velha ama, Arina Rodiónovna, lhe conta, e que depois aproveitará como

127
Caderno de Literatura e Cultura Russa

material para sua criação poética. Redige uma espécie de diário, onde registra
as vicissitudes que vem enfrentando desde o primeiro exílio.
– (Petersburgo sofre uma das maiores inundações de sua história.)
1825 – Púchkin, no início do ano, recebe em Mikháilovskoie a visita de ex­
-colegas do Liceu, que o põem a par da situação extremamente problemática
da Rússia, afundada na miséria, na corrupção, guiada por um czar que há
muito abandonara os princípios de uma política liberal, que jurara implantar
ao assumir. Através deles Púchkin toma conhecimento das idéias libertárias
que fermentam no seio da intelectualidade de oposição ao regime autocrático.
Depois de longa pesquisa em arquivos dos séculos XVI e XVII, do estudo das
obras sobre história russa de Karamzin, termina a redação da tragédia em versos
Boris Godunov, que marca o início de uma nova etapa na práxis literária do
Autor, com fortes elementos de realismo e uma temática voltada para a histó­
ria e o caráter nacional russo. Entretanto, continua a composição de Evguiéni
Oniéguin, conclui Os Ciganos, escreve poemas líricos, como “Serão de Inverno”
(“Зимний вечер”), “K*” (“К*”), dedicado à amante Anna P. Kern, “Se a Vida te
Engana...” (“Если жизнь тебя обманет...”), “Arde no Sangue o Fogo do Desejo”
(“В крови горит огонь желанья”), o misto de balada e de conto maravilhoso
O Noivo (“Жених”), e o poema cômico longo O Conde Núlin (Граф Нулин).
Nas horas vagas, o Poeta freqüenta feiras e festas locais, coletando provérbios,
expressões e modos de dizer populares, pregões de vendedores, canções e contos
de cantadores cegos, ladainhas de mendigos, profecias de loucos mansos, im­
precações e pragas de bêbados e prostitutas, maldições e esconjuros de velhos
crentes, as variantes da linguagem falada pelos camponeses. Os recursos do
folclore e da língua popular encantam o Poeta, que vê nisso a fonte básica do
caráter nacional russo4.
– (Morte de Alexandre I; ascensão de Nicolau I ao trono; Revolta Dezembrista.)
1826 – Púchkin escreve a Nicolau I pedindo permissão para abandonar o
exílio. As tratativas são demoradas. O poeta teme ser deportado para a Sibéria.
O czar convoca-o para uma audiência em setembro5, autonomeia-se censor

4. Em suas anotações diárias, Púchkin registrava: “O estudo das velhas canções, dos contos
maravilhosos etc. é indispensável para se adquirir o completo conhecimento dos recursos da
língua russa”; “[...] Jovens escritores, ouçam a fala do povo, nela aprenderão mais que lendo
nossos jornais...”; “[...] A linguagem falada do povo é digna de uma profunda investigação.
Alfieri estudava língua italiana nas feiras de Florença; não seria mal escutarmos, vez ou outra,
a fala de qualquer beato velho de Moscou, fazedor de hóstias. Essa gente fala uma língua sur­
preendentemente pura e regular”.
5. H. Troyat reconstrói a partir de documentos e relatos a entrevista entre o Poeta e Nicolau
I, desde a chegada a Moscou em 8 de setembro:

128
Cronologia da Vida e da Obra de A. S. Púchkin

das obras do Poeta e concede-lhe o direito de regressar às capitais. Boris Godunov


tem sua montagem e publicação proibidas pelo czar. A polícia segue os passos
do Poeta, intercepta e examina-lhe a correspondência. Púchkin está no auge
de sua popularidade e retoma a vida que levava antes de ser exilado. Dentre
os poemas que escreve durante este ano, destacam-se O Profeta (Прошрок),
Canções­de Stienka Rázin (Песни о Стеньке Разине), “És a Mãe de Deus, não
há Dúvida” (“Ты богоматерь нет сомнения”). Entretanto, prossegue a redação­
de Evguiéni Oniéguin.

“Púchkin gostaria de ter podido se barbear, escovar suas roupas, antes de se apresentar
diante de seu mestre e juiz. Mas as instruções eram formais: ‘Direto ao palácio. Para uma au­
diência’. Estavam lhe concedendo uma audiência, a ele, o exilado, o amigo dos dezembristas.
Realmente, a vida parecia-lhe uma caixa de surpresas.
Enlameado, respingado, as suíças desgrenhadas, o nariz vermelho, a testa coberta de man­
chas de febre, Púchkin apertava o passo atrás do ajudante de campo, perfumado e frisado, que
o guiava até os aposentos do czar. Lacaios de libré escarlate. Sentinelas petrificadas. Uma porta
que se abre. Púchkin estava no escritório de Nicolau I.
O aposento era amplo, silencioso e solene. Um dia cinzento entrava pela janela. Sobre uma
mesa com apliques de bronze, brilhavam folhas de papel. Uma lareira de mármore emoldu­
rava um fogo crepitante, violento, magnífico. E, diante da lareira, estava um homem de altura
elevada, apertado em seu uniforme até mais não poder, largo de quadris, a barriga saliente,
o tórax avantajado. No rosto denso e branco, os olhos brilhantes olhavam com uma fixidez
estranha. Púchkin tinha diante de si o Imperador de todas as Rússias. Estremeceu. Vieram-lhe
novamente as mesmas dúvidas, os mesmos receios. Por que esta audiência? O que pretendiam
dele? Iam salvá-lo ou perdê-lo? [...]
Entretanto, Nicolau I examinava atentamente o poeta. Agradava-lhe que Púchkin estivesse
tão ridiculamente desarrumado pela viagem. Então, ele disse:
– Bons dias, Púchkin, está contente com seu retorno?
Surpreendido pela voz clara e metálica, Púchkin curvou a cabeça um pouco mais do que
pretendia.
– Meu irmão, o finado Imperador, – prosseguiu Nicolau I – exilou-o no campo, quanto a
mim, estou decidido a conceder-lhe o perdão, desde que não escreva mais nada contra o poder.­
– Vossa Majestade – respondeu Púchkin, – há muito tempo que não tenho escrito mais
nada contra o poder...
– Era amigo de muitos que mandei para a Sibéria.
Púchkin endireitou-se.
– Sim, Majestade, por muitos desses homens eu tinha amizade e respeito, e não mudei de
opinião.
– Como se pode gostar de um canalha como Kiukhelbéker? – pergunta o Imperador,
franzindo o cenho.
– Nós o consideramos um louco, e o que nos admira é que tenha sido mandado para a
Sibéria juntamente com tantos homens inteligentes e sensatos.

129
Caderno de Literatura e Cultura Russa

– (Início do processo judicial dos Dezembristas; instituição da Terceira Seção,


responsável pela censura e pela repressão de atividades subversivas; início do con-
flito entre a Rússia e a Pérsia.)
1827 – Púchkin, homem maduro de pensamentos porém adolescente quanto
aos sentimentos, envolve-se numa série de aventuras amorosas desastradas, ao
mesmo tempo em que não consegue afastar-se das mesas de jogo, cobrindo-se
de dívidas que tornam sua vida ainda mais difícil. Começa a implicar com a
linha editorial do jornal O Mensageiro de Moscou, que julga repleta de filoso­
fices baratas, e vai diminuindo aos poucos sua colaboração. A polícia czarista
não lhe dá sossego. O czar concede-lhe permissão para viajar a S. Petersburgo.
Chegando lá, o Poeta permanece por pouco tempo, viajando em seguida para
Mikháilovskoie e Trigórskoie com intenção de fugir à agitação da capital e es­
crever. A caminho, encontra-se casualmente com o amigo Kiukhelbéker, que,
condenado a trabalhos forçados perpétuos, está sendo transferido de prisão.
É a última vez que se vêem. O Poeta entra em depressão. Na propriedade fa­
miliar, compõe vários poemas líricos, como “O Poeta” (“Поэт”) e “O Anjo”
(“Ангел”), além de iniciar aquele que teria sido o primeiro romance histórico

O Imperador deu um sorriso. Estava gostando da franqueza, da coragem do tal Púchkin.


Disse mais:
– O que anda escrevendo agora?
– Quase nada, Majestade. A censura é rigorosa.
– Então por que escreve coisas que a censura não pode deixar passar?
– A censura apreende as obras mais inocentes – responde Púchkin. – Ela age indis­cri­mi­
na­damente...
Púchkin alçava o tom da voz. O Imperador se aproximou da mesa, remexeu alguns papéis e
apresentou-lhe uma cópia do poema: ‘14 de dezembro’. Púchkin soltou um suspiro de alívio. Sabia
finalmente o que lhe reprovavam. – Pôs-se imediatamente a contar a istória do malfadado poema:
os versos incriminados eram um trecho inédito do André Chénier e referiam-se aos terroristas da
revolução francesa. Nicolau I pareceu satisfeito com a explicação. Sua máscara distendeu-se. [...]
– Teria tomado parte na sublevação de 14 de dezembro, caso estivesse em S. Petersburgo?
Os olhos de Púchkin faiscaram.
– Sem dúvida alguma, Majestade. Todos meus amigos participavam do complô, ter-me-ia sido
impossível negar-lhes solidariedade. Só minha ausência me salvou e agradeço a Deus por isto. [...]
– Está decidido a mudar de idéias? – pergunta Nicolau I. – Dá sua palavra de honra de que
irá modificar sua conduta se eu lhe restituir a liberdade? [...]
A grande mão branca do Imperador estava estendida, aberta, para Púchkin. Púchkin depo­
sitou nela sua pequena mão suja de unhas muito compridas. E pareceu-lhe cair num precipício.
Fechou os olhos de cansaço, de vergonha e de alegria.
– Você fez muitas besteiras – diz o Imperador. – Espero que seja mais esperto agora e que
não briguemos mais. Você me enviará tudo o que escrever. De agora em diante serei seu cen-
sor” (op. cit., pp. 405-408).

130
Cronologia da Vida e da Obra de A. S. Púchkin

da literatura russa, O Negro de Pedro, o Grande (Арап Пётра Великого)6. De


volta a Peters­­burgo, é novamente incomodado pela polícia a propósito do poe­ma
André Chénier. A publicação de Os Ciganos traz-lhe novos problemas: desta vez
a polícia implica com a capa do livro. A implicância dá em nada, mas a polícia
logo arranja outro motivo de perseguição: uma velha cópia não-assinada do
poema longo Gavrilíada.
1828 – Púchkin volta a Moscou e nega a autoria de Gavrilíada. Escreve os
poemas O Antchar (Анчар), condenando a monarquia como forma de governo,
e Populacho (Простонародье), onde defende a liberdade de criação; compõe
ainda inúmeros poemas líricos, como “Tu e Vós” (“Ты и вы”), “O Afogado”
(“Утопленник”), “O Poeta e a Multidão” (“Поэт и Толпа”). De 3 a 13 de ou­
tubro, escreve o poema longo Poltava (Полтава).
– (Fim da guerra contra a Pérsia; a Rússia recupera o Cáucaso.)
1829 – Púchkin encontra-se no começo do ano com Natália Nikoláievna
Gontcharova, sua futura mulher. Sem permissão, viaja para o Cáucaso e a
Armênia. Participa de alguns embates da guerra contra os turcos, mas é impe­
dido de engajar-se no Exército. Mantém intensa correspondência com Natália
Gontcharova. A viagem propicia-lhe materiais e inspiração para novos poemas:
À Calmuca (Калмычке), Don (Дон), Delibach (Делибаш), Cáucaso (Кавказ),
O Mosteiro de Kazbek (Монастырь на Казбеке), Nas Colinas da Geórgia Re-
pousam as Trevas Noturnas (В холмах Грузии лежит ночиная мгла), além
do poema curto “Eu vos Amei” (“Я вас любил”). Dedica-se à reelaboração
do antigo Reminiscências de Tzárskoie Seló. Paralelamente, inicia a redação do
romance (inacabado) Romance em Cartas (Роман в Письмах). Entrega-se
novamente ao jogo e perde tudo que lhe resta. Volta a Moscou e no mesmo
dia vai visitar Natália Gontcharova, que o recebe com frieza. A mãe da moça
pretende casá-la com um príncipe. Desolado, o Poeta parte para Petersburgo e
pede licença para ir à França ou à China. Permissão recusada, volta a Moscou.
A polícia repreende-o por ter viajado ao Cáucaso sem a permissão do czar,
quer impedi-lo, inclusive, de transitar livremente entre Moscou e Petersburgo.
Púchkin protesta por carta, mas continua sendo vigiado pela polícia.
– (Em guerra contra a Turquia, a Rússia conquista a Transcaucásia; Griboiédov
é morto em Teerã.)
1830 – Púchkin fica noivo de Natália Gontcharova em maio. Em setembro
parte para Boldino para assumir a propriedade (com 200 almas) que o pai lhe
dá de presente. A região encontra-se tomada pelo cólera, o que o impede de

6. O romance como tal permaneceu inacabado, porém o que foi escrito pode ser lido como
um conto. É a primeira incursão de Púchkin na prosa.

131
Caderno de Literatura e Cultura Russa

voltar a Moscou antes de dezembro. Ao voltar, pensa em desistir do casamento


diante das implicâncias e das dificuldades que lhe impõe a futura sogra.
Durante este ano, além dos capítulos finais de Evguiéni Oniéguin, Púchkin
escreve cerca de trinta poemas líricos e satíricos, dentre os quais se destacam:
“O Herói” (“Герой”), “Madona” (“Мадонна”), dedicado à noiva, “Outono”
(“Осень”), “Minha Genealogia” (“Моя Родословная”); e “Para as Margens
de tua Pátria Distante” (“Для Берегов от Чизны Дальной”), “Encanta­mento”
(“Заклинание”), “Elegia” (“Элегия”), “Versos Escritos Durante uma Noite de
Insônia” (“Стихи Сочиненные Ночью во Время Бессоницы”), “Os Diabos”
(“Бесы”), “Adeus” (“Прощанье”), em homena­ge­m a algumas amadas e amantes
do passado. No âmbito da narrativa poética, es­creve as obras “Uma Casinha em
Kolomna” (“Домик в Коломне”), “Tazit” (“Тазит”), “História de uma Ursa”
(“Сказка о Медведихе”) e “O Caso do Pope e de seu Cria­do Balda” (“Сказка
о Попе и о Работнике его Балде”). Em prosa, cria a Histó­ria do Povoado de
Goriúkhin (История Села Горюхина) e o ciclo Histórias do Falecido Ivan Pe-
tróvitch Biélkin (Повести Покойного Ивана Петровича Белкина), composto
dos se­guintes contos e novelas: O Tiro (“Выстрел”), A Nevasca (“Метель”),
O Fazedor de Caixões (“Гробовщик”), O Chefe da Estação (“Станционный
Смотритель”) e A Senhorita-camponesa (“Барышня Крестьянка”). Escreve
ainda as obras dramáticas: O Cavaleiro Avaro (Скупой Рыцарь), Mozart e Sallie-
ri, O Convidado de Pedra (Каменный Гость), Festim durante a Peste (Пир во
Время Чумы) e Don Juan. Também publica na imprensa uma série de artigos
e ensaios sobre literatura e atualidades.­
– (Insurreição polonesa contra o domínio russo sobre parte do território da
Polônia. Nicolau I esmaga a revolta, abole a constituição polonesa e reduz a Polônia
à categoria de província russa.)
1831 – Púchkin fica profundamente abalado com a morte do poeta Diél­
vig, seu amigo e ex-colega de Liceu. Hipoteca a propriedade de Boldino para
enfrentar as despesas do casório. Abandona definitivamente a vida desregrada
que vinha levando. Casa-se com Natália Gontcharova em 18 de fevereiro. Para
escapar da convivência com a sogra perdulária e insidiosa, o casal muda-se de
Moscou para S. Petersburgo e dali para Tzárskoie Seló. No verão, a corte trans­
fere-se para o povoado, e num passeio pelo parque da cidade o casal encontra
o czar e sua mulher. Nicolau I, encantado com a beleza de Natália, oferece a
Púchkin o cargo de conselheiro titular do Ministério dos Negócios Estrangei­
ros, com renda anual de cinco mil rublos. Ao mesmo tempo, encomenda-lhe
uma História de Pedro, o Grande, colocando a sua disposição os Arquivos do
Império para consulta. Entretanto, a czarina exige a presença de Natália nos
eventos da corte. O Poeta endivida-se para fazer frente à exigência imperial.

132
Cronologia da Vida e da Obra de A. S. Púchkin

Nikolai Gógol começa a freqüentar a casa de Púchkin para mostrar-lhe seus


escritos. Púchkin se entusiasma com o novo escritor. No fim do verão, Natália
engravida e o casal muda-se para S. Petersburgo. Natália torna-se presença obri­
gatória nos eventos da corte, o Poeta endivida-se mais ainda. Não tendo mais a
quem recorrer em Petersburgo, Púchkin parte para Moscou atrás de dinheiro
no fim do ano. Para horror dos amigos liberais, que condenam a postura da
Rússia diante da Polônia progressista, o Poeta escreve dois poemas defendendo
a invasão do país vizinho: Aos Caluniadores da Rússia (Клеветникам России) e
Aniversário de Borodinó (Бородинская Годовщина). “Eco” (“Эхо”) destaca-se
entre os poemas líricos escritos neste ano. Além da novela Roslavliov, escreve
ainda os versos do Conto do Czar Saltan... (Сказка о Царе Салтане...) e inicia
suas pesquisas junto aos Arquivos do Império, colhendo dados para sua História
de Pedro (История Пётра).
– (Epidemia de cólera devasta a Rússia.)
– (Primeira encenação da comédia de Griboiédov, A Desgraça de Ter Engenho.)­
1832 – Púchkin volta a Petersburgo e assiste ao nascimento da filha Maria.
Natália retoma imediatamente a vida agitada da corte. O poeta recebe seu pri­
meiro salário na nova função, mas não consegue saldar todas as dívidas. Parte
novamente para Moscou atrás de dinheiro. Volta a Petersburgo em outubro,
mancando da perna direita devido a um forte reumatismo. Desolado com a
frieza da mulher, que acentua a incompatibilidade física existente entre ambos,
Púchkin sai à caça de novos prazeres e os encontra. Seus desejos não eximem
sequer a família imperial, e ele registra em seu diário: “Amo intensamente a
czarina”. Enciumada, Natália esbofeteia o Poeta, que se regozija: “minha Madona
tem mão bastante pesada!” Natália é proclamada pelo czar a “rainha dos bailes da
corte”. Está novamente grávida e não passa bem. Entretanto, Púchkin prossegue
com suas pesquisas nos Arquivos e, além da época de Pedro, o Grande, começa
a estudar documentos relativos à revolta de Pugatchov. Realiza também­uma
série de traduções. De sua produção lírica destacam-se o poema “A Bel­dade”
(“Красавица”) e o ciclo Imitações dos Antigos (Подражания Древним). Inicia
o romance Dubróvski (Дубровский), que permanece ina­cabado, e escreve o
drama em versos A Ondina (Русалка).
1833 – Púchkin luta contra dificuldades financeiras. Em julho, assiste ao
nascimento do filho Aleksandr. Em seguida, parte para Kazan e Orenburgo
para conhecer os lugares onde se deu a revolta de Pugatchov. Em Kazan e Oren­
burgo coleta depoimentos e testemunhos de contemporâneos de Pugat­chov.
Daí recolhe-se em Boldino para escrever. Elabora sua História de Pugatchov
(История Пугачёва), os poemas longos O Cavaleiro de Bronze (Медный
Всадник) e Angelo (Анджело), a novela A Dama de Espadas (“Пиковая Дама”),

133
Caderno de Literatura e Cultura Russa

além dos contos maravilhosos em versos Conto do Pescador e do Peixinho


(“Сказка о Рыбаке и Рыбке”) e Conto da Princesa Morta e dos Sete Bogatyrs
(“Сказка о Мёртвой Царевне и о Семи Богатырях”). Regressa a Petersburgo
em novembro, depois de breve estada em Moscou. Natália, por ciúme e insis­
tência do marido, diminui suas aparições na corte. Ao tomar conhecimento
disso, o czar, uma vez que a etiqueta não permite ao Poeta freqüentar as festas
imperiais por falta de título, concede a Púchkin o título de Pajem Imperial.
O título, assim como o uniforme que lhe corresponde, soa ridículo para um
homem da idade do Poeta.
1834 – Púchkin é isolado pelos antigos companheiros liberais, que não vêem
com bons olhos sua assiduidade na corte e os favores que recebe de Nicolau I.
Em contrapartida, continua sendo atacado pelos monarquistas empedernidos.
O Poeta assume a administração da propriedade familiar de Mikháilovskoie.
Natália está novamente grávida, mas recusa-se a uma vida mais moderada e
aborta. Púchkin adoece em virtude das vicissitudes que vem enfrentando. Sua
correspondência volta a ser violada pela polícia. O Poeta pensa seriamente em
devolver o título recebido do czar e demitir-se do Ministério dos Negócios Es­
trangeiros. Natália, temerosa de perder as benesses da corte, o impede. Púchkin
parte para Boldino em busca de sossego. Lá escreve o conto maravilhoso em
versos O Galo de Ouro (“Сказка о Золотом Петушке”), os poemas do ciclo
Cantos dos Eslavos Orientais (Песни Западных Славян), o conto Kirdjali
(“Кирджали”) e inicia a redação do romance A Filha do Capitão (Капитанская
Дочка). Ao voltar para Petersburgo, encontra a mulher grávida pela quarta
vez. Suas duas cunhadas vêm morar com o casal, o que o obriga a mudar para
uma casa maior, embora não se encontre em condições de assumir novas des-
pesas.
– (Fundação da Universidade de Kíev.)
– (O crítico V. Belínski publica Sonhos Literários.)
1835 – Púchkin vende servos de Boldino para pagar dívidas. Em maio, as­
siste ao nascimento do filho Grigóri. Sem meios de subsistência, o Poeta pensa
em abandonar a corte. O czar concede-lhe um empréstimo e promete-lhe a
licença de fundar uma revista literária, contanto que não se mudem da capital.
O poeta recolhe-se sozinho em Mikháilovskoie. Lá revisa o romance em versos
Evguiéni Oniéguin, redige suas Noites Egípcias (Египетские Ночи) e cerca de
trinta poemas líricos. Ao voltar para Petersburgo, encontra Natália grávida pela
quinta vez. Inicia um romance com a cunhada Aleksandra.
1836 – Púchkin é constantemente atacado na imprensa e nos meios sociais.
Morre-lhe a mãe em março. O Poeta fica arrasado, apesar de Nadiejda Óssipovna
ter sido mãe descuidada, autoritária, nervosa e distante. Consegue finalmente

134
Cronologia da Vida e da Obra de A. S. Púchkin

au­torização para fundar sua revista literária trimestral: O Contemporâneo


(Современник). Ele mesmo recolhe e seleciona os textos a serem publicados,
cor­rige as provas, controla a venda. A censura faz de tudo para prejudicar o
bom andamento do trabalho. Artigos são proibidos por motivos banais, inde­
pendentemente do conteúdo. O primeiro número traz seu O Cavaleiro Avaro e
alguns poemas. Viázemski, Gógol e Jukóvski figuram entre os colaboradores. O
público em geral se decepciona: a revista parece muito séria, não traz mexericos,
moda feminina etc. Em maio, Púchkin assiste ao nascimento da filha Natália.
Em outubro, termina o romance A Filha do Capitão, que espera publicar em
O Contemporâneo.
Ao retomar a vida na corte, Natália reencontra-se com o barão Ge­
orge-Charles D’Anthès, francês chegado à Rússia em 1833, protegido do
embaixador­da Holanda (Heeckeren), que faz carreira no Exército. Passa a ser
vista sempre em companhia do rapaz em bailes, passeios, teatros e recepções. O
affaire chama a atenção de todos. Formam uma espécie de par perfeito: ela, “a
rainha dos bailes” do czar; ele, o mais belo oficial da corte. A proximidade faz
nascer entre ambos uma paixão avassaladora. Púchkin recebe cartas anônimas,
delatando o caso de sua mulher com D’Anthès, ou sugerindo um romance com
o próprio czar. O Poeta irrita-se, faz cenas de ciúme. Natália assegura-lhe que
de sua parte tudo não passa de coquetterie. Púchkin recebe um diploma7, em
papel estrangeiro, no qual é promovido ao grau de “Grão-Mestre da Ordem
dos Cornudos”. Furioso, desafia D’Anthès para um duelo. Desesperado com
a sorte do protegido (que as más línguas dizem amante e que acabara de ser
adotado como filho), o embaixador Heeckeren tenta convencer Púchkin de
que D’Anthès está interessado por Ekaterina, a irmã mais nova de Natália8. O
Poeta não se convence, mas cede às tratativas que visam impedir o duelo. O
casamento de D’Anthès e Ekaterina é anunciado. Púchkin proibe o “noivo” de
freqüentar sua casa. Os mexericos correntes na corte deixam Púchkin colérico.
Pessoalmente, ele considera D’Anthès um covarde, que se apega ao casamen­
to para fugir do duelo. Apesar dessas vicissitudes, o Poeta escreve cerca de
trinta poemas líricos e trabalha numa edição crítica do Dito da Expedição de
Ígor.

7. Cópias do “diploma” são enviadas a amigos de Púchkin.


8. A versão oficial do episódio, segundo H. Troyat, era a seguinte: “D’Anthès amava Ekaterina
e há muito tempo já pretendia desposá-la, mas, até o momento, seu pai adotivo se opusera à
união, que não julgava suficientemente vantajosa para o brilhante oficial. Entretanto,­conside­
rando agora que seu filho era acusado de comprometer uma senhora casada, Heeckeren dava
seu consentimento...” (op. cit., pp. 729-730).

135
Caderno de Literatura e Cultura Russa

– (Início da construção de ferrovias no território russo.)


– (Primeira encenação da peça de Gógol O Inspetor Geral.)
1837 – Púchkin não comparece ao casório de D’Anthès e Ekaterina, reali­
zado no início de janeiro. O embaixador tenta reconciliar seu protegido com
Púchkin, que se recusa. Em vista disso, D’Anthès volta a cortejar Natália des­
caradamente no teatro, nos bailes e nas recepções. Ela não o repele. Pululam
comentários e fofocas9. O czar (enciumado?) chega a aconselhar Natália a cuidar
melhor da própria reputação. Púchkin volta a pensar no duelo. No entanto,
Natália recebe convite de uma amiga para visitá-la e lá encontra D’Anthès,
que lhe propõe abandonar Púchkin e fugirem juntos para o Exterior. Ameaça
suicidar-se diante dela, caso não concorde. Resistindo ao assédio e à chanta­
gem, Natália retira-se minutos depois de ter entrado. Nesse mesmo dia (25/1),
Púchkin recebe uma carta anônima, informando sobre o encontro. Manda,
em contrapartida, uma carta ao embaixador10. D’Anthès resolve bater-se em

  9. Viázemski anota em seu diário: “O rapaz, diante da própria esposa, continua a de­
monstrar sua paixão por Mme. Púchkina. Os falatórios da cidade se reanimaram e a atenção
mortífera do público fixou-se com uma recrudescência de interesse sobre as personagens do
drama que se representa diante dele”. N. Smirnov registra: “Ele não parava de perseguir sua
cunhada, negligenciando qualquer discrição, como se zombasse do ciúme do marido com o qual
não se reconciliou. Quanto ao barão Heeckeren, este o encorajava abertamente”. E novamente
Viázemski: “Ela deveria ter abandonado a vida em sociedade. Faltava-lhe caráter e restabeleceu
suas relações com o jovem Heeckeren como eram antes do casamento deste último. Nada de
culpável, mas muito de inconseqüente...” (H. Troyat, op. cit., pp. 750-751).
10. O teor da carta, escrita originalmente em francês, era o seguinte:
“Monsieur le baron, permita-me resumir-lhe o que se está passando. A conduta do senhor
seu filho é de meu conhecimento há muito tempo e não me pode ser indiferente. Eu me conten­
tava com o papel de observador, pronto a intervir logo que julgasse conveniente. Um incidente,
o qual, em outras circunstâncias, ter-me-ia sido bastante desagradável, veio felizmente em meu
socorro: recebi algumas cartas anônimas. Percebi que o momento era chegado e não deixei
passar. Monsieur conhece o resto: fiz o senhor seu filho desempenhar um papel tão pitoresco,
que minha mulher, espantada com tamanha covardia e vulgaridade, não pode deixar de se rir
e que a emoção, que ela ressentira por essa grande e sublime paixão, apagou-se no mais calmo
desdém e na merecida repugnância.
Devo confessar, Monsieur le baron, que sua participação nisso não foi de modo algum
conveniente. O senhor, representante de uma cabeça coroada, prestou-se paternalmente ao
papel de alcoviteiro do senhor seu filho. Parece que toda sua conduta (bastante inconveniente,
aliás) foi dirigida pelo senhor. Provavelmente, era o senhor quem lhe ditava as bobagens que
ele falava e as tolices que se metia a escrever. Como uma velha indecente, o senhor vivia à es­
preita de minha mulher em todos os lugares, para lhe falar do amor de seu bastardo ou coisa
que o valha; e, quando, doente de varíola, ele se manteve recolhido em casa, o senhor dizia que
ele morria de amores por ela; o senhor sussurrava: devolva-me o meu filho.

136
Cronologia da Vida e da Obra de A. S. Púchkin

duelo para defender o “pai” das acusações. Na manhã do dia 27 de janeiro, Púchkin
recusa-se a nomear um padrinho, mas aceita o desafio de D’Anthès. Enquanto
aguarda os preparativos, trabalha na organização do quinto número da revista O
Contemporâneo. O desafiante insiste que Púchkin deve apresentar um padrinho.
Ao meio-dia, o Poeta sai de casa, encontra-se casualmente com Danzas, ex-colega
de Liceu, e o convida para padrinho. Danzas aceita a contragosto, esperando
poder resolver a questão longe das armas. São elaboradas as condições do duelo.
O encontro de Púchkin e D’Anthès, acompanhados dos respectivos padrinhos,
dá-se por volta das cinco horas da tarde, num campo nevado nos arredores de
Petersburgo. D’Anthès atira primeiro e acerta o Poeta no ventre. Púchkin tomba
sobre a neve. Ergue-se a custo e dispara por sua vez, acertando D’Anthès no
braço. Ferido mortalmente, o Poeta é levado para casa. Chegam os amigos, que
se revezam à sua cabeceira. Púchkin não acredita que o ferimento seja mortal,
apesar das dores atrozes que o fazem perder a consciência a todo instante. Nicolau
I envia-lhe uma carta. O Poeta lê, mas seu conteúdo permanece desconhecido
até hoje. Petersburgo em peso coloca-se diante da casa do Poeta, rezando por
seu restabelecimento. Não são aristocratas, não são cortesãos. É o povo simples.
Aleksandr Serguéievitch morre às 2h45 de 29 de janeiro. Será enterrado junto
com a mãe e os avós Hannibal em Mikháilovskoie uma semana mais tarde.

Bibliografia

Backès, J. L. Pouchkine par lui-même. Paris, Seuil, 1966.


Gitermann, V. Storia della Russia. Firenze, La Nuova Italia, 1978. vol. 1.
Lo Gatto, E. Profilo della Letteratura Russa dalle Origini a Solzenicyn. Milano, Arnoldo
Mondadori, 1975.
Mirsky, S. S. Histoire de la Littérature Russe. Paris, Fayard, 1969.
Troyat, H. Pouchkine. Paris, Plon, 1953.

O senhor está percebendo muito bem, Monsieur le baron, que depois de tudo isso, não
posso tolerar que minha família tenha a menor relação com a sua. É com essa condição que
consenti em não dar continuidade a este caso imundo e em não desonrá-lo aos olhos de nossa
Corte e da sua, como era de minha intenção e direito. Pouco se me dá que minha mulher escute
ainda suas exortações paternas. Não posso permitir que o senhor seu filho, após a conduta
abjeta que manteve, ouse dirigir a palavra à minha mulher, e muito menos que ele lhe dedi­
que trocadilhos de caserna, e represente a devoção e a paixão infeliz, visto que não passa de
um covarde e vagabundo. Sou obrigado portanto a recorrer ao senhor para que ponha fim a
toda esta situação, se lhe interessa evitar um novo escândalo, diante do qual, com certeza, não
recuarei” (H. Troyat, op. cit., pp. 757-758).

137
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Em Russo

Краткая Литературная Энциклопедия; Москва, Сов. Энц., 1962-1972.


МАЙМИН, Е. А. Пушкин: Жизнь и Творчество. Москва, Наука, 1984.
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ТЫНЯНОВ Ю. Пушкин и его современники. Москва, Худ. Лит.,1969.
ЭЙДЕЛЬМАН Н. Пушкин (из биографии и творчества). Москва, Худ. Лит.,1987.

Abstract: This text presents a chronology of the life and work of A. S. Pushkin, elaborated
from the biographical material of the writer published in Russia and in the West. Events in
Russian history and in Russian and European literature, together with occurrences in the
life of the writer himself are taken into consideration.
Keywords: Aleksandr S. Pushkin; Russian literature of the 19th century; life of Pushkin; works
of Pushkin.

138
Reminiscências e
Materiais Biográficos
sobre Púchkin

Resumo: Reúnem-se uma série de depoimentos, reminiscências, trechos de cartas de con-


temporâneos, bem como outros documentos relativos à vida e à obra de Aleksandr Púchkin,
ordenados cronologicamente.
Palavras-chaves: A. S. Púchkin; literatura russa; reminiscências sobre Púchkin; vida de
Púchkin.

Tzárskoie Seló, 1811-1817

I. Púchtchin

Um funcionário do Liceu entrou, com um papel nas mãos, e pôs-se a fazer


a chamada. Ouço: Aleksandr Púchkin. E vejo apresentar-se um garoto vivo,
todo encaracolado, de olhar brilhante, mas aparentando certa confusão. Foi a
semelhança de seu sobrenome com o meu, ou foi algum outro motivo que me
aproximou inconscientemente dele? Desde o princípio, ele sempre me cha-
mou a atenção. Assim como Gortchakov, que na época era uma criança muito
bonita. Esse primeiro movimento deu-nos uma certa ousadia, pusemo-nos a
pe­ram­bular por ali à espera da apresentação ao Ministro e do início do exame.
Alguém, muito provavelmente Vassíli Púchkin, que viera trazer Aleksandr,
chamou-me para apresentar seu sobrinho. Este último me fez saber que estava
morando com seu tio, na Móika, não muito longe de nossa casa. Resolvemos
nos encontrar sempre que possível... Logo, um por um, fomos chamados a
uma outra sala, onde, finalmente, em presença do Ministro, o exame teve início...­
Caderno de Literatura e Cultura Russa

*
Sempre que podia, eu procurava Púchkin, e, às vezes, íamos dar um passeio
no Jardim de Verão... Os outros colegas que reencontrávamos eram Lomonóssov
e Guriov. Madame Guriova convidava-nos de vez em quando a sua casa. Todos
tínhamos notado que Púchkin estava mais adiantado do que nós, que ele já lera
um monte de coisas das quais não tínhamos a mínima noção e que se lembrava
de todas as suas leituras; mas – justiça lhe seja feita – ele não tentava exibir-se
ou ostentar isso diante de nós, o que teria sido normal entre garotos de nossa
idade (tínhamos doze anos)... Ele menosprezava sua própria erudição, e dir-se-ia
que seu ponto de honra era provar suas qualidades na corrida a pé, no salto por
sobre cadeiras e no arremesso da bola. Já suas variações de humor chegavam
a nos causar espanto: primeiro, nós o víamos mergulhado num devaneio ou
numa leitura de nível superior à sua idade, e, de repente, largava o que estava
fazendo e entrava numa espécie de cólera louca, tão-somente porque um colega
o ultrapassara na corrida ou arrebatara de um só golpe todos os palitos do jogo.
Fui testemunha de uma cena dessas na ilha Krestóvski, aonde Vassíli Lvóvitch
costumava nos levar de barco.

Ainda posso rever essa primeira aula da tarde, em que Kochánski, tendo
terminado sua exposição um pouco antes do horário fixado, nos diz: “Agora,
senhores, vamos treinar nossas penas: descrevam-me, por gentileza, uma rosa,
em versos”. Em geral, nossos versos não eram lá muito bem articulados, mas
Púchkin terminara os seus num piscar de olhos e nos leu duas quadras que
granjearam a admiração de todos. Kochánski levou o manuscrito para casa.

O mais comum, depois de uma brincadeira inconveniente, ou de alguma


maldade desastrada, era ele se meter numa situação falsa e não conseguir sair
dela. Isso o levava a cometer outras gafes, que nunca passam despercebidas
num internato. Eu era seu vizinho de dormitório (seu quarto era o último do
corredor) e diariamente, quando todo mundo já estava dormindo, nós conver-
sávamos baixinho através do tabique, discutindo algum acontecimento trivial
do dia; então, eu compreendia claramente que sua susceptibilidade fazia com
que atribuísse demasiada importância a qualquer bobagem e que isso, depois,
deixava-o profundamente perturbado. Entre nós, aplainávamos o melhor que
podíamos certas dificuldades. Havia nele um misto de audácia e de timidez
excessivas, ambas deslocadas, e era isso que o prejudicava. Às vezes acontecia

140
Reminiscências e Materiais Biográficos sobre Púchkin

de cometermos juntos uma traquinagem; eu conseguia me livrar da coisa, mas


ele nunca sabia como se arranjar. O que lhe faltava era o assim chamado tato...
*
Tínhamos resolvido, Púchkin, Malinóvski e eu, beber um goguel-moguel.
Dei um jeito de conseguir uma garrafa de rum, arranjamos ovos, açúcar em
pó, e o trabalho começou diante de um samovar borbulhante. Naturalmente,
não éramos os únicos convivas desses ágapes noturnos, mas os demais per-
maneceram de certo modo nos bastidores; foi um deles, Týrkov, que nos traiu
involuntariamente, pois o rum produzira nele demasiado efeito, e o vigilante
não demorou a perceber uma agitação, uns ruídos e correrias intempestivas
lá em nosso canto. O vigilante avisou o inspetor. O inspetor, depois do jantar,
observou seus alunos e notou aquela exaltação inusitada. Mais que depressa,
começaram os interrogatórios e as investigações. Apresentamo-nos os três e
declaramos que os responsáveis éramos nós e que tínhamos sido os únicos
culpados.
***

E. Engelhardt

A ambição suprema e final de Púchkin é brilhar no domínio da poesia; mas


parece duvidoso que tal ambição possa algum dia encontrar uma base sólida,
pois ele repele qualquer estudo sério, e sua inteligência, por não ter profundidade
nem penetração, é uma inteligência superficial e, por assim dizer, francesa. Esta
é a apreciação mais indulgente que se pode fazer de Púchkin. Seu coração é frio,
vazio. Ele não tem amor, nem convicção religiosa. Talvez nunca o coração de
um jovem tenha sido tão vazio quanto o seu. Os sentimentos de ternura, pró-
prios da adolescência, são aviltados, rebaixados em sua imaginação por todas as
obras eróticas da literatura francesa que ele conhecia quase de cor ao ingressar
no Liceu, como se fosse uma aquisição digna de toda educação inicial1.
***

S. Komóvski

As idéias poéticas o visitavam não somente nas horas de repouso ou duran-


te o passeio, mas também em aula e até na igreja. Então, seu rosto ficava

1. Egor Engelhardt era diretor do Liceu. Havia certa animosidade entre ele e Púchkin. As
observações aqui reportadas constam num relatório escolar datado de 22.3.1816.

141
Caderno de Literatura e Cultura Russa

bizarramente franzido ou se descontraía num sorriso, dependendo do objeto


que prendia sua atenção. Para anotar seus pensamentos, ele se afastava para
um canto do quarto, roía nervosamente as unhas, juntava as sobrancelhas,
inflava os lábios, e daí, com um olhar flamejante, relia em voz baixa os versos
que acabara de escrever.
***

M. Korf

Nele não havia religião nem por fora e nem por dentro, muito menos ele-
vados sentimentos de virtude, e ele chegava a afetar, a esse respeito, um certo
cinismo fanfarrão: zombarias inconvenientes – quase sempre sórdidas – sobre
os mandamentos e os ritos da Igreja, sobre o respeito que se deve aos pais, sobre
as afeições familiares, sobre as relações sociais, tudo isso era para ele moeda
corrente, e estou certo de que, pelo prazer de fazer um bon mot, ele sempre
excedia o que realmente sentia e o que pensava.
***

V. Gaiévski

Na casa da família Engelhardt, composta pela esposa e por cinco crianças,


vivia uma jovem mulher que perdera recentemente o marido e que se chamava
Marie Smith, nascida Charon la Rose. Bonita, amável e espirituosa, ela sabia
animar e unir a pequena sociedade que freqüentava os Engelhardt. Púchkin
começou a cortejá-la e dedicou-lhe um poema bastante inconveniente, inti-
tulado “A uma Jovem Viúva”. Mas a jovem viúva, que ainda não esquecera seu
marido e que se preparava para ser mãe, sentiu-se ofendida, mostrou o poema
a Engelhardt, e foi este o ponto de partida da animosidade que reinou entre o
diretor e seu aluno até o final dos estudos.
***

Certificado

O aluno do Liceu Imperial de Tzárskoie Seló, Aleksandr Serguéievitch


Púchkin, estudou durante seis anos neste estabelecimento, e seus progressos
receberam as seguintes avaliações: em instrução religiosa, lógica, filosofia mo-
ral, direito natural, privado e público, direito russo, civil e criminal – bom; em
literatura latina, economia política, direito financeiro – muito bom; em litera-
tura russa e francesa, assim como em esgrima – excelente. Outrossim, ele estu-

142
Reminiscências e Materiais Biográficos sobre Púchkin

dou história, geografia, estatística, matemáticas e língua alemã. Em razão dis-


so, o Conselho Pedagógico do liceu imperial de Tzárskoie Seló confere-lhe o
presente certificado com seu devido sinete. Tzárskoie Seló, 9 de junho de 1817.
***

São Petersburgo, 1817-1820

M. Korf

Sempre sem um tostão no bolso, sempre crivado de dívidas, por vezes sem
um fraque decente para vestir, enredado em histórias impossíveis, comprometi-
do com vários duelos, intimamente ligado a todos os donos de casas de jogos, a
gerentes de bordéis e a mulheres da vida de Petersburgo, Púchkin representava
o tipo rematado do mais sórdido deboche.
***

A. M. Kolossova-Karatýguina

Ele não conseguia permanecer sentado um minuto sequer. Rodopiava, salti-


tava, mudava de assento, remexia nos arranjos florais, misturava as meadas de lã
da minha bordadeira, desarrumava as cartas de uma enorme paciência iniciada
por minha mãe: “Por que não te acalmas, gafanhoto? – ela gritava – quando
vais parar quieto?” Sacha2 sossegava por dois minutos, depois recomeçava suas
molecagens. Um dia, minha mãe ameaçou o insuportável Sacha de “cortar-lhe
as garras”. Assim chamava ela as unhas intermináveis que ele deixara crescer
nos dedos das mãos.
– Segura a mão dele – disse ela, pegando a tesoura; – vou cortá-las!
Segurei a mão de Púchkin, mas ele conseguiu armar uma baderna dentro de
casa, fingindo soluços, gemidos e queixumes, que nos fizeram morrer de rir...3 

Nós lhe oferecemos nosso camarote, pois não tínhamos dúvida de que, pelo
menos ali, nosso arruaceiro saberia comportar-se. Que esperança! Durante a

2. Diminutivo de Aleksandr.
3. Reminiscências da atriz Kolossova referentes a 1818. O trecho a seguir refere-se a um
episódio ocorrido noTeatro Bolchói, durante convalescença do poeta após ter enfrentado sério
risco de vida em decorrência de doenças venéreas mal curadas. Por ordem médica, tinham-lhe
raspado a cabeça.

143
Caderno de Literatura e Cultura Russa

cena mais patética, Púchkin queixou-se de calor, tirou a peruca e pôs-se a agitá-
-la diante do rosto à guisa de leque. Os espectadores, acomodados nos cama-
rotes vizinhos, rebentaram de rir, enquanto as pessoas sentadas nas poltronas
da orquestra voltaram seus olhares para nós. Tentamos controlar o gaiato; mas
ele deixou-se escorregar da poltrona para o chão, instalando-se aos nossos pés,
oculto pela borda do balcão. Por fim, meteu a peruca na cabeça como um cha-
péu. Era impossível olhar para ele e não rir. Permaneceu ali no chão durante
toda a função, troçando da peça e do desempenho dos atores.

***

I. Lajétchnikov

Tudo aconteceu numa bela manhã de inverno. Faltavam quinze minutos


para as oito. Estava terminando de me vestir e fui ao quarto contíguo, ocupado
pelo major, para ordenar que servissem o chá. Deníssevitch se ausentara para
fazer a ronda de inspeção às cavalariças. Mal acabara de entrar no aposento,
três desconhecidos também o fizeram, vindos do vestíbulo. Um deles era um
homem magricela, de estatura baixa, cabelos crespos e perfil negróide. Vestia
um fraque. Atrás dele, vinham dois valentões, oficiais da Guarda, que faziam
tinir suas esporas e sabres. O civil aproximou-se de mim e disse com uma voz
calma e insidiosa: “Com sua licença, pode me dizer se aqui mora o major De-
níssevitch?” – “Mora, respondi, mas ele acaba de sair, de modo que vou mandar
procurá-lo.” Ia colocar em prática meu oferecimento, quando Deníssevitch
surgiu diante de nós. Ao perceber os dois militares que acompanhavam o civil,
ele pareceu visivelmente perturbado, mas recuperou-se de pronto, assumindo
uma postura marcial. “O que o senhor deseja?” disse secamente ao civil. “O
senhor deve saber perfeitamente”, respondeu o civil. “O senhor me convocou
para as oito da manhã (o civil puxou seu relógio); resta-nos ainda um quarto
de hora. É o bastante para escolher as armas e marcar o lugar do encontro...”
Tudo foi dito num tom impessoal, tranqüilo, como se estivessem tratando da
organização de uma festa entre amigos. Deníssevitch ficou vermelho como
um pimentão e retrucou titubeante: “Não foi para isso que o convoquei a vir
até aqui... Queria lhe dizer que não fica bem a um jovem rapaz como o senhor
gritar em pleno teatro e impedir seus vizinhos de ouvir a peça... É muito incon-
veniente de sua parte.” – “O senhor já teve ocasião de fazer suas admoestações
ontem, diante de um auditório lotado”, disse o civil num tom mais enérgico.
“Não sou mais um colegial e aqui venho para discutir à minha maneira. O
caso não requer muitas palavras. Apresento-lhe minhas testemunhas. Este ca-

144
Reminiscências e Materiais Biográficos sobre Púchkin

valheiro é um militar (apontando para mim), e certamente não recusará ser-


vir-lhe de testemunha. Se estiver de acordo...” Deníssevitch não o deixou ter-
minar. “Não posso me bater com o senhor, disse. O senhor não passa de um
jovem rapaz completamente desconhecido e eu sou um oficial.” Nisso, os dois
outros oficiais desataram a rir. De minha parte, empalideci e comecei a tremer
de raiva, vendo a situação estúpida e humilhante em que se colocara meu ca-
marada. Ao mesmo tempo, toda essa aventura me parecia enigmática. O civil
replicou com firmeza na voz: “Eu sou um nobre russo. Meu nome é Púchkin.
Minhas testemunhas podem comprovar isso. Portanto não lhe trará desdouro
nenhum bater-se comigo”.
Ao ouvir o nome Púchkin, veio-me à cabeça que talvez tivesse ali diante de
meus olhos o jovem poeta a cujo talento o próprio Jukóvski rendia homena-
gem, o corifeu da juventude intelectual de São Petersburgo, e atrevi-me a per-
guntar: “Não é com Aleksandr Serguéievitch que tenho a honra de falar, pois
não?”
– É este justamente o meu nome – respondeu sorrindo.
***

F. Glinka

– Vá diretamente à casa de Milorádovitch4 – disse-lhe eu, – pode ir tranqüilo,


sem qualquer receio. Ele não é um poeta. Mas, lá no íntimo, em suas atitudes
cavalheirescas há muito de romantismo e de poesia. É um incompreendido.
Vá e abra-se inteiramente com aquele coração nobre. Não utilizará contra o
senhor nada que lhe disser em confiança.
Púchkin seguiu meu conselho e foi apresentar-se imediatamente ao general
Milorádovitch.
Três horas depois, também dirigi-me para lá, para prestar contas de uma mis-
são ao general. Milorádovitch, que estava estirado sobre um canapé verde e cober-
to com mantas vistosas, ao me ver , gritou: “Sabes, meu caro, que acabo de receber
a visita de Púchkin? Tinha ordens para detê-lo e apreender todos os seus papéis;
mas achei mais elegante convidá-lo para vir à minha casa e pedir-lhe pessoalmen-
te seus manuscritos. Daí, ele veio, muito calmo, com um rosto sorridente, e quan-

4. No início de 1820, dada a repercussão de sua Ode à Liberdade e dos epigramas que
escrevera criticando autoridades do governo, Púchkin foi convocado a se apresentar ao con-
de Milorádovitch, governador-geral de S. Petersburgo, depois de uma revista realizada por
agentes da polícia política em sua casa. O escritor F. Glinka trabalhava à época sob as ordens
do general.

145
Caderno de Literatura e Cultura Russa

do toquei no assunto dos papéis, foi logo respondendo: ‘Conde, todos os meus
poemas foram queimados: portanto, o senhor não encontrará nada em minha
casa; mas, se faz questão, eu os tenho todos aqui (e apontou a testa com um
dedo). Faça o obséquio de mandar que me tragam papel e escreverei tudo o que
compus (exceto, é claro, o que já foi publicado), indicando o que é de minha
autoria e o que circula com o meu nome’. Trouxeram o papel. Púchkin sentou-
-se e escreveu, escreveu... um caderno inteiro. Ali está (e apontou a mesa, perto
da janela). Surpreende-me... Amanhã, entregarei o caderno ao Czar. Sabes que
Púchkin me encantou pela nobreza de sua linguagem e de sua postura?”
No dia seguinte, arrumei um pretexto qualquer para ir à casa de Milorádo­
vitch e fiquei lá, à espera de que voltasse da audiência com o Czar. Mal entrou
em casa, suas primeiras palavras foram: “Pois bem, está feito! O caso de Pú-
chkin está resolvido”. Depois de ter despido seu uniforme de gala, continuou:
“Fui ter com Sua Majestade, levando em mãos o meu tesouro, entreguei-lhe
o caderno e disse: ‘Nele estão todos os versos que circulam entre o público,
mas seria melhor que Vossa Majestade não os lesse’. O Czar sorriu ante minha
solicitude. Em seguida, apresentei-lhe um relato do que sucedeu entre mim
e Púchkin. O Czar escutava atentamente e, no final, perguntou-me: ‘E o que
fizeste com o autor?’ – ‘Eu? Eu anunciei-lhe o perdão de Vossa Majestade’. Ao
ouvir isso, tive a impressão de que o Czar ficou um tanto melindrado. Após
um breve silêncio, ele disse com vivacidade: ‘Não é um pouco cedo para isso?’
Daí, tendo refletido, acrescentou: ‘Já que é assim, teremos de nos arranjar de
outro modo. Que Púchkin seja expedido em viagem, que se paguem a ele as
despesas de deslocamento, e que vá para o sul, com os proventos de uma função
apropriada e cercado de todas as distinções de conveniência possíveis’ ”. Foi
assim que as coisas se passaram.
***

I. Kapodístria

Caberá ao Senhor Aleksandr Púchkin, aluno de Tzárskoie Seló e funcioná-


rio recente do Ministério dos Negócios Estrangeiros, a honra de entregar esta
carta em mãos de Vossa Excelência5. Ela vem, mon général, colocar este jovem
senhor sob seus auspícios e solicitar para ele a proteção benevolente de Vossa
Excelência.

5. A carta de recomendação do Ministério dos Negócios Estrangeiros ao general Inzov foi


originalmente escrita em francês por I. Kapodístria, assinada por Nesselrode e aprovada pelo czar.

146
Reminiscências e Materiais Biográficos sobre Púchkin

Permita-me fazer alguns reparos a seu respeito:


Tendo passado por toda a sorte de aborrecimentos durante a infância, o
jovem Púchkin deixou a casa paterna sem grandes pesares. Seu coração, despro­
vido de afeição filial, deixou-se afetar apenas pela paixão da independência. Esse
aluno demonstrou imediatamente um gênio extraordinário. Seus progres­sos
no liceu foram rápidos, seu espírito causou admiração, mas seu caráter parece
ter escapado à vigilância dos educadores.
Ele ingressou no mundo, forte pelo ardor da imaginação mas fraco pela
abso­luta ausência daqueles sentimentos íntimos que nos servem de princípios
enquanto a experiência não vem a constituir nossa verdadeira educação.
Não há excesso ao qual esse infeliz jovem senhor não se tenha entregue,
assim como não há perfeição a qual ele não possa alcançar pela superioridade
transcendente de seus talentos.
É justamente às suas produções poéticas que ele deve certa fama, erros muito
graves e amigos respeitáveis, que lhe abrem finalmente o caminho da salvação,
se tempo ainda houver para isso, e se ele decidir-se a segui-lo.
Certos trechos de poesia e sobretudo uma ode sobre a liberdade atraíram a
atenção do governo para o senhor Púchkin.
Em meio às maiores maravilhas de concepção e de estilo, essa última peça
apresenta princípios perigosos tirados da escola da época, ou, melhor, desse
sistema de anarquia que a má-fé denomina sistema dos direitos humanos, da
liberdade e da independência dos povos.
Entretanto, os Senhores Karamzin e Jukóvski, ao tomarem conhecimento
dos perigos aos quais se expunha o jovem poeta, não tardaram em oferecer-
-lhe seus conselhos, fizeram-no reconhecer seus erros e levaram-no a assumir
o compromisso solene de abjurá-los para sempre.
O Senhor Púchkin parece ter-se corrigido, se crédito for dado a suas lágri-
mas e protestos.
De resto, seus protetores crêem que é sincero seu arrependimento, que ser
afastado de São Petersburgo por um tempo, sem deixar de exercer o trabalho e
rodeado de bons exemplos, poderá fazer dele um excelente servidor do Estado,
ou, ao menos, um homem de letras da mais elevada distinção.
Em resposta aos votos desses Senhores, o Imperador autoriza-me a conce-
der um semestre ao jovem Púchkin e a recomendá-lo a Vossa Excelência. Ele
será agregado de Vossa Excelência, mon général, e trabalhará na chancelaria na
qualidade de extranumerário. A sorte dele vai depender do resultado dos bons
conselhos de Vossa Excelência. [...]

***

147
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Cáucaso e Criméia, 1820-1824

I. Iakúchkin

Passávamos os serões nos aposentos de Vassíli Lvóvitch Davýdov e essas


conversas noturnas eram para nós do mais elevado interesse. O general Rai-
évski, sem pertencer à sociedade secreta, mas desconfiado de sua existência,
observava com uma curiosidade contida tudo o que se tramava à sua volta.
Ele não acreditava que minha visita a Kámenka fosse fortuita, e seu mais
alentado desejo era saber os motivos de minha presença ali. Na última noite,
Orlov, Vassíli Davýdov, Okhótnikov e eu tínhamos resolvido agir de modo que
Raiévski ficasse definitivamente desorientado, sem saber se pertencíamos ou
não a alguma sociedade secreta. Para pôr ordem às nossas discussões, Raiévski
foi eleito presidente da assembléia. Entre o divertido e o judicioso, ele se pôs a
dirigir nossos debates. Quando aumentava a algazarra, ele tocava uma sineta,
ninguém tinha o direito de fazer uso da palavra sem sua autorização etc. A
certa altura, tendo pedido a palavra ao presidente, eu tentava demonstrar que
era impossível criar na Rússia uma sociedade secreta que tivesse um mínimo
de eficácia. Raiévski discordou de mim, pôs-se a enumerar todos os casos em
que uma sociedade secreta podia agir com sucesso e felicidade. Em réplica
a uma de suas afirmações, eu disse: “Posso provar-lhe que está brincando. E
vou levantar só uma questão: se existisse atualmente alguma sociedade secre-
ta, estou certo de que o senhor não teria aderido a ela”. – “Com certeza, teria
aderido, sim”, respondeu. – “Já que é assim, dê-me sua mão”, eu disse. E ele me
estendeu a mão; daí, eu desatei a rir e declarei a Raiévski: “Pois bem, tudo isso
não passa de brincadeira”. Todos se puseram a rir conosco, menos Aleksandr
Lvóvitch Davýdov, o extraordinário falastrão, e Púchkin, que estava superex-
citado: Púchkin estava seguro de que existia uma sociedade secreta ou de que
ia ser criada ali, e de que ele ia tomar parte dela; mas, quando viu que a coisa
toda redundava em brincadeira, levantou-se, muito vermelho, e disse, os olhos
marejados: “Eu nunca fui tão infeliz como neste momento. Já podia ver minha
vida enobrecida e um objetivo ideal delinear-se diante de mim, e tudo não
passa de uma farsa maldosa”.
***

I. Kapodístria

Há algum tempo, encaminhei a V. Excia. o jovem Púchkin. Teria necessidade­


de saber, sobretudo nas atuais circunstâncias, a opinião de V. Excia. a respeito

148
Reminiscências e Materiais Biográficos sobre Púchkin

desse jovem rapaz; tem ele, no presente momento, se submetido às inspirações


de seu coração que é naturalmente bom, ou às desordens de sua imaginação
subversiva e doentia?
São Petersburgo, 13 de abril de 1821.

***

I. Inzov

Púchkin, alojado na mesma residência que eu, vem se comportando bem e,


malgrado os conturbados acontecimentos que temos enfrentado, não tem tido
qualquer participação nesse assunto6. Eu o mantenho ocupado com a tradução
para o russo das leis moldavas, que estão redigidas em francês, e, devido a esse
trabalho, bem como a outras tarefas administrativas, não lhe sobra tempo livre.
Inspirado pelos sentimentos comuns a todos os habitantes do Parnaso que
tentam imitar certos escritores da moda, por vezes, ele desenvolve em nossas
conversações idéias de gênero poético. Mas tenho certeza de que com o tempo
e com a idade ele irá se acalmando quanto a isso... Durante sua permanência
na capital, ele recebia uma dotação oficial de 700 rublos, porém, atualmente,
privado desse provento e sem receber qualquer auxílio material da parte de
seus pais, chega às vezes, apesar de toda minha solicitude, a não ter algo con-
veniente para vestir. Por conseguinte, considero meu dever solicitar a V. Excia.
suas providências no sentido de determinar que lhe sejam atribuídos aqui os
mesmos proventos que recebia em São Petersburgo.
Kichiniov, 28 de abril de 1821.

***

Dydítskaia

Púchkin passeava com freqüência no jardim público7. Mas, a cada vez, ele
vinha com trajes diferentes. Podia-se ver Púchkin vestido de sérvio ou de mol­
da­vo, e eram as senhoras de suas relações que lhe emprestavam as roupas. Os
moldavos, naquela época, usavam sotainas. Ou então, ele aparecia trajado como
um turco ou como um judeu, e falava com o sotaque de judeu. E mesmo não
estando em tais trajes, ele sempre dava um jeito de prender uma das abas do

6. Ocorria então uma insurreição na Grécia contra a opressão turca.


7. Em Kichiniov.

149
Caderno de Literatura e Cultura Russa

casaco ao ombro, deixando solta a outra. Chamava a isso “vestir-se de general”.


Costumava ir com Inzov à igreja metropolitana. Inzov postava-se à frente, perto
do coro, enquanto Púchkin se mantinha mais atrás, de modo a não ser visto
pelo general. E, ao mesmo tempo em que se ajoelhava e se prostrava no chão,
fazia caretas para as mulheres conhecidas, sorria-lhes ou sacudia o dedo diante
do nariz como a ralhar com elas ou a adverti-las de alguma coisa.
***

A. Gortchakov

Púchkin ia de boa vontade às festas e saraus, e todos o convidavam com


prazer. Ele tomava parte dos bailes e dos jogos de salão: adorava as cartas
e a dança. A cada recepção, Púchkin deixava-se tomar por novos enlevos e
tornava-se o novo suspirante de uma nova deusa. Era comum ouvi-lo dizer:
“Que beldade! Não posso viver sem ela!” E, no dia seguinte, essa beldade era
substituída por outra.
***

M. Raiévskaia-Volkónskaia

[...] Púchkin, nosso grande poeta, também lá se encontrava. Havia muito


que o conhecia; meu pai o tinha acolhido na época em que fora perseguido pelo
imperador Alexandre I, por escrever poemas considerados revolucioná-rios.
Papai acompanhara em sua desgraça o jovem, possuidor de um talento enorme,
e o levara consigo quando viajamos a uma estação de águas no Cáucaso, uma
vez que sua saúde encontrava-se fortemente abalada. Púchkin nunca se esquecia
disso; mantinha laços de amizade com meus irmãos e nutria um sentimento
de profunda gratidão por todos nós.
Como poeta, considerava-se no dever de apaixonar-se por todas as mulhe-
res bonitas e mocinhas em flor com que se deparava. Lembro que por ocasião
dessa viagem, nos arredores de Taganrog, eu seguia numa carruagem com
Sófia, nossa governante inglesa, a ama russa e uma dama de companhia. Ao
avistar o mar, ordenei uma breve parada, e todo o nosso grupo, descendo
da carruagem, correu em sua direção para admirá-lo. Estava encapelado, e,
longe de imaginar que o poeta viera atrás de nós, por brincadeira, eu me pus
a correr de encontro às ondas e a fugir delas quando ameaçavam me alcan-
çar; por fim, acabei com os pés molhados. Naturalmente, disfarcei e voltei
correndo à carruagem. Púchkin achou esse quadro tão bonito que o celebrou

150
Reminiscências e Materiais Biográficos sobre Púchkin

em versos encantadores, poetizando a travessura pueril; eu tinha apenas 15


anos.
Mais tarde, em A Fonte de Bakhtchissarai, ele disse:

[...] os olhos ela parecia


Ter mais claros que o dia,
Mais escuros que a noite.

No fundo, amava apenas a sua musa, e tratava de envolver numa aura poé-
tica tudo aquilo que via. Mas na época do desterro voluntário das esposas dos
dezembristas para a Sibéria, ele se deixara tomar por um arrebatamento sincero;
queria confiar-me sua Mensagem aos Cativos para ser entregue aos exilados,
mas parti naquela mesma noite, e ele a confiou a Aleksandra Muraviova. [...]
Púchkin dizia-me: “Pretendo escrever um livro sobre Pugatchov. Farei uma
viagem para o lugar, atravessarei o Ural, seguirei adiante e chegarei à vossa casa
nas minas de Nertchin para pedir abrigo”. Ele escreveu sua magnífica obra, por
todos elogiada, mas à nossa casa não chegou.
***

Liprandi

Em Akkerman (Bessarábia)8, Púchkin ora fazia a corte às cinco filhas de


nosso anfitrião, moças feitas e maduras que ele estava vendo pela primeira vez,
ora achegava-se às mesas de uíste e fazia suas apostas... Suas risadas ecoavam
por todos os cantos... Chegamos a Tatar-Bunar ao amanhecer, e paramos ali
para descansar e comer alguma coisa. Enquanto assavam um frango para nós,
Púchkin escrevia, como era seu costume, em tiras de papel, que depois metia
negligentemente no bolso, tornava a pegá-las e a examiná-las... (Em Izmail)
ao recolher-me perto da meia-noite, vi Púchkin sentado num divã como um
turco, rodeado de pedaços de papel. Ele os juntou e empurrou para debaixo de
seu travesseiro... Depois de esvaziar uma garrafa de vinho, adormecemos... Mal
abri os olhos, eu o vi sentado no mesmo lugar da véspera, na mesma posição,
em trajes de dormir, todo rodeado de seus pedaços de papel. Segurava uma
pena na mão e marcava a medida, lendo alguma coisa em voz baixa. Baixava a
cabeça e tornava a erguê-la alternadamente. Ao notar que eu tinha acordado,
arrumou sua papelada e começou a se vestir.

8. A viagem de Púchkin à Bessarábia, em companhia de Liprandi, durou nove dias (14 a 23


de dezembro de 1821).

151
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Às oito da noite, ao chegar de volta à casa (em Odessa), decidi fazer uma
visita ao quarto que Púchkin ocupava. Encontrei-o em excelente disposição
de espírito. Estava em mangas de camisa, sentado sobre os joelhos do Mouro
Ali. O tal Mouro, originário da Tunísia, tinha sido capitão de um navio co-
mercial ou de seu próprio navio. Era um homem bastante alegre, de trinta e
cinco anos, de estatura mediana, corpulento, de rosto tisnado, marcado aqui
e ali pela varíola, mas, de resto, agradável. Ali gostava de Púchkin, que por sua
vez sempre o tratava de corsário... Minha aparição não fez Púchkin mudar sua
atitude. Púchkin elogiou-me o Mouro e acrescentou: “Sinto-me unido a ele;
quem sabe, meu avô não era parente próximo de um ancestral dele?” Tendo
dito isso, pôs-se a fazer cócegas no outro, o que deixava o Mouro exasperado
e Púchkin deliciado.

Fomos encontrar Púchkin à uma hora da tarde, sentado na cama com as


pernas dobradas escrevendo qualquer coisa como de hábito. Ele estava furioso
por causa do baile de máscaras da noite anterior. Contou-nos certos episódios
da festa e demonstrou sua indignação com o procedimento do barão Brunov e
com a satisfação sorridente de Vorontsov... Púchkin não andava nada conten-
te com sua estada em Odessa, em razão da própria sociedade que ele, ao que
parece, sentia-se mais ou menos na obrigação de freqüentar. Eu notava uma
espécie d’abandon na atitude de Púchkin... Ele perdera o hábito e o gosto dos
círculos aristocráticos e familiares regidos pela etiqueta...
***

P. Viázemski

O manuscrito do pequeno poema9 de Púchkin foi comprado por três mil


rublos; ele contém apenas seiscentos versos; assim, cada verso (e esse verso,
ressaltemos isso para os experts na Bolsa, é um versinho de oito pés!), cada
verso, dizia eu, atingiu o preço de cinco rublos e qualquer coisa... O exemplo
dado por Ponomariov, que comprou o manuscrito do poema, merece que o
nome desse editor se torne famoso. Tendo conseguido estimar o valor de uma
obra de arte sem levar em consideração o seu tamanho e peso, ele logrou para
si o respeito e o reconhecimento de todos os amigos da cultura. Para nossa
imen­sa satisfação, podemos acrescentar que ele não se enganou em seus cál-
culos e que já está sendo recompensado com um bom lucro em sua ousadia, a
qual revirou as leis comerciais.

9. Trata-se do poema A Fonte de Bakhtchissarai.

152
Reminiscências e Materiais Biográficos sobre Púchkin

***

F. Víguel

Alguns dias após minha chegada a Odessa, Púchkin, num estado de extre-
ma excitação, entrou em casa como um pé-de-vento para me anunciar que sérias
represálias estavam sendo tramadas contra ele. Nessa época, vários funcionários
subalternos da chancelaria do governador-geral e de outras repartições provin-
ciais haviam sido designados para organizar o combate aos gafanhotos que se
espalhavam pela estepe. Púchkin era um deles. Nada podia ser mais humilhante
para ele... Para poupá-lo, o bom Kaznatchéiev retardou a execução da ordem
e tentou intervir no sentido de obter seu cancelamento. Tentei fazer o mesmo.
Pura perda de tempo. Vorontsov ficou branco logo às primeiras palavras, seus
lábios começaram a tremer e ele disse: “Meu caro, se deseja manter comigo as
mesmas relações cordiais de sempre, nunca mencione o nome deste canalha em
minha presença”. E, depois de uma pausa, ajuntou: “Assim como o de seu digno
amigo Raiévski”. Essas derradeiras palavras me surpreenderam e despertaram
em mim certas suspeitas10.
***

K. Nesselrode

Infelizmente, tudo leva a crer que Púchkin se deixou levar pelos princípios
nocivos que, de maneira tão funesta, se manifestaram no início de sua carreira.
Vossa Excelência11 poderá se convencer disso pela carta que segue anexada a
esta12. O Imperador encarregou-me de fazê-la chegar às vossas mãos. Ela foi
interceptada pela polícia, pois, tendo passado de mão em mão, tornou-se do
conhecimento geral. Em seguida, Sua Majestade ordenou-me, à guisa de punição
legal, excluir Púchkin do corpo de funcionários do Ministério dos Negócios­
Estrangeiros por má conduta; entretanto, Sua Majestade não deseja deixá-lo
sem alguma sorte de vigilância, pois que, aproveitando-se de sua condição de
independência, ele divulgaria sem dúvida e sempre mais as idéias perniciosas
que professa e obrigaria as autoridades a tomarem contra ele as mais severas

10. Em Odessa, submetido à guarda do general Vorontsov, cuja casa freqüentava, Púchkin
(e depois o amigo Raiévski) mantém uma ligação amorosa com a mulher deste, Elizavieta
Vorontsova.
11. Nesta carta, cujo original em francês extraviou-se depois de uma tradução para o russo,
o ministro Nesselrode dirige-se ao general Vorontsov.
12. Trata-se, ao que se sabe, de uma carta em que o poeta manifestava-se de modo favorá-
vel ao ateísmo.

153
Caderno de Literatura e Cultura Russa

medidas. Para evitar o quanto possível tais conseqüências, o Imperador pensa


que, no presente caso, ele deve ser não apenas dispensado do serviço, bem
como deve ser isolado na propriedade da família, na província de Pskov, sob a
vigilância das autoridades locais. Vossa Excelência deverá comunicar a Púchkin
a presente decisão, que ele deve executar à la lettre, e enviá-lo sem delongas a
Pskov, após tê-lo dotado da quantia necessária aos cavalos de posta.
***

Mikháilovskoie, Trigórskoie, 1824-1825

I. Púchtchin

Em 1824, em Moscou, soube-se logo que Púchkin havia sido deportado de


Odessa para a aldeia de sua mãe, na província de Pskov, e submetido à vigilância
das autoridades locais; Pechtschúrov, oficial da nobreza da comarca de Opotchka
naquela época, foi encarregado de vigiar Púchkin. Pouco tempo depois, dizia-se
que Púchkin estava sob a guarda do arcipreste do mosteiro Sviato­górski, que
ficava a quatro verstas de Mikháilovskoie.
Tão logo fiquei sabendo da deportação de Púchkin, veio-me o desejo de
visitá-lo sem demora...
Passei as Festas na casa de meu pai, em Petersburgo, e depois da Epifania
parti para Pskov. Estive alguns dias na casa de minha irmã e de lá, ao anoitecer,
prossegui minha viagem; em Óstrov, onde pernoitei, comprei três garrafas
de Clicquot, e na manhã do dia seguinte já estava perto do meu destino. Por
fim, desviamos para um lado e voávamos através de um bosque, seguindo um
caminho acidentado. O tempo todo tinha a impressão de que íamos devagar.
Descendo uma encosta, já próximo à propriedade, que os pinheiros espessos
não deixavam ver, meu trenó deu tamanho solavanco, ao passar por um buraco,
que o cocheiro caiu da boléia. Aleksiéi, meu companheiro inseparável desde
o umbral do liceu até as portas da fortaleza, e eu fizemos de tudo para nos
mantermos no trenó. E conseguimos tomar as rédeas.
Os cavalos galopavam por entre lombadas de neve, e não havia perigo: não
podiam precipitar-se para o lado, pois estávamos rodeados pelo bosque, a neve
chegava-lhes à barriga, e nem havia necessidade de conduzi-los. De novo subía­
mos a encosta por um atalho sinuoso: chegamos repentinamente a uma curva
fechada e, como que inesperadamente, atravessamos à toda o portão escanca-
rado, acompanhados pelo alvoroço da campainha. Não conseguimos deter os

154
Reminiscências e Materiais Biográficos sobre Púchkin

cavalos diante do alpendre, levaram-nos mais adiante, e ficamos atolados na


neve que cobria o pátio.
Olhei para o lado: avistei Púchkin no alpendre, descalço, em mangas de
camisa, as mãos erguidas. É difícil dizer o que senti na hora. Saltei do trenó,
estreitei-o nos meus braços e só nos separamos dentro da casa. Fora, fazia um
frio de rachar, mas há momentos em que a pessoa não sente frio. Olhávamos
um para o outro, beijávamo-nos, calávamos. Ele se esqueceu de que devia cobrir
sua nudez e eu nem reparava que meu capote e meu gorro estavam cobertos
de neve.
Era por volta das oito da manhã. Não tinha idéia do que acontecia ao redor.
Chegou correndo uma anciã e nos encontrou abraçados tal como tínhamos
entrado na casa: um quase nu e o outro salpicado de neve. Por fim, olhos
marejados de lágrimas (até mesmo agora, passados trinta e dois anos, elas me
impedem de escrever, turvando-me a vista), recobramo-nos da emoção. Eu me
sentia constrangido diante da mulher, porém ela compreendera tudo. Não sei
por quem me tomava, mas a verdade é que não perguntou nada e me abraçou.
Adivinhei na hora que se tratava da velha ama13 que ele tantas vezes cantara;
quase a estrangulei nos meus braços.
Tudo se passava num espaço muito reduzido. A habitação de Aleksandr
ficava junto do alpendre, e a janela, pela qual tinha me visto, ao ouvir as cam-
painhas, dava para o pátio. Naquele pequeno aposento havia uma cama com
dossel, uma escrivaninha, uma estante de livros etc. etc. Reinava por toda a
parte uma desordem poética, folhas de papel escritas e pedaços de penas mor-
didas e queimadas (desde que estudávamos no liceu, escrevia com pequenos
tocos de pena que mal davam para segurar nos dedos) encontravam-se espa-
lhados por ali. A porta do aposento dava para um corredor; em frente achava-
-se a porta do aposento da ama, onde uma multidão de rendeiras trabalhava
com bilros.
Depois de nossos primeiros abraços, Aleksiéi entrou e começou, por sua
vez, a beijar Púchkin; não só o conhecia bem e o apreciava, como também
recitava de cor muitos de seus poemas. Enquanto isso, eu procurava com os
olhos onde podíamos nos lavar e recompor um pouco. A porta que dava para
os outros aposentos estava fechada, a casa toda não era aquecida. Finalmente,
tudo se ajeitou na medida do possível, entre perguntas entrecortadas: O quê,
como, onde? etc. Em sua maior parte as perguntas ficavam sem resposta. Por
fim, conseguimos nos recompor; serviram-nos café; sentamo-nos com os ca-
chimbos nas mãos. A conversa foi seguindo seu curso; era muito o que havia

13. Referência a Arina Rodiónovna Iákovleva.

155
Caderno de Literatura e Cultura Russa

para ser contado cronologicamente, e muitas as perguntas que deviam ser fei-
tas. Agora não conseguiria reproduzir tudo.
Em geral, Púchkin pareceu-me um pouco mais sério que antes, embora
conservasse sua alegria; é possível que tenha sido sua própria situação a fazer
com que o enxergasse desse modo. Regozijava-se como uma criança com o
nosso encontro e disse várias vezes não acreditar que estivéssemos juntos. Sua
antiga vivacidade manifestava-se em tudo, em cada palavra, em cada lembrança.
Naturalmente, as lembranças eram infindáveis em nossa animada conversa.
Mudara muito pouco de aparência, exceto pelas suíças que estavam mais bas-
tas; eu diria que guardava grande semelhança com o retrato que vi mais tarde
em Flores do Norte e que figura agora na edição de suas obras, cuidada por
Pável Ánnenkov.
O próprio Púchkin não conhecia os motivos de seu confinamento na
aldeia; achava que o tinham feito abandonar Odessa devido às intrigas do
enciumado conde Vorontsov; supunha também que alguns documentos de
trabalho mais ousados, seus epigramas sobre a administração e algumas
conversas particulares imprudentes sobre religião podiam ter desempenhado
papel relevante nisso.
Tive a impressão de que tocava no assunto de má vontade; deduzi-o pelo
laconismo de suas respostas a algumas perguntas que fiz, e por isso pedi-lhe
que mudássemos o rumo da conversa, ainda mais que todas as nossas conjec­
turas não conduziam a lugar nenhum, além de nos afastar de outros temas
que nos eram mais caros. Notava-se que a vida agitada de antes, que lhe trazia
freqüentes incômodos, deixava-o um tanto entediado.
Em meio à conversa, perguntou ex abrupto o que se dizia dele em Petersburgo
e Moscou. Respondi que seus poemas haviam adquirido popularidade em toda a
Rússia e, além disso, que os conhecidos e os amigos rememoravam-no, queriam­
e desejavam sinceramente que seu confinamento terminasse imediatamente.
Ouviu-me pacientemente e disse que naqueles quatro meses havia se resig-
nado à sua nova vida, mas que no começo fora muito angustiante; disse ainda
que estava se entendendo bem com as musas e que andava se dedicando ao
trabalho com prazer e assiduamente. Lamentava apenas a ausência de sua irmã14,
mas não admitira que ela viesse entediar-se todo um inverno no campo, por
simples devotamento a ele. Tecia muitos elogios aos vizinhos de Trigórskoie,
e queria a todo custo levar-me à casa deles, mas recusei, pretextando o pouco
tempo que me restava para passarmos juntos. Troçamos de tudo e de todos,

14. Referência a Olga Serguéievna Púchkina.

156
Reminiscências e Materiais Biográficos sobre Púchkin

contamos anedotas e rimos a valer. Quantos detalhes valiosos não teriam sido
conservados, caso tivéssemos ali um taquígrafo!
Púchkin me fez contar sobre nossos colegas de liceu; pediu que lhe explicasse
como era que, sendo da artilharia, eu me tinha tornado um juiz. Isso o deixava
contente e ele se orgulhava de mim! [...]15. Sem que percebêssemos, comentamos
nossas apreensões em relação à sociedade. Quando lhe contei que eu não era o
único que havia me encaminhado para um novo serviço à pátria, levantou-se
bruscamente da cadeira e praticamente gritou:
– É claro que isso tem a ver com o comandante Raiévski, que já faz mais
de quatro anos é mantido na fortaleza de Tiráspol, e de quem não conseguem
ar­rancar uma palavra. – Logo se acalmou e prosseguiu: – Enfim, meu caro
Púchtchin, não quero forçá-lo a falar sobre isso...
Beijei-o emocionado e em silêncio; abraçados, andávamos de um lado para
o outro do aposento; ambos precisávamos descansar.
Em seguida, entramos no quarto da ama, onde as costureiras já estavam
reunidas. Notei de imediato uma que se distinguia muito das demais, mas
não cheguei a comentar com Púchkin minhas conclusões. Eu o contemplava
in­vo­lun­­tariamente com um sentimento novo, que surgira do inusitado da
situação, que, para mim, o colocava lá no alto, e receava que qualquer comen-
tário inconveniente pudesse ofendê-lo. De resto, ele não demorou a captar
meu pensamento malicioso e, em resposta, sorriu com ar significativo. Eu não
precisava mais que isso; pisquei um olho para ele e entre nós tudo se esclareceu
sem necessidade de palavras.
A ama, tricotando um pé de meia, caminhava toda séria entre seu jovem
batalhão. Admiramos os trabalhos das moças, fizemos alguns gracejos e volta-
mos ao aposento de Púchkin. Era hora de jantar. Aleksiéi estourou a primeira
garrafa de champanhe. Brindamos à Rússia, ao Liceu, aos amigos ausentes e à
liberdade. Inopinadamente, uma segunda rolha foi bater no teto; aquecemos a
ama com o vinho espumante, e as demais com um licor caseiro. As mulheres
todas ficaram mais alegrinhas; o barulho cresceu ao redor, e comemoramos
nosso reencontro com o coração leve.
Eu havia trazido para Púchkin A Desgraça de Ter Engenho16; ele ficou muito
contente de ter em mãos essa comédia, que então circulava apenas em forma
de manuscrito e de cujo conteúdo ele desconhecia a maior parte. Depois do
jantar, enquanto saboreava seu café, iniciou a leitura em voz alta; é pena, de

15. Na passagem aqui omitida, Púchtchin cita alguns versos do poema “Aniversário de 19
de Outubro de 1825”, em que Púchkin rememora detalhes da visita do amigo.
16. Comédia de Griboiédov.

157
Caderno de Literatura e Cultura Russa

novo, que não me lembre de seus comentários acertados, os quais, naturalmente,


devem ter sido publicados parcialmente pela imprensa.
Enquanto lia a comédia, alguém se aproximou do alpendre. Púchkin
deu uma olhada pela janela, pareceu perturbar-se e abriu precipitadamente
um breviário que se achava em cima da mesa. Ao notar sua perturbação e
sem desconfiar da causa, perguntei: “O que aconteceu?” Não teve tempo de
responder. Acabara de entrar no cômodo um monge ruivo e atarracado que
se apresentou a mim como abade do mosteiro vizinho. Pedi sua bênção.
Púchkin fez o mesmo e convidou-o a sentar-se. O monge desmanchou-se
em desculpas por nos ter incomodado; disse que, ao tomar conhecimento
do meu sobrenome, tivera esperança de encontrar ali seu amigo P. S. Púschin,
natural de Velíkie Lúki, a quem não via desde muito. Não restava dúvida de que
o abade fora informado da minha chegada e de que tudo aquilo era uma ence-
nação.
Embora sua visita fosse muito inoportuna, quis faire bonne mine à mauvais
jeu e tentei convencê-lo do contrário: expliquei-lhe que meu sobrenome era
17

Púchtchin e fora colega de liceu do dono da propriedade, enquanto que seu


conhecido, o general Púschin, era comandante de um regimento em Kichiniov
onde eu o conhecera em 1820. Falamos disso e de outras coisas. O chá foi
servido. Púchkin mandou trazer rum, que, pelo visto, devia saber muito bem
ao abade. Entornou dois copos de chá, sem recusar o rum, despediu-se logo
depois, desculpando-se novamente por ter interrompido o reencontro dos
amigos.­
O fato de termo-nos livrado do visitante intruso deixou-me bastante satis-
feito, mas senti-me incomodado por Púchkin, que se comportara como um
colegial diante de um superior. Expressei-lhe meu descontentamento por ter
sido o motivo da aparição do abade.
– Deixa disso, meu velho! Ele teria vindo do mesmo modo. Recebeu a in-
cumbência de me vigiar. Para que perder tempo com tamanha mesquinharia?
E Púchkin, como se nada fora, retomou a leitura da comédia; eu o escutava
com extraordinário prazer, dada sua expressividade e brilhan­tismo, e sentia-me
muito contente por ter-lhe proporcionado tão elevado deleite.
Depois, declamou para mim alguns poemas seus, na maioria fragmentos,
que mais tarde viriam a fazer parte de suas obras mais notáveis. Recitou-me
também o início do poema Os Ciganos, que escrevera para A Estrela Polar e
pediu-me para dar um forte abraço em Ryléiev e agradecer-lhe pelos seus pen-
samentos patrióticos.

17. Em francês, no original.

158
Reminiscências e Materiais Biográficos sobre Púchkin

Passava da meia-noite. Serviram uma pequena ceia. A terceira rolha espo-


cou, saudando nossa despedida. Beijamo-nos com a esperança de nos revermos
brevemente em Moscou. Essa frágil esperança amenizou a separação, depois
daquele dia tão adorável quão breve. O cocheiro já atrelara os cavalos; a cam-
painha retinia diante do alpendre; o relógio bateu três horas. Fizemos novos
brindes, mas estávamos tristes; um pressentimento nos dizia que era a derra-
deira vez que bebíamos juntos, que brindávamos às vésperas de uma separação
eterna.­Sem dizer uma palavra, joguei sobre os ombros minha peliça e corri
para o trenó. Púchkin ainda estava me dizendo algo, mas eu não o escutava,
fiquei olhando para ele: estava parado no alpendre, a vela na mão. Os cavalos
dispararam encosta abaixo. Ouvi: “Adeus, amigo”. E a porteira rangeu às minhas
costas.­
***

Um Mujique de Mikháilovskoie

Ele era bom e gentil, mas meio maluco ao que parece; certa vez eu estava
na estrada de Mikháilovskoie e vejo que avança ao meu encontro; e de repente,
ele pára, como se tivesse levado uma paulada; eu fiquei assustado e tratei de
me esconder no campo de centeio. Ponho-me a olhar e lá está ele falando em
voz alta, com seus próprios botões, e mudando de voz e agitando os braços,
feito um louco sem tirar nem pôr... A gente sempre o encontrava nas aldeias,
quando tinha festa. Ele aparecia vestido com uma camisa vermelha e com as
botas engraxadas, aproximava-se do coro das mocinhas e ficava ali ouvindo,
ouvindo suas canções...

***

A. Kern

Eu admirava Púchkin e estava ansiosa por conhecê-lo pessoalmente. Meu


desejo foi satisfeito durante uma temporada na casa de minha tia18, em Tri­
górskoie, em junho de 1825. Foi assim: estávamos à mesa do almoço, rindo do
jeito de um certo senhor Rókotov, que vivia repetindo pardonnez ma franchise
e je tiens beaucoup à votre opinion19. Púchkin entrou de supetão, com um bas-

18. Trata-se da proprietária da aldeia de Trigórskoie, Praskóvia Aleksándrovna Óssipova.


19. Em francês, no original.

159
Caderno de Literatura e Cultura Russa

tão grosso na mão. Depois dessa vez, aparecia sempre durante o almoço, mas
não se sentava à mesa: almoçava em sua casa, bem mais cedo, e comia mui-
to pouco. Vinha sempre acompanhado por mastins enormes. A tia, ao lado
de quem estava sentada, apresentou-nos. Ele me fez uma profunda mesura,
porém não abriu a boca: todos os seus movimentos denotavam timidez. Eu
tampouco sabia o que lhe dizer, e demoramos bastante para nos aproximarmos
e entabularmos uma conversa. Não era fácil fazer amizade com ele. Mostrava-
-se muito inconstante no trato; ora manifestava uma alegria ruidosa, ora
parecia tristonho e tímido, e daí se mostrava atrevido, depois muito amável
ou então aflitivamente entediado, e era impossível adivinhar qual seria seu
humor no momento seguinte. Certa ocasião, mostrou-se tão pouco amável
que ele mesmo, depois, acabou confessando à minha irmã: Ai-je été assez vul-
gaire aujourd’hui 20. A bem da verdade, ele não sabia ocultar seus sentimentos,
expressava-os sempre com sinceridade e parecia indescritivelmente belo quan-
do algo agradável o emocionava... Quando resolvia mostrar-se gentil, nada se
comparava ao brilho, à sutileza e à amabilidade de sua linguagem... Púchkin era
inegavelmente simpático quando se propunha cativar e entreter numa reunião.
Certa vez apareceu com essa intenção em Trigórskoie, trazendo seu enorme
livro preto, em cujas margens desenhara pernas e cabeças, e disse que o tinha
trazido para mim. Sentamo-nos ao seu redor e ele nos declamou Os Ciganos.
Ouvimos pela primeira vez este poema maravilhoso, e nunca esquecerei da
admiração que invadiu o meu peito... Sentia-me embriagada seja pela fluidez
dos versos do maravilhoso poema, seja pelo modo como ele o declamava, tão
musical, que eu experimentava um prazer indescritível; sua voz era cantante,
melodiosa e, como ele mesmo diz de Ovídio em Os Ciganos, “Suave como o
murmúrio das águas”.

O tempo estava magnífico, aquela noite de junho, iluminada por um luar


maravilhoso, estava impregnada do frescor e do aroma dos campos. Nós nos
dividíramos entre duas charretes: minha tia e seu filho numa delas; Annete21,
Púchkin e eu na outra. Nem antes e nem depois eu o vi tão alegre e amável.
Gracejava sem malícia, sem sarcasmos, admirava a lua, evitava chamá-la de
“besta” e dizia: “J’aime la lune quand elle éclaire un beau visage”22. Ao chegar
a Mikháilovskoie, não fomos visitar a casa de imediato, mas passear direta-

20. Em francês, no original.


21. Referência a Mária Ivánovna Óssipova, prima de Anna Kern.
22. Em francês, no original.

160
Reminiscências e Materiais Biográficos sobre Púchkin

mente no velho jardim abandonado, com longas alamedas ladeadas por árvo-
res veneráveis, cujas raízes emaranhadas me fizeram tropeçar diversas vezes, o
que assustava meu companheiro. Minha tia, que vinha atrás, disse: “Mon cher
Pouchkine, faites les honneurs de votre jardin à Madame”23. Mais que depressa ele
me deu a mão e pôs-se a correr rápido, bem rápido, como um colegial a quem
deram permissão de sair. Não me lembro mais dos detalhes de nossa conversa.
Ele evocava nosso primeiro encontro em casa dos Oliénin24, falava disso tomado
de paixão, de êxtase, e por fim declarou: “Vous aviez un air si virginal; n’est-ce
pas que vous aviez sur vous quelque chose comme une croix?”25
No dia seguinte, eu devia partir para Riga... Ele veio de manhã e me trouxe
como presente de despedida o segundo capítulo do Evguiéni Oniéguin, em fo-
lhas almaço. Entre as páginas, encontrei um papel de carta dobrado em quatro
e trazendo os versos:
Lembro-me do instante maravilhoso...
Quando eu ia guardar esse presente poético num cofrinho, ele me fitou
demoradamente, depois tirou-me a folha com um gesto nervoso e recusou-se
a devolvê-la; tive que insistir muito para que me devolvesse; o que lhe viera à
cabeça naquele momento? Não faço a menor idéia.
***

P. Bestújev

As idéias liberais germinaram em meu cérebro depois da leitura de alguns


poemas manuscritos, tais como Ode à Liberdade, O Populacho, Meu Apolo, e de
certas cartas devido às quais nosso célebre poeta Púchkin fora importunado26. 
***

Bestújev-Riúmin

Ouvia por toda a parte lerem com entusiasmo os versos de Púchkin. Isso foi
aprofundando em mim o amor que eu nutria pelas idéias liberais.
***

23. Em francês, no original.


24. Em Petersburgo, 1819.
25. Em francês, no original.
26. Esta e as citações seguintes, dos dezembristas P. Bestújev, Dívov, Bestújev-Riúmin e
barão Steingel, constam dos depoimentos que prestaram e dos interrogatórios a que foram
submetidos depois da revolta de 14 de dezembro de 1825.

161
Caderno de Literatura e Cultura Russa

V. Chteingueil

Quem, por acaso, entre a juventude culta, não lia e não admirava os poemas
de Púchkin dedicados à liberdade?
***

O Agente Secreto Locatelli

Todo mundo se admira de ver que o famigerado Púchkin, de reconhecido


espírito subversivo, não foi interrogado a propósito da conspiração.
***

Moscou e Petersburgo, 1826-1837

Nicolau I

Hoje tive uma longa conversa com o homem mais inteligente da Rússia,
Púchkin27.
***

N. Putiata

O teatro28 estava repleto de cortesãos, de militares, de funcionários públi-


cos, de diplomatas estrangeiros. Reunia-se ali a nata da mais alta sociedade de
São Petersburgo e Moscou. Quando Púchkin entrou na sala, um burburinho
tomou conta de todo o teatro. Seu nome passava de boca em boca. Todos os
olhares, todas as atenções concentraram-se nele. À saída, a multidão o rodeava,
havia quem o apontasse de longe, pois era facilmente reconhecível pelo tom
claro do chapéu. Encontrava-se então no apogeu de sua popularidade.
***

27. Declaração feita em tom divertido pelo czar, na noite de 8.9.1826, durante baile na
Embaixada Francesa, em Moscou. Púchkin acabara de chegar à cidade nesse dia e fora recebido
pelo czar para acertarem os termos do final do exílio do poeta.
28. Trata-se do Teatro Bolchói de Moscou, onde em 12.9.1826 estava sendo levada a comédia
de Chakhovskói, Aristófanes.

162
Reminiscências e Materiais Biográficos sobre Púchkin

A. Izmáilov

[...] Invejo Moscou. Ela coroou um czar, agora coroa um poeta... Perdão, ia
me esquecendo: Púchkin é digno dos triunfos de Petrarca e do Tasso, mas os
moscovitas não são os romanos, e o Krémlin não é o Capitólio29.
***

M. Pogódin

É impossível descrever a impressão que essa leitura30 produziu em nós. Ainda


hoje – e quarenta anos já se passaram, – só de lembrar, meu sangue ferve nas
veias. Estávamos à espera da aparição de um majestoso sacerdote da arte, e
vimos entrar um homem de estatura mediana, mais para o miúdo, de cabelos
longos e encaracolados nas pontas, os olhos vivos e ágeis. Parecia agitado. Seus
gestos eram sincopados, sua voz agradável. Vestia um fraque preto, um colete
de tom escuro todo abotoado e uma gravata com um nó descuidado... Os
primeiros quadros foram ouvidos em silêncio e tranqüilidade, ou, para dizer
melhor, ouvidos com uma espécie de espanto. Porém, à medida que sua leitura
avançava, mais forte se tornava essa impressão. A cena do monge cronista e de
Grigóri deixou todo mundo estarrecido. Uns sentiam-se mal, outros se arrepia­
vam. Os cabelos se eriçavam. Era impossível conter-se. Alguns pulavam de
seus assentos, ou emitiam gritos. Uns tinham os olhos marejados de lágrimas,
outros estavam no sétimo céu. Silêncio. Depois, aplausos. A leitura finalmente
terminara. Fitamo-nos demoradamente e lançamo-nos sobre Púchkin. Hou-
ve abraços, gritos, risadas, lágrimas e felicitações... Trouxeram champanhe
e Púchkin pareceu comovido ao constatar como era apreciado pela geração
jovem e culta de seu tempo... Já não me lembra nossa despedida, nem quando
nos recolhemos para dormir. Mas foram poucos os que conseguiram dormir
naquela noite, tão tocados ficáramos com a leitura.
***

Agente Bíbikov

Exerço sobre o escritor Púchkin o máximo de vigilância. As casas que ele


freqüenta são as da princesa Zinaída Volkónskaia, do príncipe e poeta Viázemski,

29. Trecho de carta do escritor a um amigo (29.9.1826).


30. Trata-se de uma das primeiras leituras que Púchkin fez aos amigos de sua tragédia
Boris Godunov.

163
Caderno de Literatura e Cultura Russa

do ex-ministro Dmítriev, do procurador Jikháriev. A maior parte das conver-


sações giram em torno da literatura. Ele acabou de escrever a tragédia Boris
Godunov, cuja leitura me foi prometida e na qual, segundo se diz, não há nada
de liberal.
É verdade que as damas incensam e mimam o jovem escritor; por exemplo,
quando do desejo, manifestado por ele numa reunião, de engajar-se, várias
pessoas retrucaram ao mesmo tempo:
– Para que engajar-se? Enriqueça nossa literatura com seus escritos sublimes;
já não está a serviço das nove irmãs? Há engajamento mais belo?
Outra diz: – O senhor já está engajado no gênio. – E assim por diante.

***

A. Benkendorf

Sua Majestade Imperial não apenas não proíbe a V. Nobreza voltar à Ca-
pital, bem como concede-lhe total liberdade a respeito, desde que, entretanto,
o senhor solicite a devida autorização por carta... As obras de V. Nobreza não
serão mais submetidas a qualquer exame; não haverá mais censura para elas; o
Czar em pessoa será o primeiro juiz de seus escritos e único censor31.
***

M. Iuzéfovitch

Ele passava o dia inteiro escrevendo32. Versos lhe apareciam em sonho, e,


no meio da noite, pulava da cama para anotá-los em plena escuridão. Quando
sentia fome, corria à taverna mais próxima, mas os versos não o abandonavam.
Comia o que lhe caía nas mãos, apressadamente, e voltava correndo para anotar
os pensamentos que lhe tinham vindo a caminho ou durante a refeição. Assim,
escrevia ele centenas de versos por dia. Quando os pensamentos não lhe che-
gavam em forma de versos, ele os registrava em prosa. Em seguida, corrigia o
que escrevera, suprimindo às vezes três quartos da primeira versão. Pude ver
em seu quarto folhas de rascunhos tão rasuradas que era impossível decifrá-las:
acima do risco das linhas, havia várias outras linhas escritas, de modo a não
restar no papel o menor espaço em branco.
***

31. Carta a Púchkin, datada de 30.9.1826.


32. Nessa época, outubro de 1828, Púchkin compunha seu poema longo Poltava.

164
Reminiscências e Materiais Biográficos sobre Púchkin

A. Oliénina
Entre as peculiaridades do poeta destacava-se a de gostar de pés pequenos,
que, num de seus poemas, ele alegava preferir à própria beleza. Annette33 reunia
a uma aparência passável duas coisas: tinha olhos ora bonitos, ora estúpidos.
Mas seu pé era realmente bem pequeno e quase nenhuma de suas amigas con-
seguia calçar os seus sapatos.
Púchkin tinha notado essa qualidade e seus olhos ávidos perseguiam sobre
o soalho liso os pés da jovem Oliénina.
Ele acabara de voltar de um exílio de seis anos. Todo mundo, homens e
mulheres, apressava-se em demonstrar-lhe as atenções que se dispensam a um
gênio. Alguns o faziam por moda, uns para ver se conseguiam tornar-se tema
de versos do poeta e com isso acrescentar algum brilho à própria reputação,
outros, finalmente, por respeito verdadeiro ao gênio, mas a maior parte, por
causa do favor de que ele gozava junto ao czar Nicolau, que era seu censor.
Annette conhecera-o criança ainda. Mais tarde ela se tornara admiradora
de sua enlevante poesia.
Também ela desejou homenagear o famoso poeta e foi convidá-lo como
par para uma contradança; a crença de que seria ridicularizada por ele fê-la
baixar os olhos e enrubescer ao se aproximar. A indiferença com que ele lhe
perguntou onde deveria ficar, feriu-a. Supor que Púchkin pudesse considerá-la
uma tola deixou-a magoada, mas ela respondeu com naturalidade, e, durante
toda a soirée, não se atreveu a repetir o convite.
Foi então que ele, por sua vez, veio tirá-la para dançar e ela o viu avançar
em sua direção. Deu-lhe a mão, afastando a cabeça e sorrindo, pois essa era
uma felicidade que todos invejavam.
Gostaria de escrever um romance, mas isso me entedia, prefiro nada fazer
além de escrever meu diário.
Revi o retrato de Púchkin, estou contente com o esboço que fiz. Daria para
reconhecê-lo entre milhares!
***

P. Viázemski

Púchkin chegou para passar três semanas aqui34. Ainda não se apaixonou
por ninguém e as antigas paixões mantêm-se um tanto afastadas dele. Ontem,

33. As reminiscências de Anna Olénina sobre Púchkin foram registradas em seu diário, na
forma de narrativa em terceira pessoa. Púchkin, por sua vez, celebrou-a em alguns poemas.
34. Na propriedade do príncipe Viázemski, Malínniki, em dezembro de 1828.

165
Caderno de Literatura e Cultura Russa

devia ir à casa dos Kórsakov. Ainda não estou sabendo sobre o encontro. Pro-
pus que me acompanhasse a Penza; pôs-se inteiramente de acordo, mas não
conto com isso, pois, no entretempo, com certeza se apaixonará por alguém.
***

A Filha do Pope

Quando passamos à sala de jantar, Aleksandr Serguéievitch Púchkin ofere-


ceu um braço a mim e o outro à filha de Mme. Óssipova, Evfrazia, que tinha
a minha idade. À mesa, ele sentou-se entre ambas e nos servia com a mesma
gentileza. À noite, quando começou o baile, dançou com cada uma de nós a
cada vez. Primeiro com ela, depois comigo, e assim por diante, Mme Óssipova
agastou-se e partiu. Eufrásia Nikoláievna, não sei por quê, estava com os olhos
marejados de lágrimas. Talvez por Púchkin, depois do jantar, ter-nos mostrado
o retrato de uma mulher desconhecida, dizendo tratar-se de uma beldade; todos
contemplavam o retrato e partilhavam de sua admiração. Foi isso, naturalmente,
que a deixou muda. Mas ela o devorava com os olhos.
***

A. Vulf

Para a Epifania35, veio até nós Púchkin, “a glória de nossa época, o poeta
favorito do céu”, como o chama nossa poetisa de Kostromá. Ele trouxe ao nosso
grupo um pouco de distração. Seu espírito brilhante de homem do mundo é
extremamente agradável em sociedade, sobretudo numa sociedade feminina.
Fiz com ele uma aliança ofensiva e defensiva contra as beldades, e por esse
motivo minhas irmãs apelidaram-no de Mefistófeles e a mim de Fausto. Mas
Marguerite36, malgrado os conselhos de Mefistófeles e a corte assídua de Fausto,
mostrou-se indiferente; todos os esforços foram inúteis... A pequena Maria
Boríssova e Natália Koznakova escorregaram entre meus dedos... Durante
a ceia, servimos Lunel a Frédérique (uma linda hamburguesa, que meu tio
trouxera de uma de suas expedições militares e que depois desposara), a uma
alemã de Riga, misto de governanta e criada, à noiva do intendente, depois a
uma mocinha bem viva, filha do velho pope das redondezas...

35. 6 de janeiro de 1829.


36. Trata-se de uma prima de Aleksiéi Vulf, Ekaterina Veliachev, então com 16 anos de
idade. Era costume entre a aristocracia russa do século XIX o uso de um cognome francês.

166
Reminiscências e Materiais Biográficos sobre Púchkin

Nas mudas, enquanto nossos cavalos eram substituídos37, jogávamos xa-


drez, e, durante a viagem, conversávamos sobre os acontecimentos nacionais
da atualidade, sobre literatura, mulheres, amor. Púchkin fala bem; seu espírito
penetrante e vivo abarca imediatamente o objeto da discussão, mas essa mesma
faculdade explica o caráter por vezes superficial e unilateral de seus comentá-
rios... Ele conhece as mulheres melhor do que ninguém. É por isso que, mesmo
sem possuir alguma dessas características exteriores às quais é sensível o sexo
frágil, ele conquista a benevolência das mulheres unicamente com o brilho de
sua inteligência.
***

Um Oficial de Regimento

Mal tínhamos acabado de jantar com Púchkin, em casa de Raiévski, em


companhia de seu irmão Lev e de Semitchev, trouxeram-nos a notícia de que
o inimigo fora avistado nos postos avançados38. Montamos prontamente nos
cavalos selados desde manhã. Nem tive tempo de avançar e já me deparei com
uma escaramuça entre cossacos e cavaleiros turcos. Avistei Semítchev que me
perguntou se não vira Púchkin. Galopamos à sua procura. Fomos encontrá-lo,
separado dos dragões de apoio, arremedando, de sabre em punho, os turcos
que corriam ao seu encontro. À nossa aproximação e à vista dos lanceiros de
Iuzéfovitch que vinham na retaguarda, os turcos deram volta às rédeas e Pú-
chkin não teve ocasião de experimentar seu sabre no bestunto de um oto­mano.
Meio desapontado, ele não se afastou mais de nós, pois o ataque dos turcos
fora re­chaçado em todos os pontos e nossa cavalaria, após tê-los perseguido
até seu campo fortificado, retornava às posições iniciais já antes do anoitecer.
***

N. Uchakov

Vi Púchkin pegar a lança de um cossaco morto e avançar sobre os ca­va­­leiros­


inimigos. Os cossacos do Don estavam estupefatos de ver surgir dian­te deles
aquele herói desconhecido, usando chapéu redondo e casaco de circassiano.
***

37. Púchkin e Vulf voltavam a S. Petersburgo, em meados de janeiro de 1829.


38. Em junho de 1829, engajado no regimento de Níjni-Nóvgorod, comandado por seu
amigo N. Raiévski, Púchkin participou de alguns entreveros contra os turcos na Geórgia.

167
Caderno de Literatura e Cultura Russa

A. Vulf

Aleksandr Serguéievitch manda-me algumas notícias a propósito das bel-


dades de Tvier39. Acho que o tempo não conta para ele, não mudou em nada:
sempre e onde quer que seja ele é o mesmo. Sem dúvida, o regresso das moças
separou-o de Netty, a quem ele dedicava seu carinho, seja pensando noutra
qualquer, seja para passar o tempo... De acordo com a carta de Anna Petrovna
Kern, ele já voltou a São Petersburgo: ela é da mesma opinião que você e diz
que o cinismo dele só faz aumentar.
***

A. Benkendorf

Sua Majestade Imperial, tendo, em sua infinita benevolência, tomado co-


nhecimento da notícia do casamento que está prestes a contratar, dignou-se a
observar na ocasião que lhe apraz acreditar que o senhor deve, certamente, ter
refletido bem antes de dar esse passo, e que o senhor deve ter encontrado em si
mesmo as qualidades de coração e de caráter necessárias para fazer a felicidade
de uma mulher; e sobretudo de uma mulher tão amável e interessante como
Mlle Gontcharova.
Quanto à sua situação individual perante o governo, não posso senão repetir-
-lhe tudo aquilo que tenho repetido com freqüência; eu a considero perfeita-
mente de acordo com seus próprios interesses; nada de falso ou de duvidoso
pode haver nela, caso não pretenda o senhor mesmo torná-la tal e qual. Sua
Majestade o Imperador, por uma solicitude toda paternal para com o senhor,
Monsieur, dignou-se encarregar-me a mim, general Benkendorf, não o chefe
da gendarmaria, mas o homem no qual lhe apraz depositar sua confiança, de
observá-lo e de guiá-lo por seus conselhos; jamais polícia alguma recebeu or-
dem de vigiá-lo. As recomendações que lhe tenho feito de tempos em tempos,
como amigo, só podem ser-lhe úteis, e espero que o senhor já se tenha conven-
cido disso. [...] Eu o autorizo, Monsieur, a fazer ver esta carta a todos aqueles a
quem o senhor achar por bem mostrá-la. [...]40 
***
39. Em carta de novembro de 1829, Aleksiéi Vulf informa à irmã (Anna Nikoláievna Vulf)
ter recebido carta de Púchkin (16.10.1829), que se encontrava em Malínniki. Púchkin acabara
de pedir a mão de Natália Gontcharova em casamento, mas a mãe da moça criara dificuldades
e ele partira em viagem. Em Malínniki, o poeta escreveu o oitavo canto de Evguiéni Oniéguin
e compôs uma série de poemas sobre o inverno.
40. Nesta carta de 16.4.1830, escrita originalmente em francês, Benkendorf informava ain-
da que o czar autorizava Púchkin a publicar Boris Godunov.

168
Reminiscências e Materiais Biográficos sobre Púchkin

A. Vulf

Minha irmã comunicou-me o enlace próximo de Púchkin com Mlle


Gontcharova, a mais pura das beldades moscovitas. Desejo felicidade ao casal,
mas como esperar isso por pouco que se conheçam os vícios e a mentalidade
de Púchkin, não sei... Decerto acabará sendo agraciado com um belo par de
chifres, pois seu primeiro dever será perverter a própria mulher!41 
***

Dolly de Ficquelmont

Acho que Púchkin anda mais amável ainda do que antigamente. Creio re-
conhecer em seu espírito o sinal de uma gravidade que, seja como for, lhe cai
bem. Sua mulher é uma criatura magnífica, mas sua expressão melancólica e
modesta parece pressagiar uma desgraça. A fisionomia do marido e a da mu-
lher não dão mostras nem de tranqüilidade nem de alegre confiança no futuro;
reconhecem-se em Púchkin todas as marcas da paixão e em sua esposa todas
as marcas de uma triste renúncia a si mesma42.
***

V. Jukóvski

Púchkin é meu vizinho e vemo-nos com freqüência43. Depois de me teres


dito que eu babava de olhar para minha mulher, só consigo me imaginar qual
um velho cão dinamarquês. O velho cão dinamarquês está sentado e olha, todo
sonolento, as iguarias deliciosas que são comidas em sua presença, e dois longos
filetes de saliva escorrem de sua boca. A pequena mulher de Púchkin é uma
criatura adorável. Gosto de vê-los juntos. E a cada dia fico mais feliz de saber
que está casado. Sua alma, sua vida, sua poesia só terão a ganhar com essa união.
***

O. Pavlíchtcheva

[...] O Imperador e a Imperatriz encontraram Natália e Aleksandr, detive-


ram-se para falar com eles e a Imperatriz disse a Natália que estava muito feliz

41. Anotação feita por A. Vulf em seu diário (maio de 1830).


42. Carta a Viázemski, datada de 25.5.1831.
43. O casal Púchkin havia mudado para Tzárskoie Seló no começo de junho de 1831.
Jukóvski dá essa notícia a A. I. Turguéniev por carta.

169
Caderno de Literatura e Cultura Russa

em conhecê-la e mil outras coisas graciosas e encantadoras. Pois bem, ela agora
é obrigada, ainda que não o queira, a comparecer à Corte44.

[...] Minha cunhada é encantadora... Ela causa admiração em Tzárskoie


Seló, e a Imperatriz quer que freqüente a Corte; isso deixou-a desolada, pois
ela não é tola... é ainda um pouco tímida, mas isso também passará e ela dará
conta da Corte e da Imperatriz, como mulher bonita, jovem e amável que é...
Fisicamente, ambos são dois contrastes perfeitos: Vulcano e Vênus... De
resto, na minha opinião, existem mulheres tão bonitas quanto ela...45 
***

A. Kern

Eu o encontrei com a mulher, na casa dos pais dele, pouco antes da morte
de sua mãe...46 Estavam sentados lado a lado num pequeno sofá encostado à
parede. Nadiejda Óssipova contemplava-os com ternura, com amor. Aleksandr
Serguéievitch segurava a ponta do boá de sua mulher e a acariciava docemente,
como que para exprimir a afeição que sentia pela esposa e pela mãe. Fazia isso,
sem dizer palavra. Natália estava com papelotes nos cabelos: tinha vindo ali
antes de ir ao baile.
***

Kolmakov

O baile tinha terminado. Natália Nikoláievna aguardava sua carruagem,


encostada a uma coluna da entrada, e um grupo de jovens militares, composto
principalmente de oficiais da guarda, rodeava-a, deixando-a aturdida com tantos
elogios. Um pouco mais afastado, perto de outra coluna, estava Púchkin; não
participava da conversa e parecia mergulhado em profundas reflexões.
***

K. Briullov

As crianças estavam dormindo47. Ele as acordou para me apresentá-las, uma a


uma, em seus braços. Fazia aquilo desajeitadamente, dava a penosa impressão de

44. Trecho de carta da irmã de Púchkin a seu marido, datada de 26.7.1831.


45. Carta ao marido, datada de 29.8.1831.
46. A mãe de Púchkin morreria em 29 de março de 1836.
47. Em 1836, Púchkin era pai de dois meninos e duas meninas.

170
Reminiscências e Materiais Biográficos sobre Púchkin

uma felicidade doméstica afetada. Não pude deixar de perguntar-lhe: “Por que
diabos você foi se casar?” Ele me respondeu: “Eu queria ir para o estrangeiro, mas
fui impedido; vi-me numa tal situação, sem saber o que fazer, então me casei”.
***

Carta Anônima48 

Les Grands-Croix, Commandeurs et Chevaliers du sérénissime Ordre des


Cocus, réunis en Grand Chapitre sous la présidence du vénérable Grand Maître
de l’Ordre, S. E. D. L. Narychkine, ont nommé à l’unanimité M. Alexandre
Pouchkine coadjuteur du Grand Maître de l’Ordre des Cocus et historiographe
de l’Ordre.
Le secrétaire perpétuel
Cte. J. Borch
***

P. Viázemski

Púchkin, desde o momento em que recebeu as cartas anônimas, descon-


fiou que o autor era o velho Heeckeren, e morreu com essa convicção. Nunca
conseguimos saber qual era o fundamento de tal suposição, e, até a morte de
Púchkin, nós a considerávamos inadmissível. Um acaso fortuito conferiu-lhe
mais tarde certo grau de probabilidade.
***

V. Sollogub

Num jantar49, em casa dos Karamzin, eu estava sentado ao lado de Púchkin.


Em meio à alegre conversação geral, ele se inclinou para mim e disse-me rapi-
damente: “Vá amanhã à casa de d’Archiac. Resolva com ele as questões mate-

48. Trata-se do “Diploma de Cornudo”, escrito originalmente em francês e recebido por


Púchkin em 4.11.1836. Segundo H. Troyat, após exames grafotécnicos realizados na década
de 1940, o provável autor dessa carta anônima teria sido o príncipe Dolgorúkov, amigo do
embaixador Heeckeren. Vários amigos do poeta também receberam cópias desse “diploma”.
O alegado secretário da “Ordre des Cocus”, o conde Borch, era conhecido na Capital por ser
traído freqüentemente pela mulher. Finalmente, a nomeação do poeta para “historiador da
Ordem” deve-se ao fato de Púchkin estar trabalhando à época nos Arquivos do Império.
49. Ocorrido em 16.11.1836.

171
Caderno de Literatura e Cultura Russa

riais do duelo. Quanto mais sangrento for, melhor será. Não permita nenhuma
explicação”. Depois de dizer isso, ele continuou a gracejar e a tagarelar como se
nada fora. Eu não ousava fazer nenhuma objeção. Havia no tom de Púchkin
uma decisão que não admitia réplica.
***

Duelo

Condições do duelo50 entre M. le baron Georges de Heeckeren e M. Púchkin:


1. Os dois adversários serão colocados a vinte passos de distância, a cinco
passos cada um das duas barreiras que manterão a distância de dez passos
entre si;
2. Armados cada um com uma pistola, ao sinal dado, poderão, avançando
um para o outro, sem entretanto ultrapassar a barreira, fazer uso de suas armas;­
3. Fica acertado, outrossim, que, um tiro dado, não será mais permitido a
cada um dos dois adversários mudar de lugar;
4. As duas partes tendo atirado, e não se chegando a um resultado, reco-
meçar-se-á tudo como da primeira vez, retomando os adversários sua posição
a vinte passos de distância, conservando as mesmas barreiras e as mesmas
condições;
5. Os padrinhos serão intermediários de qualquer explicação entre os ad-
versários sobre o terreno da luta;
6. Os padrinhos desta contenda, abaixo assinados, com plenos poderes,
garantem com sua honra a estrita execução das condições supracitadas.
***

V. Dal

Em 28 de janeiro de 1837, depois das duas da tarde, mal tinha acabado


de transpor a soleira de sua casa, Bachútski me fez a pergunta fatal: “Já estás
sabendo?” E quando respondi: “Não”, contou-me que na véspera Púchkin fora
ferido mortalmente.
Ao chegar à casa de Púchkin, vi que já havia muita gente no vestíbulo e na
sala; o temor da espera refletia-se nos rostos abatidos. Os doutores Arendt e
Spásski davam de ombros. Aproximei-me do ferido, que me estendeu a mão,
sorriu e me disse: “A coisa vai mal, irmãozinho!” Aproximei-me do leito de

50. O documento, escrito originalmente em francês, foi assinado pelo Visconde d’Archiac,
adido da embaixada francesa, e por Konstantin Danzas.

172
Reminiscências e Materiais Biográficos sobre Púchkin

mor­te e dele não me afastei até o fim da terrível jornada. Tuteou-me pela pri­
meira vez e eu a ele também, e nos tornamos irmãos já não para este mundo.
Púchkin conseguiu que todos os presentes se acostumassem com a idéia da
morte, tal era a serenidade com que a esperava, tão seguro estava de que sua
última hora tinha chegado. Pletniov me disse: “Olhando para Púchkin, pela
primeira vez não temo a morte”. O ferido rejeitava veementemente nosso con-
solo e às minhas palavras “Todos nós estamos confiantes, não deves tu perder
a esperança”, respondeu-me:
– Não, já não sou mais deste mundo; estou morrendo, sei que assim deve ser.
Na noite do dia 28, repetiu várias vezes palavras parecidas; perguntava com
dificuldade, a voz entrecortada:
– Será que ainda vou sofrer muito? Que isto se acabe o quanto antes!
Durante quase toda a noite não largou minha mão, pedia-me com freqüên-
cia uma colherada de água fria ou uma pedrinha de gelo e sempre pegava ele
mesmo o recipiente de cima do criado-mudo, esfregava gelo nas têmporas,
preparava e aplicava-se compressas na barriga, dizendo a cada vez:
– Ai, que bom! Que alívio!
A rigor, segundo suas próprias palavras, estava sofrendo não tanto por causa
da dor mas devido ao inchaço extraordinário, decorrente da inflamação da
cavidade abdominal e, quem sabe, também da inflamação das veias.
– Ai, que dureza! – exclamava quando a dor se tornava mais intensa. – Que
dor no peito!
Em tais casos, pedia que o levantássemos, que o virássemos ou lhe ajeitás-
semos os travesseiros, porém nunca nos deixava terminar, dizendo invariavel-
mente:
– Isto mesmo, assim, já estou bem; agora me sinto à vontade, chega, agora
estou me sentindo bem melhor.
Em geral, comigo pelo menos, comportava-se como uma criança obediente
e fazia tudo que lhe pedia.
– Quem está com minha mulher? – perguntava de vez em quando.
Eu lhe respondia:
– Há muita gente que se interessa por ti, o vestíbulo e a sala estão cheios.
– Está bem, obrigado – respondia, – mas olha, vai dizer à minha mulher que,
graças a Deus, estou me sentindo bem, não deixes que a assustem.
Durante a manhã seu pulso estava fraco e estável, porém acelerou a partir
do meio-dia, e às seis da tarde, sem passar das cento e vinte batidas, estava mais
forte e regular; nisso, começou a febre. Seguindo as indicações do doutor Arendt,
o doutor Spásski e eu aplicamos vinte e cinco sanguessugas no paciente e man-
damos chamar Arendt. Este, ao chegar, aprovou o que tínhamos feito. O ferido

173
Caderno de Literatura e Cultura Russa

pegava com mão firme e aplicava-se, ele mesmo, as sanguessugas, querendo


poupar-nos o trabalho. Seu pulso tornou-se mais regular, mais espaçado e cal-
mo; eu, agarrando-me a isto como um náufrago à tábua de salvação, expressei
com voz tímida minha esperança. Púchkin deu-se conta de que eu parecia
menos desconsolado, segurou minha mão e disse:
– Dal, quero a verdade, vou morrer logo?
– Confiamos que sairás desta, confiamos realmente.
– Obrigado.
Ao que parece, porém, minha esperança só o iludiu uma vez; nem antes e nem
depois disto, ele acreditava; perguntava impaciente: “Chegará logo o fim?”, e jun-
tava: “Quanto antes melhor!”. Enchi uma taça com óleo de rícino, que lhe ofereci.
– O que é isso?
– Bebe, vai te fazer bem, embora o gosto possa não te agradar.
– Dá-me aqui – disse, tomou e daí perguntou: – É óleo de rícino?
– É, já tinhas tomado alguma vez?
– Sim, mas por que está flutuando na água? Em cima o óleo, embaixo a água!
– Não importa, aí dentro (no estômago) tudo se mistura.
– Sim, claro, tens razão.
Durante a noite longa e angustiante, eu observava com o coração partido
aquela enigmática luta entre a vida e a morte, e não conseguia tirar da cabeça
três palavras do Oniéguin, três palavras terríveis, que soavam sem cessar nos
meus ouvidos e na minha mente:
– O quê? – Morreu.
Oh, que força e que eloqüência encerram essas três palavras! Dizem tanto
quanto a famosa e fatal pergunta de Shakespeare: ser ou não ser. Vencendo mi-
nha vontade, o espanto me invadia da cabeça aos pés, não me atrevia a respirar
e pensava: aí é que se deve estudar a sabedoria prática, a filosofia da vida, é aí
que a alma luta para abandonar o corpo, que o ser vivo, o ser pensante, rea­liza
a terrível passagem para o morto e o inconsciente, coisa que não se aprende
nem nos grossos compêndios nem nas cátedras.
Quando a angústia e a dor o invadiam, procurava superá-las com todas as
suas forças, e, diante de minhas palavras: tens que agüentar, caro amigo, que se
vai fazer?; mas não te envergonhes da dor, geme e sentirás alívio, ele respondeu
com a voz entrecortada: “Não, isso eu não posso fazer, minha mulher ouviria.
Além disso, seria ridículo que uma tolice dessa pudesse mais do que eu mes-
mo”. Continuava a respirar de modo entrecortado, e às vezes não se ouviam
absolutamente seus queixumes.
O pulso foi enfraquecendo e acabou por desaparecer; as mãos começaram a
esfriar. Soaram as duas da tarde do dia 29 de janeiro, e restavam a Púchkin tão-

174
Reminiscências e Materiais Biográficos sobre Púchkin

somente três quartos de hora de vida. Seu espírito enérgico conservava entre-
tanto sua força; de vez em quando, o torpor, a inconsciência nublavam por um
instante seu pensamento e sua alma. Quando isso acontecia, o moribundo me
estendia a mão, apertava a minha e dizia: “Eia, levanta-me, vamos, para o alto,
mais alto! Eia, vamos!” Ao voltar a si, explicou-me: “Tive a impressão de que
estávamos subindo bem alto tu e eu por esses livros e estantes, e minha cabeça
girava”. Cravou os olhos em mim um par de vezes, perguntando:
– Quem és? És tu?
– Sim, meu amigo, sou eu.
– Não sei o que está acontecendo – prosseguiu, – não consigo te reconhecer.­
Logo em seguida, sem abrir os olhos, procurou minha mão, e, puxando-me
para si, disse:
– Ei, vamos, por favor, vamos juntos!
Aproximei-me de V. A. Jukóvski e de Vielgórski dizendo: “Está nas últimas!”.
Púchkin abriu os olhos e pediu moróchka51 espremida; quando a trouxeram, disse
com toda a clareza: “Chamem minha mulher para me dar”. Natália Nikoláievna
ajoelhou-se à cabeceira da cama do moribundo, deu-lhe algumas colheradas
e aproximou-se do rosto do marido. Púchkin acariciou-lhe a cabeça e disse:
“Não te preocupes, tudo está bem, graças a Deus”.
Os amigos e os que ali se encontravam rodeamos em silêncio a cabeceira do
moribundo; atendendo a um pedido seu, peguei-o pelas axilas e o soergui um
pouco. Na hora, pareceu acordar, abriu rapidamente os olhos, sua fisionomia
desanuviou-se, ele disse:
– Acabou-se a vida!
Eu não entendi e perguntei à meia-voz:
– O que se acabou?
– A vida se acabou! – replicou com voz clara e em bom tom.
– Tenho dificuldade de respirar, sinto uma opressão – foram suas últimas
palavras.
A quietude invadiu todo seu corpo; as mãos, os braços, até os ombros esfria­
ram, assim como os pés e os joelhos; sua respiração, arquejante e acelerada,
tornou-se cada vez mais lenta, espaçada e longa; exalou o último suspiro, mal
deu para perceber, e um abismo infinito, imenso, abriu-se entre os vivos e o
morto. Morreu tão suavemente que ninguém se deu conta.
***

51. Espécie de bago da planta do mesmo nome que cresce nos charcos da tundra.

175
Caderno de Literatura e Cultura Russa

V. Jukóvski

Sua cabeça tinha se inclinado ligeiramente; suas mãos, que eram agitadas
por espasmos nervosos alguns instantes antes, tinham se distendido, como
se fossem descansar após um trabalho intenso. Mas eu não conseguiria dizer
com palavras os sentimentos que seu semblante me inspirava. Ele me parecia
ao mesmo tempo novo e familiar. Não exprimia nem sono, nem repouso. Não
exprimia nem inteligência, como antigamente, nem sequer exaltação poética.
Não, uma idéia profunda, assustadora, tinha se espalhado sobre seus traços,
como o sinal de uma visão, como o sinal de um saber misterioso e satisfeito.
Ao olhá-lo, tinha vontade de perguntar-lhe: “O que vês, meu amigo?” E o que
teria me respondido se ressuscitasse?... Jamais vira em seu rosto a expressão de
um pensamento tão grave, tão digno, tão vitorioso...

***

Bibliografia
Backès, J.L. Pouchkine par lui-même. Paris, Seuil, 1966.
Mirsky, S. S. Histoire de la Littérature Russe. Paris, Fayard, 1969.
Troyat, H. Pouchkine. Paris, Plon, 1953.

Em Russo
Краткая Литературная Энциклопедия; Москва, Сов. Энц., 1962-1972.
МАЙМИН, Е. А. Пушкин: Жизнь и Творчество. Москва, Наука, 1984.
ПУЩИН, И. Записки о Пушкине. Москва, Худ. Лит.,1988.
Русские Писатели. Москва, Русский Язык, 1990.
ТЫНЯНОВ Ю. Пушкин и его современники. Москва, Худ. Лит., 1969.
ЭЙДЕЛЬМАН Н. Пушкин (из биографии и творчества). Москва, Худ. Лит.,1987.

Abstract: This consists of a congregation of a series of depositions, memories, letters of


contemporaries, as well as other documents referring to the life and work of Aleksandr
Pushkin, all being in chronological order.

Keywords: A. S. Pushkin; Russian literature; memories of Pushkin; life of Pushkin.

Seleção, Tradução e Notas


Homero Freitas de Andrade

176
Púchkin em Português

As indicações bibliográficas aqui reunidas foram inicialmente coletadas por


Elias Ribeiro de Castro e completadas por Márcio Roberto de Oliveira, durante
as décadas de 1980-1990, para o Catálogo de Obras Russas de Ficção e Poesia
(traduzidas para o português do Brasil). Para esse projeto de pesquisa desenvol-
vido por ambos em nível de Iniciação Científica (Pibic/CNPq), sob orientação
de Homero Freitas de Andrade, foram coletados dados bibliográficos junto aos
acervos das Bibliotecas Nacional (Rio de Janeiro) e Mário de Andrade (São
Paulo), da Biblioteca de Letras da Universidade de São Paulo, acervos particu-
lares de estudiosos de literatura russa e casas editoras. Os dados que seguem
foram devidamente atualizados. Os títulos de obras antecedidos de asterisco
notificam traduções diretas do russo para o português.
Sobre Púchkin e sua obra, além dos prefácios e introduções que antecedem
as coletâneas de poemas e contos relacionados abaixo, foram juntadas no final
deste referências bibliográficas a trabalhos acadêmicos de Mestrado e Dou-
torado, realizados na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, sob orientação de Boris Chnaiderman, e que podem
ser consultados no acervo de Teses da Biblioteca da FFLCH.

Poesia

* Poesias Escolhidas (org. e trad. José Casado). Rio de Janeiro, Nova Frontei-
ra, 1992; Col. Poesia de Todos os Tempos; ed. bilíngue; 251 pp.
Caderno de Literatura e Cultura Russa

“A *** (Não, não Devo, não Ouso e não Quero Poder)”, p. 33; “A *** (Do
Instante Mágico Hei Lembrança)”, p. 37; “A *** (Saber não Queiras por que a
Alma Abatida)”, p. 105; “A N. Ia. Pliuskova”, p. 123; “A Tchaadáev”, p. 107; “A um
Poeta”, p. 47; “Achas a Prosa Descuidada”, p. 205; “O Afogado”, p. 227; “Alfonso
Monta no Animal”, p. 223; “A Alma, eu Achava Haver Perdido”, p. 71; “Amada,
do Passado Esqueci os Sinais”, p. 145; “O Anjo”, p. 201; “O Antiar”, p. 81; “Ao
Gênio Familiar”, p. 209; “Aos meus Amigos”, p. 161; “O Aquilão”, p. 199; “Arião”,
p. 99; “Aspiração”, p. 159.
“Uma Beldade”, p. 73.
“Canção Báquica”, p. 109; “A Carta Incinerada”, p. 43; “O Cáucaso”, p. 57;
“Cavaleiro houve prestante (texto breve)”, p. 239; “Cavaleiro houve prestante
(texto longo)”, p. 135; “O Cavaleiro Pobre”, p. 243; “Chamava-te a pátria dis-
tante”, p. 179; “Confissão”, p. 119; “Conselho”, p. 163; “Um corvo seu vôo alçou”,
p. 203.
“O Demônio”, p. 113; “De nobre espanhola diante”, p. 59; “Desejo de Glória”,
p. 149; “19 de Outubro de 1827”, p. 97; “Despedida”, p. 181; “Desvaneceu-se a
diurna estrela”, p. 197; “Os Diabos”, p. 85; “A Donzela”, p. 171.
“O Eco”, p. 75; “Elegia”, p. 89; “Estâncias a Tolstói”, p. 217; “Estou, Inesilla”,
p. 69; “É tempo, amiga, é tempo – exista a alma tranqüila”, p. 143; “Eu vos amei.
Ainda talvez vivo”, p. 27; “Ex ungue leonem”, p. 155.
“Falaram certa vez ao czar, que enfim”, p. 187; “A Flor”, p. 21.
“Invocação”, p. 207.
“A Janela”, p. 157.
“Lamentações de Viagem”, p. 127.

“Madona”, p. 25; “Magnificente Cidadão”, p. 219; “Manhã de Inverno”, p.


45; “Manhã de Outono”, p. 131; “Meu nome que te faz? Findar”, p. 65; “Um
monumento ergui a mim, obra extra-humana”, p. 61; “Mosteiro no Casbeque”,
p. 183; “Mostrai viril resignação”, p. 125; “Mudo logo estarei. Mas se no triste
dia”, p. 153; “A Musa”, p. 195.

“Não cantes, bela, frente a mim”, p. 51; “Não, eu não aprecio o gozo desvai-
rado”, p. 175; “Não vos lamento, ardor primaveril”, p. 63; “O Nimbo”, p. 177;
“Noite de Inverno”, p. 103; “Nos outeiros da Geórgia a cerração pousou”, p. 91.
“Os Olhos dela”, p. 95; “Ondas, quem vos paralisou?”, p. 111; “A Ondina”, p. 211.

178
Púchkin em Português

“Um pajem, ou: quinze anos”, p. 129; “Perdoas-me o ciumento desvariar”,


p. 115; “A Perfídia”, p. 133; “O Poder Secular”, p. 15; “O Prazer”, p. 233; “Pressá-
gios (Eu ia vê-la, e profusão)”, p. 55; “Presságios (Procura examinar os diversos
indícios)”, p. 191; “Pressentimento”, p. 41; “O Prisioneiro”, p. 39; “A Procela”, p.
165; “O Profeta”, p. 101; “Protege-me, meu talismã”, p. 221.
“Qual taça cheia ser possa”, p. 167; “Quando esse esbelto corpo teu”, p. 147;
“Quando o boato estrepitoso”, p. 141; “Que eu não perca a luz da razão”, p. 79.
“Recordação”, p. 67.
“O Sapateiro”, p. 139; “Se a ofegar, qual guri em doce expectação”, p. 189; “Se
a vida te logra, ira”, p. 31; “Semeador, mas sem liberdade”, p. 117; “Sob o céu
claro e azul de seu país natal”, p. 185; “Sobrevivi a meus desejos”, p. 193; “Sua
beleza, que é serena”, p. 169.
“A Taça do Brinde”, p. 49; “O Talismã”, p. 53; “A Telega da Vida”, p. 235;
“Tsárskoie Seló”, p. 215; “O tu e o vós”, p. 29.
“Versos Compostos durante uma Noite de Insônia”, p. 93; “Vago por urbe
barulhenta”, p. 23; “Vida, dom vão e fortuito”, p. 35; “Viste a região que a verde
natureza”, p. 173.
“Zéfiro a vir”, p. 77.

* A Dama de Espadas. Prosa e Poemas (trad. e notas de Boris Schnaiderman


e Nelson Ascher; prefácio de B. Schnaiderman). São Paulo, Editora 34, 1999;
285 pp.

“Alexandre I”, p. 264; “Amei-te...”, p. 278; “O Antchar”, p. 273; “Árion”, p. 269.


“O Cavaleiro Pobre”, p. 275; “Corvos”, p. 272.
“O Demônio”, p. 259; “Dom inútil...”, p. 271.
“Mensagem à Sibéria”, p. 270.
“Nicolau I”, p. 265.

“Para ***”, p. 263; “Para Viázemski”, p.266; “O Profeta”, p. 267; “O Prosador


e o Poeta”, p. 262.

“O Semeador”, p. 260.
“A Uva”, p. 261.

179
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Prosa

Romance

A Filha do Capitão (trad. P. C. Lopes). Porto Alegre, Globo, 1933; Col. Glo-
bo-2; 222 pp.

* A Filha do Capitão (trad. B. Solomónov). Rio de Janeiro, Vecchi, 1949; Col.


Os Maiores Êxitos da Tela; 216 pp.

* A Filha do Capitão (trad. Boris Solomónov).São Paulo, Abril Cultural,


1980; romance, Col. Os Maiores Êxitos da Tela; 183 pp.

“A Filha do Capitão”, in Antologia do Conto Russo (org. de V. Newerowa e O.


M. Carpeaux). Rio de Janeiro, Lux, 1961; pp. 37-158.

* “A Filha do Capitão”, in A Filha do Capitão e o Jogo das Epígrafes (trad.,


notas e ensaio de H. Nazario). São Paulo, Perspectiva, 1981; Col. Textos; pp. 1-
177.

Conto

“Azar no Jogo”1 , in Contos Breves. Rio de Janeiro, Otto Pierre Ed., 1980; Col.
Os Grandes Clássicos, pp. 79-116.
“O Bandido Dubrovski”2 , in Contos Breves. Rio de Janeiro, Otto Pierre Ed.,
1980; Col. Os Grandes Clássicos, pp. 139-238.
“A Casinha Solitária da Ilha Basílio”, in Contos Breves. Rio de Janeiro, Otto
Pierre Ed., 1980; Col. Os Grandes Clássicos, pp. 7-46.
“O Chefe de Posta”, in O Livro de Bolso dos Contos Russos (Apresentação e
prefácio R. Braga e A. Machado; trad. A. M. Machado). Rio de Janeiro, Ed. de
Ouro, s/d.; Col. Leão de Ouro 450, pp. 46-55.

* “O Chefe da Estação”, in O Negro de Pedro, o Grande (trad. B. Schnai­


derman). São Paulo, Difel, 1962, pp. 131-141.

1. Trata-se do conto A Dama de Espadas.


2. Trata-se do conto Dubróvski.

180
Púchkin em Português

“O Chefe da Posta”, in Contos de Belkin (trad. E. Sucupira Filho). São Paulo,


Brasiliense, 1964, pp. 47-66.

* “O Chefe da Estação”, in A Dama de Espadas (trad. B. Schnaiderman). São


Paulo, Max Limonad, 1981, pp. 115-124.

* “O Chefe da Estação”, in A Dama de Espadas. Prosa e Poemas (trad. B.


Schnaiderman). São Paulo, Editora 34, 1999, pp. 205-220.

“Conto da Czarevna Morta e dos Setes Guerreiros”, in Contos Breves. Rio de


Janeiro, Otto Pierre Ed., 1980; Col. Os Grandes Clássicos, pp. 261-278.
Contos de Belkin (trad. E. Sucupira Filho). São Paulo, Brasiliense, 1964, 93 pp.
“O Czar Saltan, o Valoroso Herói Saltanovitch e a Formosa Princesa Cisne”,
in Contos Breves. Rio de Janeiro, Otto Pierre Ed., 1980; Col. Os Grandes Clás-
sicos, pp. 239-260.
“A Dama de Espadas”, in O Livro de Bolso dos Contos Russos (Apresentação
e prefácio R. Braga e A. Machado; trad. D. da Costa). Rio de Janeiro, Ed. de
Ouro, s/d.; Col. Leão de Ouro 450, pp. 25-45.

* A Dama de Espadas (trad. B. Solomonov; introdução O. M. Carpeaux).


São Paulo, Ediouro, s/d.; Col. Universidade.

A Dama de Espadas, Um Tiro (trad. C. Neri). Rio de Janeiro, Pongetti, 1943,


225 pp.

A Dama de Espadas (trad. A. Moreira). Rio de Janeiro, CBBCA, 1944, 51 pp.

“A Dama de Espadas”, in Três Novelas Russas (trad. C. Neri). Rio de Janeiro,


Pongetti, 1961, pp. 79-114.

* “A Dama de Espadas”, in O Negro de Pedro, o Grande (trad.e notas de B.


Schnaiderman). São Paulo, Difel, 1962, pp. 106-130.

* A Dama de Espadas (trad. e notas de B. Schnaiderman). São Paulo, Max


Limonad, 1981, 168 pp.

* “A Dama de Espadas”, in A Dama de Espadas (trad. e notas de B.


Schnaiderman). São Paulo, Max Limonad, 1981, pp. 92-114.

181
Caderno de Literatura e Cultura Russa

* A Dama de Espadas. Prosa e Poemas (trad. e notas de B. Schnaiderman


e Nelson Ascher; prefácio de B. Schnaiderman). São Paulo, Editora 34, 1999,
285 pp.

* “A Dama de Espadas”, in A Dama de Espadas. Prosa e Poemas (trad. e notas


de B. Schnaiderman). São Paulo, Editora 34, 1999, pp. 169-204.

“O Desafio”3, in Contos Breves. Rio de Janeiro, Otto Pierre Ed., 1980; Col.
Os Grandes Clássicos, pp. 117-138.

* “Dubróvski”, in O Negro de Pedro, o Grande (trad. e notas de B. Schnai-


derman). São Paulo, Difel, 1962, pp. 40-105.

* “Dubróvski”, in A Dama de Espadas (trad. e notas de B. Schnaiderman).


São Paulo, Max Limonad, 1981, pp. 32-91.

* “Dubróvski”, in A Dama de Espadas. Prosa e Poemas (trad. e notas de B.


Schnaiderman). São Paulo, Editora 34, 1999, pp.67-168.

* “O Empresário Fúnebre”, in O Negro de Pedro, o Grande (trad. e notas de


B. Schnaiderman). São Paulo, Difel, 1962, pp. 154-160.

“O Fabricante de Ataúdes”, in Contos de Belkin (trad. E. Sucupira Filho). São


Paulo, Brasiliense, 1964, pp. 36-46.

* “O Fabricante de Ataúdes”, in A Dama de Espadas (trad. e notas de B.


Schnaiderman). São Paulo, Max Limonad, 1981, pp. 135-140.

* “O Fazedor de Caixões”, in A Dama de Espadas. Prosa e Poemas (trad. e


notas de B. Schnaiderman). São Paulo, Editora 34, 1999, pp. 237-246.

“A Fidalga Camponesa”, in Contos Breves. Rio de Janeiro, Otto Pierre Ed.,


1980; Col. Os Grandes Clássicos, pp. 47-78.
“A Jovem Camponesa” in Contos de Belkin (trad. E. Sucupira Filho). São
Paulo, Brasiliense, 1964, pp. 67-93.

* “Kirdjali”, in O Negro de Pedro, o Grande (trad. e notas de B. Schnaiderman).


São Paulo, Difel, 1962, pp. 161-166.

3. Trata-se do conto O Tiro.

182
Púchkin em Português

* “Kirdjali”, in A Dama de Espadas (trad. e notas de B. Schnaiderman). São


Paulo, Max Limonad, 1981, pp. 141-146.

* “Kirdjali”, in A Dama de Espadas. Prosa e Poemas (trad. e notas de B. Sch-


naiderman). São Paulo, Editora 34, 1999, pp. 247-255.

“Moça Camponesa”, in Antologia do Conto Russo (org. de V. Newerowa e O.


M. Carpeaux). Rio de Janeiro, Lux, 1961, pp. 175-198.

* O Negro de Pedro, o Grande (trad. e notas de B. Schnaiderman). São Paulo,


Difel, 1962, 166 pp.

* “O Negro de Pedro, o Grande”, in O Negro de Pedro, o Grande (trad. e notas


de B. Schnaiderman). São Paulo, Difel, 1962, pp. 7-39.

* “O Negro de Pedro, o Grande”, in A Dama de Espadas (trad. e notas de B.


Schnaiderman). São Paulo, Max Limonad, 1981, pp. 3-31.

* “O Negro de Pedro, o Grande”, in A Dama de Espadas. Prosa e Poemas


(trad. e notas de B. Schnaiderman). São Paulo, Editora 34, 1999, pp. 19-66.

“Nevasca”, in Antologia do Conto Russo (org. V. Newerowa e O. M. Carpeaux).


Rio de Janeiro, Lux, 1961, pp. 159-174.
“A Nevasca”, in Contos de Belkin (trad. E. Sucupira Filho). São Paulo, Bra-
siliense, 1964, pp. 19-35.

* “Nevasca”, in Salada Russa (trad. T. Belinky). São Paulo, Ed. Paulinas, 1988;
Col. Asa Delta, pp. 13-32.

* “O Pope Avarento” (trad. T. Belinky). São Paulo, Ed. Paulinas, 1988.

* “O Tiro”, in O Negro de Pedro, o Grande (trad. e notas de B. Schnaiderman).


São Paulo, Difel, 1962, pp. 142-153.

“O Tiro” in Contos de Belkin (trad. E. Sucupira Filho). São Paulo, Brasiliense,


1964, pp. 1-18.

“O Tiro”, in Contos Russos (sel. e org. J. Penteado). São Paulo, Edigraf, s/d.;
Coleção Primores do Conto Universal, pp. 17-30.

183
Caderno de Literatura e Cultura Russa

* “O Tiro”, in A Dama de Espadas (trad. e notas de B. Schnaiderman). São


Paulo, Max Limonad, 1981, pp. 125-134.

* “O Tiro”, in A Dama de Espadas. Prosa e Poemas (trad. e notas de B. Sch-


naiderman). São Paulo, Editora 34, 1999, pp. 221-236.

“O Turbilhão de Neve”, in Maravilhas do Conto Russo (org. D. Riedel). São


Paulo, Cultrix, 1958, pp. 17-32.

Sobre Púchkin 4 

Lisiuchenko, Natalia. A Prosa Crítica de A. S. Púshkin. São Paulo, Tese de Dou­torado


(Teoria Literária e Literatura Comparada – FFLCH-USP), 1989.
Nazario, Helena S. O Herói Ambivalente no Romance Histórico de A. S. Púchkin. A
Filha do Capitão. São Paulo, Dissertação de Mestrado (Teoria Literária e Literatura
Comparada – FFLCH-USP), 1975. Perspectiva.
Sarhan, Jasna P. A Dama de Espadas: Um Jogo Fantástico. São Paulo, Tese de Dou-
torado (Teoria Literária e Literatura Comparada – FFLCH-USP), 1986.

4. Os trabalhos de Mestrado e Doutorado enumerados abaixo foram orientados por Boris


Chnaiderman.

184
Do Evguiéni Oniéguin1
Aleksandr Púchkin

Dedicatória

Não penso agradar o mundo fátuo,


Importam-me os amigos, o afeto.
Que prazer me daria, de fato,
Oferecer-te um dom mais seleto,
Mais digno de ti, alma rara,
Da pureza do sonho que anelo,
Perfeito, poesia viva e clara,
Do pensamento altivo e singelo.
Mesmo assim... tua mão não desampara
O rol furta-cor destes capítulos,
Notas tristes, notas humorísticas,
Temas populares, idealistas,
Passatempos, frutos sem mais vínculo
Da insônia, da afoita inspiração,
Dos anos imaturos e murchos,
Da gélida argúcia da razão,
Do coração, doridos rascunhos.

1. A tradução baseou-se no original em russo publicado em Полное Собрание Сочинений


в десяти томах (Obras Completas em Dez Volumes), Moscou, Academia de Ciências da URSS,
19582, vol. V.
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Из «Евгения Онегина»
XXVI

Ещё предвижу затрудненья:


Родной земли спасая честь,
Я должен буду, без сомненья,
Письмо Татьяны перевесть.
Она по-русски плохо знала,
Журналов наших не читала,
И выражалася с трудом
На языке своём родном,
Итак, писала по-французки...
Что делать! Повторяю вновь:
Доныне дамская любовь
Не изъяснялася по-русски,
Доныне гордый наш язык
К почтовой прозе не привык.

XLIX

Кто б ни был ты, о мой читатель,


Друг, недруг, я хочу с тобой
Расстаться нынче как приятель.
Прости. Чего бы ты за мной
Здесь ни искал в строфах небрежных,
Воспоминаний ли мятежных,
Отдохновенья ль от трудов,
Живых картин, иль острых слов,
Иль грамматических ошибок,
Дай бог, чтоб в этой книжке ты
Для развлеченья, для мечты,
Для сердца, для журнальных сшибок,
Хотя крупицу мог найти.
За сим расстанемся, прости!

186
Do Evguiéni Oniéguin

Capítulo 3
XXVI

Mais um outro problema já prevejo:


Para manter o honor da pátria vivo,
Terei de traduzir – é o que antevejo! –
A carta de Tatiana. Há um bom motivo:
Da língua russa, pouco ela sabia.
Revistas nossas? Não. Jamais as lia.
E, claudicante, nosso idioma pátrio
Escapava aos tropeços dos seus lábios.
Assim, para escrever, só o francês...
Que fazer! Eu repito uma outra vez:
Até o presente, o altivo idioma russo
Para o amor feminino não teve uso.
Até o presente, a língua nacional
Jamais rendeu-se à prosa-via-postal.

Capítulo 8
XLIX

Leitor, sejas quem for, amigo ou


Não, pouco me importa: em tom cordial
Quero despedir-me e também vou
Pedir desculpas. Qual o fim, qual
A meta? Que procuras na incúria
Dos meus versos? Memórias em fúria?
Remanso? Descanso da fadiga?
Quadros vivos? Verbo que fustiga?
Ou somente erros de gramática?
Queira Deus encontres neste opúsculo
Para o devaneio, para o júbilo
Do espírito, algo, alguma tática
De imprensa, entreveros, nada, um grão.
Adeus. Separemo-nos. Perdão.

187
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Прости ж и ты, мой спутник странный,


И ты, мой верный идеал,
И ты, живой и постоянный,
Хоть малый труд. Я с вами знал
Всё, что завидно для поэта:
Забвенье жизни в бурях света,
Беседу сладкую друзей.
Промчалось много, много дней
С тех пор, как юная Татьяна
И с ней Онегин в смутном сне
Явилися впервые мне.
И даль свободного романа
Я сквозь магический кристалл
Ещё не ясно различал.

LI

Но те, которым в дружной встрече


Я строфы первые читал...
Иных уж нет, а те далече,
Как Сади некогда сказал.
Без них Онегин дорисован.
А та, с которой образован
Татьяны милый идеал...
О много, много рок отъял!
Блажен, кто праздник жизни рано
Оставил, не допив до дна
Бокала полного вина,
Кто не дочёл её романа
И вдруг умел расстаться с ним,
Как я с Онегиным моим.

188
Do Evguiéni Oniéguin

Meu conviva, estranho acompanhante


De andanças, perdoa-me, Ideal
Fiel. E tu, vívido, constante,
Discreto labor, graças ao qual
Tudo o que o poeta mais inveja
Conheci: num mundo que troveja,
Esquecer a vida, nas amenas
Conversas de amigos. Já centenas
De dias voaram desde quando
Tatiana e Oniéguin, visão
De sonho, me surgiram. Então,
Longe, um livro-livre divisando –
Magia! – um romance no cristal
Entrevi: meus olhos viam mal.

LI

E aqueles a quem li, entre amigos,


As primeiras estrofes? Quem há de
Saber deles? “Uns não são mais vivos,
Outros estão longe”, cantou Sáadi.
Sem eles, concluí meu Oniéguin.
E ela, a cuja imagem persegue
O meigo ideal de Tatiana...
A muitos a sorte soberana
Quebrantou. Feliz quem do festim
Da vida partiu mais cedo, sem
Esgotar a taça. Feliz quem
Não leu o romance até o fim
E súbito dele se despede
Assim, como eu do meu Oniéguin.

Tradução
Haroldo de Campos e
Boris Schnaiderman

189
Romance em Cartas1
Aleksandr Púchkin

Liza a Sacha2 

Querida Sáchenka, decerto ficaste surpresa com minha inesperada partida para
a aldeia. Venho me explicar com toda presteza e sinceridade. A condição de
dependente sempre me foi penosa. Está certo, Avdótia Andréievna educou-me
como à sua própria sobrinha. Mas, apesar de tudo, na casa dela, eu não passava
de uma pupila, e tu não podes imaginar quantos dissabores mesquinhos es-
tão ligados a esse título. Tive que suportar muita coisa, ceder em muita coisa,
fechar os olhos para muita coisa, enquanto meu amor-próprio mantinha-se
atento ao menor traço de desdém. A própria igualdade entre mim e a princesa
representava um peso. Quando chegávamos a um baile, vestidas de modo igual,
eu me agastava ao não ver as pérolas em seu pescoço. Percebia que estava sem
elas só para não destoar de mim, e essa delicadeza já me deixava ofendida. Será
que acham, eu pensava, que tenho inveja, ou algo parecido a um acanhamento
infantil? O comportamento dos homens para comigo, sempre cortês, feria meu
amor-próprio a cada instante. A frieza deles ou sua amabilidade, tudo me parecia

1. Trata-se, a exemplo de O Negro de Pedro, o Grande e de Dubróvski (em A Dama de


Espadas, trad. Boris Schnaiderman, São Paulo, Editora 34, 1999), de um romance inacabado,
escrito provavelmente em Seló Pávlovskoie (1829) e publicado pela primeira vez, após a morte
de seu autor, com o título de Fragmentos de um Romance em Cartas (1857). O título atual foi
escolhido pelos redatores das Obras Completas de Púchkin. A tradução, inédita em português,
baseou-se no texto estabelecido para a edição das Obras Completas em 10 Volumes, Moscou,
Ed. Academia de Ciências da URSS, 1957, vol. VI, pp. 59-76.
2 Liza: diminutivo de Elizavieta; Sacha, Sáchenka: diminutivos de Aleksandra.
Caderno de Literatura e Cultura Russa

falta de consideração. Numa palavra, eu era uma criatura infeliz, e meu cora-
ção, afável por natureza, tornava-se cada vez mais duro. Reparaste como todas as
moças, na condição de pupilas, de parentes afastadas, demoiselles de compagnie3
e etc., não passam geralmente de reles criadas ou de intragáveis caprichosas? A
essas últimas eu respeito e perdôo de todo o coração.
Há exatamente três semanas, recebi uma carta de minha pobre avó. Ela se
queixava da solidão e me chamava para junto de si, na aldeia. Resolvi aproveitar
a oportunidade. Custou-me muito conseguir junto a Avdótia Andréievna per-
missão para viajar, e precisei prometer-lhe que, para o inverno, estaria de volta a
Petersburgo, mas não pretendo cumprir minha palavra. Vovó ficou muito alegre
com minha chegada; não me esperava absolutamente. Suas lágrimas tocaram-me
de um modo indizível. Apeguei-me a ela do fundo do coração. Como freqüen-
tara a alta sociedade antigamente, conservou muitas das finezas daquela época.
Agora eu vivo em casa, sou patroa, e tu não acreditarás na verdadeira delícia
que isso representa para mim. Acostumei-me imediatamente à vida na aldeia,
e não estranho a ausência de luxo. Nossa aldeia é um encanto. A casa antiga
no monte, o pomar, o lago, os pinheirais em volta, tudo isso, no outono e no
inverno, é um tanto triste, mas, em compensação, na primavera e no verão deve
parecer o Paraíso na terra. Vizinhos nós temos poucos, e eu ainda não me deparei
com nenhum. Agrada-me a solidão, de fato, como nas elegias do teu Lamartine4.
Escreve-me, anjo, tuas cartas serão um grande conforto para mim. O que é
de vossos bailes, e de nossos amigos comuns? Embora também tenha me tor-
nado uma eremita, não renunciei, no entanto, às vaidades do mundo – notícias
dele me interessam.
Seló Pávlovskoie.

***

Resposta de Sacha

Querida Liza.
Imagina minha surpresa ao ficar sabendo de tua partida para a aldeia. Quan-
do vi a princesa Olga desacompanhada, pensei que estivesses adoentada e não

3. Em francês, no original.
4. Duas coletâneas de versos, Premières Méditations Poétiques (1820) e Nouvelles Méditations
Poétiques (1823), do poeta e político francês Lamartine (1790-1869) alcançaram grande sucesso na
França, e na Rússia provocaram uma série de traduções. Durante algum tempo, Lamartine tornou-
-se moda e modelo de poesia romântica para os freqüentadores dos salões femininos da corte russa.

192
Romance em Cartas

queria acreditar em suas palavras. No dia seguinte, recebi tua carta. Dou-te os
parabéns, meu anjo, pelo novo modo de vida. Alegro-me que ele seja do teu
agrado. As queixas sobre tua situação anterior levaram-me às lágrimas, mas
achei-as demasiadamente amargas. Como podes te comparar às pupilas e de-
moiselles de compagnie? Todos sabem que o pai de Olga era reconhecido por
tudo ao teu e que a amizade de ambos era tão sagrada quanto o mais íntimo
laço de sangue. Parecias estar contente com teu destino. Nunca podia supor
que fosses tão susceptível. Confessa: não seria outra a causa de tua precipitada
partida? Tenho cá minhas desconfianças... mas tu te fazes de discreta comigo,
e eu receio deixar-te zangada, por carta, com minhas suposições.
Que dizer sobre Petersburgo? Ainda estamos na datcha5, mas quase todos
já se foram. Os bailes começarão daqui a umas duas semanas. Está fazendo
um tempo maravilhoso. Passeio bastante. Um dia desses tivemos convidados
para o almoço, e um deles perguntou-me se tinha notícias de ti. Disse que tua
ausência nos bailes é notável, como corda partida num piano – com o que
estou plenamente de acordo. Ainda espero que esse teu acesso de misantropia
não seja duradouro. Volta, meu anjo; do contrário não vou ter com quem
partilhar neste inverno minhas ingênuas observações e nem a quem trans-
mitir os epigramas de meu coração. Por favor, minha querida, pensa e volta
atrás.
Ilha Krestóvski.
***

Liza a Sacha

Tua carta confortou-me ao extremo. Fez-me lembrar de Petersburgo com


tanta vivacidade, que tinha a impressão de estar te ouvindo. Como são engra-
çadas as tuas eternas suposições! Para ti sou suspeita de profundos sentimen-
tos secretos, de algum amor infeliz – não é verdade? Sossega, querida; estás
enganada: eu me pareço com uma heroína somente por viver numa aldeia
perdida e servir o chá, como Clarissa Harlow6.

5. Casa de veraneio.
6. Heroína do romance homônimo do inglês S. Richardson, onde é representada a trágica
história de uma moça virtuosa, submetida à pérfida perseguição do jovem devasso Lovelace.
As obras folhetinescas de Samuel Richardson (1689-1761) eram muito apreciadas pelas moças
de família na Rússia do século XIX.

193
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Dizes que não terás ninguém neste inverno a quem fazer teus comentários
satíricos – então, de que serve esta nossa correspondência? Escreve-me tudo
aquilo que observares; torno a dizer que eu absolutamente não renunciei ao
mundo, que tudo que a ele se refere continua sendo de meu interesse. Como
prova disso, imploro, escreve-me, a quem minha ausência parece tão notável?
Não será para o nosso amável tagarela Aleksiéi P.? Tenho certeza de que adivi-
nhei... Sempre fui toda ouvidos para com ele, é só do que precisa.
Fui apresentada à família ***. O pai é brincalhão e hospitaleiro; a mãe é
uma senhora gorda e alegre, grande apreciadora do uíste; a filha é uma moça de
dezessete anos, esbelta e melancólica, educada à base de romances e de ar livre.
Passa o dia inteiro no jardim ou no campo com um livro nas mãos, rodeada
pelos cachorros do quintal, fala sobre o tempo como quem canta e adora ofe-
recer geléia. Encontrei em seu quarto uma estante inteira abarrotada de velhos
romances. Tenho a intenção de ler tudo aquilo, e comecei por Richardson. É
preciso viver na aldeia para ter a oportunidade de ler a tão decantada Clarissa.
Dando graças, comecei pelo prefácio do tradutor e, ao deparar-me com a de-
claração de que embora as primeiras seis partes fossem enfadonhas, as últimas
seis, em compensação, recompensariam fartamente a paciência do leitor, pus
mãos à obra com coragem. Leio um volume, outro, o terceiro, – finalmente
cheguei ao sexto – é maçante, não agüento mais. E agora, pensei então, serei
recompensada pelo trabalho. Qual o quê! Leio a morte de Clarissa, a morte de
Lovelace, e fim. Cada volume contém duas partes, e eu não percebi a passagem
das seis enfadonhas para as seis interessantes.
A leitura de Richardson serviu-me de pretexto para uma reflexão. Que dife-
rença assustadora entre os ideais das avós e os das netas! O que há de comum
entre Lovelace e Adolph7? Ao mesmo tempo, o papel das mulheres não se mo-
difica. Clarissa, exceto pelas mesuras cerimoniais, ainda assim, parece com uma
heroína dos romances modernos. Deve ser pelo fato de que para os homens
os modos de agradar dependem da moda, da opinião do momento... e para as
mulheres – eles se fundamentam no sentimento e na natureza, que são eternos.
Como vês, estou tagarelando contigo como de costume. Por isso não sejas
avarenta nessas nossas conversas por carta. Escreve-me mais amiúde e o máxi-
mo que puderes: não consegues imaginar o que significa na aldeia a expectati-
va do dia do correio. A expectativa de um baile não se lhe pode comparar.
***

7. Herói do romance homônimo (1816) do escritor B. Constant.

194
Romance em Cartas

Resposta de Sacha

Tu te enganaste, querida Liza. Para aplacar teu amor-próprio, afirmo que P.


não se dá conta de tua ausência. Ele se tomou de amores por lady Pelam, uma
inglesa recém-chegada, e dela não arreda pé. Às suas palavras, ela responde
com ar de cândida surpresa e com a pequena exclamação oho!... – o que o deixa
encantado. Para saberes: quem me perguntava de ti, quem sente tua falta do
fundo do coração, é teu constante Vladímir **. Estás contente? Muito contente,
penso, e, como é de meu costume, atrevo-me a supor que já tinhas adivinhado
mesmo sem mim. Brincadeiras à parte, ** anda muito interessado em ti. Em
teu lugar, eu levaria a coisa adiante. Bem, ele é um excelente partido... Por
que não casar com ele? – morarias no Cais Inglês8, terias saraus aos sábados e
virias ter comigo todas as manhãs. Deixa de loucura, meu anjo, volta para nós
e casa-te com **.
Anteontem houve baile em casa de K**. Havia um monte de gente. Dançou-
-se até às cinco. K. V. vestia-se com muita simplicidade: um vestidinho branco
de crepe, sem uma guirlanda sequer, mas na cabeça e no colo meio milhão
em brilhantes: e só! Como de hábito, Z. estava vestida de modo ridículo. De
onde é que ela tira suas roupas? No vestido não havia flores aplicadas, mas
cogumelos secos. Não foste tu, meu anjo, que os mandou para ela da aldeia,
pois não? Vladímir ** não dançou. Partiu em licença. Os S. chegaram (os
primeiros, provavelmente), passaram a noite inteira sem dançar e foram os
últimos a sair. A mais velha, parece, estava pintada – já não era sem tempo... O
baile foi um grande sucesso. Os homens estavam aborrecidos durante o jantar,
mas é que eles sempre arranjam um motivo de aborrecimento. Fiquei muito
alegre, apesar de ter dançado o cotillon9 com o insuportável diplomata St., que
à própria e inata estupidez acrescentou ainda a distração que trouxe consigo
de Madri.
Agradeço-te, meu bem, pela resenha sobre Richardson. Agora faço uma
idéia sobre ele. Por causa de minha impaciência, não tenho esperança de lê-lo;
até em Walter Scott eu acho que há páginas em excesso.
A propósito: parece que o romance de Eliena N. com o conde L. está por um
fio – ele, pelo menos, anda tão tristonho, e ela se dá ares de tamanha importân-

8. Avenida localizada na margem esquerda do rio Nevá. Constituía um dos mais aristo-
cráticos lugares de S. Petersburgo, onde residiam os mais abastados representantes da alta
sociedade.
9. Dança de muitos pares, em passo de polca ou de valsa, entremeada de cenas mímicas,
com a qual um baile costumava terminar.

195
Caderno de Literatura e Cultura Russa

cia, que, provavelmente, o casamento está decidido. E então, meu encanto, não
estás satisfeita com minha tagarelice diária?
***

Liza a Sacha

Não, minha querida casamenteira, eu não penso em deixar a aldeia e viajar


até aí para me casar. Confesso com toda a sinceridade que Vladímir ** era do
meu agrado, mas nunca pensei em me casar com ele. É um aristocrata e eu
uma humilde democrata. Apresso-me em explicar e em fazer notar com alti-
vez, como uma verdadeira heroína de romance, que, por linhagem, pertenço
à mais antiga nobreza russa, enquanto meu cavaleiro é neto de um barbudo
enriquecido. Porém, sabes o que significa nossa aristocracia. De qualquer
modo, ** é um homem de sociedade; eu até podia lhe agradar, mas, por mim,
ele não sacrificaria um bom partido e um parentesco vantajoso. Se me casar
um dia, escolherei então um proprietário de terras quarentão. Ele se dedicará
ao engenho de açúcar, eu à economia doméstica – e serei feliz, ainda que não
dance no baile do conde K., nem passe meus sábados no Cais Inglês.
Estamos no inverno: c’est un événement10 na aldeia. Isso faz mudar comple-
tamente o modo de vida. Cessam os passeios solitários, ressoam os guizos, os
caçadores saem com os cães, – tudo se torna mais radiante, mais alegre com
a primeira neve. De modo algum esperava por isso. O inverno na aldeia me
intimida. Mas tudo no mundo tem seu lado bom.
Há pouco tempo, fui apresentada a Máchenka ***11, e passei a gostar dela; é
de boa família, muito original. Soube por acaso que ** é parente próximo deles.
Máchenka não o vê há sete anos, mas acha-o encantador. Passou um verão em
casa deles e Máchenka não se cansa de contar todos os pormenores da vida
que ele levava naquela época. Lendo os romances dela, encontro anotações
dele nas margens, escritas de leve a lápis; dá para ver que naquele tempo era
criança ainda. Surpreendiam-no, então, idéias e sentimentos, dos quais hoje,
certamente, ter-se-ia rido; vê-se ao menos que se trata de uma alma pura e
sensível. Tenho lido muito. Não podes imaginar como soa estranho ler em 1829
um romance escrito em 1775. Parece que penetramos, de repente, de nossa
sala de visitas numa sala antiga, com móveis forrados, sentamo-nos em pol-
tronas estofadas de cetim, vemos ao redor trajes estranhos, alguns rostos co-

10. Em francês, no original.


11. Diminutivo de Maria.

196
Romance em Cartas

nhecidos entretanto, e reconhecemos neles nossos tios, avós, porém mais mo-
ços. A maioria desses romances não possui outro mérito. O enredo é inte-
ressante, a trama bem intricada, mas Belcourt fala por indiretas, e Charlotta
responde atravessado. Qualquer pessoa inteligente poderia pegar um plano
pronto, caracteres prontos, corrigir o estilo e os disparates, completar as reticên-
cias – e o resultado seria um romance ótimo, original. De minha parte, podes
dizer o seguinte ao meu ingrato P. Que ele pare de desperdiçar a inteligência
em conversas com inglesas! Que na velha trama, borde novas ramagens e nos
apresente em pequena moldura um quadro do mundo e das pessoas, que ele
tão bem conhece.
Macha é grande conhecedora de literatura russa – em geral, aqui as pessoas
dedicam-se mais às belas letras do que em Petersburgo. Aqui, elas recebem re-
vistas, demonstram vivo interesse em suas diatribes, acreditam alter­nadamente
em ambos os lados, tomam as dores do escritor favorito se este é criticado. Agora
entendo por que Viázemski e Púchkin apreciam tanto as moças da província.
Elas representam seu verdadeiro público. Andei dando uma espiada nas revistas
e comecei pelas críticas de O Mensageiro da Europa12, mas seus pontos de vista
e a adulação que fazem pareceram-me detestáveis – é ridículo ver como um
seminarista, dando-se ares de seriedade, acusa de imoralidade e de indecência
obras que todos nós lemos, nós – os não-me-toques de São Petersburgo!...
***

Liza a Sacha

Querida! Não posso disfarçar por mais tempo, preciso da ajuda e do con-
selho dos amigos. Aquele **, de quem fugi e a quem temo como a infelicidade,
está aqui. O que devo fazer? Minha cabeça está rodando, estou perdida, resolve,
pelo amor de Deus, o que devo fazer. Vou te contar tudo...
Notaste que no último inverno ele não se afastou de mim. À nossa casa
ele não vinha, mas nos avistávamos em toda a parte. Armei-me inutilmente
de frieza, até as raias do menosprezo, – não conseguia livrar-me dele de jeito
nenhum. Nos bailes, ele sempre sabia encontrar um lugar a meu lado, sempre
se encontrava conosco nos passeios, no teatro, seu binóculo estava sempre
voltado para nosso camarote.


12. Em 1829, os artigos de N. Nadiéjdin publicados nessa revista ridicularizavam os poemas
longos Poltava e O Conde Núlin, de A. S. Púchkin.

197
Caderno de Literatura e Cultura Russa

No começo, a coisa acalentava meu amor-próprio. Talvez eu o tenha deixa-


do perceber isso em demasia. Pelo menos, arrogando-se novos direitos, falava-
-me com insistência sobre seus sentimentos e ora vinha com ciúmes, ora com
lamúrias... Apavorada, eu pensava: a que tudo isso pode levar! E, desesperada,
reconhecia seu poder sobre minha alma. Saí de Petersburgo, pensando cortar
assim o mal pela raiz. Minha decisão e a certeza de ter cumprido meu dever
tranqüilizaram meu coração, começava a pensar nele com indiferença, com
menos tristeza. De repente, eu o vejo.
Eu o vejo: ontem foi o dia do santo de ***. Fui lá para o almoço, entrei na
sala de estar, encontrei uma multidão de convidados, fardas de lanceiros, as
senhoras me rodearam, fui beijada por todos. Sem reparar em ninguém, sento-
-me ao lado da dona da casa, olho: ** está à minha frente. Fiquei petrificada...
Ele me dirigiu algumas palavras com um ar de alegria tão terna e sincera, que
não tive forças para dissimular nem minha perturbação, nem o prazer.
Dirigimo-nos à mesa. Ele sentou-se à minha frente; eu não tinha coragem de
fitá-lo, mas percebi que todos os olhares estavam fixos nele. Permanecia calado
e distraído. Em outros tempos, eu estaria muito entretida com o desejo geral
de atrair a atenção de um oficial da Guarda recém-chegado, com a aflição das
moças, com a falta de jeito dos homens gargalhando com as próprias pilhérias,
e enquanto isso a frieza e a indiferença do convidado... Depois do almoço, ele
se aproximou de mim. Sentindo que era preciso dizer algo, perguntei bem
fora de propósito se tinha vindo para nossos lados a negócios. “Vim para um
negócio do qual depende a felicidade de minha vida”, – respondeu em voz bai-
xa, afastando-se no mesmo instante; foi jogar boston com três velhotas (vovó,
inclusive), e eu subi aos aposentos de Máchenka, onde, a pretexto de uma dor
de cabeça, permaneci deitada até à noite. De fato, eu me sentia pior do que
se estivesse enferma. Máchenka não se afastou de mim. Ela anda apaixonada por
**. Ele passará um mês ou mais em casa deles. Ela estará o dia inteiro com ele.
Palavra, ela se apaixonou por ele – queira Deus que ele também tenha se apai-
xonado. Ela é bem proporcionada e graciosa – para os homens basta apenas
isso.
O que devo fazer, querida? Aqui não poderei escapar à sua perseguição. Já
conseguiu cativar vovó. Virá nos visitar – novamente as confissões, as lamúrias,­
as juras – e para quê? Ele conseguirá o meu amor, meu assentimento, – depois
refletirá sobre as desvantagens do casamento, partirá sob qualquer pretexto,
me abandonará, – e eu... Que futuro terrível! Pelo amor de Deus, ajuda-me:
estou afundando.
***

198
Romance em Cartas

Resposta de Sacha

É outra coisa aliviar o coração com uma confissão completa! Já não é sem
tempo, meu anjo! A troco de quê não querias me confessar aquilo que eu há
muito já sabia? Tu e ** estão apaixonados um pelo outro – grande coisa! Bom
proveito. Tens o dom de olhar para as coisas sabe lá Deus por que lado. Fazes
de tudo para ser infeliz – cuidado para não atrair a desgraça. Por que não casar
com **? Onde é que estão as importunas dificuldades? Ele é rico, e tu és pobre
– é simples. Ele é rico para ambos – mais do que para ambos. É aristocrata; e,
pelo nome, pela educação, por acaso também não o és?
Outro dia houve uma discussão entre senhoras da alta roda. Soube que,
certa vez, P. declarou-se partidário da aristocracia, porque esta anda melhor
calçada. Pois bem, será que não está claro que és aristocrata da cabeça aos pés?
Perdoa, meu anjo, mas tua carta patética fez-me rir. ** foi à aldeia para te
ver. Que horror! Tu definhas, exiges de mim um conselho. Ainda não te tornaste
uma heroína da província! Meu conselho: casar-te o mais rápido possível numa
igreja daí mesmo e viajar para cá, para representar a Fornarina nos quadros
vivos que estão sendo organizados em casa de S**. A conduta de teu cavaleiro
tocou-me fundo, falando sério. Certamente, nos tempos idos, por um olhar
benevolente, o namorado partia para a Palestina combater três anos; mas,
hoje em dia, viajar 500 verstas além de Petersburgo para se encontrar com a
dona de seu coração significa muito, realmente. ** merece a recompensa.
***

Vladímir ** a um amigo

Tem a bondade de espalhar o boato de que estou à morte, que tenho a


intenção de deixar o tempo passar e pretendo manter todo o decoro possível.
Já lá vão duas semanas que vivo na aldeia e nem percebo como o tempo voa.
Descanso da vida de Petersburgo, que me aborreceu terrivelmente. Não gostar
da aldeia é perdoável a uma monastirka13, recém-saída da gaiola, e aos noviços
de 18 anos. Petersburgo é a ante-sala, Moscou o quarto das criadas, e a aldeia
é o nosso aposento. Um homem de bem atravessa a ante-sala e raramente dá

13. Nome dado às educandas do Instituto Smólni, internato para moças da alta sociedade,
em Petersburgo. O Instituto foi fundado em 1764 e ocupava o edifício do Mosteiro Smólni,
que fora desativado.

199
Caderno de Literatura e Cultura Russa

uma espiada no quarto das criadas, mas instala-se em seu próprio aposento.
Acabarei assim eu também. Vou pedir baixa, casar-me e partirei para minha
aldeia em Sarátov. O título de proprietário de terras também tem serventia.
Dedicarmo-nos à administração de três mil almas14, cujo bem-estar depende
exclusivamente de nós, é mais importante que comandar um pelotão ou redigir
despachos diplomáticos...
O desleixo, a que relegamos nossos camponeses, é imperdoável. Quanto
mais direitos temos sobre eles, tanto mais deveres temos para com eles. Nós os
deixamos ao bel-prazer de um tratante feito intendente, que os controla, mas
nos rouba. Comprometemos em dívidas nossas futuras rendas, arruinamo-nos,
a velhice nos apanha na miséria e na lida.
Eis a causa da rápida decadência de nossa nobreza: o avô foi rico, o filho
passa necessidade, o neto cai no mundo. As famílias antigas caminham para
o nada; as novas se restabelecem e tornam a sumir na terceira geração. As si-
tuações se misturam, e nenhuma linhagem conhece seus antepassados. A que
leva esse materialismo político? Não sei. Mas está na hora de dar-lhe um basta.
Nunca pude assistir, sem pesar, à destruição de nossas linhagens históricas;
ninguém entre nós lhes dá valor, a começar por aqueles que a elas pertencem.
E que orgulho da memória esperar de um povo que escreve num monumento:
Ao cidadão Mínin e ao príncipe Pojárski? Qual príncipe Pojárski? O que signi-
fica cidadão Mínin? Eram o inspetor de polícia príncipe Dmítri Mikháilovitch
Pojárski e o pequeno-burguês Kozmá Mínitch Sukhóruk, representante eleito
de todo o estado. Mas a pátria esqueceu até dos verdadeiros nomes de seus
libertadores. O passado para nós não existe. Triste povo!
A aristocracia burocrática não substitui a aristocracia de sangue. As memó-
rias das famílias da nobreza devem constituir as memórias históricas do povo.
E que tal as memórias de família de um assessor colegial15 perante os filhos?
Ao falar em prol da aristocracia, eu não assumo ares de lorde inglês, como
o diplomata Seviérin, neto de um alfaiate e de um cozinheiro; minha origem,
embora também não me envergonhe dela, não me dá nenhum direito a isso.
Mas estou de acordo com Labruyère: “Affecter le mépris de la naissance est un
ridicule dans le parvenu et une lâcheté dans le gentil homme”16.

14. Nome que se dava aos servos da gleba.


15. Cargo da burocracia russa de oitava classe, equivalente na hierarquia militar ao grau
de major.
16. Em francês no original: “Afetar desprezo pela origem é algo ridículo no arrivista e uma
covardia no cavalheiro”. A frase citada, atribuída ao moralista francês (1645-1696), autor de
Dos Caracteres, representa uma mistificação literária: em Labruyère ela não existe. Esse tipo de

200
Romance em Cartas

Refleti sobre tudo isso, vivendo numa aldeia estranha e observando a admi-
nistração dos pequenos nobres. Esses senhores não são burocratas e ocupam-se
pessoalmente da administração de suas aldeolas, mas, tenho que reconhecer,
queira Deus que se arruinem como a um nosso irmão. Que barbárie! Para
eles, os tempos de Fonvízin ainda não chegaram. Entre eles ainda florescem os
Próstakov e os Skótinin17.
Isso, aliás, não se aplica ao parente em casa de quem me hospedo. Ele é ho-
mem muito bom, sua esposa é mulher muito boa, a filha é muito boa menina.
Como vês, tornei-me muito bom. De fato, como tenho estado na aldeia, desde
então tornei-me extraordinariamente benévolo e indulgente – influência da
vida patriarcal que estou levando e da presença de Liza***. Tudo para mim
estava ficando aborrecido sem ela e não é brincadeira. Vim tentar convencê-la
a voltar para Petersburgo. Nosso primeiro encontro foi esplêndido. Era o dia de
santo de minha tia. Toda a vizinhança se reuniu. Liza também apareceu – e mal
acreditou nos próprios olhos ao me ver... Ela não podia deixar de reconhecer
que vim até aqui só por sua causa. Ao menos esforcei-me para fazê-la sentir
isso. Aqui, meu sucesso supera minhas expectativas (o que significa muito).
As velhotas estão encantadas comigo, as damas disputam minha amizade,
“Por serem patriotas”18. Os homens andam extraordinariamente desconten-
tes com minha fatuité indolente19, que ainda é novidade por aqui. Eles ficam
furiosos, tanto mais que sou cortês e decoroso ao extremo, e não compreen-
dem de jeito nenhum em que consiste exatamente minha insolência, embora
percebam que eu o seja. Adeus. O que andam fazendo os nossos? Servitor
di tutti quanti20. Escreve-me para a aldeia**.
***

Resposta do Amigo

Cumpri tua incumbência. Anunciei ontem no teatro que apanhaste uma


febre nervosa e que, provavelmente, já não fazes parte deste mundo, – pois
bem, aproveita a vida, enquanto ainda não ressuscitaste. Tuas considerações

recurso aparece com certa freqüência na obra de Púchkin. Veja-se, por exemplo, a epígrafe ao
capítulo V de A Dama de Espadas, em que o filósofo Swedenborg é citado.
17. Personagens da comédia O Menor de Idade, de Fonvízin.
18. Citação da comédia A Desgraça de Ter Engenho, de A. S. Griboiédov.
19. Em francês, no original: “fatuidade indolente”.
20. Em italiano, no original; expressão equivalente a “às ordens de todos”, ou a “um vosso criado”.

201
Caderno de Literatura e Cultura Russa

morais acerca da administração de propriedades alegram-me por ti. Muito


melhor é

Un homme sans peur et sans reproche,


Qui n’est ni roi, ni duc, ni comte aussi 21.

A condição de proprietário rural na Rússia, na minha opinião, é a mais


invejável.
As classes na Rússia são uma necessidade ainda que seja para certas esta-
ções, onde sem elas não conseguirias cavalos.
.................................................................................................................................22
Ao entrar em importantes elucubrações, esqueci completamente que agora
não estás para isso – vives ocupado com a tua Liza. Tens vontade de ser um conde
Foblas e de sempre te divertires com as mulheres. Isso não é digno de ti. Nesse
sentido, ficaste fora de tua época e te perdes no ci-devant23 da guarda dos arrota-
-grosso24 de 1807. Por ora, esta é a falta, logo estarás caçoando do general G.**.
Não seria melhor habituar-se de antemão ao rigor da idade madura e renunciar
à juventude que definha? Sei que prego no deserto, mas é este o meu lema.
Todos os teus amigos te saúdam e lamentam muito teu prematuro fale-
cimento – a propósito, também o faz tua amiga de antes, que regressou de
Roma, apaixonada pelo papa25. Quão próprio dela é tudo isso, e como deverá te
encantar! Não virás para um embate cum servo servorum Dei?26 Isso seria bem
teu. Estarei todos os dias à tua espera.
***

21. A primeira frase (“Um homem sem medo e sem mácula”) refere-se ao lema do brasão
da família feudal francesa Baillard. A segunda, ao lema da família feudal francesa Coucy: “Je
ne suis ni roi, ni duc, ni comte aussi, / Je suis le sire de Coucy” (“Eu não sou rei, nem duque,
nem sequer conde, / Eu sou o senhor de Coucy”).
22. Segundo o curador do texto em nota à edição soviética da obra, há uma evidente omissão
nesta passagem do manuscrito puchkiniano. Ao que parece, parte da nona carta se teria extraviado.
23. Em francês, no original: “antanho”.
24. A palavra “хрипун” (rompe-goela, garganta-rouca) fazia parte no início do século
XIX do jargão dos oficiais russos. Viázemski atribuía a invenção do termo a A. I. Raiévski, co-
mandante de um regimento da Cavalaria da Guarda, e escrevia: “A palavra [...] denotava uma
certa jactância associada à arrogância e expressa por uma rouquidão forçada da voz”. O ano de
1807, quando a palavra esteve em voga, foi o ano da guerra de Napoleão na Prússia Oriental.
25. Na alta sociedade russa da década de 20 do século passado era forte o entusiasmo pelo
catolicismo.
26. Expressão latina pertencente ao rito católico, em latim no original russo (“com um
servo dos servos de Deus”).

202
Romance em Cartas

Vladímir ** a seu Amigo

Tuas admoestações são totalmente injustas. Não eu, mas foste tu a ficar fora
de teu século – e por toda a década. Tuas importantes elucubrações especu-
lativas remontam a 181827. Naquele tempo, o rigor das normas e a política
econômica estavam na moda. Íamos aos bailes sem tirar as espadas, achávamos
indecoroso dançar e não tínhamos tempo para dedicar às damas. Tenho a honra
de informar-te que agora tudo isso mudou. A quadrilha francesa substituiu
Adam Smith, cada um arrasta as asas e diverte-se como pode. Eu sigo o espírito
da época; mas tu ficas parado, tu és ci-devant, um estereótipo de homem. Tua
vontade é ficar sentado sozinho num banquinho do lado da oposição. Minha
esperança é que Z.28 te conduza de volta ao caminho verdadeiro: confio-te ao
seu coquetismo vaticano. Quanto a mim, entreguei-me plenamente à vida
patriarcal: recolho-me para dormir às dez horas da noite, saio à primeira neve
com os proprietários locais, jogo boston a copeque com as velhotas e zango-me
quando perco. Encontro-me todos os dias com Liza – e, cada vez, fico mais apai-
xonado por ela. Tem muito de atraente. Essa suave e compensadora harmonia
está no trato, é um atrativo da alta sociedade petersburguesa, mas ao mesmo
tempo é algo vivo, indulgente, de berço (como diz a avó dela), não há nada de
ferino, de cruel, em suas opiniões, ela não faz caretas ao receber impressões,
como uma criança diante de outra. Ela ouve e compreende – qualidade rara
em nossas mulheres. Surpreendia-me freqüentemente com a obtusidade de
opinião ou com a imaginação rasteira das damas, de resto muito gentis. Elas
costumam tomar o mais refinado gracejo, o mais poético elogio ora por um
epigrama insolente, ora por um viés indecoroso. Nesse caso, a frieza que as-
sumem é tão insuportavelmente abominável que, diante disso, o amor mais
impetuoso não resistirá.
Tive essa experiência com Eliena, por quem estava perdidamente apaixona-
do. Disse-lhe um agrado qualquer; ela o tomou por grosseria e foi queixar-se
de mim a uma amiga. Isso me deixou completamente desapontado. Além de
Liza, tenho Máchenka*** para me entreter. É adorável. Essas moças criadas

27. O ano de 1818 é significativo sobretudo para a história do pensamento social russo: é o
ano da fundação da União da Prosperidade. O discurso de Alexandre I na abertura da Assem-
bléia Legislativa da Polônia em março, com a promessa de estabelecer o regime constitucional
na Rússia, permitiu a discussão aberta da possibilidade de reformas políticas. Naquele mesmo
ano, apareceu o livro de N. I. Turguéniev, Ensaios de Teoria dos Impostos, que atraiu a atenção
geral e contribuiu para a propagação de idéias de economia política.
28. Provável alusão à famosa dama da sociedade petersburguesa, Zinaída Volkónskaia, que
se converteu ao catolicismo e mudou-se para Roma em 1829.

203
Caderno de Literatura e Cultura Russa

sob macieiras e entre fardos de feno, educadas por suas amas e pela natureza,
são bem mais encantadoras que nossas beldades todas iguais, que até o casa-
mento seguem as opiniões de suas mães, e depois – as opiniões dos maridos.
A propósito, meu caro, o que há de novo no mundo? Avisa a todos que,
finalmente, eu também me entreguei à poesia. Há dias, compus uma dedica-
tória para o retrato da princesa Olga (por causa disso Liza ralhou mui gentil-
mente comigo):

É estúpida como a verdade, enfadonha como a perfeição.

Ou seria melhor:

É enfadonha como a verdade, estúpida como a perfeição?

Um e outro têm significados parecidos. Pede ao V. para arranjar o primeiro


verso e, doravante, considerar-me um poeta.
....................................................................................................................................

Tradução e Notas
Homero Freitas de Andrade

204
Sobre Poesia Clássica
e Romântica1
Aleksandr Púchkin

Nossos críticos ainda não chegaram a um acordo quanto a uma distinção clara
entre os gêneros clássico e romântico. A concepção confusa sobre este tema,
nós a devemos aos jornalistas franceses, que via de regra atribuem ao roman-
tismo tudo aquilo que lhes parece trazer a marca do devaneio e do ideologismo
alemão, ou basear-se nas superstições e tradições orais do povo: é a definição
mais imprecisa. Um poema pode manifestar todos esses indícios e, no entanto,
pertencer ao gênero clássico.
Se, em vez da forma2 de um poema, tomarmos como base somente o espírito3
em que está escrito, então nunca nos livraremos das definições. Decerto, um
hino de J. B. Rousseau distingue-se, em seu espírito, de uma ode de Píndaro,
uma sátira de Juvenal da sátira de Horácio, Jerusalém Libertada da Eneida –
contudo, todos eles pertencem ao gênero clássico. Neste gênero devem ser
incluídos os poemas cujas formas4 eram conhecidas dos gregos e romanos, ou
cujos modelos eles nos legaram; por conseguinte, a ele pertencem: a epopéia, o
poema didático, a tragédia, a comédia, a ode, a sátira, a epístola, o poema he-
róico, a écloga, a elegia, o epigrama e a fábula.

1. Traduzido do original em russo («О поэзии классической и романтической»),


publicado nas Obras (Сочинения), Moscou, Khudójestvennaia Literatura, 1949, pp. 714-
715. Trata-se do rascunho de um artigo inacabado, escrito em 1825.
2. Grifo do autor.
3. Idem.
4. Idem.
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Que gêneros de poemas então devem ser atribuídos à poesia romântica?


Todos aqueles que não eram conhecidos dos antigos e aqueles cujas formas
anteriores foram modificadas ou substituídas por outras.
Não acho necessário tratar da poesia dos gregos e romanos: todo europeu
culto deve possuir um conhecimento suficiente das obras imortais da impo-
nente Antigüidade. Vamos lançar um olhar sobre a origem e o desenvolvimento
gradual da poesia dos povos mais modernos.
O império ocidental caminhava rapidamente para a queda, e com ele as
ciências, a literatura e as artes. Finalmente ele desabou; a instrução extinguiu-
-se. A ignorância obscureceu a Europa ensangüentada. Mal se salvaram as letras
latinas; em meio à poeira dos arquivos dos mosteiros, os monges raspavam do
pergaminho os versos de Lucrécio e Virgílio e, no lugar deles, escreviam em
cima suas próprias crônicas e lendas.
A poesia despertou sob o céu da França meridional – a rima ecoou na língua
românica; esse novo ornamento do verso, à primeira vista tão pouco significa-
tivo, exerceu uma importante influência sobre a literatura dos povos modernos.
O ouvido alegrou-se com a repetição dobrada dos sons, a dificuldade vencida
sempre nos traz prazer – o amor à proporção, à harmonia são inerentes à razão
humana. Os trovadores brincavam com a rima, elaboravam para ela todas as
modificações de versos possíveis, inventavam as formas mais difíceis: surgiram
o virelai 5, a balada, o rondó, o soneto etc.
Disso decorreu um inevitável caráter forçado da expressão, uma certa
afetação totalmente desconhecida dos antigos; a graça pedante substituiu o
sentimento que não pode ser expresso em triolés. Encontramos esses traços
nefastos nos maiores gênios dos tempos modernos.
Mas a razão não pode se satisfazer somente com brinquedos de harmonia, a
imaginação exige cenas e relatos. Os trovadores voltaram-se para novas fontes
de inspiração, celebraram o amor e a guerra, reavivaram as tradições populares
– nasceram os lais, o romance e o fabliau.
Concepções obscuras sobre a antiga tragédia e os festejos religiosos deram
ensejo à composição dos mistérios (mystères6). Eles são, quase todos, escritos
segundo um modelo e submetem-se a um código, mas, infelizmente, não havia
naquela época um Aristóteles para estabelecer as leis inalteráveis da dramatur-
gia mística.
Duas circunstâncias exerceram influência decisiva no espírito da poesia
européia: a invasão dos mouros e as cruzadas.

5. Em caracteres latinos, no original.


6. Em francês, no original.

206
Sobre Poesia Clássica e Romântica

Os mouros incutiram-lhe o frenesi e a brandura do amor, o apego ao miracu­


loso e a exuberante eloqüência do Oriente; os cavaleiros comunicaram a sua
devoção e ingenuidade, suas concepções de heroísmo e a liberdade de costumes
nos acampamentos de campanha de Godofredo e Ricardo.
Foi esse o modesto início da poesia romântica. Se ela tivesse parado nesses
experimentos, os juízos severos dos críticos franceses teriam sido justos, mas
os seus ramos floresceram com rapidez e esplendor, e ela nos aparece como
uma rival da musa antiga.
A Itália apropriou-se de sua epopéia. A Espanha semi-africana apoderou-
-se da tragédia e do romance. A Inglaterra, em oposição aos nomes de Dante,
Ariosto e Calderón, a Inglaterra lançou orgulhosamente os nomes de Spencer,
Milton e Shakespeare; na Alemanha (o que é bastante estranho), destacou-se
uma nova sátira, cáustica, trocista, cujo monumento tornou-se Reinicke Fuchs.
Na França de então a poesia ainda engatinhava: o melhor versejador da
época de Francisco I
Rima des triolets, fit fleurir la ballade 7.
A prosa já possuía um forte contrapeso: Montaigne e Rabelais eram con-
temporâneos de Marot.
Na Itália e na Espanha, a poesia popular já existia antes do aparecimento de
seus gênios. Eles trilharam um caminho aberto de antemão: havia poemas antes
do Orlando de Ariosto, havia tragédias antes das criações de Vega e Calderón.
Em França, o iluminismo surpreendeu a poesia nos cueiros, sem nenhuma
orientação, sem nenhum vigor. As mentes cultas do século de Luís XIV despre-
zavam com justiça sua insignificância e dirigiram-na para os modelos antigos.
Boileau difundiu o seu Corão – e a literatura francesa submeteu-se a ele.
Essa poesia pseudoclássica, criada no vestíbulo e que nunca ultrapassou a
sala de visitas, não podia se desvincular de alguns hábitos de nascença; e nós
vemos nela toda a afetação romântica, envergando severas formas clássicas.
P.S. Não se deve pensar, entretanto, que também em França não restaram
monumentos de poesia romântica pura. Os contos maravilhosos de Lafontaine
e de Voltaire e a Pucelle deste último levam a sua marca. Não estou me referindo
às inúmeras imitações daqueles e daquela, imitações que, em sua maioria, são
medíocres: é mais fácil superar os gênios no esquecimento de todo o deco-
ro do que no mérito poético.

Tradução
Homero Freitas de Andrade

7. Em francês, no original. Citação de L’Art Poétique de Boileau.

207
Esboços de um Prefácio
a Boris Godunov1
Aleksandr Púchkin

Voici ma tragédie puisque vous la voulez absolument, mais avant que de la lire
j’exige que vous parcouriez le dernier tome de Karamzine2. Elle est remplie de
bonnes plaisanteries et d’allusions fines à l’histoire de ce temps-là comme nos
sous-oeuvres de Kiov et de Kamenka. Il faut les comprendre sine qua non.
A l’exemple de Shakespeare je me suis borné à développer une époque et
des personnages historiques sans rechercher les effets théatrals, le pathétique
romanesque etc... le style en est mélangé. – Il est trivial et bas là où j’ai été
obligé de faire intervenir des personnages vulgaires et grossiers – quand aux

1. Este material (“Наброски предисловия к Борису Годунову”) encontrado entre os


papéis de Púchkin reúne trechos escritos entre 1825 e 1831, ora em francês, ora em russo, e
constitui uma espécie de rascunho de um eventual prefácio à peça Boris Godunov, que não
chegou a ser concluído e nem publicado em vida do autor. O primeiro trecho em francês foi
escrito em 1825, numa carta dirigida a N. N. Raiévski, e reformulado em janeiro de 1829. Por
apresentar uma versão mais extensa e abrangente do esboço do que as que figuram em outras
edições das obras de Púchkin, a tradução foi elaborada com base nas Obras (Сочинения,
Moscou, Khudójestvennaia Literatura, 1949, pp. 743-747). Preferiu-se manter em francês os
trechos escritos nessa língua e traduzir apenas aqueles em russo. Tanto no texto da edição
escolhida para a tradução como no das Obras Completas em Dez Volumes há inúmeros (e não
coincidentes) erros ortográficos de francês que devem ser atribuídos ao descuido dos revisores
soviéticos, uma vez que Púchkin dominava a língua francesa falada e escrita desde tenra idade.
Em virtude disso, evitou-se reproduzi-los aqui.
2. Alusão ao volume XI de História do Estado Russo, que trata dos reinados de Boris Godunov
e do Falso Dmítri.
Caderno de Literatura e Cultura Russa

grosses indécences, n’y faites pas attention: cela a été écrit au courant de la
plume et disparaîtra à la première copie. Une tragédie sans amour souriait à
mon imagination. Mais outre que l’amour entrait beaucoup dans le caractère
romanesque et passioné de mon aventurier, j’ai rendu Дмитрий3 amoureux de
Marina pour mieux faire ressortir l’étrange caractère de cette dernière. Il n’est
encore qu’esquissé dans Karamzine. Mais certes c’était une drôle de jolie femme.
Elle n’a eu qu’une passion et ce fut l’ambition, mais à un degré d’énergie, de
rage qu’on a peine à se figurer. Après avoir goûté de la royauté voyez-la, ivre
d’une chimère, se prostituer d’aventuriers en aventuriers – partager tantôt le
lit dégoûtant d’un juif, tantôt la tente d’un cosaque, toujours prête à se livrer à
quiconque peut lui présenter la faible espérance d’un trône qui n’existait plus.
Voyez-la braver la guerre, la misère, la honte, en même temps traiter avec le roi
de Pologne de couronne à couronne et finir misérablement l’existence la plus
ourageuse et la plus extraordinaire. Je n’ai qu’une scène pour elle, mais j’y
reviendrai si Dieu me prête vie. – Elle me trouble comme une passion. – Elle
est horriblement polonaise comme le disait la cousine de Mme Lubomirska4.
Гаврила Пушкин [Gavrila Púchkin] est un de mes ancêtres, je l’ai peint
tel que je l’ai trouvé dans l’histoire et dans les papiers de ma famille. – Il a eu
des grands talents, homme de guerre, homme de cour, homme de conspiration
surtout. C’est lui et Плещеев [Plechtchéiev] qui ont assuré le succès du
Самозванец [Samozvániets5] par une audace inouïe. – Après je l’ai retrouvé à
Moscou l’un des 7 chefs qui la défendaient en 1612, puis en 1616 dans la Дума
[Duma] siégeant à côté de Козьма [Kozmá] Minine, puis воевода [voievoda6]
à Нижний [Níjni], puis parmi les députés qui couronnèrent Romanof 7, puis
ambassadeur. – Il a été tout, même incendiaire comme le prouve une грамота
[documento] que j’ai trouvée à Погорелое Городище [Pogoriéloie Goro-
­di­chtche] – ville qu’il fit brûler (pour la punir de je ne sais quoi) à la mode des
proconsuls de la Convention Nationale.
Je compte revenir aussi sur Шуйский [Chúiski]. – Il montre dans l’histoire
un singulier mélange d’audace, de souplesse et de force de caractère. Valet de
Godounof il est un des premiers boyards à passer du côté de Дмитрий [Dmítri].

3. Em caracteres cirílicos, no original: Dmítri. Doravante, para evitar o excesso de notas, as


palavras escritas em cirílico aparecerão transliteradas ou traduzidas entre colchetes no pró-
prio texto.
4. Provável alusão a Karolina Sobánskaia.
5. A palavra russa significa “autoproclamado” e aplica-se como um epíteto ao Falso Dmítri.
6. Chefe militar e governador de província na Rússia dos séculos XVI-XVIII.
7. Alusão a Mikhail Románov, eleito e coroado czar em 1613.

210
Esboços de um Prefácio a Boris Godunov

Il est le premier qui conspire et c’est lui même, notez cela, qui se charge de
retirer les marrons du feu, c’est lui même qui vocifère, qui accuse, qui de
chef devient enfant perdu. – Il est prêt à perdre la tête, Дмитрий [Dmítri]
lui fait grâce déjà sur l’échafaud, il l’exile et avec cette générosité étourdie qui
caractérisait cet aimable aventurier il le rappelle à sa cour, il le comble de biens
et d’honneurs. – Que fait Шуйский [Chúiski] qui avait frisé de si près la hache
et le billot? Il n’a rien de plus pressé que de conspirer de nouveau, de réussir, de
se faire élire tsar, de tomber et de garder dans la chûte plus de dignité et de
force d’âme qu’il n’en a eu pendant toute sa vie.
Il y a beaucoup du Henri IV dans Дмитрий [Dmítri], – il est comme lui
brave, généreux et gascon, comme lui indifférent à la religion – tous deux
abjurant leur foi pour cause politique, tous deux aimant les plaisirs et la guerre,
tous deux se donnant dans des projets chimériques, tous deux en butte aux
conspirations... Mais Henri IV n’a pas à se reprocher Ксения [Ksénia] – il est
vrai que cette horrible accusation n’est pas prouvée et quant à moi je me fais
une religion de ne pas y croire.
Грибоедов [Griboiédov] a critiqué le personnage de Job – le patriarche, il
est vrai, était un homme de beaucoup d’esprit, j’en ai fait un sot par distraction.
En écrivant ma Godunov j’ai réfléchi sur la tragédie – et si je me mêlais de
faire une préface, je ferais du scandale – c’est peut-être le genre le plus
méconnu. On a tâché d’en baser les lois sur la vraisemblance, et c’est
justement elle qu’exclut la nature du drame; sans parler déjà du temps, des
lieux etc. quel diable de vraisemblance y a-t-il dans une salle coupée en deux
dont l’une est occupée par 2000 personnes, sensées n’être pas vues par celles
qui sont sur les planches.
2) La langue. Par exemple le Philoctète de la Harpe dit en bon français
après avoir entendu une tirade de Pyrrus: Hélas j’entends les doux sons de la
langue grecque. Tout cela n’est-il pas d’une invraisemblance de convention?
Les vrais génies de la tragédie ne se sont jamais souciés d’une autre vraisem­
blance que celle des caractères et des situations. Voyez comme Corneille a
bravement mené le Cid: ha, vous voulez la règle de 24 heures? Soit. Et là-
-dessus il vous entasse des événements pour 4 mois. Rien de plus ridicule que
les petits changements des règles reçues. Alfieri est profondément frappé du
ridicule de l’a parte, il le supprime et là-dessus allonge le monologue. Quelle
puérilité!
Ma lettre est bien plus longue que je ne l’avais voulu faire. Gardez-la, je vous
prie, car j’en aurai besoin si le diable me tente de faire une préface.
30 Jan. 1829, S.-Pb.

211
Caderno de Literatura e Cultura Russa

II

É com imensa relutância que me atrevo a publicar Boris Godunov. O suces-


so ou o fracasso de minha tragédia influirá na transformação do nosso sistema
dramático. Receio que seus próprios defeitos sejam atribuídos ao romantismo
e que, assim, ela retarde a marcha.
Não obstante o sucesso de Poltava8 me sirva de incentivo.
1829

III

É com imensa relutância que me atrevo a publicar a minha tragédia.


E embora, geralmente, eu sempre tenha sido bastante indiferente ao sucesso
ou ao fracasso de minhas obras, confesso que o fracasso de Boris Godunov me
deixará sentido, e estou quase certo de que ele virá. Como Montaigne, posso
dizer da minha obra: C’est une oeuvre de bonne foi 9.
Escrita por mim em solidão absoluta, distante do mundo que arrefece, fruto
do trabalho constante, de estudos conscienciosos, esta tragédia proporcionou-
-me tudo o que é permitido a um escritor desfrutar: uma ocupação vívida e
inspirada, a convicção íntima de que esforços não foram poupados, finalmente,
a aprovação de um pequeno número de pessoas escolhidas.
Minha tragédia já é conhecida de quase todos cujas opiniões eu prezo.
Dentre os meus ouvintes só faltou um10, aquele a quem devo a idéia da mi-
nha tragédia, aquele cujo gênio me deu inspiração e amparo; cuja aprovação
imaginei como a mais doce recompensa e era só o que me distraía no meio do
trabalho solitário.
1829

IV

O estudo de Shakespeare, de Karamzin e de nossas velhas crônicas deu-me


a idéia de plasmar em formas dramáticas uma das épocas mais dramáticas da

  8. Púchkin havia publicado o poema longo Poltava no final de março de 1829.


  9. Referência à frase de abertura dos Ensaios de Montaigne: C’est ici un livre de bonne foi,
lecteur.

10. Alusão a Karamzin.

212
Esboços de um Prefácio a Boris Godunov

história moderna. Sem ser perturbado por qualquer outra influência, imitei
Shakespeare em sua representação livre e ampla dos caracteres, na combinação
simples e descuidada dos tipos, segui Karamzin no desenvolvimento claro dos
acontecimentos, nas crônicas procurava adivinhar o modo de pensar e a língua
daquele tempo. Ricas fontes! Se soube aproveitá-las, não sei. Pelo menos, meus
esforços foram ciosos e honestos.
Por muito tempo não conseguia me decidir a publicar o meu drama. O
bom ou o mau sucesso das minhas poesias, o veredicto benevolente ou severo
das revistas a respeito de alguma narrativa em versos pouco perturbaram até
hoje o meu amor-próprio. As críticas demasiado lisonjeiras tampouco o cega-
vam. Ao ler as análises mais ultrajantes, tentava adivinhar a opinião do crítico,
compreender com o máximo de sangue frio em que exatamente consistiam
suas acusações. – E, se nunca respondia a elas, tal acontecia não por desprezo,
mas unicamente por convicção de que para a nossa literatura il est indifférent11
que esse ou aquele capítulo do Oniéguin seja melhor ou pior que outro12. Mas,
confesso com toda a sinceridade, o insucesso do meu drama me daria desgos-
to, pois estou firmemente convencido de que são convenientes para o nosso
teatro as leis populares do drama de Shakespeare, e não o vezo cortesão das
tragédias de Racine, e que qualquer experiência malsucedida pode retardar a
transformação da nossa ribalta. (Ermak de A. S. Khomiakov é mais obra lírica
do que dramática. Seu êxito deve-se aos excelentes versos em que foi escrita.)
Dou início a algumas explicações particulares. O verso utilizado por mim
(o pentâmetro iâmbico) é habitualmente aceito pelos ingleses e alemães. Entre
nós, ao que parece, encontramos um primeiro exemplo em Os Argonautas13; A.
Jandr emprega-o preferencialmente num trecho de sua excelente tragédia, escrita
em versos livres14. – Mantive a cesura do pentâmetro francês no segundo pé – e
parece que nisso eu errei, privando voluntariamente o meu verso da variedade
que lhe é característica. Há brincadeiras grosseiras, cenas de povo. É bom que
o poeta consiga evitá-las, – o poeta não deve ser vulgar de bom grado, – mas
se não puder, ele deve tentar substituí-las por outra coisa qualquer.
Tendo encontrado na história um de meus antepassados, que desempenhou
um papel importante nessa época infeliz, coloquei-o em cena, sem pensar no

11. Em francês, no original.


12. O romance em versos Evguiéni Oniéguin foi publicado em capítulos na revista O Men-
sageiro de Moscou (1828).
13. Alusão a uma tragédia de Kiukhelbéker.
14. Referência ao primeiro ato da tragédia Venceslas de Jean Retrou, traduzido e publicado
por Andréi A. Jandr em 1825.

213
Caderno de Literatura e Cultura Russa

melindre do decoro, con amore15, mas sem qualquer soberba de fidalgo. De


todas as minhas imitações de Byron, a prepotência senhorial foi a mais ridícula.
Uma nova nobreza compõe a nossa aristocracia; a antiga chegou à decadên-
cia, seus direitos foram igualados aos direitos das outras posições, as grandes
propriedades foram há muito desmembradas, aniquiladas, e ninguém, nem
mesmo os próprios descendentes e etc...16 – Pertencer à velha aristocracia não
representa nenhuma vantagem aos olhos da plebe sensata, e uma reverência
solitária à gloria dos antepassados pode apenas atrair a censura à singularidade
ou à imitação insensata de estrangeiros.
1829-1830

Je me présente ayant changé ma manière première. N’ayant plus à illustrer un


nom inconnu et une première jeunesse, je n’ose plus compter sur l’indulgence
avec laquelle j’avais été accueilli. – Ce n’est plus le sourire de la mode que je
brigue. – Je me retire volontairement du rang de ses favoris, en faisant mes
humbles remerciements de la faveur avec laquelle elle avait accueilli mes faibles
essais pendant dix ans de ma vie.
***
Lorsque j’écrivais cette tragédie, j’étais seul à la campagne, ne voyant person-
ne, ne lisant que les journaux etc. – d’autant plus volontiers que j’ai toujours cru
que le romantisme convenait seul à notre scène; je vis que j’étais dans l’erreur.
J’éprouvais une grande répugnance à livrer au public ma tragédie, je voulais au
moins de faire précéder d’une préface et la faire accompagner de notes. – Mais
je trouve tout cela fort inutile.
1830

VI

O espírito do tempo exige transformações importantes também na cena


dramática. Talvez elas não contemplem as esperanças dos transformadores. O

15. Em italiano, no original.


16. A frase parece não ter sido completada no momento em que a anotação foi feita. As
várias edições consultadas não apresentam diferenças neste trecho e também não ocorrem
notas dos organizadores a respeito. Talvez Púchkin pretendesse concluir o raciocínio, ou, en-
tão, para o leitor russo da época, o “etc.” devia resumir alguma conclusão óbvia.

214
Esboços de um Prefácio a Boris Godunov

poeta, que vive nas alturas da criação, vê com mais nitidez, talvez, quer os defei-
tos das reivindicações legítimas, quer aquilo que se oculta aos olhos da multi-
dão em alvoroço, mas para ele seria lutar em vão. Desse modo Lope de Vega17,
Shakespeare, Racine cediam à torrente; mas o gênio, seja qual for a direção
escolhida, permanece gênio – o julgamento dos pósteros separará o ouro, que
a ele pertence, da mistura.
1830

VII

Pour une préface18. Le public et la critique ayant accueilli avec une indulgence
passionnée19 mes premiers essais et dans un temps où la sévérité et la malveillance
m’eussent probablement dégoûté de la carrière que j’allais embrasser, je leur
dois reconnaissance entière, et je les tiens quittes envers moi – leur rigueur et
leur indifférence ayant maintenant peu d’influence sur mes travaux.
1831

Tradução e Notas
Homero Freitas de Andrade


17. Em caracteres latinos, no original.

18. Grifo do autor.

19. Grifo do autor.

215
Índice de Nomes e Referências
Homero Freitas de Andrade

Aleksei, criado de I. Púchtchin.


Alexandre I (1777-1825): imperador russo. Assumiu o trono após a morte
de seu pai, Paulo I, que foi assassinado como resultado de uma conspiração
palaciana, da qual o futuro czar também tomou parte. Reinou de 1801 a 1825,
posando de liberal, mas conduzindo o país com mão de ferro. Durante seu
reinado a Rússia participou da guerra contra a França (1805-1807) e a invasão
de Napoleão (1812), além de outras contra a Suécia, a Turquia e a Pérsia (1813-
1814). A Geórgia (1801), a Finlândia (1809) e a Bessarábia (1812) foram ane-
xadas à Rússia.
Ánnenkov, Pável Vassílievitch (1813-1887): crítico e historiador de literatura.­
Anthès Heeckeren, barão Georges-Charles d’ (1812-1895): cidadão fran-
cês, oficial do exército Russo, senador de França. Protegido do barão Heeckeren,
embaixador da Holanda na Rússia, ao chegar a S. Petersburgo em 1833, foi
adotado pelo diplomata e ingressou no exército russo como oficial. Participava
ativamente da vida na Corte, quando conheceu Natália Púchkina e apaixonou-
-se por ela. Cortejou-a intensamente, provocando ciúmes em Púchkin, que
o desafiou para um duelo. Em 1836, casou-se com Ekaterina Gontcharova,
irmã de Natália, com quem teve vários filhos. No duelo realizado em 1837,
acertou um tiro em Púchkin, que veio a falecer dias depois. Julgado por um
tribunal militar no mesmo ano, foi expulso do exército e da Rússia. De volta à
França com a mulher e o pai adotivo, entrou para a política. Monarquista con-
victo, de postura ultraconservadora, foi nomeado senador do Império.
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Anthès Heeckeren, baronesa Ekaterina Nikoláievna Gontcharova d’ (1810-


1843): irmã mais velha de Natália Púchkina, cunhada de Aleksandr Púchkin.
Casou-se com Georges d’Anthès em 1836. Depois da morte de Púchkin, partiu
para a França, onde viveu com o marido.
Archiac, visconde Auguste d’(1811-1840): adido da embaixada francesa
em S. Petersburgo, testemunha de Georges d’Anthès no duelo contra Púchkin.
Abandonou a Rússia no início de fevereiro de 1837.
Arendt, um dos melhores médicos de S. Petersburgo à época, chefe da equipe
que cuidou de Púchkin após o último duelo praticado pelo poeta.
“Arzamás” – sociedade literária fundada em 1815 pelos seguidores do escri-
tor e historiador N. Karamzin, V. A. Jukóvski, K. Bátiuchkov e P. A. Viázemski.
Tinha por objetivo contrapor-se à “Sociedade dos Amigos da Língua Russa”,
liderada pelo eslavófilo A. S. Chichikov (1754-1841). Enquanto a “Sociedade
dos Amigos da Língua Russa” defendia o uso do eslavo eclesiástico como língua
literária, o “Arzamás” firmava-se no russo e estava aberto às influências literá-
rias da Europa. As reuniões do grupo, alegres e humorísticas, parodiavam as
reuniões da “Sociedade”.
Avvakum, Petróvitch (c. 1621-1682): eclesiástico, escritor, teólogo. Líder
espiritual dos “velhos crentes”, opôs-se às reformas religiosas instauradas pelo
patriarca Nikon, que propugnavam uma aproximação ao rito grego, e por isto
sofreu a prisão, o exílio e a fogueira, em 1681. Autor de vários textos de cunho
teológico em eslavo eclesiástico, deixou escrita em russo sua Autobiografia (1672-
1673), que constitui um documento de valor literário, precioso, inclusive, pelo
relato dos costumes da época.

Bachútski, Pável Iákovlevitch (1771-1836): administrador do Palácio de


Inverno (S. Petersburgo).
Baratýnski, Evguéni Abrámovitch (1800-1844): poeta e prosador. Filho da
pequena nobreza de Tambov, estudou no Corpo de Pajens de Petersburgo de
1812 a 1816, de onde foi expulso, acusado de roubo. Ingressou como soldado
raso na Guarda Imperial em 1819, e serviu na Finlândia até 1825. De volta à
Rússia, foi promovido a oficial, mas abandonou o serviço militar logo depois.
Não participou da Revolta de 1825, mas comungou do ideário dezembrista.
Considerado um dos mais originais poetas da assim chamada plêiade de Pú-
chkin, seu estilo foi fortemente influenciado em termos de expressividade e
concisão pelos modelos de seu mestre. Com a novela O Anel (1831) e outras

218
Índice de Nomes e Referências

narrativas concebidas nos moldes dos Contos de Biélkin de Púchkin, dedicou-


-se também à prosa.
Bátiuchkov, Konstantin Nikoláievitch (1787-1855): poeta e prosador. Es-
teve ligado durante algum tempo ao grupo “Arzamás” e publicou uma série de
poemas em O Mensageiro da Europa. Poeta do Sentimentalismo, seu trabalho
era muito apreciado por Púchkin.
Belínski, Vissarion Grigórievitch (1811-1848): crítico literário. Imbuído do
idealismo alemão, foi o primeiro crítico russo a valorizar os elementos estéticos
de uma obra literária. Iniciador da chamada Escola Natural na literatura russa,
que propunha o realismo crítico como método de representação das mazelas
sociais da Rússia, deu origem à tendência da crítica radical (Dobro­liúbov,
Píssariev etc.).
Benkendorf, Aleksandr Khristofórovitch (1783-1844): general, chefe do Cor-
po de Gendarmes, criador da III Seção da polícia política de Nicolau I, responsá­vel
pela censura e pela perseguição a intelectuais e artistas considerados subversi­vos.­
Bestújev, Piotr Aleksándrovitch (1804-1840): dezembrista, condenado ao
degredo na Sibéria.
Bestújev-Riúmin, Mikhail Pávlovitch (1803-1826): dezembrista, partici-
pou da revolta de 1825 pelo regimento de Tchernigov. Foi executado em 1826.
Bíbikov, agente da III Seção, a polícia política, encarregado de vigiar Púchkin
em S. Petersburgo, após sua volta do exílio.
Briullov, Karl Pávlovitch (1799-1852): pintor.
Briússov, Valiéri Iákovlevitch (1873-1924) – poeta, prosador, dramaturgo,
crítico e teórico de literatura, tradutor. Estreou como poeta em 1894, publi-
cando poemas nos três fascículos da coletânea Simbolistas Russos. Introduziu
inovações na prosa narrativa com seu romance Petersburgo. Depois da Revolução
de Outubro ingressou no Partido Comunista, trabalhou no Comissariado do
Povo para a Instrução e fundou em 1920 um instituto superior de literatura e
arte que mais tarde tomou seu nome.
Brunov, barão, membro da sociedade de Odessa, durante exílio de Púchkin
na cidade.

Contemporâneo, O (Современник) – revista especializada em literatura,


crítica literária e história, fundada por Púchkin em 1836.
Chteingueil, Vladímir Ivánovitch (1783-1862): dezembrista.
Chúiski, príncipe Vassíli, boiardo e czar de 1606 a 1610.

219
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Dal, Vladímir Ivánovitch (1801-1872): escritor e médico. Amigo de Púchkin,


cuidou do poeta após seu duelo mortal com d’Anthès.
Danzas, Konstantin Kárlovitch (1801-1870): oficial do exército. Foi colega
de Púchkin no Liceu de Tzárskoie Seló. Voltou a encontrar-se com o poeta em
Kichiniov e Petersburgo. Foi testemunha de Púchkin no duelo com G. d’Anthès.
Davýdov, Vassíli Lvóvitch (1792-1855): coronel dos hussardos, membro da
“União da Juventude” dos dezembristas. Foi condenado aos trabalhos forçados.­
Derjávin, Gavriil Románovitch (1743-1816): poeta, dramaturgo, teórico
da literatura, tradutor e memorialista. Considerado um dos principais poetas
russos do século XVIII. Tornou-se famoso por suas odes, sobretudo pela “Ode
a Felícia”, em que elogiava Catarina II. A obra valeu-lhe a consagração como
poeta da Corte. Desempenhou as funções de secretário da imperatriz e, poste-
riormente, ministro da Justiça.
Diélvig, Anton Antónovitch (1798-1831): poeta, crítico, editor e jornalista.
Estudou no Liceu de Tzárskoie Seló, onde foi colega de Púchkin. Poeta lírico,
introduziu o soneto na poesia russa. Como editor, fundou em 1825 o almanaque
literário Flores do Norte, que publicava trabalhos de Púchkin, Jukóvski, Krylov,
Viázemski etc. Participou, juntamente com Púchkin, da criação da Gazeta
Literária (1830), em que eram publicados textos de Kiukhelbéker e de outros
dezembristas exilados. Defendeu em vários artigos críticos os experimentos
inovadores de Púchkin, propondo-os como critérios estéticos fundamentais a
serem seguidos pela nova geração de poetas.
Dmítri, ver Samozvániets, Dmítri.
Dmítriev, Ivan Ivánovitch (1760-1837): poeta e memorialista. Filho de
uma família da pequena nobreza, fez carreira no funcionalismo público
como chefe de um setor do Senado, ministro da Justiça e finalmente senador.
Iniciou suas atividades literárias na última década do século XVIII. Escreveu
odes breves, elegias, canções, baladas, epigramas, fábulas, apólogos, sátiras e
contos maravilhosos em versos. Formado na tradição do Classicismo, tentou
superá-lo, aproximando-se de Karamzin e seu círculo. Experimentou aplicar
na poesia as inovações introduzidas por Karamzin na prosa, tornando-se um
dos precursores do Sentimentalismo.
Dobroliúbov, Nikolai Aleksándrovitch (1836-1861): crítico literário,
jornalista. Iniciou sua carreira de crítico literário em 1857, publicando em O
Contemporâneo. Considerava-se seguidor de Belínski.
Dostoiévski, Fiódor Mikháilovitch (1821-1881): prosador, jornalista e
publicista. Autor de uma obra vastíssima, que inclui os romances Gente Po-

220
Índice de Nomes e Referências

bre, O Sósia, Niétotchka Nezvánova, Noites Brancas, publicados entre 1846 e


1849. Nesse ano foi preso pela polícia czarista, acusado de conspirar contra o
regime e condenado à morte por fuzilamento. A pena capital foi suspensa e
transformada em quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria. Narrou suas
experiências de presidiário no romance Recordações da Casa dos Mortos. A partir
de 1866, publicou as obras Crime e Castigo, O Jogador (1867), O Idiota (1868),
O Eterno Marido (1870), Os Demônios (1871), Diário de um Escritor (1873), O
Adolescente (1875), Os Irmãos Karamázov, além de inúmeras novelas, contos
e folhetins.
Drujínin, Aleksandr Vassílievitch (1824-1864), prosador e crítico literário.
Apreciado por Belínski como romancista, ao dedicar-se à crítica literária, de-
fendeu a importância da tradição puchkiniana na literatura do século XIX e
assumiu posições consideradas conservadoras pela escola crítica iniciada por
Belínski.
Dydítskaia (?), contemporânea de Púchkin, conheceu-o em Kichiniov.

Engelhardt, Egor Antónovitch (1775-1862): diretor do Liceu de Tzárskoie


Seló de 1816 a 1822.
Estrela Polar (Полярная Звезда): almanaque anual editado em S. Peter-
sburgo de 1823 a 1825 pelos escritores K. Ryléiev e A. Bestújev. Púchkin teve
trabalhos publicados nesse periódico.

Filho da Pátria, O (Сын Отечества): revista semanal de tendência


conservadora, publicada de 1812 a 1840.
Flores do Norte (Северные Цветы): almanaque literário editado em
S. Petersburgo pelo poeta A. Diélvig de 1825 a 1831. Púchkin era colaborador
assíduo do periódico e foi responsável por sua edição em 1832, após a morte
de Diélvig.
Fonvízin, Denis Ivánovitch (1744-1792): dramaturgo e poeta satírico. Ini-
ciou suas atividades literárias por volta de 1760, como poeta satírico e tradutor.
Suas traduções contribuíram para a renovação do Classicismo e a propagação
dos ideais do Iluminismo na Rússia. Como dramaturgo, estreou em 1764
com a comédia Korion. De 1766 a 1769 compôs a comédia O Brigadeiro, e em

221
Caderno de Literatura e Cultura Russa

1782, terminou sua obra-prima, a comédia O Menor de Idade. Nessa peça,


uma sátira violenta ao sistema da propriedade fundiária baseada na servidão
da gleba, ele atacava a vulgaridade, a ignorância e a crueldade da nobreza pro-
vincial, que se mantinha invulnerável ao espírito iluminista da época. Escreveu
em 1783 uma espécie de “testamento político” de seu chefe, o conde N. Pánin,
intitulado “Reflexão sobre as Leis Necessárias ao Estado”, em que criticava o
governo despótico de Catarina II e o regime autocrático. A obra circulou ampla-
mente em cópias manuscritas e, já na primeira década do século XIX, tornou-
-se leitura obrigatória nas sociedades secretas que mais tarde organizaram o
movimento dezembrista. Foi demitido do serviço público em 1783 por or-
dem de Catarina II.

Gaiévski, Viktor Pávlovitch (1800-1888): historiador de literatura. Foi


colega de Púchkin no Liceu de Tzárskoie Seló.
Glinka, Fiódor Nikoláievitch (1786-1880): poeta, prosador, dramaturgo e
jornalista. Era irmão mais novo do também escritor Serguei N. Glinka e pri-
mo do compositor Mikhail Ivánovitch Glinka. Freqüentou a sociedade secreta
“União da Prosperidade”, berço dos futuros dezembristas. De 1819 a 1820,
atuou na sociedade literária “Lamparina Verde” e no período de 1819-1825
foi presidente da “Sociedade dos Amigos das Letras Russas”. Detido após o
fracasso da Revolta Dezembrista, embora não tivesse participado diretamente
dos acontecimentos, foi exilado. Autor de poemas de cunho cívico, tentou
aproximar religião e ideário dezembrista nas duas coletâneas que publicou
em 1826. Já no exílio, tornou-se escritor romântico por excelência, interessado
na linguagem secreta da natureza e tentado a expressar o “indizível”. Escreveu
também obras em prosa e dedicou-se ao jornalismo. Sua poesia era muito
apreciada por Púchkin.
Godunov, Boris (1551-1605): czar de 1598 a 1605, sucedeu Fiódor I, filho
de Ivan IV, o Terrível.
Godunova, Ksénia Boríssovna, filha do czar Boris Godunov.
Gógol, Nikolai Vassílievitch (1809-1852): prosador, dramaturgo, poeta,
crítico, publicista. Natural da Ucrânia, mudou-se para S. Petersburgo em 1829,
onde arrumou emprego numa repartição pública e começou a estudar pintura
na Academia de Belas Artes. A publicação da novela Noite de São João (1830)
abriu-lhe as portas do mundo literário petersburguês. Conheceu A. S. Púchkin,
que se tornaria mestre e crítico de sua obra. Em 1831-1832 publicava a coletâ-

222
Índice de Nomes e Referências

nea de novelas sobre a vida ucraniana Serões numa Granja de Díkanka, obten-
do sucesso de público e elogios da crítica. Ingressou em 1834 na Universidade
de Petersburgo como professor de História Universal, cargo que abandonaria
no ano seguinte. Os estudos de História da Ucrânia e da Rússia renderam-
-lhe materiais para a novela Tarás Bulba. Seguiram-se as coletâneas de contos
Arabescos e Mírgorod (1835). Freqüentador de saraus literários que contavam
com a presença de Púchkin, recebia do poeta sugestões de temas para suas
obras. A partir de anedotas contadas por Púchkin, escreveu em 1836 a peça
O Inspetor-geral, seu primeiro êxito no teatro, e a primeira parte do romance-
-poema Almas Mortas, publicado em 1842. Nesse ano, publicou ainda O Capote
e outras novelas do ciclo de Petersburgo, como O Nariz, A Avenida Niévski, O
Retrato, Diário de um Louco, além da peça O Casamento. Viajou então para a
Itália em busca de novos ares e com a firme intenção de escrever a segunda parte
de Almas Mortas. Começou, mas queimou os manuscritos durante uma crise
nervosa. Recomeçou. Já de volta à Rússia em 1852, mergulhado em depressão
profunda, queimou novamente os manuscritos, passou a recusar alimentação
e morreu num êxtase de loucura.
Golítsyn, Nikolai Boríssovitch (1794-1866): musicista, poeta e tradutor.
Gontcharova, Aleksandra Nikoláievna (1812-1868): irmã caçula de Na-
tália Púchkina e cunhada de Aleksandr Púchkin. Teria sido amante do poeta.
Depois da morte do cunhado, dedicou-lhe um verdadeiro culto. Casou-se em
1852 com um barão austríaco.
Gontcharova, Natália Ivánovna (?-1848): mãe de Natália Nikoláievna
Púchkina e sogra de Aleksandr Púchkin.
Gontcharova, Natália Nikoláievna, v. Púchkina, Natália Nikoláievna.
Gortchakov, príncipe Aleksandr Mikháilovitch (1797-1883): colega de
Púchkin no liceu de Tzárskoie Seló, foi ministro dos Negócios Estrangeiros de
1856 a 1882.
Griboiédov, Aleksandr Serguéievitch (1795-1829): dramaturgo e diplomata,­
autor das peças A Desgraça de Ter Engenho e O Estudante. Foi assassinado por
muçulmanos durante missão diplomática na Pérsia. Tchátski, o protagonista
de A Desgraça de Ter Engenho, que considera necessárias mudanças sociopolí-
ticas na Rússia, mas que, a exemplo dos nobres de idéias liberais da época, não
toma nenhuma providência para que isso aconteça, é considerado um primeiro
protótipo do “homem supérfluo”, que seria retomado e desenvolvido como
modelo do Evguiéni Oniéguin de Púchkin.
Guriov, Konstantin Vassílievitch (1800-após1833): colega de Púchkin no
Liceu de Tzárskoie Seló.
Guriova, madame (?): mãe de Konstantin Vassílievitch Guriov.

223
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Hannibal, Abraham (Ibrahim) Petróvitch (1696-1781): avô materno de


Púchkin. Foi engenheiro militar e general de Pedro, o Grande. Púchkin imor-
talizou-o no romance histórico inacabado O Negro de Pedro, o Grande.
Heeckeren-Beverwaert, barão Jacob-Theodor Van (1790-1884): diploma-
ta. Tornou-se adido da Holanda junto à Corte russa em 1815 e depois embai-
xador. Desempenhou papel ativo nas questões políticas de interesse estrangeiro
em S. Petersburgo. Apadrinhou e adotou Georges d’Anthès, que, graças a sua
interferência, foi aceito como oficial no exército russo. Por ter manipulado as
situações escusas que envolviam seu filho adotivo e Natália Púchkina, foi desa-
fiado para um duelo pelo poeta. Substituindo o pai adotivo, D’Anthès travou
o duelo com Púchkin. Depois da morte do poeta, o barão foi dispensado pelo
czar Nicolau I. Regressou à Europa, onde desempenhou outras funções diplo-
máticas, até aposentar-se como ministro plenipotenciário dos Países Baixos
em Viena.
Herzen, Aleksandr Ivánovitch (1812-1870): pensador político, filósofo e
escritor.

Iákovlieva, Arina Rodiónovna (1758-1828): ama de Aleksandr Púchkin.


Iakúchkin, Ivan Dmítrievitch (1793-1857): ativista político. Dezembrista,
detido em 1826, foi inicialmente condenado à morte, depois teve a pena co-
mutada para vinte anos de trabalhos forçados.
Inzov, Ivan Nikítitch (1768-1845): general. Foi governador-geral da Bessa-
rábia e chefe de Púchkin em Kichiniov.
Iuzéfovitch, Mikhail Vladímir (1802-1889): militar. Lutou na guerra no
Cáucaso, onde Púchkin o conheceu.
Izmáilov, Vladímir Vassílievitch (1773-1830): escritor. Ligado à corrente
do Sentimentalismo, foi editor de O Mensageiro da Europa.

Jikháriev, procurador.
Jukóvski, Vassíli Andréievitch(1783-1852): poeta e tradutor. Iniciou, junta-
mente com Nikolai Karamzin, a corrente pré-romântica do Sentimentalismo

224
Índice de Nomes e Referências

e, a partir de traduções que fez de obras poéticas das literaturas inglesa e alemã,
introduziu a balada na Rússia. Do final de 1807 a 1811, instalado em Moscou,
atuou como editor e colaborador da revista O Mensageiro da Europa, principal
órgão de divulgação do ideário sentimentalista e pré-romântico na Rússia. Ao
mudar-se para S. Petersburgo, deu início a uma longa carreira de cortesão, e,
graças a sua honra e honestidade, seu grande tato e habilidade, tornou-se figura
influente na Corte. Primeiro atuou como leitor da Imperatriz-Mãe e professor
de russo de membros da família imperial, depois, a partir de 1825, como tutor
do futuro czar Alexandre II. A par da vida de cortesão, participava ativamente
das contendas literárias da capital, seja como um dos principais mentores do
círculo “Arzamás” (1815-1818), seja como colaborador de várias revistas e
almanaques literários. A situação de que gozava junto à família imperial per-
mitiu-lhe, durante a vida, interceder por escritores como Púchkin, Baratýnski,
Gógol, Herzen, Kiukhelbéker, Glinka, N. Turguéniev etc. Foi amigo e protetor
de Púchkin junto a Nicolau I. Após a morte do poeta em 1837, cuidou de sua
família e responsabilizou-se pelo arquivo de seus manuscritos.

Kantemir, Antiokh Dmítrievitch (1708-1744): poeta, prosador, tradutor e


diplomata. Destacou-se sobretudo por seus poemas satíricos, que estabeleceram
os modelos básicos para o desenvolvimento do Classicismo russo. Escreveu um
dos primeiros tratados de métrica e versificação russa.
Kapodístria, Ioani (1776-1831): político. De nacionalidade grega, ingressou
no serviço público russo em 1809. De 1815 a 1822 ocupou o cargo de segun-
do secretário do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia. Depois da
proclamação da independência da Grécia foi eleito presidente do país (1827).
Karamzin, Nikolai Mikháilovitch (1766-1826): prosador, historiador,
poeta, tradutor e jornalista. Com suas obras de prosa e poesia iniciou a escola
pré-romântica do Sentimentalismo. Fundou o jornal literário O Mensageiro da
Europa. Desenvolveu intensa atividade como tradutor e resenhista de autores
europeus, antes de dedicar-se à pesquisa histórica. Como historiador, escreveu
os doze volumes da História do Estado Russo, que se tornaram obra de consulta
e de referência obrigatória.
Karamzina, Ekaterina Andréievna (1780-1851): mulher de N. Karamzin
e amiga de Púchkin.
Karatýguina, Aleksandra Mikháilovna Kolossova (1802-1880): atriz dramáti-
ca do Teatro Aleksandríinski (S. Petersburgo). Deixou reminiscências sobre o poeta.

225
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Kaznatchéiev, Aleksandr Ivánovitch (1788-1881): funcionário de chancela-


ria em Odessa. Travou amizade com Púchkin durante a permanência do poeta
em Odessa. Ambos trabalhavam sob as ordens do conde Vorontsov.
Kern, Anna Petrovna (1800-1879): esposa do general E. A. Kern. Púchkin,
que a conheceu em Trigórskoie durante um verão, dedicou-lhe o famoso poema
“Lembro-me do instante maravilhoso...” (“Я помню чудное мгновенье...”).
Khomiakov, Aleksei Stepánovitch (1804-1860): poeta, filósofo e teólo-
go. Um dos pensadores da Eslavofilia, compôs poemas baseado em eventos
políticos, que se tornaram modelares. No âmbito da filosofia e da teologia,
escreveu importantes trabalhos, que mais tarde influenciaram V. Soloviov
e Berdiáev.
Kiukhelbéker, Vilguelm Kárlovitch (1797-1846): poeta, dramaturgo,
crítico e prosador. Ingressou no Liceu de Tsárskoie Seló em 1811, tornando-se
colega de Púchkin e Diélvig. Iniciou-se como poeta, publicando seus trabalhos
no jornal do Liceu. Sua poesia, fortemente influenciada por Jukóvski e Karamzin
no início, foi adquirindo com o tempo um caráter arcaizante. Considerava-se
um “poeta romântico do classicismo” e propunha em seus artigos uma litera-
tura russa romântica, desvinculada dos modelos europeus e fundada nos ele-
mentos da cultura popular nacional. Movido por suas idéias libertárias contra
a autocracia, participou da Revolta Dezembrista de 1825. Armado de sabre e
pistola, disparou sem sucesso contra o grão-príncipe Mikhail e um general.
Logo após a repressão da revolta, tentou deixar o país, mas foi detido a caminho
de Varsóvia, julgado e condenado à morte. Depois de um período na prisão,
aguardando a execução da sentença, teve a pena comutada para vinte anos de
trabalhos forçados e exílio perpétuo na Sibéria. No final de 1826, sua pena foi
alterada para 10 anos de solitária e trabalhos forçados, mas manteve-se o exílio
perpétuo. Cumprida a primeira parte da pena, foi enviado à Sibéria em 1835.
Lá, continuou suas atividades literárias, constituiu família e viveu em diversos
povoados até fixar-se em Tobolsk, onde veio a falecer cego e tuberculoso.
Kliutchévski, Vassíli Óssipovitch (1841-1911): historiador.
Kochánski, Nikolai Fiódorovitch (1781-1831): professor de literatura russa
e latina no Liceu de Tzárskoie Seló.
Komóvski, Serguei Dmítrievitch (1798-1880): colega de Púchkin no Liceu
de Tzárskoie Seló.
Kórsakov, família do colega de Liceu de Púchkin em Tzárskoie Seló, Nikolai
Aleksándrovitch (1800-1820).
Korf, Modiest Andréievitch (1800-1876): membro do Conselho de Estado
e diretor da Biblioteca Pública de S. Petersburgo. Foi colega de Púchkin no
Liceu de Tzárskoie Seló.

226
Índice de Nomes e Referências

Krylov, Ivan Andréievitch (1769-1844): prosador, poeta, dramaturgo, tra-


dutor e jornalista. Autor de vasta obra dramatúrgica e satírica, ficou conhecido
pelas numerosas fábulas que escreveu num russo simples e acessível a todos
os leitores. Apreciadas por Púchkin, suas fábulas contribuíram de modo sig-
nificativo para o desenvolvimento da língua literária, do gênero satírico e das
formas narrativas na literatura russa.

Lajétchnikov, Ivan Ivánovitch (1792-1869): prosador, dramaturgo, poeta


e memorialista. Alistou-se no exército em 1812 e participou da etapa final da
campanha contra Napoleão. Iniciou suas atividades literárias sob a égide do
Senti­mentalismo, publicando obras no periódico O Mensageiro da Europa. Com
base nas experiências vividas durante a guerra e a retirada dos franceses, escreveu
as Memórias de Campanha de um Oficial Russo (1818), livro impregnado de
patriotismo e de elementos francófobos. Durante os anos de 1830 dedicou-se
à prosa romanesca. Dedicou-se também à dramaturgia, compondo tragédias,­
dramas, comédias e vaudevilles. A partir de 1850, começou a escrever ensaios
autobiográficos e reminiscências sobre os escritores que conheceu, entre eles
A. S. Púchkin (“Meus Encontros com Púchkin”, 1859).
Lamparina Verde (Зелёная Лампа: círculo literário de S. Petersburgo (1819-
1820), que reunia escritores e intelectuais em saraus, nos quais eram lidos e discu-
tidos os trabalhos de seus membros. Participavam das reuniões escritores como
Púchkin, Diélvig, Gniédirtch, Glinka e outros. Os participantes juravam manter
segredo sobre o que era lido e dito nas reuniões e usavam um anel com o desenho
de uma lamparina. A cor verde simbolizava a esperança de tempos melhores.
Liérmontov, Mikhail Iúrievitch (1814-1841): poeta prosador, dramaturgo.
Considerado o mais romântico dos poetas russos, atraiu a atenção do público
em 1837 com “A Morte do Poeta”, poema que circulou em cópias manuscritas,
no qual ele acusava o regime de Nicolau I como responsável pela morte de Pú-
chkin. Preso, foi condenado ao exílio no Cáucaso. Autor de poemas narrativos
e líricos em que condena as injustiças da vida e o vazio da sociedade russa,
dedicou-se também ao drama e à prosa. Escreveu O Herói do Nosso Tempo,
romance inovador do gênero da prosa de ficção.
Liprandi, Ivan Óssipovitch (1790-1880): coronel do exército russo, par-
ticipante da guerra de 1812, com quem Púchkin travou amizade em Odessa.
Locatelli (?): agente da polícia secreta envolvido na detenção dos dezem­
bristas.

227
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Lomonóssov, Mikhail Vassílievitch (1711-1765): poeta, escritor, teórico da


literatura, filólogo e cientista. Dotado de imensa capacidade de trabalho e de
uma vasta gama de conhecimentos e interesses, introduziu a noção de enci-
clopedismo na Rússia e almejava criar os fundamentos de uma ciência e de
uma literatura genuinamente russas, que se igualassem às suas congêneres do
Ocidente. Responsável por descobertas e elaboração de conceitos importantes
sobretudo nos campos da física, da química e da geologia, fundou a Universidade
de Moscou. Autor de odes e da Epístola sobre as Regras da Versificação Russa
(1739), em que propunha o sistema sílabo-tônico de metrificação, escreveu
também a primeira gramática da língua russa (1755).
Lomonóssov, Serguei Grigórievitch (1799-1857): diplomata. Foi colega de
Púchkin no Liceu de Tzárskoie Seló.

Malinóvski, Ivan Vassílievitch (1796-1873); filho do primeiro diretor do


Liceu de Tzárskoie Seló, V. F. Malinóvski (1765-1814), foi colega de Púchkin.
Marina, ver Mníchek, Marina.
Mensageiro da Europa, O (Вестник Европы): revista literária quinzenal
fundada por N. Karamzin em 1802, considerada a mais importante publicação
do gênero até cerca de 1825, quando foi perdendo seu caráter de vanguarda.
Deixou de circular em 1830. Publicava inicialmente trabalhos dos escritores
ligados à escola do Sentimentalismo e, depois, a do Romantismo. V. Jukóvski,
K. Bátiuchkov, L. Púchkin eram colaboradores assíduos da revista. Aleksandr
Púchkin apareceu pela primeira vez nas páginas desse periódico em 1814. Na
década de 1820, a revista passou a desferir uma série de ataques à obra de Pú-
chkin, criticando sua visão do Romantismo.
Mensageiro de Moscou, O (Московский Вестник): revista publicada em
Moscou de 1827 a 1830, editada por M. Pogódin. Púchkin publicou assidua-
mente nesse periódico durante 1827.
Milorádovitch, conde Mikhail Andréievitch (1771-1825): governador-
-geral de S. Petersburgo.
Mínin (Sukhóruk), Kozmá (morto em 1616): negociante de Níjni-Nó-
vgorod. Organizou em 1611-1612 um corpo de voluntários com o objetivo
de libertar Moscou dos interventores poloneses. O movimento foi liderado
também pelo príncipe Dmítri Pojárski.
Mníchek, Marina (1588-1614): filha do voievoda de Sandomir, casou-se com
o Falso Dmítri II e foi czarina da Rússia por um breve período.

228
Índice de Nomes e Referências

Muraviova, Aleksandra Aleksándrovna, filha do dezembrista e membro da


“União da Prosperidade” Aleksandr Mikháilovitch Muraviov.

Nadiéjdin, Nikolai Ivánovitch (1804-1856): crítico literário. Detrator do


Romantismo, publicou textos críticos em O Mensageiro da Europa de 1828 a
1830. Em 1829, atacou nas páginas desse periódico os poemas Poltava e O Con-
de Núlin, de Púchkin, que por sua vez ridicularizava-o em epigramas ferinos.
Nekrássov, Nikolai Alekséievitch (1821-1877): poeta e jornalista. Estreou
como poeta em 1840, escrevendo poemas de temática predominantemente
social.
Nesselrode, Karl Vassílievitch (1790-1862): diplomata, chanceler, membro
do Conselho de Estado de 1816 a 1856. Foi titular do Ministério dos Negócios
Estrangeiros, do qual Púchkin era funcionário.
Nicolau I (1706-1855): imperador russo. Reinou de 1825 a 1855, esta-
belecendo um dos regimes mais opressores do século XIX. Pôs fim à Revolta
Dezembrista de 1825 e foi responsável durante seu reinado pelos exílios e
perseguições movidas contra intelectuais e escritores (Púchkin, Kiukhelbéker,
Liérmontov etc.). Por sua participação na política exterior, era cognominado
“o gendarme da Europa”.

Okhótnikov: dezembrista.
Oliénin: família chefiada por A. N. Oliénin (1763-1816), presidente da
Academia de Pintura e primeiro diretor da Biblioteca Pública de S. Petersburgo,
que reunia artistas e intelectuais, Púchkin inclusive, em sua propriedade nos
arredores da Capital.
Oliénina, Anna Alekséievna (1808-1888): filha caçula de A. N. Oliénin.
Orlov, Mikhail Fiódorovitch (1788-1842): general. Participou da campanha
contra Napoleão (1812). Em Petersburgo, freqüentava o grupo “Arzamás”. Foi
membro da “União da Prosperidade”. Serviu em Kichiniov e era visitado por
Púchkin.
Óssipova, Evfrazia Ivánovna, filha de P. A. Óssipova.
Óssipova, Mária Ivánovna (1820-1895): uma das filhas mais novas de P. A.
Óssipova.

229
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Óssipova, Praskóvia Aleksándrovna (1781-1859): proprietária da aldeia de


Trigórskoie, amiga de Púchkin.
Otriépiev, Grichka. V. Samozvánietz.

Pavlíchtcheva, Olga Serguéievna (1797-1868): irmã de Aleksandr Púchkin.


Pechtchurov, Aleksei Nikítitch (1779-1849): governador civil de Pskov.
Pedro, o Grande (1672-1725), imperador russo (1682-1725), responsável
pelo início do processo de europeização da Rússia e fundador de São Peters­
burgo.
Píssariev, Dmítri Ivánovitch (1840-1868): jornalista, crítico literário e
pensador político. Crítico radical, liderou a assim chamada corrente niilista
da crítica dos anos 1860.
Plechtchéiev: cortesão da época de Boris Godunov.
Pletniov, Piotr Aleksándrovitch (1792-1866): poeta, crítico e editor. Atuou
como professor em diversos estabelecimentos de ensino de 1814 a 1828, quando,
por recomendação de Jukóvski, passou a dar aulas de literatura ao futuro czar
Alexandre II e a seus irmãos. De 1832 a 1849, lecionou literatura russa na Univer-
sidade de S. Petersburgo e foi reitor da instituição de 1840 a 1861. Foi professor
de I. Turguéniev e N. Nekrássov. Iniciou suas atividades literárias como poe­ta
por volta de 1810, imitando Jukóvski, Karamzin e Bátiuchkov. Poeta menor, de
tendência sentimentalista, foi autor pouco original de epístolas, odes e elegias.­
Sua atuação principal na vida literária das primeiras décadas do século XIX deu-
-se como crítico, resenhista e editor. Como crítico, ligado ao círculo de Púchkin,
escreveu uma série de ensaios sobre poesia romântica durante a década de 1820.
Resenhou obras de Jukóvski, Baratýnski, Púchkin, Gógol etc. Como editor, além
dos já citados, atuou também no periódico Flores do Norte, dirigido inicialmente
por Diélvig. Amigo, resenhista e agente literário de Púchkin, tornou-se editor e
redator da revista O Contemporâneo, após a morte do poeta.
Pogódin, Mikhail Petróvitch (1800-1875): historiador. Foi professor da
Universidade de Moscou e colaborador do jornal O Mensageiro da Europa.
Pojárski, Dmítri, ver Mínin.
Ponomariov, médico (?): comprou o poema de Púchkin A Fonte de
Bakhtchis­sarai, para editá-lo.
Púchkin, Gavriil Gregórievitch (?-1638): cortesão e político. Antepassado
de Púchkin, foi representado pelo poeta como personagem em sua tragédia
Boris Godunov.

230
Índice de Nomes e Referências

Púchkin, Lev Serguéievitch (1805-1852): irmão de Aleksandr Púchkin.


Púchkin, Serguei Lvóvitch (1770-1848): membro da pequena nobreza e
oficial da guarda, pai de Aleksandr Púchkin.
Púchkin, Vassíli Lvóvitch (1767-1830): poeta, tio de Aleksandr Púchkin.
Conhecido por suas fábulas, madrigais e epigramas, foi membro do grupo
“Arzamás”.
Púchkina, Nadiejda Óssipovna (1775-1836): neta de Hannibal, o general
negro de Pedro, o Grande, mãe de Aleksandr Púchkin.
Púchkina, Natália Nikoláievna (1812-1863): mulher de Aleksandr Púchkin.
Púchkina, Olga Serguéievna – v. Pavlíchtcheva, Olga Serguéievna.
Púchtchin, Ivan Ivánovitch (1798-1859): um dos colegas mais próximos
de Púchkin no Liceu. Participante da Revolta Dezembrista (1825), viveu exila-
do na Sibéria de 1826 a 1856. Foi um dos primeiros a publicar reminiscências
sobre o poeta.
Pugatchov, Emelian Ivánovitch (1742-1775): chefe da primeira revolta
camponesa ocorrida na Rússia, durante o reinado de Catarina II.
Putiata, Nikolai Vassílievitch (1802-1877): oficial do exército e literato.

Raiévskaia-Volkónskaia, v. Volkónskaia.
Raiévski, Aleksandr Nikoláievitch (1795-1868): filho primogênito do
general N. N. Raiévski. Participou da campanha contra Napoleão. Púchkin
travou amizade com ele no Cáucaso durante o verão de 1820. Hospedaram-se
juntos em Kámenka em 1821. A amizade de ambos foi reforçada em Odessa,
no perío­do em que Púchkin viveu na cidade (1823-1824).
Raiévski, Nikolai Nikoláievitch (1771-1829): general do exército. Destacou-
-se na campanha contra Napoleão em 1812, tendo sido condecorado como
herói de guerra. Pai de Aleksandr Nikoláievitch, Nikolai Nikoláievtch e Maria
Nikoláievna, amigos de Púchkin.
Raiévski, Nikolai Nikoláievitch (1801-1843): filho caçula do general N. N.
Raiévski. Serviu em Tzárskoie Seló, onde conheceu Púchkin. A amizade entre
ambos estreitou-se na década de 1820.
Revolta Dezembrista: ao fim do reinado de Alexandre I, a Rússia encon-
tra-se, no plano externo, em paz com as nações européias de cuja reorganização
territorial o czar foi um dos artífices. No plano interno, vem se desenvolvendo
uma forte oposição à política de Alexandre. De um lado há a facção conserva-
dora e nacionalista “Velha Rússia”, que se opõe às tendências liberais do czar;

231
Caderno de Literatura e Cultura Russa

de outro, os ocidentalistas com suas tendências revolucionárias, resistência ao


absolutismo e exigências de um modelo europeu de governo. Alexandre I morre
sem deixar herdeiros diretos. Um acordo secreto, realizado antes da morte de
Alexandre, garante a seu irmão mais novo, Nicolau, a ascensão ao trono. Em 14
de dezembro, oficiais do Exército recusam-se a prestar juramento de fidelidade
e obediência a Nicolau I, exigindo a aplicação de um programa de política
liberal na Rússia, o que dá origem à revolta dos Dezembristas. A revolta estoura
na praça do Senado e é esmagada sem dó nem piedade. Cinco participantes
são executados, os demais são presos ou condenados a trabalhos forçados.
Púchkin é tido pelos revoltosos como uma espécie de mentor intelectual­
do movimento.
Ryléiev, Kondráti Fiódorovitch (1795-1826): poeta. Participou da campa-
nha dos russos contra Napoleão na Europa. Sua estada na Alemanha, Suíça e
França permitiu-lhe tomar contato com idéias e movimentos revolucionários
de caráter republicano. Pediu baixa em 1818 e regressou a S. Petersburgo,
aproximando-se dos escritores mais progressistas da capital, sobretudo dos
futuros dezembristas Kiukhelbéker e Glinka. Em 1823, ingressou na organização
secreta revolucionária “Sociedade Setentrional”, principal foco instigador da
Revolta Dezembrista de 1825, tornando-se um de seus membros mais ativos.
Defendia em sua obra poética o mesmo ideal libertário e os valores cívicos que o
guiavam em sua militância revolucionária. De 1823 a 1825, dirigiu com Bestújev
o almanaque literário A Estrela Polar, tornando-o veículo do ideário cívico e
sociopolítico da literatura dezembrista. Foi um dos dirigentes da Revolta na
praça do Senado, em 14 de dezembro de 1825. Detido, foi encarcerado na forta-
leza de S. Pedro e S. Paulo. Foi enforcado em 13 de julho de 1826. Considerado
um dos precursores do Romantismo revolucionário, iniciou suas atividades
literárias por volta de 1813, compondo odes de teor patriótico e cantos guer-
reiros em prosa. Em 1820 estreou na imprensa. Para ele, a essência da poesia
residia no “espírito da época” e a literatura era antes um fenômeno político,
que exigia, então, o privilégio do conteúdo revolucionário em detrimento da
forma. Nisso opunha-se a Púchkin, que prezava a forma e os experimentos
formais.

Samozvániets, Dimítri (?-1606): aventureiro e samozvániets (autopro­


cla­mado) tsariévitch Dimítri. Trata-se de Grichka Otriépiev, um ex-monge
que se fez passar pelo filho de Ivan, o Terrível, assassinado a mando de Boris

232
Índice de Nomes e Referências

Godunov. Conseguiu formar um exército com a ajuda do voievoda de Sandomir,


Mníchek, e entrar em Moscou logo depois da morte de Boris Godunov. Fez-se
coroar czar em fins de 1605, sendo assassinado no ano seguinte.
Semítchev, Nikolai Nikoláievitch (1790-1830): dezembrista.
Sobánskaia, Karolina (1794-1885): dama da sociedade de Odessa que
Púchkin conheceu em 1828 e a quem dedicou alguns versos.
Sollogub, Vladímir Aleksándrovitch (1814-1882): escritor e alto funcioná-
rio do Império. Deixou reminiscências sobre Púchkin, de quem se aproximou
na década de 1830.
Spásski: um dos melhores médicos de S. Petersburgo à época, participou da
equipe que cuidou de Púchkin após o último duelo praticado pelo poeta.

Tiúttchev, Fiódor Ivánovitch (1803-1873): poeta. Exerceu funções diplo-


máticas na Europa até 1844, quando retornou à Rússia. Antes disso, teve cerca
de vinte e quatro poemas seus selecionados por Púchkin e publicados em O
Contemporâneo (1836-1837), sob as iniciais F. T. Sua identidade seria revelada
apenas em 1850 por Nekrássov, e Turguéniev cuidaria da publicação de sua
primeira antologia de poemas (1854). É considerado o único grande poeta do
século XIX a não ter sofrido influências de Púchkin e Jukóvski.
Tolstói, Liev Nikoláievitch (1828-1910): prosador, dramaturgo, filósofo
e moralista. De origem nobre, cursou a Universidade de Kazan. Entrou para
o exército e participou da defesa de Sebastopol, depois do que foi promovido
a general-de-divisão. Escreveu então três volumes de memórias, publicados
a partir de 1852: Infância, Adolescência, Mocidade. Abandonando a carreira
militar, morou em Petersburgo e Moscou, onde escreveu: Reencontro, Os Dois
Hussardos, Os Cossacos, Invasão, Sebastopol. Em 1858, partiu para a Europa, vi-
sitando a Suíça, França, Alemanha, onde escreveu: Lucena, Alberto, Três Mortos.
Sua volta à Rússia coincidiu com a emancipação dos servos da gleba (1861).
Fixou-se em sua terra natal, Iásnaia-Poliana, fundando ali uma escola-modelo
para camponeses e uma revista pedagógica. Casou-se em 1862 e teve treze fi-
lhos. Em Iásnaia-Poliana escreveu inúmeros contos e novelas (A Morte de Ivan
Ilitch, Polikuchka, Sonata a Kreutzer, Khadji-Murat, Senhor e Servo etc.), além
de seus grandes romances Guerra e Paz, Ana Kariénina, Ressurreição. A partir
de 1874, após uma terrível crise moral, relatada em Minhas Confissões, aban-
dona a vida em sociedade e renuncia a seus bens. Fiel à sua doutrina (o assim
chamado tolstoísmo) que pregava a pureza de costumes, o amor entre os ho-

233
Caderno de Literatura e Cultura Russa

mens, a resistência pacífica à guerra e às conturbações sociais, foi excomunga-


do pela Igreja Russa em 1901. Produziu nessa última fase um grande número
de contos, poemas, obras filosóficas e morais embasados em sua doutrina (Em
que consiste a minha fé, Os Evangelhos, A Igreja e o Estado etc.). Sobre arte e lite­
ratura publicou as obras: O Que É a Arte e Sobre Shakespeare e o Drama. Para
o teatro, escreveu a peça em cinco atos O Poder das Trevas.
Trediakóvski, Vassíli Kiríllovitch (1703-1769): tradutor, filólogo e teórico
da literatura. Foi um dos introdutores do Classicismo na Rússia, com suas odes,
poemas épicos e epístolas. Sua contribuição mais importante deu-se no âmbito­
da teoria da literatura e da filologia. Em Novo e Breve Manual para a Elaboração
dos Versos Russos (1735), propôs a reforma do padrão silábico de versificação e
formulou os princípios da versificação tônica como a mais apropriada à lingua
russa. Como filólogo, propôs em 1748 uma reforma ortográfica do russo de
acordo com seus fundamentos fonéticos. Seus trabalhos nessas áreas foram
posteriormente elogiados por Púchkin.
Turguéniev, Aleksandr Ivánovitch (1784-1845): historiador.
Turguéniev, Nikolai Ivánovitch (1789-1871): dezembrista.
Týrkov, Aleksandr Dmítrievitch (1799-1843): colega de Púchkin no Liceu
de Tzárskoie Seló.

Uchakov, Nikolai Ivánovitch (1802-1861): general, escritor de guerra e


historiador.
“União da Prosperidade” (“Союз Благоденствия”): sociedade secreta
dos futuros dezembristas, fundada em 1818. Foi a primeira organização de
ideário republicano na história da Rússia.

Viázemski, príncipe Piotr Andréievitch (1792-1878): poeta e crítico. De


uma antiga família principesca e rica, recebeu uma educação apurada. Com a
morte do pai em 1807, seu cunhado, o escritor e historiador N. M. Karamzin,
tornou-se responsável por sua educação. Começou então a freqüentar a so-
ciedade e círculos literários dos quais participavam não só escritores ligados a
Karamzin, como também futuros poetas dezembristas. Dedicou-se à poesia e
ao jornalismo, estreitou seus laços de amizade com Púchkin, tornando-se fer-

234
Índice de Nomes e Referências

renho defensor, intérprete e teórico do Romantismo. Seus artigos sobre os poe­


mas românticos de Púchkin, tornaram-se manifestos do Romantismo russo.
Para ele, como deixou claro também na correspondência que manteve com
Púchkin e outros amigos nesse período, o Romantismo representava acima de
tudo a idéia da libertação total do indivíduo, a abolição dos cânones artísticos
consagrados. No final da década de 1820, passou a colaborar na Gazeta Literá-
ria de Diélvig e Púchkin e, mais tarde, em O Contemporâneo de Púchkin. Na
década de 1830, formou com Púchkin e outros escritores um círculo literário
de onde surgiria a assim chamada plêiade puchkiniana.
Víguel, Filipp Filíppovitch (1786-1856): foi membro do grupo “Arzamás”
e, a partir de 1823, vice-governador da Bessarábia. Deixou reminiscências sobre
Púchkin.
Volkónskaia, Maria Nikoláievna (1805-1863): filha do general Raiévski e
esposa do príncipe Serguei Grigórievitch Volkónski. Acompanhou o marido
dezembrista em seu degredo para a Sibéria. Púchkin conheceu-a em 1820, na
residência de verão da família Raiévski.
Volkónskaia, princesa Zinaída Aleksándrovna (1792-1862): poetisa,
compositora e cantora. Púchkin freqüentava seus saraus literários em Moscou.
Volkónski, príncipe Serguei Grigórievitch (1788-1865): general-mor e de-
zembrista. Conheceu Púchkin em Kíev (1820) e encontrou-o em Odessa (1824).
Foi deportado para a Sibéria depois de participar da Revolta Dezem­brista.
Vorontsov, conde Mikhail Semiónovitch (1782-1856): foi governador-geral
de Novorrossisk (Bessarábia) de 1823 a 1844. Chefe de Púchkin quando este
serviu em Odessa (1823-1824), foi responsável pelo confinamento do poe­ta
em Mikháilovskoie.
Vorontsova, Elizavieta Ksaviérievna (1792-1880): esposa do conde Vo­
rontsov. Púchkin dedicou-lhe uma série de poemas líricos. Segundo contam,
ambos tiveram um romance.
Vulf, Aleksiéi Nikoláievitch (1805-1881): filho do primeiro casamento de
P. A. Óssipova.
Vulf, Anna Nikoláievna (1799-1857): filha do primeiro casamento de P. A.
Óssipova.

235
Cultura
Les Eurasiens hier et aujourd’hui
Georges Nivat

Resumo: Este artigo focaliza o desenvolvimento de um movimento do pensamento russo


denominado “eurasiano”, surgido nos anos 20 do século XX.
Palavras-chave: Cultura russa; eurasiano; história russa; Troubetzkoy.

Le moment semble venu de réapprécier scientifiquement un mouvement de


pensée qui orienta une partie de la pensée universitaire russe dans l’émigration.
Le mouvement dit «eurasien»1 et qui depuis cinq ou six ans réoccupe du terrain
politique en Russie, où il a ses sites Internet, ses publications de popularisation,
son chantre, l’historien publiciste Alexandre Douguine (encore que celui-ci,
devenu conseiller du président, semble vouloir instrumentaliser la «marque
eurasiste» au profit du pouvoir)2. Le mouvement de pensée des années vingt
resta relativement peu connu parce qu’il ne pouvait pas plaire à la majorité de
l’émigration russe blanche en vertu de ses concessions au pouvoir bolchevique,
et il ne plaisait pas non plus au bolchevisme, qu’il interprétait dans une grille
de lecture non-marxiste. Aujourd’hui l’étiquette «eurasien» est devenue cou­
ran­te sur le marché des idées en Russie, sans que le mouvement initial et ce
qu’il veut dire scientifiquement aient été vraiment étudiés. Il explique pourtant
de nombreuses attitudes, il dessine peut-être le contour de l’avenir géopolitique
de la Russie, qui n’est plus un empire contraignant comme sous les communistes,
mais qui connaît une forte nostalgie de cette période dans la mesure où cette

1. II n’existe guère sur le sujet qu’un seul livre: Otto Böss, Die Lehre der Eurasaier, ein
Beitrag zur russischen Ideengeschichte des 20. Jahrhundert, Wiesbaden, 1961.
2. Aleksandr Dugin, Osnovy geopolitiki. Geopoliticeskoe buduscee Rossii, Moskva, 1999.
Caderno de Literatura e Cultura Russa

nostalgie est le seul bien que préservent certaines masses populaires qui ne
participent pas encore à l’enrichissement. Ce qui fait qu’entre le désir européen
qui est réel dans une partie de l’élite russe et la tentation de la Real Politik entre
proaméricanisme de circonstance et nouvelle alliance avec la Chine capitaliste
et communiste, l’eurasisme vulgarisé reste une séduction de l’esprit pour
beaucoup de Russes. Les Eurasiens sont pour Alexandre Douguine «les pères
fondateurs», ceux qui nous ont appris à «penser par l’espace» et nous ont
préparés à résister à «la croisade de l’Occident contre nous» et à refuser d’être
défini comme «un secteur arriéré de l’Occident».

Le prince Nicolas Troubetzkoy, un des fondateurs du mouvement, a posé le


mieux le problème central à la question nationale russe: Qui sommes-nous?
«La connaissance de soi est un problème tant d’éthique que de logique, le
seul qui soit vraiment universel et pour les personnes et pour les nations.»
L’assimilation de la nation à une personne remonte au romantisme allemand,
et a nourri la pensée slavophile russe, ce qui est nouveau dans la pensée des
«Eurasiens» c’est que ce «connais-toi toi-même» adressé à la Russie, et doublé
d’un «sois toi-même». Il conclut, contre toute la tradition slavophile du XIX
siècle, que la Russie est moins «slave» qu’«asiatique» ou plutôt «touranienne».
Une équipe de linguistes, de géographes, d’historiens et d’ethnologues s’employa
à en faire la démonstration. Parti de l’Université de Sofia, le mouvement gagna
Prague puis Paris, c’est-à-dire les principaux centres de l’émigration univer­si-
­tai­re russe.
«Le “caractère slave” et la “psyché slave”, écrit Nicolas Troubetzkoy, sont
des mythes». Chaque peuple slave a son propre type psychique et de par son
caractère national, le Polonais ressemble aussi peu au Bulgare que le Suédois
au Grec. Il n’existe pas non plus de type physique, anthropologique commun
aux Slaves. Chaque peuple slave a développé sa propre culture séparément et
les influences culturelles réciproques des Slaves les uns sur les autres ne sont
pas plus fortes que celles des Allemands, des Italiens, des Turcs et des Grecs sur
ces mêmes Slaves. La langue seule relie entre eux les Slaves3.
Des arguments scientifiques étayaient cette-thèse. Nicolas Troubetzkoy en
donne plusieurs de différents types. Linguistiques d’abord. Dans le vieux fond
du vocabulaire russe, les concepts les plus intimes sont venus par le persan,
alors que les termes techniques transitaient par les langues romanes et germa­
niques. Ainsi le sanscrit «deiwos» qui a donné deus en latin et dieu dans toutes

3. Kn. N. S. Trubeckoi, K probleme russkogo samopoznanija, sobranie statej, Evrazijskoe


Knigoisdatel’stvo, 1927.

240
Les Eurasiens hier et aujourd’hui

les langues non-slaves a pris en russe un sens péjoratif que l’on retrouve dans le
«div» du Dit du régiment d’Igor, et qui désigne un être méchant parce qu’il
nous vient à travers le persan, et donc après la réforme «zarathoustrienne» (en
vieux-persan il a une connotation maléfique, c’est Asmodée). La racine «div»
ou «dev» avait été accolée au «démon», c’est la racine «baga» (riche) qui donna
le mot «dieu», tant en slave qu’en vieux-persan4: «Il faut supposer que les
ancêtres des Slaves, d’une façon ou de l’autre, avaient pris part à l’évolution des
concepts religieux qui, chez leurs voisins les Anciens Perses, conduisit à la
réforme de Zarathoustra». Troubetzkoy poursuit sa démonstration à l’aide du
mot russe «verit» («croire») qu’il rapproche de l’avestique (langue du livre sacré
zoroastrien) varayaiti, lequel veut dire «choisir» et signifie donc que les premiers
Slaves comprenaient l’acte religieux de la même manière que les zoroastriens,
c’est-à-dire comme un «choix», entre les principes jumeaux et opposés du bien
et du mal, d’Ahriman et d’Ormuzd...
Nicolas Troubetzkoy n’est pourtant pas un esprit fantastique comme l’était
le romancier contemporain de Pouchkine, Veltman et à qui nous devons des
fantaisies linguistiques époustouflantes. Il s’agit d’un des plus grands savants
linguistes qu’ait connus la Russie, il fut le père de la phonologie, il a joué un
rôle capital dans le Cercle Linguistique de Prague (lui-même avait reçu une
chaire, et enseignait à Vienne), mais son rôle dans le mouvement eurasien est
peu connu. Il est même vraisemblable que ses éditeurs scientifiques sont gênés
par ce volet de son oeuvre, si riche, bien qu’il soit mort à quarante-huit ans.
C’est ainsi que les éditeurs soviétiques de 1987 n’incluent aucun de ses articles
«eurasiens» dans la bibliographie qu’ils fournissent, et, nulle part dans les notes,
la préface ou la postface ne font allusion à son rôle capital, et si fertile, dans
le mouvement «eurasien». La postface mentionne seulement la «trilogie» inédite
et inachevée conçue par Troubetzkoy en 1909-1910, et dont la première partie
était intitulée «De l’égocentrisme», dédiée à Copernic, la deuxième s’intitulait
«Du faux et du vrai nationalisme», dédiée à Socrate, et la troisième, «De
l’élément russe», était dédiée au cosaque rebelle qui avait mis en péril la Russie
de la Grande Catherine, Pougatchev...
Dans les notes biographiques de Roman Jakobson qui accompagnent la
traduction française des Principes de Phonologie, le fait eurasien est également
absent, les articles eurasiens du jeune prodige linguiste ne sont pas inclus dans
la bibliographie. Or il ne fait pas le moindre doute que Jakobson connût parfai­
te­ment toutes les publications «eurasiennes» de son ami Troubetzkoy, puisque

4. Cf. N. S. Trubeckoi, Izbrannye trudy po filologü sous la rédaction de T. Gamkrelidze,


Moskva, 1987.

241
Caderno de Literatura e Cultura Russa

lui-même avait milité dans les rangs «eurasiens». Il est vrai qu’en 1984 parut en
italien une édition de l’Europe et l’humanité de Troubetzkoy et que, à la de-
mande de Vittorio Strada, Jakobson préfaça le livre de son ami et évoqua son
rôle dans le développement de l’“Eurasisme”.
La carrière savante de Troubetzkoy avait donc commencé sous le signe d’une
interrogation non-conformiste sur le phénomène national... Dès l’âge de vingt
ans, Troubetzkoy avait conçu un vaste ouvrage en trois volets intitulé Jus­ti­fi­ca­
tion du Nationalisme, ouvrage inachevé, mais dont parut une première partie,
celle précisément intitulée L’Europe et l’humanité 5. En particulier Troubetzkoy
avait conçu la notion nouvelle d’«aire linguistique», où des langues d’origine
différente ont une évolution à certains égards convergente.

Autre Eurasien notoire, Roman Jakobson, prolongea justement cette intui­


tion d’une parenté linguistique russo-asiatique dans un livre paru en 1931,
intitulé Pour une définition de l’alliance linguistique eurasienne. La notion d’al­-
lian­ce linguistique, définie par Troubetzkoy dans un article, paru dans les Annales
Eurasiennes N°6 6 et intitulé «De l’élément touranien dans la culture russe»,
consiste à relier des langues hétérogènes par leur origine, mais qui vont toutes
dans le même sens: ici ce n’est pas la parenté dans le passé qui joue, mais le
voisinage géographique, ou encore la contiguïté. L’aire eurasienne, qui comprend
le rameau russe des langues slaves, les langues finno-ougriennes de l’est (outre
le finnois: le votiak, le komi, le zyriane, etc.), des langues du Caucase et des
langues turques, se caractérise par l’absence de ton (la monotonie, opposée à la
polytonie), et par une organisation des consonnes selon le timbre (consonnes
sourdes ou sonores). Déjà Trediakovski, au XVIIIe siècle, remarquait que les
oreilles non-russes n’entendaient pas cette distinction entre consonnes sourdes
et sonores. En revanche elle existe ou elle se développe dans toutes les langues
de la grande plaine eurasienne. Et de toutes les langues romano-germaniques,

5. En 1996 Patrick Sériot en a fait paraître une traduction française précédée d’une inté­res-
s­ante préface où il analyse les stratégies du discours de Troubetzkoy. Patrick Sériot, N.S.
Troubetzkoy, l’Europe et l’humanité, Ecrits linguistiques et paralinguistiques, Ed. Mardaga,sans
indication de lieu, 1996.
6. Evrazijskij Vremennik, Neperiodiceskoe izdanie pod redakcej P. Savickogo, P. Su­vèinskogo
i ka. N. Trubeckogo. Kniga 1. Berlin, 1925. De 1921 à 1929 il parut six numéros de ces Annales,
qui eurent des rédactions changeantes, et même des titres changeants. Le premier tome s’
intitulait Ishod k Vostoku. Predeuvstvija i sversenija: il parut à Sofia en 1921. Le second, Na
putjah, parut à Berlin en 1922. Le troisième parut également à Berlin, et portait le titre de
Evrazijskij Vremennik, Kniga tret’ja. Le quatrième est de 1925. Le cinquième parut à Paris en
1927. Le sixième parut à Prague en 1929 et il s’intitule Evrazijskij Sbornik.

242
Les Eurasiens hier et aujourd’hui

seul le rameau oriental, à savoir le roumain, a introduit cette, opposition de


timbre dans son système phonologique. Tandis que, en sens inverse, le hongrois,
rameau occidental du finno-ougrien, l’a perdue... Pour mettre en relief ce
système des oppositions de timbre, Jakobson recourt à son poète préféré, Kh-
lebnikov, subtil utilisateur des corrélations les plus fonda­mentales et les plus
intimes de la langue russe. L’Eurasie se présente donc, du point de vue de la pho­
nologie, cette nouvelle science inventée par Troubetzkoy et Jakobson, comme
un immense continent-île entouré par des aires à polytonie, qui ignorent
l’opposition de timbre (à l’exception de l’extrême-occidental irlandais). De cette
parenté phonologique découle un avantage pour l’extension de l’alphabet
cyrillique: il est le seul à noter commodément ces oppositions de timbre et
toutes les petites langues non-slaves de l’aire eurasienne ont donc intérêt à
l’adopter. Jakobson fait remarquer qu’à l’époque où il s’écrivait en alphabet
latin, sous l’influence du polonais, le biélorusse demandait 1,5 d’espace écrit
en plus de ce que lui aurait permis l’alphabet cyrillique. Ainsi les savants eura­
siens justifiaient l’extension de l’alphabet cyrillique aux parlers et langues non-
-russes de l’aire eurasienne, c’est-à-dire de l’empire russe: il faut reconnaître
que, sur ce point, Staline fut leur disciple.
Dans ses Dialogues avec Krystina Pomorska7, Jakobson est revenu sur cette
période eurasienne de son activité de savant. «Je publiai au cours des années
trente, dit-il, des études qui prouvaient l’existence d’une vaste alliance de
langues eurasiennes englobant le russe et les autres langues de l’Europe de
l’Est, et aussi la plupart des langues ouraliennes et altaïques, qui disposent de
l’opposition phonologique des consonnes par la présence et l’absence de pa-
latalisation». Jakobson évoque l’hostilité suscitée par ses théories, et rappelle
le mot de Joseph de Maistre, sur quoi il concluait un de ses propres livres: «Ne
parlons donc jamais de hasard...» En fait, si les découvertes de Troubetzkoy et
de Jakobson étaient menées dans un esprit scientifique, il ne faut pas oublier
non plus leur contexte «eurasien»; l’alliance des langues à opposition de timbre,
c’était en définitive l’empire russe, la vaste Eurasie, nettement distincte du massif
linguistique de l’Europe occidentale, et qui évoluait sous l’influence de la langue
russe, elle-même autrefois reliée à un Orient perse, que l’Occident n’avait
jamais connu... D’ailleurs, dans les Dialogues, Jakobson, s’il parle assez peu de
son engagement «eurasien», rend un hommage appuyé au géographe «eurasien»
Piotr Savitski, «ce visionnaire perspicace de la géographie structurale».

7. Les Eurasiens sont très discrètement mentionnés dans Dialogues (Paris, 1980) et pas du
tout dans Un vie dans le langage (Paris, 1984).

243
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Troubetzkoy définit un autre lien entre Russie et Orient: après le lien avec la
Perse zoroastrienne, il y eut le choix de Byzance. Depuis Tchaadaïev la thèse de
la nocivité du choix de Byzance par la Russie perce sous beaucoup de descrip­
tions de la Russie. Là aussi, Troubetzkoy prend le contre-pied. Comme pour
l’influence perse. Il faut ici distinguer «âme» et «corps». Par son corps, la Russie
est attirée par l’Occident germano-romain, mais, par son âme, elle est parfai­
tement épanouie dans un contexte «oriental», et en particulier byzantin, c’est-
-à-dire dans une «symphonie» de toutes les activités humaines, politiques, reli-
­g ieu­ses et quotidiennes. Les Slaves occidentaux avaient des orientations
beaucoup moins définies. Comme ils ne touchaient directement à aucun des
foyers de culture indo-européenne, ils pouvaient librement choisir entre l’
«Occident» germano-romain et Byzance – faisant connaissance de l’un et de
l’autre, principalement par des intermédiaires slaves. Le choix s’exerça en faveur
de Byzance et il donna tout d’abord d’excellents résultats. Sur le sol russe, la
culture byzantine se développait et embellissait. Tout ce qui était reçu de Byzance
était organiquement intégré et servait de modèle pour une création qui adaptait
tous ces éléments aux exigences de la psychologie nationale. Cela est parti­cu­
lièrement pertinent pour les sphères de la culture spirituelle, de l’art, et de la
vie religieuse. Au contraire, rien de ce qui était reçu de «l’Occident» n’était
intégré organiquement, ni n’inspirait aucune création nationale. Les marchan­
di­ses occidentales étaient achetées, mais pas reproduites. «On faisait venir des
spécialistes étrangers, mais pas pour former des disciples russes, pour exécuter
des commandes».
On retrouve dans la démonstration de Troubetzkoy les grandes in­tui­
tions des nationalistes russes du siècle précédent: l’influence occiden­tale
était pour les Russes, selon eux, un carcan, car leur conception de la vie est
globale et non différenciée, ils admettent l’improvisation libre à l’in­té­rieur
des formes: la danse russe en est un exemple, elle fait jouer l’ensemble du
corps, et pas seulement les jambes, comme à l’Occident elle est dis­sy­mé­
trique alors que la danse occidentale est construite sur des paires de cavaliers
et de cavalières, elle encourage l’improvisation, ce qui ne se retrouve qu’en
Espagne, à l’autre bout de l’Europe, mais s’y explique par l’influence arabe...
Troubetzkoy a même un dithyrambe particulier pour la «prouesse» russe
(udal’) c’est-à-dire la folle témérité, la bravoure sans but. La «prouesse»,
appréciée par le peuple russe dans ses héros, est une qualité spécifique aux
gens de la steppe, mais incompréhensible tant aux romano-germains qu’aux
autres slaves...
Nous ne sommes pas loin ici des pages les plus nationalistes de Léon
Tolstoï: la danse russe de Natacha Rostov devant son oncle, ou encore les

244
Les Eurasiens hier et aujourd’hui

proues­ses des cosaques russes en émulation avec leurs adversaires caucasiens


(la djigitovka). «Où, quand, comment cette petite comtesse, élevée par une
Française émigrée, avait-elle pu, par la seule vertu de l’air qu’elle respirait,
s’imprégner à ce point de l’esprit national, s’assimiler ces manières, que le
pas de châle aurait dû depuis longtemps effacer?» (Guerre et paix, II, IV, ch.
7). Eh bien, la réponse, c’est que la petite comtesse Rostov est une eurasienne,
une Russe «touranisée»8...
Troubetzkoy montre la touranisation à l’œuvre chez Pougatchev dont les
meilleurs alliés sont les Bachkirs, il montre que la gamme à cinq tons est
eurasienne, que les Tatares sont sans peine devenus orthodoxes, et, bien entendu,
que la Russie moscovite est la continuatrice naturelle de l’empire tataro-mongol,
et non pas de la Russie de Kiev, thèse fondamentale chez les historiens «eura­
siens», et destinée à passer dans l’historiographie américaine grâce à un Eurasien
russe, devenu américain et professeur à l’Université de Yale: George Vernadsky.
La thèse se résume chez Troubetzkoy en une phrase provocante: «L’État mosco­
vite est né grâce au joug tatare». Jamais le renversement des thèses classiques sur
la destinée russe n’avait été aussi scandaleusement affirmé. Rappelons que Ka­
ra­mzine proclamait que «la nature même des Russes de son temps porte encore
la marque ignoble qu’y a imprimée la barbarie mongole». Chantal Lemer­cier-
-Quelquejay a montré avec à-propos que le jugement de Karl Marx reprit, gros-
so modo, celui de Karamzine: «La boue sanglante du joug mongol ne fut pas
seulement écrasante, elle dessécha l’âme du peuple qui en était la victime»9.
Le renversement «eurasien» des perspectives historiques, nous le trouverons
dans le livre Héritage de Tchinguiz Khan. Un regard sur l’histoire russe non depuis
l’Occident mais depuis l’Orient, que le prince Nicolas Troubetzkoy a publié sous
les initiales mystérieuses de I. R.10 (Nikolaj Trubeckoi, selon G. Vernadsky).
L’ouver­ture du livre nous en livre d’emblée la thèse: «La conception qui régnait
auparavant dans les manuels d’histoire, selon laquelle le fondement de l’État
russe fut posé dans la prétendue «Russie Kievienne» ne résiste guère à l’examen.
L’État, ou plutôt le groupe de petits États, de principautés plus ou moins indé­

  8. Récemment le slaviste anglais Orlando Finges dans un livre intitulé «Natasha’s Dance,
a Cultural History of Russia» a pris l’épisode de Guerre et paix pour titre emblème de ses réflexions
sur la spécificité russe, un sujet sans fond et sans fin, où chacun, depuis deux siècles, s’exerce à
trouver une spécificité dont l’essence est par définition ambiguë, c’est-à-dire non réductible à
une formulation d’héritage simple.
  9. Cf. Chantal Lemercier-Quelquejay, La paix mongole, Paris, Flammarion, 1970.
10. I. R., Nasledie Cingishana. Vzgljad na russkuju istoriju ne s Západa, a s Vostoka. Berlin,
1925. Les initiales IR rappellent celles du poète K. R., un cousin de Nicolas II.

245
Caderno de Literatura e Cultura Russa

pendantes, qu’on groupe sous le nom de Russie Kievienne ne coïncide abso­lu­


ment pas avec cet État russe qu’aujourd’hui nous regardons comme notre patrie».
L’erreur des historiens classiques, selon Troubetzkoy, fut de considérer que
la Russie, en rejetant le «joug tatare», avait renfermé une parenthèse. Or c’est
tout le contraire: il y a eu fusion de la Horde et de la Russie, la Russie non
seu­le­ment a cessé de payer tribut sous Ivan III, mais, sous Ivan IV elle a fusionné
avec la Horde, à son propre profit. La Russie d’Ivan IV, c’est la Horde russifiée et
«byzantinisée». Développons ces arguments.
L’ancienne «Rouss» était un système fluvial, un chemin d’eau qui allait «des
Varègues aux Grecs», et avait donc intérêt à parvenir jusqu’à Constantinople.
La Russie moscovite héritière de la Horde est un empire «eurasien», basé sur
l’immense système des quatre bandes géographiques parallèles qui vont de
l’Océan Pacifique au Danube: la toundra, la forêt, la steppe et la montagne. Dans
ce vaste système continental est-ouest, qui détient la steppe, détient l’empire
eura­sien. Tchinguiz Khan fut le premier à l’unifier. Son empire était un empire
qui s’appuyait sur une aristocratie de nomades. Les valeurs suprêmes qu’appré­
ciait le grand empereur, et qui cimentèrent son empire, étaient la fidélité, la
loyauté, la fermeté de caractère: le futur «caractère russe». Le sédentaire est, par
inclination naturelle de caractère servile, le nomade de caractère aristocratique.
Tchinguiz honorait l’ennemi qui lui avait résisté, il punissait le traître qui s’était
rallié à lui. Ce système de valeurs dont hérita la Russie ne fait pas de différence
entre la religion et le temporel, ou, si l’on se permet un vocabulaire anachro­
nique pour mieux comprendre, entre le public et le privé. Certes, l’empire de
Tchinguiz fut vaincu, parce que le chamanisme, qui était la religion de l’empe­
reur ne pouvait pas attirer les fidèles des fois religieuses monothéistes. Mais
l’exigence d’une foi personnelle, quelle qu’elle fut (Troubetzkoy célèbre la tolé­
rance de Tchinguiz Khan), et la nonséparation des sphères spirituelles et tempo­
relles, fonde­ments du grand empire eurasien, demeurèrent les fondements de
l’empire russo-haïtien lorsque l’«ulus»11 moscovite prit la tête de la Horde...
Comme l’empire de Tchinguiz ne présentait pas de modèle religieux attractif,
les Mosco­vites empruntèrent artificiellement un modèle déjà mort, celui de
l’État religieux byzantin. La greffe du modèle byzantin sur l’empire eurasien
produisit l’empire russe. Les nombreuses conversions spontanées de Tatares et
leur apport considérable à la nouvelle monarchie sont la preuve que ce modèle
correspondait bien au type psychologique élaboré depuis le grand empereur
eurasien.

11. Ce mot mongol désigne le «domaine» unifié par un khan, l’ulus mongol fut proclamé
en 1206.

246
Les Eurasiens hier et aujourd’hui

II est étonnant de voir à quel point Troubetzkoy a su, dans ce petit livre-
-thèse, réemployer et réorienter les grands postulats de la pensée slavophile. Par
exemple lorsqu’il démontre qu’aux mœurs nomades et aristocratiques de
l’empire de Tchinguiz a succédé «le ritualisme russe» (bytovoe ispovednitchestvo):
ce qui veut dire qu’être russe est une manière globale, homogène, de vivre, sans
séparer le temporel du spirituel, sans idéaliser un mode politique, comme le
feront les Européens, mais, au contraire, en cultivant le perfectionnement de
soi – de façon à faire reculer la «niepravda» (injustice) par l’action de chacun.
«Le pouvoir du tsar s’appuyait sur le ritualisme russe de la nation». L’étranger,
pour le Russe, n’était pas le païen, le non-Russe, mais celui qui refusait d’entrer
dans cette sphère globale de la «profession des mœurs russes»...12 Il ne pouvait
s’y mêler aucune xénophobie, aucun chauvinisme. Le nationalisme russe n’a
rien à voir avec la division intolérante de l’Europe en «nations» jalouses et
exclusives l’une de l’autre...
Ce n’est qu’après la révolution menée violemment par le tsar Pierre le Grand,
qu’en voulant à toute force acquérir la puissance, au sens occidental du terme, la
Russie devint intolérante, chauviniste et militariste. Elle adopta des buts diplo­
matiques que lui soufflaient les étrangers, et qui n’étaient pas authenti­quement
ceux d’un empire eurasien: par exemple la conquête de Constan­tinople et des
détroits (les puissances européennes avaient intérêt à pousser la Russie à affaiblir
la Porte, afin de se protéger d’elle). Dans la nouvelle Russie européanisée, plus
personne, à la suite du grand schisme de la société, n’était plus vraiment «chez
soi», explique Troubetzkoy, en reprenant une formule qui rappelle fortement
les formulations tant de Gogol que de Tchaadaïev.
«D’une façon ou d’une autre, dans la Russie de l’époque de l’européanisation,
personne ne se sentait tout à fait “à la maison”: les uns vivaient comme sous le
joug de l’étranger, les autres comme dans un pays qu’ils auraient conquis, ou
encore une colonie» (Ouvr. cité, p. 39). L’empire pétersbourgeois mena une
politique «antinationale».
«La mutilation de l’homme russe entraîna la mutilation de la Russie elle-
-même». L’homme russe était né sous le «joug tatare», qui n’avait nullement été
un joug, mais l’élaboration d’un type de preux et de saint, qui devait beaucoup
au modèle des vertus exigées par Thinguiz Khan et qui s’était greffé sur l’ortho­
doxie. A la russification des «mourzas» tatares avait fait contrepoids la «toura­
ni­sation» des Russes eux-mêmes. Or avec Pierre le Grand et l’européa­nisation
violente, ce type d’homme régressent devant un autre type d’homme, intolérant,
militariste, exploi­teur, et étranger dans son propre pays. De plus, cet homme

12. Rossija i Latinstvo, Sbornik statej, Berlin, 1923.

247
Caderno de Literatura e Cultura Russa

pseudo-russe porte un masque, il fait semblant de professer d’autres valeurs


que les siennes vraies, et cette hypocrisie le défigure encore plus.
Lorsqu’il aborde la question de savoir dans quelle mesure le nouveau régime
bolchevique a hérité de l’une ou l’autre des deux faces de l’empire russe, Trou­
betz­koy, malgré quelques nuances, conclut que ce nouveau régime poursuit
l’européanisation de la Russie, et tourne le dos à la véritable nature «eurasienne»
du pays. Il n’est donc pas étonnant, note-t-il, que ses meilleurs serviteurs soient,
comme sous Pierre, les sujets originaires des Provinces baltes. Et pas étonnant
non plus que tant de voyageurs occidentaux reviennent de Russie soviétique
convaincus que si le communisme ne marche pas encore bien là-bas, c’est en
raison des «sauvages russes». Au passage, le lecteur de Soljenitsyne reconnaît
dans les arguments de Troubetzkoy un même reproche au pouvoir communiste:
dépenser en vain de l’énergie et des moyens russes pour la propagande dans
des pays lointains, qui n’ont rien à voir avec l’authentique Russie.

L’erreur de la monarchie antinationale postpétrine consistait en ce que, voyant l’unique


danger dans la force militaire et économique des différentes puissances européennes, et
voulant opposer à ce danger une force russe militaire et économique équivalente, elle
emprunta et elle implanta en Russie un esprit totalement étranger à la Russie, celui du
militarisme européen, de l’impérialisme d’État et du faux nationalisme (chauvinisme).
Mais l’erreur du pouvoir issu de la Révolution fut que, voyant l’unique danger dans le
régime bourgeois-capitaliste, il s’est mis, pour conjurer ce danger, à implanter en Russie
une vision du monde non moins étrangère à la Russie et non moins européenne, celle
du matérialisme économique, et à réaliser en Russie des idéaux de communisme créés en
Europe et parfaitement étrangers à la Russie (ouvr. cité, p. 54).

Comme on le voit, c’est son analyse «eurasienne» qui conduisit Troubetzkoy


à ses positions antisoviétiques.
L’Héritage de Tchinguiz Khan peut véritablement être considéré comme le
plus éclatant manifeste des Eurasiens, il apporte les thèses les plus centrales et les
plus provocantes qu’aient élaborées les historiens et ethnographes de la famille
de pensée eurasienne. De plus ses liens avec le passé slavophile et avec les futures
thèses de Soljenitsyne sont évidents. Il apparaît probable que Soljenitsyne ait
lu ce petit livre tant la proximité des thèses est évidente.
Mais le cœur des démonstrations de Troubetzkoy n’en reste pas moins
spécifique: sa Russie n’est ni «Varègo-slave» comme celle des slavophiles clas­
siques, ni européenne, mais «russo-touranienne». L’étonnant tribut d’admi­
ration payé à Tchinguiz Khan place la Russie vraiment ailleurs qu’en Europe, et
dans un christianisme qui ne veut pas de lien avec les autres christia­nismes. La

248
Les Eurasiens hier et aujourd’hui

mon­­golophilie du grand savant est étonnante dans ses outrances: le linguiste


en lui a probablement soufflé plusieurs intuitions à l’historien. Ce livre-pam­
phlet dessine une ligne de pensée nationale russe, qui, tout en se situant, par
certains aspects, dans la mouvance «slavophile» tourne délibérément le dos aux
autres Slaves, coupables de «trahison latine».
Un recueil de 1923 posait déjà le problème de La Russie et la latinité. Le
recueil a des aspects historiques, théologiques, philosophiques qui ne touchent
qu’indirectement notre sujet, mais il est entièrement imprégné d’esprit de sépa­-
ration, et d’affirmation de l’orthodoxie par rapport à la latinité. L’une est «surna­
tionale», l’autre est «international», écrit le philosophe Ivan Iline, qui de­vien-
­dra bientôt un maître à penser du nationalisme russe antibolchevique. C’est que
théologiens, philologues et historiens qui ont contribué à ce recueil, quoique
réfugiés en Occident, se cabrent tous contre la soi-disant suprématie de cet
Occident. «Le plus symbolique, écrit Iline, c’est que le génie national russe avec
son âme surnationale ait accepté la plénitude du mystère de la trans­subs­tan­tia­
tion, alors que la latinité, restée prisonnière de «l’interna­tio­nalisme», n’ayant
pas encore surmonté la nation, obéissant à son instinct de conservation, ne
peut que s’obstiner dans son unilatéralité, et déclarer la guerre à ce qu’elle ne
saurait atteindre, et dont, dans sa suffisance européenne, elle ne saurait même
éprouver le besoin» (ouvr. cité, p. 215).
De quoi s’agit-il? Une fois de plus de la potentialité orthodoxe à transformer
le monde entier en église (communauté, sobornost), sans pratiquer la ruineuse
distinction «latine» entre le séculier et le religieux, le laïc et le clérical. Même
l’état de «fusion» et de malléabilité où se trouve la Russie dans ses boulever­se­
ments, état de «malléabilité» que d’autres esprits, Wladimir Weidlé par exemple
dans sa Russie absente et présente13, jugent plutôt sévèrement, semble à plusieurs
auteurs de ce recueil eurasien la meilleure chance pour la transformation globale
du monde en église. Le futur historien de l’église russe (dans l’émigration)
Kar­ta­chov déclare:

Quand tomberont les murs de la prison communiste, et que la Russie libérée


commencera sa restauration, l’Eglise russe, qui aura connu dans son expérience du martyre,
toute la force maligne des persécutions de l’Antéchrist, saura poser avec force et justesse
devant le monde chrétien le problème de l’unité chrétienne (ouvr. cité, p. 143).

13. Cf. Wladimir Weidlé, La Russie absente et présente, Paris, 1949. Weidlé écrit de la culture
de l’ «Ancienne Russie: «c’est quelque chose de vague, de mou et d’indécis». Il est remarquable
que le joug tatare ne joue presque aucun rôle dans la réflexion de Weidlé: les mêmes constantes
subsistent pour lui au cours de l’histoire russe, il n’y a pas de cassure; il résume la première
phase de l’histoire russe par la formule: «un peuple, pas de nation».

249
Caderno de Literatura e Cultura Russa

C’est ce problème de l’Eurasie chrétienne qui a fait trébucher les Eurasiens.


Comment vouloir à la fois les «rythmes» de l’Eurasie, le retour au grand mou­
ve­ment eurasien de Tchinguiz Khan, et une sorte d’orthodoxisation générale du
monde, comme font plusieurs Eurasiens notoires? À cet égard les polémiques
que menèrent les Eurasiens sont instructives. En 1926 parut à Kharbine un
gros ouvrage de réflexions «historiosophiques» du journaliste Vsevolod Ivanov
(à ne pas confondre avec l’écrivain soviétique du même nom). Cet ouvrage
s’in­titulait Nous (MY). Le recueil a des aspects historiques, théologiques et
philosophiques. Il représente une sorte de surenchère par rapport aux Eurasiens,
sa pétition de principe est que la Russie doit être «asienne» et non «eurasienne»;
Pierre le Grand avait repris l’héritage et la volonté de Tchinguiz Khan, mais,
malheureusement, il importa une marchandise européenne sous une forme
asiatique... La polémique avec «l’Asiate» V. Ivanov occupe plusieurs numéros
de la Chronique eurasienne, une publication d’abord ronéotée, puis imprimée,
née à Prague en 1925, et poursuivie à Paris. Ivanov rêvait d’un «panasiatisme»
réel, avec la Chine, la Mandchourie, le Japon... «L’Orient, c’est précisément le
Guide: et c’est pourquoi nous autres, Russes, avec notre tsar blanc, nous sommes
des hommes de l’Orient». Pour les hommes de l’Asie, le tsar russe est un khan
blanc (ainsi Pierre le Grand désignait l’empereur chinois lorsqu’il lui écrivait).

Auquel des deux foyers mondiaux de culture appartenons-nous? vers lequel tendons-
-nous? Vers l’Asiatique! Là et là seulement, dans ces énormes espaces de déserts, de steppes, de
monts d’émeraudes, de cités magiques, de rituel quotidien fixé et mesuré, de sagesse
débordante d’amour, là où la tension de l’esprit dans les élans bouddhistes se résout
harmonieusement par une union avec l’esprit pratique du confucianisme, – là seulement nous
sentons le souffle de ce qui nous a toujours attiré: l’énorme richesse naturelle de la vie elle-
-même. [...] En Asie, nous sommes chez nous, voilà ce dont nous devons devenir conscients!

Seule la «fenêtre sur l’Asie» peut compenser l’erreur de Pierre...


Les Eurasiens recevaient avec le livre d’Ivanov, beaucoup plus superficiel, en
dépit de sa longueur, que la brochure de I. R., un reflet hypertrophié de leurs
théories, où le danger était de réduire l’orthodoxie à n’être plus qu’une religion de
l’Orient parmi les autres, comme elle l’avait été sous la monarchie de Tchinguiz.
Ils s’employèrent donc à corriger les thèses d’Ivanov, tout en saluant cet écho qui
leur venait des «antipodes», et qui pouvait paraître confirmer leurs thèses. Dans
sa réponse à Ivanov (Chronique eurasienne, n. 5)14 M. Volguine affirme:

14. Sous le nom de Evrasijskaja Hronika, parut de 1925 à 1928 d’abord à Prague pour ce
qui est des quatre premiers numéros, puis à Paris, où le numéro X parut en 1928, ce fut, à notre

250
Les Eurasiens hier et aujourd’hui

Non, la Russie n’est pas une chambre froide pour importateurs de culture européen-
ne ou asiatique. La Russie n’a pas que des données, elle a sa propre culture de l’esprit,
qui est originale, forte et orthodoxe, suffisamment représentée dans l’héritage des pères;
l’orthodoxie comme philosophie authentique.

Comment dépasser ce paradoxe d’une pensée qui se voulait à la fois pana­


siatique et panorthodoxe? Les Eurasiens ne manquaient pas de mots: ils ai­
maient, par exemple, se référer à «la poly-unité culturelle».Le peintre Malevski-
-Malevitch offrait une solution avec le «scythisme» de Dostoïevski, dont, pour
la première fois, les derniers articles du Journal d’un Ecrivain, sur l’avenir
«asiatique» de la Russie orthodoxe, devenaient pierre angulaire d’une nouvelle
vision de l’avenir russe (et devaient être repris dans la vision qu’expose Solje­-
nitsyne dans sa Lettre aux dirigeants).
Un autre interlocuteur des Eurasiens était l’idéologue du «nationalbol­che­
vis­me», l’historien Nicolas Oustrialov, dont les articles provenaient égale­ment
des «antipodes» asiatiques, c’est-à-dire de Kharbine également. Oustrialov
semblait, par bien des points, proche de la pensée eurasienne. Mais sa thèse
cen­trale était qu’un nouveau nationalisme russe était en train de naître en Russie
bolchevique, contre la volonté même des bolcheviks, et que ceux-ci n’étaient
plus vraiment communistes, mais des agents du nationalisme russe.
Le philosophe et historien Iline, le plus «nationaliste» des Eurasiens, se char­-
gea de lui répondre, comme il avait fait dès le IVnuméro de la Chronique eura­-
sienne, tentant de définir les rapports entre pensée eurasienne et héritage
slavophile. Partant du vieux dualisme romantique et d’origine allemande, entre
«organicisme» et «criticisme» Iline compare les deux mouvements, et récuse la
tendance «théocratisante» qu’il aperçoit chez les slavophiles et leurs épigones
tel Vladimir Soloviev. Les Eurasiens, selon lui, saluent les formes vigoureuses
d’Etat, et se gardent d’idéaliser le droit, comme l’a fait l’Occident, ce qui l’a
mené à un état de faiblesse. Oustrialov parlait de «nationalisation d’Octobre»,
c’est-à-dire soutenait que la Russie communiste et internationaliste allait, selon
lui, vers une évolution nationaliste; le jugement n’était pas si faux, et il fut salué
par Nikolaï Tatichtchev dans la Chronique eurasienne (VI).
Mais Iline et les maîtres à penser de l’Eurasisme, Savitski, Karsavine, Souv-
-t­chinski, voyaient plutôt l’Eurasisme comme un substitut organique au commu-

connaissance, le dernier. La publication est précieuse parce qu’elle fournit une chronique des
conférences, séminaires et débats organisés par les Eurasiens ainsi que des polémiques qu’ils
déclenchèrent. Elle donne assez souvent la parole à des contradicteurs. C’est une des publications
qui permet d’esquisser la vie intellectuelle et politique de l’émigration dans les années 20.

251
Caderno de Literatura e Cultura Russa

­ isme bolchevique. Pour bien appréhender leur approche politique, qui, au­
n
jourd’hui, nous apparaît étrangement floue – ils polémiquaient sur tous les
bords, avec Milioukov d’un côté et avec Oustrialov de l’autre (Oustrialov à son
tour était ridiculisé par Boukharine!) – il faut se rappeler que 1925 et 26 sont
des années elles-mêmes très floues: l’Opposition va-t-elle gagner, les bolcheviks
sont-ils radicalement divisés? L’hypothèse que Staline pourrait l’emporter est
mentionnée comme grotesque dans les réflexions de la Chronique eurasienne...
1926 est l’année trouble par excellence, le voyage secret de Choulguine15
en Russie soviétique donne lieu aux espoirs et aux illusions les plus fous. La
manchette de la traduction française du livre, en 1927, déclarait: «Sensationnel.
Un Russe blanc célèbre, que les Bolchevistes reconnaissent comme “le plus
intelligent de leurs adversaires”, révèle ce qui se prépare actuellement en Russie».
Choulguine résumait, «en deux mots», ses impressions: «Quand je partais là-
-bas, je n’avais plus de Patrie... A mon retour j’en ai une!»
Savitski développa une théorie économique de la «patronocratie», c’est-à-
-dire d’un pouvoir économique fort, que les «patrons» fussent privés ou d’État,
mais pourvu qu’ils fussent de vrais «patrons», c’est-à-dire mus par autre chose
que l’«égoïsme économique». Dans le débat de l’émigration sur l’«après-com­
mu­nisme», début dont sont remplies ces années «floues», les Eurasiens hésitaient
sur le problème de la «dénationalisation» de l’industrie, sur celui des libertés
for­melles, et sur bien d’autres encore.
En fait, le centre des préoccupations «eurasiennes», c’est la puissance, et
la forme forte de la «monarchie eurasienne». Mieux vaut une forme forte et
communiste que l’affligeante débilité d’avant 17, mieux vaut être le premier au
village que le dernier en ville... La pensée eurasienne prend souvent la forme
d’aphorismes ou de proverbes, qui sont autant de variations sur le thème «un
tiens vaut mieux que deux tu l’auras». Pierre Souvtchinski l’écrivait noir sur
blanc en 1927: la Russie a besoin d’une nouvelle «autocratie»! d’ailleurs, au
même moment, le mouvement voisin des «Mladorossy» ou Jeunes Rosses, prenait
aussi à son compte cette demande d’un pouvoir fort, et Karsavine saluait leur
émergence dans la Chronique eurasienne. Finalement, n’était-ce pas toute l’Eu­
ro­pe qui commençait à avoir la hantise et nostalgie du pouvoir fort, capable
de contrebalancer les forces de dissolution morale ou économique nées après
la tuerie de la Grande Guerre, forces qui allaient se déchaîner avec la «grande
dépression» de 1929? Lorsqu’ils évoquent la «RussieEurasie», les Eurasiens
parlent du «massif» populaire; ils se veulent non pas démocratiques, mais «dé­

15. Vassili Choulguine, La résurrectio de la Russie. Mon voyage secret en Russie soviétique,
Payot, Paris, 1927.

252
Les Eurasiens hier et aujourd’hui

mo­tiques»; l’expression est de N. Alekseïev, un professeur de droit qui rejoignit


les rangs des Eurasiens en 1926. Là aussi le diagnostic des Eurasiens était faux,
mais ils n’étaient pas les seuls à commettre cette erreur. «Les masses populaires
russes ont indubitablement et irréversiblement ressuscité à la vie politique et
sociale», écrit Souvtchinski en 1927. Seulement ce «massif» ne doit pas s’expri­
mer selon les lois arithmétiques occidentales, ni même par rapport au seul
temps présent, il doit englober le passé et le futur; ce qui laisse planer pas mal
de doute quant au mode d’expression qu’envisagent les Eurasiens.
Ni parti politique, ni simple approche géographique et historiosophique,
le mou­vement eurasien se considère comme un «ordre religieux»; il se veut à
l’O­rient l’équi­valent des ordres religieux occidentaux, jésuites ou francs-maçons.
Dans l’Orient russe, selon les Eurasiens, seul le mouvement des «starets d’Outre-
-Volga» peut leur servir de précurseur (mais pas dans les formes littéraires et
philosophiques élaborées par Dostoïevski pour son starets Zosime). Ainsi, assez
étrangement, ils se voient comme un mouvement religieux en marge de toute
orthodoxie et de tout centralisme culturel russe. Cette confrérie ou cet ordre
religieux n’a pas encore accès à la métropole soviétique, mais espère y accéder
bientôt, et elle nourrit ses espoirs du témoignage de fugitifs soviétiques qui,
dans la Chronique eurasienne, s’intitulent par exemple: «un étudiant soviétique
eurasien». Dans l’émigration, le mouvement eurasien se heurte à une vive
hostilité qui, en fait, est son principal aliment: les représentants des anciennes
mentalités «abstraitement occidentalistes» de l’intelli­g entsia russe des
générations précédentes, par leur hargne, confortent les Eurasiens dans leur
conviction centrale.
Leurs alliés littéraires ou historiens sont tous des «inclassables». C’est
l’historien George Vernadsky16 dont le livre Esquisse de l’histoire russe représente
une version scientifique des théories sur la passation des pouvoirs de la monar­
chie mongole à la monarchie moscovite. La poésie de Marina Tsvetaïeva, et

16. G. V. Vernadskij, Nacertanie russkoj istorii. Cast’ pervaja, Evrazijskoe Knigoizdatel­‘stvo,


sans indication de lieu, 1927. On retrouvera plus tard les thèses de cet historien, dans son
grand ouvrage History of Russia, paru à Yale University Press, et en particulier au tome III:
The Mongols and Russia et dans The Tsardom of Moscow 1547-1682, New Haven and London,
1969. Dans Nacertarnie Vernadskij écrit: «Dans le processus de développe­ment de l’empire
russe la tribu russe non seulement a tiré parti des données géographiques du berceau eurasien,
mais encore elle l’a pour une large part créé à son profit en vue de l’avenir, comme un tout
unique, adaptant pour son bénéfice les conditions géographiques, économiques et ethniques
de l’Eurasie». Dans The Tsardom of Moscow Vernadsky souligne toutes les vertus du royaume
«eurasien» de Moscou qui sont symétriques de celles du royaume de la Horde: la tolérance
religieuse en particulier. Le «tsar blanc», ne fait que poursuivre l’œuvre de la «horde blanche»...

253
Caderno de Literatura e Cultura Russa

plus généralement la revue Verstes (Versty), revue littéraire la plus proche des
Eurasiens, publiée par le mari de Tsvetaïeva, Serge Efron, où se côtoient Remizov,
Artème Vesioly, Karsavine et le prince Sviatopolk-Mirski, représentent la version
littéraire. Le principe de Verstes, c’est la «frénésie», la frénésie russe, non-
-européenne, «eurasienne»; la revue puise dans les textes soviétiques qu’elle
reproduit tout ce qui illustre et développe cette poétique de la frénésie, forme
russe de l’ubris, ou démesure des Grecs: frénésie anarchiste de Vesioly, frénésie
masochiste de Biely dans Moscou sous le coup, dont est publié un extrait, fréné­
sie tsvétaïevienne, frénésie de Rozanov, célébrée par Remizov dans un article
nécrologique peu conformiste, frénésie du protopope Avvakum, exhumé dès le
premier numéro par Troubetzkoy, et dont les chapitres sur la Daourie peuvent
être lus comme des textes «eurasiens». Lev Chestov, qui participait au comité
de rédaction, fournit en quelque sorte le manifeste philosophique avec son
texte sur «les discours frénétiques de Plotin», montrant la révolte de Plotin
contre le logos, et sa parenté avec les diatribes d’Epictète, cependant qu’Arthur
Lourié donnait une illustration musicale avec Stravinsky et la «canonisation
des genres musicaux bas», «élémentaires», ou encore «scythes» de la Russie.
Ni­colas Troubetzkoy, dans ce même numéro de la revue, se livre à une analyse
littéraire du Voyage au-delà de trois mers du marchand Nikitine, c’est-à-dire du
plus célèbre des textes «eurasiens» de l’ancienne littérature russe. «Il est remar­
quable, écrit Troubetzkoy, que la seule prière à la Russie, une manifestation
irrépressible d’ardent amour d’Afanassi Nikitine pour sa patrie, est citée dans
le Voyage en tatare, et sans traduction russe».Le recours au tatare, ou à l’arabe,
ou au persan, dans les moments les plus intimes du texte n’est-il pas la preuve
de l’eurasisme du célèbre voyageur russe? Troubetzkoy nous montre Nikitine
pleurant sur le «ritualisme russe», mais se cachant par pudeur sous le masque
tatare...
Nous voilà revenus à ce «connais-toi toi-même» russe qui est à la racine
des interrogations slavophiles, puis «eurasiennes». La réponse est-elle dans
la géographie, dans l’histoire, dans le folklore, dans le «rituel russe», dans la
vocation russe à l’«autocratie russe»? En définitive tout concourt pour les
Eurasiens, à cette originalité de la Russie, pour laquelle ils bataillent avec l’Oc­
ci­dent «romano-germain». Malgré leurs efforts pour se distinguer des «sla­vo­
philes» historiques, et malgré de notables divergences, ils sont bien, en définitive,
un surgeon de cette insurrection intellectuelle et affective de la Russie contre le
modèle occidental. Au moment où la Russie bolchevique semble hésiter, où le
Parti bolchevique est ravagé par les dissensions, où le national semble réappa­
raître sous l’internationalisme de façade, où l’Europe occidentale elle-même
commence à céder aux idéologies corporatistes qui véhiculent une bonne part

254
Les Eurasiens hier et aujourd’hui

du rêve romantique, les Eurasiens marquent un moment important de «l’auto-


­cons­cience» nationale russe. Ils ont joué peu de rôle à l’intérieur de la Russie
parce que le principe de force, qu’ils adulaient, allait précisément l’em­por­ter
en Russie bien au-delà de leurs propres espoirs. Ils ont eu une influence
paradoxale dans l’émigration russe, qu’ils ont surtout aidé à se définir. Leur
signification vient plus en définitive de la qualité des esprits qu’ils attirèrent un
moment à eux, et cela s’explique par le fait que le mystérieux hybride sur lequel
ils bâtissaient toute leur théorie, «Eurasie», non seulement était très bien choisi,
mais incarnait le refus d’alignement culturel qui fait partie intégrante de la
culture et de l’histoire russe, et qui, sous des appellations changeantes, ne cessera
sans doute jamais d’irriter, d’attirer, et d’enchanter... Un rejeton très particulier
de la pensée «eurasienne» semble être le géographe et ethnographe visionnaire
Lev Goumilev, père d’une théorie très romantique de l’ethnogénèse.
Poussés dans leurs retranchements, les Eurasiens définissaient l’Eurasie com-
me un «rythme», un rythme autre que le rythme européen, un rythme large, fréné-
­tique parfois, un rythme qui les accordait au grand empereur mongol, dont ils
avaient fait leur figure de proue. Un rythme qu’ils ont baptisé «Sarmate», ou
«scythe», ou «eurasien», ou «mongol», peu importe au fond l’appellation, le
rythme du Sacre du Printemps, des «Chants tsiganes» de Selvinski, de La Russie
lavée de sang d’Artème Vesioly, des «Scythes» de Blok, le rythme de La Force
nomade. Paradoxale, l’affirmation eurasienne consistait à affirmer l’instable, à
canoniser l’hétérodoxe, à jeter le vieux défi des nomades à toutes les forces séden­
taires de la vieille Europe «abusivement» importées dans l’empire eu­ra­sien...

Aujourd’hui que la Russie se cherche des «pères» qui ne soient ni l’ancien


régime, ni le communisme, l’eurasisme se présente comme une thèse originale,
préservant la Russie de l’extension pure et simple des thèses et critères occiden­
taux, sans reprendre la doxie marxiste. L’eurasisme peut servir de bible géopo­
litique et offre une alternative à Fukuyama et autres thèses venues de l’Occident
américain: l’avenir est déjà là; il est fait de démocratie occidentale, de libéralisme
économique et de fin des cultures concurrentes. La coalition des eurasiens ou
affiliés va de l’ex-dissident Alexandre Zinoviev à Alexandre Douguine. Beaucoup
d’hommes politiques flirtent avec ce concept. Mais les cartes sont aujourd’hui
brouillées très momentanément par l’alliance entre le président Poutine, qui
pourtant a inclus beaucoup d’éléments de la géopolitique eurasienne dans son
discours, et le président Bush: le terrorisme, l’internationale terroriste empê­
chent pour l’instant l’eurasisme rénové de trop se développer. Les Russes selon
Douguine sont un peuple d’empire, et d’empire eurasien, mais ils sont au­-
jourd’hui sans empire, à un stade post-impérial. L’Empire est nécessaire parce

255
Caderno de Literatura e Cultura Russa

que les Russes sont eurasiens, qu’ils n’ont jamais construit un État nation, et en
sont incapables. Ni ceci, ni cela, pensent les Eurasiens, mais «tertium datur»
c’est-à-dire que la Russie ne sera ni un secteur occidental, ni un territoire en
développement, mais un troisième objet. Un nouvel ulus dirigé comme celui
de Tchenguis par des méthodes absolument révolutionnaires, et contraires au
rationalisme occidental. La Russie telle que la voient les nouveaux Eurasiens
cherche son nouvel ulus. Douguine avance même la thèse qu’elle le trouvera
dans une nouvelle alliance avec la Perse, l’Iran chiite, continental et an­tioc­
cidental… La chimère cauchemardesque du roman d’Andreï Biely Peters­bourg
est donc toujours bien présente: le touranisme, et l’apparition du Tou­ranien.

Nicolas Apollonovitch se mit à rêver: il était un ancien Touranien, il s’était réincarné


dans la chair et dans le sang d’une vieille noblesse russe afin d’accomplir le devoir sacré:
ébranler toutes les assises. L’antique Dragon devait se nourrir du sang dégénéré des Aryens
et tout dévorer de sa flamme.

La pensée eurasienne a eu de grands moments, mais elle est restée péri-


s­cien­tifique, même quand elle a été incarnée par de grands savants. Elle était
leur part de rêve idéologique. Et ce rêve était double: détruire l’histoire au profit
de la géographie, de l’espace, un espace qui différencie à jamais la Russie eura­
sienne de l’Europe des petits cantons. Et ébranler les assises pour donner du
rêve utopique. Le paradoxe eurasien fonctionne aujourd’hui dans la pénombre,
mais il fonctionne, et risque d’éclater au grand jour. Qu’il charrie des paradoxes
(un messianisme orthodoxe et le modèle touranien, une haine de l’Occident
et une alliance impossible avec l’Iran) n’inhibe en rien son fonctionnement.
C’en serait plutôt le moteur.

Abstract: This article focuses on the development of the ideas of the Russian movement
named “Eurasian”, wich appeared in the 20th of XX century.
Keywords: Russian culture; Eurasian; Russian history; Troubetzkoy.

256
A Pintura Paisagística
Russa do Século XIX
Noé Silva

Resumo: O artigo trata das origens da pintura paisagística na Rússia e do seu desenvolvi-
mento no século XIX, com ênfase na obra de alguns do seus primeiros grandes nomes
(Aivazórski , Kuíndji, Chíchkin e Savrássov).
Palavras-chave: Paisagem; natureza; realismo; Aivazóvski; Kuíndji; Chíchkin; Savrássov.

De toda a arte da Rússia, a parte menos conhecida é, provavelmente, a pintura.


No Brasil, pouco se conhece dela, além dos ícones e alguns nomes inseridos
nos grandes movimentos de vanguarda do século XX.
Digna dos mais exaltados encômios, portanto, a exposição “500 Anos de
Arte Russa: Dos Ícones à Arte Contemporânea”, realizada em São Paulo, no ano
passado. Apesar de algumas coisas tediosas e absurdas, ela foi uma exibição da
inexaurível capacidade russa de causar admiração ao mundo e um louvável
esforço para a aproximação dos nossos povos.
Verificou-se, no entanto, um pequeno número de obras de autores do sé-
culo XIX, justamente o período de ouro da pintura russa. Naturalmente, não
se esperava ver cá exemplares da melhor produção dos Oitocentos, até porque
ninguém desconhece os custos e os perigos do translado de objetos de arte de
um continente para outro, mas uma meia dúzia que fosse dos grandes mestres
bem podia haver comparecido com trabalhos menores (como, a propósito, o
foram Mikhail Vrúbel e Valentin Serov).
Tal qual ocorrera na literatura, o realismo impôs-se, contrapondo à arte
acadêmica uma outra, para a qual o tema central devia ser o país com a sua
beleza e a sua gente. Foi a época do florescimento da escola nacional, com
obras expressivas, em todos os gêneros.
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Falaremos de uma parte dos pintores da época, os paisagistas, após uma


digressão pela História.
***
Em 989 da nossa era, a Rússia converteu-se ao cristianismo de rito grego e
surgiu a arte russa como tal. Até ao século XV, esta constituiu uma ramificação
da bizantina e foi representada, nessa fase inicial, pela arquitetura (edificação
de igrejas), o mosaico, os afrescos, as miniaturas e o ícone propriamente dito,
pintado ou bordado.
A temática bíblica predominou até ao século XVIII, quando começou
a formar-se um acervo de obras da arte secular, que, a refletir as mudanças
profundas, ocorridas no país, solaparam gradualmente a tradição religiosa.
A aspiração ao conhecimento objetivo do mundo, o progresso das ciências, o
aumento da publicação de livros, tudo isso contribuiu para a consolidação de
uma cultura nova, laica. O desenvolvimento do Estado teve, como conseqüên-
cia inevitável, as reformas de Pedro I (1672-1725), entre as quais a criação do
Senado, de uma Marinha, impulsionadora do intercâmbio com outras nações,
e de um exército regular, a fundação de escolas (de engenharia, navegação,
medicina etc.) e da Academia das Ciências e o estabelecimento de setores da
economia, com a abertura de minas, por exemplo, e a construção de arsenais.
O primeiro quartel do século XVIII conheceu mudanças em todos os cam-
pos; intensificaram-se as atividades sociais e as relações externas, cresceram a
indústria e o comércio, e fortaleceu-se o Estado absolutista, apoiado, agora, não
somente nos nobres, senão também nos mercadores.
Os novos tempos exigiram outras formas de expressão estética. Em 1757,
em São Petersburgo, fundou-se a Academia das Artes1. A arte adquiriu, a pouco
e pouco, significado cognitivo, com a sua aproximação da ciência, e a cultura
artística russa começou a impregnar-se da consciência nacional e do sentimento
patriótico.
Tiveram grande impulso as artes gráficas. A do retrato, embora predomi-
nante, era considerada um gênero de segunda categoria; a mais valorizada era
a pintura sobre temas mitológicos, alegóricos, religiosos ou sugeridos pelos

1. Foi a primeira escola de pintura, escultura e arquitetura do país. De todo o conheci-


mento científico da época selecionou-se o indispensável ao artista, e compunham a base do
programa a Perspectiva, a Óptica, a História, a Geografia e a Anatomia, com aulas também de
Canto, Música, Dança e Arte Teatral. Tornou-se o centro da vida cultural do país; pelo beirar
da metade do século XIX, algumas regras ensinadas para a criação de obras de arte e as condi-
ções dos concursos tolhiam os anseios criadores dos jovens artistas. Funcionou até 1918. Hoje,
a Academia das Artes da Rússia fica em Moscou.

258
A Pintura Paisagística Russa do Século XIX

períodos mais antigos da história pátria. Nesse período mais moderno, a arte
russa entra a receber o influxo da ocidental. Convidam-se artistas estrangeiros
(mormente italianos e franceses) a trabalhar na Rússia, viajantes compram
obras no exterior, e os mais distinguidos dos pintores incipientes iam a outros
países para conhecer a produção artística da época e aperfeiçoar-se, com pensão
oficial. Gradualmente, transformam-se, russificando-se, os modelos adotados
de civilizações mais antigas ou culturalmente mais adiantadas.
Na segunda metade do século XVIII, junto com a pintura de costumes,
surgiu a paisagística. Até então, o que quer que fosse da natureza encontrava-se
somente em ícones e afrescos.
***
O gênero conheceu, na Rússia, duas fases bem distintas entre si. Produziu
obras de valor apenas no último quartel daquele século, quando se voltou a
atenção para o mundo natural, fato relacionado com a estética do sentimen-
talismo e a aspiração deste à espontaneidade e à naturalidade, na época dos
apelos de Nikolai Karamzin2 e do seu círculo ao “co-regozijamento”, “co-entris­
te­cimento” e “co-sentimento” com a natureza, como as qualidades mais nobres
do ser humano.
Foi Semión Chtchedrin (1745-1804) o primeiro paisagista russo, no sentido
próprio do termo, com as suas muitas vistas dos parques dos subúrbios de São
Petersburgo e bosquejos de recantos e edifícios seus.
Em seguida, vieram Fiódor Aleksiéi (1753-1824), Maksim Vorobiov (1787-
1855), Fiódor Matviéev (1758-1856), Silviéstr Chtchedrin (1791-1830), meio
italianizado, meio holandesado, e, por fim, os irmãos Grigóri (1802-1865) e
Nikanor (1805-1879) Tchernetsov. Os dois, dedicados à representação de mo-
numentos, acontecimentos e lugares notáveis do país, construíram um barco
e viajaram pelo rio Volga, em vilegiatura artística, na tradição dos pintores
compatrícios.
Predominava, no entanto, uma tendência decorativa, que fazia a natureza
ser mero cenário do motivo principal, aparecendo atrelada à História ou à len-
da e destituída de vida e das suas inconstâncias. A habitual estada dos artistas
em terras italianas parecia reforçar o fascínio da Antigüidade nos jovens pinto-

2. Nikolai Mikháilovitch Karamzin (1766-1826), eminente escritor e historiador. Criador


do gênero da novela e da viagem sentimentais na Rússia, exemplificado em Evguiéni e Júlia
(1789), Pobre Elisa (1792) e Cartas de um Viajante Russo (1791-1792). Idealiza a vida simples,
próxima da natureza, e as relações entre os latifundiários e os mujiques, mas, no período de
luta contra o sistema feudal, contribuiu para o nascimento de novas idéias, ao ensinar que se
deve avaliar uma pessoa não pela sua classe social, mas, sim, pelo seu mundo espiritual.

259
Caderno de Literatura e Cultura Russa

res russos e o seu entusiasmo pelas belezas “clássicas” do Oriente e do Ociden-


te, reconhecidas como tais e apontadas nos guias turísticos, de modo que
abundavam quadros inspirados em sítios da Itália, Grécia, Turquia e Palestina.
Fabricava-se enfaticamente e calculadamente a natureza na oficina. Marcadas
pelo esquematismo, as paisagens3 não apresentavam intimismo, profundeza,
riqueza nem segredo. A comoção e a criação, obedientes à tradição, estavam
presas ao plano puramente intelectual; fazia-se uma pintura de imaginação. Os
prados e caminhos pintados acolheriam melhor um fauno do que um mujique,
e um mascate ou tropeiro sentir-se-ia, neles, menos a jeito do que um pegureiro
virgiliano, com traje de seriguilha e cajado.
O quarto decênio dos Oitocentos assiste à aproximação da arte russa da
realidade. Na literatura, o realismo imperava desde Aleksandr Púchkin e Nikolai
Gógol. As suas obras, mais as de Fiódor Dostoiévski, Nikolai Ostróvski e Ivan
Turguiénev, e as dos poetas Aleksiéi Koltsov e Nikolai Nekrássov, ajudaram
os pintores a conhecer a multivariedade da existência humana e as suas sutile-
zas. Esse reconhecimento dos temas da realidade registrou-se nos quadros de
Aleksiéi Venetsiánov (cenas da vida campestre) e, principalmente, de Vassíli
Fedótov4, que abriram caminho para o desenvolvimento do realismo na pintura.
Aos poucos, os paisagistas viraram-se para a Rússia verdadeira e não conven­
cional, com o que ela possuía de eterno: a pujança dos pinhais, a vastidão da
estepe, o manso correr de ribeiros pela planície flava, com pinceladas de bosques
verdes, os rios e as estradas, trilhados pelos destinos da nação, e os cam­pa­
nários, que se alteavam sobre suaves colinas e punham uma nota de infinitude
e saudade sobre os campos e a linha do horizonte.
Essa segunda fase da pintura paisagística russa, do seu desenvolvimento para
o realismo, iniciou-se ainda na primeira metade do século XIX, com Mikhail
Liébedev (1811-1837). Este não seguia já os modelos clássicos; a percepção
romântica do mundo fez o seu espírito embeber as cores vivas da Itália, onde
passou os quatro derradeiros anos de vida. Os seus quadros ressumbram
vida, sol e saúde.

3. Costuma-se designar por paisagem tudo o que a pessoa vê em torno de si e, também, a


cópia pictórica do lugar, que oferece, à vista, elementos agradáveis à sua contemplação.
Usamos a palavra unicamente na acepção de “cópia de um espetáculo da natureza pelas
técnicas do desenho, da pintura ou da descrição literária. A paisagem acha-se no quadro ou
nas páginas do livro, não no espetáculo da natureza. A paisagem nasce quando o espetáculo
natural, passando da retina para a alma do observador, se projeta na tela ou no papel” (R.
Castagnino, Análise Literária, São Paulo, Mestre Jou, 1971, p. 106).
4. Quadros desse pintor, como Os Esponsais de Major, lembram obras de Gógol, Dostoiévski
e Ostróvski.

260
A Pintura Paisagística Russa do Século XIX

Uma nova geração de pintores fez a paisagem ganhar em qualidade oficinal


e enriquecer-se de uma visão amorosa e mais profunda da natureza. A pintura
interessara-se pela terra e os seus costumes, no que era uma das tendências
maiores do Romantismo; um maior realismo destituía o classicismo serôdio,
na vaga do patriotismo, suscitada pela guerra de 1812, contra o invasor francês.
Os paisagistas não aspiravam já a obter fantasias decorativas, mas a registrar o
aspecto das regiões e cenas do mundo rural. Por outras palavras, com a abolição
dos efeitos ornamentais, queria-se ir além da superfície das aparências.­
Havia já mais preocupações com a pintura ao ar livre, com a luz e os efeitos
fugidios. Impunha-se o sentimento estudioso, honesto e sábio de uma natura
entendida diretamente pelo temperamento de cada qual, sem preconceitos
estéticos de beleza no sítio escolhido ou no tratamento pictural. À paisagem
clássica, esteada no homem, sucedeu uma arte mais complexa, de maior ou
menor essência poética e lírica, que retratava o rosto visível da Rússia em toda
a sua variedade e frescor, segundo as cores e as formas das estações do ano, bem
como os caprichos das condições atmosféricas.
Ivan Aivazóvski (1817-1900) era cativo do elemento marinho e dos efeitos
de luz nele produzidos pelo Sol e pela Lua, na procela e na bonança. Tinha a
imaginação nostálgica, o gosto do sonho e da dissipação espiritual. Como ro-
mântico, nutria grande curiosidade pela natureza virgem e grandiosa, tendendo
a exaltar o encanto dramático e a sublimidade terrível das tempestades, em
que débil raio de sol ilumina náufragos agarrados a um pedaço de mastro ou
trepados em ásperos rochedos, talhados a pique sobre vagas espumantes.
A sua arte atinge o ponto mais alto justamente aí, quando sobe em ansiedades
de fraga e água, à procura da luz. As escarpas inóspitas e os escarcéus sinistros
oferecem uma impressão de força e beleza e evocam gritos abafados pelo es-
tridor da ventania e dos vagalhões, para além de pensamentos na fraqueza do
homem perante as forças naturais indiferentes, na tragicidade e precariedade
da existência humana.
Recebeu muitas críticas à sua copiosa obra (cerca de cinco mil telas), ao
patentear-se a monotonia do seu processo criador, dentro de assuntos repetidos
também, que lhe empanaram a glória e o especializaram em uma pintura ora
trágica, ora decorativa, idealizada.
A inspiração vinha-lhe do entusiasmo pela magnificência do cosmos, do
fascínio pela formosura dos fenômenos grandiosos. Ela devia encaminhá-lo
para a representação épica da vida dos elementos, iniciada por William Turner,
mas desvirtuaram-na os seus instintos mercantilistas. Talvez, porém, não seja
exagero dizer que, nos seus melhores trabalhos, esse armênio de Feodóssia,
cidade costeira da Criméia, pede meças aos mais célebres marinistas.

261
Caderno de Literatura e Cultura Russa

O Sul deu outro grande talento à Rússia, um discípulo de Aivazóvski: Arkhip


Kuíndji (1842, ano mais provável-1910), grego de apelido tártaro, nascido em
Mariúpol, no litoral do mar de Azov. Ele nos oferece um mundo diferente,
expressão viva do seu temperamento solar, original. Esmerava-se em dar à
rea­lidade a magia do sonho, com fortes contrastes luminosos e coisas mais
sonhadas­do que vistas, fantásticas mas de encanto real. Dos seus bosques des-
prende-se uma poesia sã e forte, que ganha um tom meditativo e épico, quando­
se representa a estepe sob o luar, o sol abrasante do meio-dia e o crepúsculo
vespertino.­
Na primeira fase, pintou aldeiazinhas da planície, tempestades no mar
Negro, o tempo de caminhos lamacentos e a estepe; a escrita era seca, e o co-
lorido, frouxo. A atração por tudo o que era brilhante e matizado, herdada de
Aiva­zóvski, traduziu-se em buscas, que miravam à frescura das cores, à força
construtiva, à representação fiel da luz. Mas foi somente em 1875, quando vi-
sitou Paris e travou conhecimento com as obras dos impressionistas, que teve
completamente claro para si o poder das tintas. Não fez a transposição literal
do método dos franceses, esforçando-se por dominar o meio formado pelo ar
e pela luz, na medida das possibilidades da tradição russa da época. Os seus
trabalhos alvoroçaram o público, aferrado ao gosto convencional, e provoca-
ram muitas discussões; falava-se em truques, em lâmpadas acesas por trás da
moldura. Kuíndji ensinou que as cores podiam ser mais do que um apêndice
do quadro e ter nele papel maior do que o da idéia e do estado de espírito.
Kuíndji revelou à pintura do seu país as relações das cores entre si, as leis das
suas vibrações, os seus matizes.
Talvez o rio Dniéper não apresentasse nenhuma fosforescência verde e as
bétulas da Ucrânia não tivessem tronco tão robusto e tão dócil às linhas ver-
ticais, mas isso e os seus céus foram interpretados por um espírito vigoroso,
capaz de comunicar-nos, embora em estranha linguagem pictural, as sensações
pungentes, a ele suscitadas pela natureza.
As primícias de Fiódor Vassíliev (1850-1873) salientavam o alvorecer de uma
sensibilidade especial e própria. Ele foi um pintor nostálgico e sereno da família
dos grandes tísicos – os Tchékhovs e os Nobres. O desassossego originou a ex-
pressão ímpar da transitoriedade da vida, vista em Prado Molhado, a obra-prima
do seu destino falhado, tirada pelo seu subjetivismo doloroso do motivo da
profecia da doença descaroável, que lhe prometia a morte e não faltou. Ela reflete­
o estado de espírito do artista, a quem o fim certo, como as sombras da tarde,
re­traía para o recolhimento íntimo. Há nela, em estado exacerbado, qualquer
coisa de grave, meditativamente sofrido, que nos contempla de outros quadros
seus.

262
A Pintura Paisagística Russa do Século XIX

À diferença de Liébedev, sempre arredado da Rússia e também falecido cedo,


Vassíliev tinha muito com que contribuir para o desenvolvimento da pintura
paisagística russa.
Outros nomes respeitáveis desse segundo período da pintura paisagística
russa foram Mikhail Klodt (1832-1902), Vassíli Poliénov (1844-1927), Iliá
Ostroúkhov (1858-1929) e Ivan Endogúrov (1861-1898).
Ivan Chíchkin (1832-1898), conhecido como “homem-escola”, retrata pi-
nheirais espessos, lindantes com o horizonte, plantações ondeantes ao vento,
matagais sombrosos, clareiras ensolaradas e cobertas de flores e erva viçosa.
Depois de cursar a Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura de Moscou5 e a
Academia das Artes, de São Petersburgo, passou dois anos na Alemanha; ao
regressar, em 1875, traçou como destino o estudo profundo das florestas e
debuxou-as como ninguém, tirando delas uma imagem coletiva do povo russo.­
No início, o desenho preciso é seco e prejudica a impressão do todo, destruin­
do todas as sensações. O seu mundo soalheiro, transbordante de vida, encanta
o espectador e revela um artista consubstanciado com os motivos eleitos da
sua alma.
Chíchkin praticou basicamente a paisagem propriamente dita, sem a in-
tervenção humana, desviadora do sentido imediato da natureza. Espírito ena-
morado da majestade das energias primitivas, cuja pujança, não admira, sói
associar-se à quadra estival, sabia transmitir a vibrante sensação dessa estação
no campo, com um à-vontade tão sedutor, que a sua grande obra-prima (Campo
de Centeio) constitui verdadeiro poema sobre uma terra bondosa e fecunda.
Senhor de uma técnica perfeita e segura, favorecida pelo seu conhe­
cimento­do desenho (era soberbo desenhista e água-fortista), sabia im­primir
aos seus trabalhos um pessoalismo inconfundível. Faltava-lhe, porém, sen-
sibilidade emotiva, não suprida com a meticulosa observação visual e as
facilidades de mãos, no escarvoar as sombras contrastantes com os claros e
as meias-tintas.
Proveniente de uma terra marulhante de pinhais (Elábuga, região de Viatka,
hoje Kírov), Chíchkin foi um grande mestre na transmissão dos estados da flo-
resta, das suas intimidades de mais difícil descoberta, das exuberâncias solares
e profundidades sombrias, em simultâneos efeitos já então meditadamente
intuídos.

5. Fundada em 1830 por pintores, escultores e amantes da arte, com a ajuda de alguns
mecenas, com o nome de Escola de Arte, funcionou não oficialmente, ora cá, ora lá, até 1843,
quando foi oficializada, recebendo estatuto e sede. Passou então a chamar-se Escola de Pintu-
ra, Escultura e Arquitetura.

263
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Encarnou perfeitamente, ao longo de toda a vida, as idéias do democratismo,


do patriotismo e do caráter nacional, como membro ativo da Associação das
Exposições Ambulantes de Arte (Továrichtchestvo peredvijnýkh khudójestvenykh
výstavok), de papel fundamental no desenvolvimento da pintura russa, que,
no limiar dos anos cinqüenta e sessenta do século XIX, entrara em nova fase,
influenciada pelo início do populismo6.
Travava-se, então, uma luta entre uma arte de caráter social e o academis-
mo, isto é, entre dois princípios: de um lado, a arte como veículo dos gostos,
das idéias e das expectativas dos intelectuais de mentalidade progressista e, do
outro, a arte como ornamento, desligada da vida e submissa aos seus únicos
fruidores – o poder, na pessoa dos seus representantes, e a nobreza. A Academia
de São Petersburgo, principal centro da pintura do país e objeto da supervisão
direta do czar, constituía um obstáculo à liberdade de criação, para a geração
mais jovem de pintores. Estes eram, na sua maioria, pessoas oriundas das clas-
ses populares e chegadas à Capital e a Moscou dos vários rincões da Rússia, e
ávidos leitores de livros e das publicações de tendência progressista, que tinham
opinião formada sobre as grandes questões da época e para quem a arte não
podia ser uma gaiatice ociosa. Repugnava-lhes tudo o que caracterizava a pintura
acadêmica da época: o ignoramento da realidade, a intenção de produzir forte
efeito no espectador, a artificialidade das posturas e o colorido invariavelmente
agradável. Nos estúdios, discutiam vivamente “As relações estéticas da arte com
a realidade”, trabalho de Nikolai Tchemychévski, cuja tese principal era que o
artista devia retratar a vida e pronunciar uma sentença para os fenômenos da
realidade. Assim que, sob a influência das idéias democráticas, nos anos ses-
senta, já a vida do povo e os problemas sociais tornaram-se o conteúdo básico
das suas obras.
A Academia mantinha-se fechada aos novos ventos, apesar das seguidas
manifestações de parte dos estudantes por liberdade de criação nos trabalhos

6. Movimento de contestação política, capitaneado por intelectuais de tendência progressista.


Pessoas esclarecidas, na maioria estudantes, percorriam aldeias, a trabalhar como médicos, profes-
sores, sapateiros, enfermeiros, ferreiros, alfaiates e carpinteiros e, eventualmente, fixavam-se em
um sítio e outro. Chamados de naródniki (populistas), pela ida ao povo (narod), disseminavam
as idéias de transformação do país, para sublevarem os camponeses contra o absolutismo, e
conseguiram despertar o descontentamento de largas camadas da juventude instruída.
A prisão, em 1874, de milhares de militantes cindiu o movimento; uns prosseguiram com
o trabalho de propaganda, outros passaram à eliminação física de representantes do poder.
Os partidários da ação armada fundaram, em 1879, a Naródnaia vólia (A Vontade do Povo),
que, após várias tentativas, conseguiria, na manhã de primeiro de março de 1881, matar o czar
Aleksandr II, com a explosão de uma bomba.

264
A Pintura Paisagística Russa do Século XIX

de diplomação e concursos. Em 9 de Novembro de 1863, ocorreu nela a “rebe-


lião dos quatorze” (treze pintores e um escultor): os formandos, candidatos à
medalha de ouro e à viagem de estudos à Itália, encabeçados por Ivan Kramskói,
recusaram-se a escutar o discurso do reitor e a iniciar a prova, deixando o salão,
em protesto contra as regras conservadoras do estabelecimento, que previam
temas unicamente da mitologia e da religião, como o proposto naquele dia
(Odin no Valhala). Por intermédio deles, a intelliguéntsia arrogava-se o direito
de ver a arte refletir a verdade da vida, como pedia Nekrássov:

Ontem, às seis horas,


Cheguei à Praça do Feno;
Ali açoitavam uma mulher,
Com um chicote, uma jovem camponesa.

Nenhum som do seu peito,


Apenas o azorrague silvava, a bater...
E à Musa eu disse: “Olha!
Aquela é tua irmã germana!”

Os membros do grupo rebelde fundaram a Corporação de Pintores (Artiél


khudójnikov), e os artistas, que compunham o seu núcleo, existente até ao fim
dos anos 60, fundou, em 1870, em conjunto com os seus mais importantes co-
legas de Moscou e com o apoio do colecionador Pável Tretiakov, a Associação
das Exposições Ambulantes de Arte. Da organização dessa confraria artística
cuidaram, nessa cidade, Grigóri Miassoiédov e Vassíli Perov, e, em São Peters-
burgo, Ivan Kramskói e Nikolai Gue. Assinou-se o seu Estatuto, pelos membros-
-constituintes (ao todo, quinze pessoas), em dois de Novembro daquele ano.
Perov e Kramskói seriam os ideólogos da corrente democrática da pintura russa.
Impossível escrever sobre os ambulantes sem dedicar algumas linhas a Tre-
tiakov. Industrial do ramo têxtil, comerciante de tecidos e, ao mesmo tempo,
conhecedor de arte e amigo de pintores, apoiava financeiramente os mais ta-
lentosos, ora encomendando-lhes quadros, ora socorrendo-os em momentos
difíceis.
Na Rússia, as coleções particulares tinham tradição antiga. Havia galeria de
quadros no palácio do czar, na casa de príncipes, condes e de famílias mais ou
menos ilustres. Elas se compunham basicamente de obras de autores europeus
ocidentais; o interesse pelas dos compatriotas veio mais tarde, somente com os
primeiros êxitos da escola russa e o crescimento da consciência nacional, re-
forçado pela invasão do país pelas tropas napoleônicas.

265
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Ainda rapaz, Tretiakov gastava entusiasticamente o que recebia, na loja do


pai, em aquarelas, gravuras, livros ilustrados e quadros de autores estrangeiros
(holandeses, principalmente), na Sukharievka, famoso mercado de Moscou,
onde se podia comprar de tudo. Na Primavera de 1856, em São Petersburgo,
um fato mudou radicalmente o seu destino de colecionador – conheceu a
coleção de um diretor dos Correios, inteiramente de autores russos: retratos
de Borovikóvski, obras de Briullov, Venetsiánov, Levítski, Tropínin e os famo-
sos Os Esponsais do Major e Cavaleiro Recém-ordenado de Fedótov; ao todo,
137 telas, que compunham um pedaço da história da arte nacional. Tretiakov
compreendeu, então, que devia ir não à Sukharievka, mas às exposições e aos
estúdios, para a ter a possibilidade de adquirir bons trabalhos.
Ele meteu ombros a uma empreitada, que impediu que o melhor da pintu-
ra russa do século XIX (principalmente a dos ambulantes) se espalhasse pelo
imenso país, por coleções particulares, ou, quiçá, simplesmente se perdesse. Era
alta a consideração votada a ele, no meio artístico; desde o início, os pintores,
conscientes, na sua maioria, dos nobres fins por ele perseguidos, cediam-lhe
os seus trabalhos por preços menores do que os pedidos a outrem. Quando
expressou a Miassoiédov a vontade de ficar com a tela O Ziémstvo Almoça,
este respondeu-lhe: “A mim, claro, é agradável saber do seu desejo de colocar
o meu trabalho na sua galeria. E, considerando uma honra fazer parte da sua
coleção, eu estou disposto a diminuir tanto quanto possível o preço... É muito
mais agradável a mim estar com o senhor, e não na Academia”7. Tais concessões
permitiam-lhe adquirir mais coisas e não economizar dinheiro nos quadros
realmente de valor8.
Os ambulantes (peredvíjniki), com o seu programa de produzir algo ligado
às massas e compreensível a elas, enviavam os seus quadros novos para mos-
tras nas maiores cidades, promovendo a popularização da arte. Durante uma
década e meia, de 1872 a 1885, a primeira exposição do ano, realizada em São
Petersburgo e sempre marcada para Março ou Abril, era aguardada como a
chegada da Primavera. A um bilhete de ingresso de vinte e cinco copeques (um
quarto de rublo), recebia professores, escritores e intelectuais vindos do seio
do povo; o ambiente era de festa e confraternização para os expositores, e os
visitantes, por sua vez, sentiam-se em casa. Havia sempre obras de valor; os

7. Citamos pelo livro: I. S. Nenarókomova, Павел Третьяков и его галерея (Pável Tretiakov
e a sua Galeria), Moscou, Galart, 1994.
8. Pável Tretiakov (1832-1898) construía anexos à sua residência, à medida do crescimento da
coleção, franqueada à visitação pública. Mais tarde, ofereceu-a, com a do falecido irmão, bem como
a própria casa, à Duma de Moscou, com a condição de poder continuar a residir ali e a cuidar dos
quadros. Em 15 de Setembro de 1892, a galeria passou a ser patrimônio da sua cidade natal.

266
A Pintura Paisagística Russa do Século XIX

jornais falavam delas, e os comentários propagavam-se rapidamente, atraindo


o público, para quem muitos pintores eram como os seus poetas e compositores
preferidos. A Associação manifestava preocupação com os artistas profissio­nais,
ajudando-os a vender os seus quadros e dando-lhes parte da receita auferida
com essas mostras coletivas.
Ao passo que as exposições da Academia, com a sua atmosfera de estagnação,
tinham brilho e proporções cada vez menores, as dos ambulantes constituíam
uma florescente escola de educação estética e uma grande parada das forças
nacionais.
Na primeira delas, realizada em Março de 1872, expôs-se um quadro de
pequenas dimensões, As Gralhas Chegaram, de Aleksiéi Savrássov, pintor já
conhecido e professor da Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura de Moscou.­
Apareceram referências elogiosas nos jornais, e o Notícias de São Peters­burgo
trouxe um artigo de influente crítico de arte, Vladímir Stássov. So­mente o tempo
colocaria na merecida altura a obra e o autor, mas já aos espíritos mais sagazes
não escapou o surgimento de um vetor artístico ignoto até então, no país, qual
seja a introdução de uma nota intimista na paisagem, por alguém sensível aos
sons e à música dispersos na natureza.
O retorno das gralhas foi uma visão que Savrássov parece haver tirado àquela
em um momento de distração dela, tal a espontaneidade, a desconcertante singe-
leza da cena. Obra talvez possível só para quem consegue chegar perto do grande
segredo das coisas, da poesia original, por assim dizer, da alma das coisas. Nesse
encontro do real com o inefável, eis todo o coração da Rússia convertido em
um declive de colina nevado, com três bétulas novinhas e um bando de aves.
Enquanto à composição, o quadro tem concepção musical. Ao fundo, o
mundo ainda desgracioso e mal acordado do Inverno, e, em uma espécie de
proscênio, em meio a pegadas de cão ou lebre, a gralha do chão segura um
graveto no bico, qual maestro de batuta e casaca, que dá o alamiré às buliçosas
companheiras. Eis aí a nota mais alta do quadro: o acordo de um dos grandes
ritmos cósmicos, a sucessão das estações do ano, com um ato comezinho e
essencial da vida animal – nidificar e garantir a sobrevivência da espécie. O
fato corriqueiro enseja um hino de vida e graça, impregnado de um lirismo
sereno e radioso, que nos comunica com intensidade o espírito primaveril de
renascimento, o júbilo do recomeço.
Apesar do colorido sobriíssimo (quatro cores apenas – branco, negro, cas-
tanho e azul e tons predominantemente terrosos e opacos), tem-se um exemplo
acabado de como o temperamento de um artista pode fecundar a realidade –
Savrássov prepara a alegria de descobrimentos no lugar em que o espectador
crê haver já visto tudo.

267
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Esse quadro, retrato da Natureza em um dos momentos mais expansivos da


sua verdade, dá ao inefável uma feição tangível, tamanha explicitude material,
que a exata objetividade da cena, de reprodução contidamente apaixonada,
alvoroça os mais delicados e indefinidos impulsos íntimos do espectador. Im-
possível não recordar Teixeira de Pascoaes: “a beleza é o esplendor da verdade”.­
Foram as paisagens de Savrássov as primeiras em que um amor vibrante
à natureza se uniu à ternura por coisas simples, em uma atitude romântico-
-naturalista diante daquela, em um desejo de pintar-lhe a vida interior, de
espiri­tualizá-la.
As maiores descobertas, no campo da sensibilidade e da delicadeza, per-
tencem a ele, o primeiro capaz de entendimentos mais sentidos e mais líricos
da natureza, então assim tratada pelos impressionistas de Barbizon. Ninguém
ainda, na pintura russa, representara a afinidade existente entre tudo o que
aflora do fundo da alma e os movimentos do meio circundante. O seu lirismo
luminoso abriu novo ângulo para a paisagem russa – a natureza tinha alma.
Ele mostrou a beleza real sob a formosura superficial e pôs na paisagem uma
nota comovidamente humana.
Os seus quadros não tinham espaço para a beleza dramática, o alento épico
e heróico e certa ênfase teatral, próprios à maioria das marinhas de Aivazóvski;
traziam mais para o espírito do que para os olhos. Nem tampouco para as
ardências solares e lunares de Kuíndji, tendente a pôr a natureza em cores de
gala; diferiam dos dele por um sentido lírico, sustentado com um humor mais
natural, e por um ar amigo, que envolvia a cena em uma doçura particular.
Em relação a Chíchkin, cujo olhar sobre a natureza a encontrava predomi-
nantemente em atitude monumental e de inspiração épica, Savrássov era menos
botânico e mais psicológico, seguindo uma tendência mais imediatamente
enamorada do motivo. Ele desceu mais profundamente nos sentimentos e
conferiu um prestígio de sublimidade a coisas singelas.
***
Filho de um negociante de tecidos, Savrássov ingressou em 1844, aos
qua­torze anos, na Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura da sua Moscou
natalícia.
Ainda menino, calcorreara-lhe os arredores, pintara muitas vistas suas e
levou para as aulas o que aprendera com os olhos e o coração, confiando neles
com inquebrantável ingenuidade.
Que o fez querer desenhar? Um pouco de tudo: as gravuras das revistas
ilustradas, o lubok (estampa primitiva simples, geralmente com uma inscrição
explicativa) e os sítios retirados, de além do sinuoso rio Moskvá. Essa parte da

268
A Pintura Paisagística Russa do Século XIX

urbe, o Zamoskvariétchie, habitada por gente que se deitava cedo e madrugava


(pequenos comerciantes, nobres empobrecidos e funcionários públicos), guar-
dava ainda o sossego e o silêncio das aldeias, quebrado somente pelo canto dos
galos, pelo latido dos cães e pelo toque dos sinos das suas muitas igrejas; não se
ouvia nenhum apito de guarda, e o passar de uma carruagem pelas suas ruas
de terra fazia as pessoas correrem para a janela. Dali se tinha a melhor vista
do Krémlin, imponente sobre uma colina, com as suas muralhas e torres e as
cúpulas douradas de templos de outras eras, e ela, banhada pelo luar ou pelo
sol, devia também comover o rapazola sensível ao encanto de árvores antigas,
campos, pomares e entardeceres.
Findo o primeiro ano, teve de interromper os estudos, pela doença e morte
da mãe e também, muito provavelmente, pela resistência do pai, que queria vê-lo
atrás do balcão da loja. Retornou em Janeiro de 1848. O prestígio veio-lhe logo,
os jornais falavam elogiosamente dos seus trabalhos e, em 1857, ele assumiu
a seção de paisagem do estabelecimento, provido no lugar do responsável por
ela, Karl Rabuz, falecido pouco antes.
Em 1862, obteve uma bolsa de estudos para o exterior, da Sociedade Mos-
covita dos Amantes da Arte. Trouxe das digressões por Inglaterra, França e
Suíça uma grande admiração a Constable e aos paisagistas ingleses9, e alguns
quadros pintados nos Alpes.
No Outono de 1870, por tricas e nicas dos adversos ao seu espírito indepen-
dente e às suas idéias democráticas, perdeu a habitação funcional, concedida
aos professores da Escola. Isso tornou precária a sua situação financeira, e ele
pediu um afastamento de seis meses, indo para Iaroslavl, com a família, para
atender uma encomenda de paisagens invernais.
Nessa cidade histórica das margens do Volga, nos transtornos da falta de
dinheiro e da morte de uma filha, ocorrida ali, conheceu um alento criador,
que o elevou das suas medianas paisagens de até então para as alturas das obras
destinadas a encantar as sucessivas gerações. Aquele passo doloroso da sua vida,
fadada doravante a ser conturbada e infeliz, parece haver ocasionado a subli-
mação dos seus dotes: o frescor de visão, a comovente inocência na maneira de
ver as coisas, transposta para as suas telas, o entendimento dos movimentos da
natureza e dos seus espaços, a força de sentimento e a delicadeza de expressão.

9. Savrássov escreveu no relatório da sua viagem: “As suas obras [dos paisagistas ingleses]
romperam com o convencionalismo do olhar antes predominante; conservando rigorosamente
o caráter local do colorido e do desenho, eles transmitem com notável fidelidade todos os
variados motivos da natureza. O seu colorido é forte, brilhante, mas verdadeiro”.
Os impressionistas causar-lhe-iam impressão mais favorável na sua volta a Paris, um lus-
tro depois.

269
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Savrássov pintava ainda alguns quadros do seu ciclo do Volga, depois de


breve ida a Moscou para a entrega dos prontos, quando chegou a Primavera,
com o azul do céu de Março, o brilho maior do Sol e as tênues nuvens, como
chumaços de algodão desfeitos, mais brancas do que a neve ainda indecisa em
empapar o chão. Estimulado pelo ar de renovo dessa quadra do ano, que tudo
anima, foi de trem a Kostromá e, em seguida, para Bui, a umas oitenta verstas
mais adiante. Depois, passou uns dias em Molvítino, povoado como qualquer
outro da Rússia, no fim do Inverno: isbás escurecidas pelo tempo, quintais com
árvores nuas, caramelos de gelo pendentes dos beirais, uma igreja antiga, bétulas,
pegas e outras aves bulhentas. Ali encontrou o que vagamente procurara durante
todo o caminho, da janela do comboio, e viu-se diante do motivo faltante à sua
natureza lírica para manifestar-se à vontade e livremente, como arroio luzidio
em caminho fácil – e ele retratou a graça tímida, o encanto singelo da alegria
primaveril, trazida pelo retorno das gralhas.
Na bibliografia russa, fala-se em termos gerais do “princípio lírico”, caracte-
rizador de Savrássov, como a capacidade de tirar das trivialidades da vida um
poema de louçania e força. A sua obra-prima, comunicadora de uma impressão
imediata de júbilo, de paz definitiva e absoluta, quer dizer mais: é um lúcido
sorriso de humildade e ternura diante do milagre dos seres e das coisas, um
aceno de poesia e transcendência, que faz transbordar da imagem o que se
oferece ao espírito.
Injusto dizer que, em comparação com As Gralhas Chegaram e Caminho
Vicinal (de 1873, uma maravilha de luz, conseguida por meio do estudo dos
cambiantes e dos reflexos, com as vibrações da atmosfera, de tanta atração, na
sua complexidade total, para os impressionistas), Savrássov nos deixou apenas
obras de muito somenos valor, embora decaísse cada vez mais.
O seu lirismo de interpretação e a visão realista e doce da natura produ-
ziram ainda trabalhos muito sentidos, de inspiração em assuntos descurados,
oferecidos pelo regionalismo provincial, em que se combina um grande amor
à natureza com uma comovente atenção a pequeninas coisas da vida diária das
pessoas. Ele tomou motivos normalmente considerados desprovidos de status
poético, dando-lhes o frescor e o encanto de uma revelação. Patos, galos e ga-
linhas com pintos no terreiro, gatos no telhado, jarras de lírios no peitoril de
janelas, a erva crescida nos muros de uma casa velha, cortiços de abelhas ao pé
de macieiras em flor, hortas empenhadas em engordar os primeiros repolhos
do ano, tudo isso nos subjuga com a força delicada de algo bom, permanente e
vivo. Tudo isso são fragmentos de um cântico de louvor à terra russa, o motivo
é apanhado na sua íntima expressão, e a cena suscita no espectador uma dilata-
ção da alma, um sorriso de criança acabada de reconhecer o vulto materno.

270
A Pintura Paisagística Russa do Século XIX

Savrássov foi um grande valor, que se deixou aniquilar muito antes de mor-
rer. Em 1875, sem meios de prover o sustento da família, obrigada a mudar-se
para lugares a cada vez piores, ele, no desencontro dos seus altos ideais com a
pobreza e as críticas10, e, também, por fraqueza de caráter, entrou a beber. Isso
excluiu-o completamente da vida artística e cultural de Moscou. É significativo
que, nesse período, ele se haja tornado amigo de Nikolai Uspiénski (1837-1889),
talentoso escritor de tendência crítico-realista, transformado em mendigo
alcoólatra e errante, que daria cabo de si.
À dissolução da família e ao passamento de pessoas queridas, seguiu-se o
golpe final: em Junho de 1882, foi demitido do cargo de professor, pelas segui-
das faltas às aulas11. Era a perda não somente do trabalho e da querida turma
de alunos, mas também da única fonte permanente de renda e do chão sob
os pés; viu-se, então, entregue à própria sorte e com o agravante do adiantado
embaçamento da vista. Tornou a levar desenhos a comerciantes da rua Níkols­
kaia, tal qual fizera na infância, ou trocava-os, com reproduções do seu quadro
mais famoso, por uns tragos ou comida, até terminar os dias em um hospital
para indigentes, em Outubro de 1897.
Antes de começar a arruinar a vida com a vodca, foi mestre abnegado e
formou uma geração de paisagistas. Sobre a sua atividade pedagógica escreveu
um deles, Ígor Grabar:

Savrássov conseguia entusiasmar os alunos, e estes, tomados por uma adoração en-
tusiástica pela natureza, em um grupo bastante coeso, trabalhavam com afinco, tanto
no estúdio, como em casa e ao ar livre. Com os primeiros dias primaveris, toda a classe
apressava-se a deixar a cidade e, em meio à neve, que se derretia, quedava-se a admirar a
beleza da vida despertante. Ao florescer um carvalho, Savrássov irrompia, emocionado,
no estúdio, anunciando isso como um acontecimento extraordinário, e levava consigo os
jovens para lá, para os bosques e campos virentes12.

Chíchkin e Kuíndji estabeleceram a base para o desenvolvimento da pintura


paisagística russa: o desenho (domínio das linhas e formas) e a cor (exploração
da sua força e dos seus cambiantes), respectivamente. Para que a natureza,
de mero fundo de cena já convertida em mundo fragrante e vibrante, pudesse

10. Alguns críticos viviam a repetir que “o talento de Savrássov se fora, com as suas gralhas”.
11. Em 29 de maio, morrera, de tísica, Perov. Homem de personalidade forte e uma indepen­
dência um pouco anti-social, era até temido pela diretoria da Escola e servia de uma espécie de
anteparo protetor para o amigo Savrássov. Com a sua morte, ela, dez dias depois, usou de sem-ce­
rimônia para livrar-se do paisagista, que, a bem da verdade, havia já muito descurava o magis­té­rio.
12. Citamos pelo livro: V. Petrov, Savrássov, Moscou, Biély górod, 2000, p. 32.

271
Cadernos de Literatura e Cultura Russa

conseguir a expressão da sua vida e da sua poesia interiores, faltava o talento


lírico de Savrássov.
Ele introduziu na paisagem uma nota comovidamente humana e mostrou
quão perto da natura estavam as alegrias e as tristezas dos compatriotas. En-
riqueceu qualitativamente o gênero, a partir desta idéia essencial: a natureza
pode captar os pensamentos e os sentimentos do homem.
O que havia de força e fertilidade nessa tendência encontraria o seu cabal
intérprete e desenvolvedor em Issaak Levitan, o maior paisagista da Rússia, a
quem se dedicará a continuação destas notas.

***

Abstract: In this paper we talk about the Russian landscape painting and its development
in 19th century, specially about some of the best painters (Aivasovsky, Kuindji, Shishkin and
Savrasov).
Keywords: Landscape; nature; realism; Aivazovsky; Kuindji; Shishkin; Savrasov.

272
Ivan Chíchkin. Campo de Centeio. 1878.

Fiódor Vassíliev. Prado Molhado. 1872.


Arkhip Kuíndji. Bosque de Bétulas. 1879.

Ivan Aivazóvski. A Nona Vaga. 1850.


Aleksiéi Savrássov. As Gralhas Chegaram. 1871.
Aleksiéi Savrássov. Caminho Vicinal. 1873.
Instituto de Pesquisa:
Uma Forma da Arte,
que nos é Contemporânea1
Kristina Dunáeva

Resumo: A proposta deste texto é descrever as atividades do Instituto de Cultura Artística


de Petrogado entre 1921 e 1926, bem como apresentar sua estruturação prática e teórica
durante esses anos.
Palavras-chave: Artes plásticas; vanguardas russas; arte russa.

Este texto tem por objetivo a descrição das atividades teóricas e práticas do
Instituto de Cultura Artística2 – INKHUK (Institut khudójestvennoi kultúry)
de Petrogrado e abrange o período 1921-1926. Institutos de cultura artística3
existiam em Moscou, São Petersburgo, Vítebsk e outras cidades. O de Pe­tro­
gra­­do de início chama-se Museu de Cultura Artística – MKHK (Muziéi khu­dó­­
jes­tvennoi kultúry) e, a partir de 1924, GINKHUK (Instituto Estatal de Cultu­ra
Artística – Gossudárstvenny institut khudójestvennoi kultúry). Eviden­te­mente,
qualquer mudança no nome de uma instituição, principalmente, quando­efe-
tuada pelos fundadores, é muito significativa; permito-me, porém, agrupar as
experiências artísticas sob o nome de INKHUK, já que, como veremos adian-
­te, se trata da mesma idéia posta em prática pelo mesmo grupo de artistas.­

1. Expressão de Kazímir Maliévitch citada em V. Rakítin, Nikolái Mikháilovitch Suiétin,


Moscou, 1998.
2. O conceito de “cultura artística” é definido numa conferência dedicada à questão da
formação dessa nova instituição museológica (Petrogrado, 1918).
3. O Instituto de Cultura Artística formou-se na base do Instituto do Departamento de
Arte (IZO) do Comissariado do Povo para o Ensino (NARKOMPROS – Naródny komissariát
prosvechtchiénia).
Caderno de Literatura e Cultura Russa

A idéia de criar um “museu de arte moderna” aparece ainda em 1912 (Ióssif


Chkólnik). Em 1918, toma-se a decisão de criar um fundo de obras de arte
moderna e contemporânea. Vladímir Tátlin ocupa-se dessa tarefa como chefe
da comissão moscovita de aquisições. As obras adquiridas estão distribuídas
entre Moscou e Petrogrado. Discutem-se os princípios de escolha das obras e de
exposição. Anatóli Lunatchárski4 estabelece uma lista de 143 artistas modernos e
contemporâneos cujas obras deverão ser representadas nos acervos dos museus.
O Museu de Arte Moderna de Petrogrado é fundado em abril de 19215. Instalado
no prédio do ex-hotel de Miátliev, exerce função científica. Estudam-se nele as
novas correntes da arte, a começar do impressionismo. Duzentas e cinqüenta
e sete obras de 69 artistas são expostas nas suas seis salas. Natan Altman é o
primeiro diretor, substituído em 1923 por Kazímir Maliévitch.
O INKHUK de Moscou é criado em maio de 1920. Vassíli Kandínski, como
primeiro diretor, desenvolve a concepção do instituto, que tem por princípios
de pesquisa a síntese e a intuição e por objetivos os estudos dos elementos
artísticos, da construção e da composição. O trabalho científico é dividido em
duas partes – a série de palestras e as atividades experimentais. Um valor im-
portante atribui-se aos estudos dos valores estéticos da arte primitiva (ou seja,
da arte infantil, da arte dos povos ditos “primitivos”, da arte pré-histórica, dos
primitivistas e do primitivismo moderno)6. Como líder do grupo do trabalho
da análise objetiva (formado no começo de 1921), Aleksandr Ródtchenko opõe-
-se à concepção da necessidade interior da criação de Kandínski (considerada
subjetivista) e dirige as atividades do INKHUK aos problemas da construção
e, depois, à arte produtivista. Kandínski sai do Instituto e cria a Academia das
Ciências da Arte da Rússia (RAKHN – Rossíiskaia acadiémia khudójies­tvie­nnykh
naúk), onde dirige o departamento psicofisiológico. Um fato importante: o
INKHUK de Moscou está estreitamente ligado aos VKHUTEMAS7 (Estúdios
Superiores Artístico-Técnicos – Výschie khudójiestvienno-tekhnít­cheskie mas­
terskie), um novo tipo de escola de artes, nascido em Moscou após a experiên-
cia dos SVOMAS (Estúdios Livres – Svobódnye masterskie), em 1920, quando
às faculdades de pintura e de escultura se juntam as faculdades de produção
(de arquitetura, artes gráficas, trabalho de metal e de madeira, têxtil, cerâmi-

4. Comissário do Povo para o Ensino entre 1917 e 1929.


5. De Moscou em 1919; Vassíli Kandínski é o secretário científico.
6. O programa de Bauhaus de Walter Gropius é apresentado no mesmo ano.
7. Em 1927, os VKHUTEMAS são substituídos pelo VKHUTEIN (Instituto Superior
Artístico-Técnico – Výchtchi khudójestvenno-tekhnítcheski institut), que, por sua vez, é fechado
em 1930.

278
Instituto de Pesquisa: Uma Forma da Arte, que nos é Contemporânea

ca). A originalidade dos VKHUTEMAS consiste na criação de um curso prope­


dêu­tico de dois anos, que precede a especialização. O programa de Bauhaus
para o curso de ensino também incluía um curso geral que oferecia uma base
teórica comum aos alunos. Pois a teoria, escreve Walter Gropius, não é uma
receita para a produção das obras de arte, mas, sim, um elemento essencial da
construção coletiva; ela é fundamental para a constituição de uma base comum,
sobre a qual os indivíduos poderão criar juntos a unidade de uma obra superior;
a teoria não é um feito do indivíduo – é uma contribuição das gerações8. O
método de ensino dos VKHUTEMAS depende dos mestres dos ateliês e baseia-
-se na análise objetiva das formas. Já no anúncio da inauguração das SVOMAS
o sistema de ensino das disciplinas artísticas científicas é declarado um curso
magistral. O INKHUK de Moscou e os VKHUTEMAS têm os mesmos profes-
sores, entre eles Aleksandr Ródtchenko, Vladímir Tátlin, Varvara Stepánova,
Liubov Popova, Anton Piévsner, Nadiejda Udaltsova, Aleksandr Viesnin, Óssip
Brik, Robert Falk e outros.
Comparando os institutos de Moscou e de Petrogrado, podemos notar que
o último teve um destino mais feliz, pois nele durante poucos anos foi possível
a convivência e o trabalho conjunto de artistas pertencentes a tendências dife-
rentes, fato que enriqueceu muito o panorama artístico da Rússia do segundo
decênio do século XX.
Mikhail Matiúchin, Nikolai Púnin, Vladímir Tátlin, Kazímir Maliévitch,
Pável Filónov e Pável Mansúrov desenvolvem seus trabalhos no Instituto de
Pe­trogrado. Entre 1921 e 1926, Maliévitch cria seus arquitétonos, elabora e di-
vulga a teoria do elemento adicional, desenvolve com os seus alunos o desenho
industrial suprematista; Filónov escreve a “Declaração da eclosão universal” – a
segunda versão da teoria da arte analítica (a primeira em 1912) e é líder do
Grupo dos Mestres da Arte Analítica (1923); Matiúchin inventa nesse perío­do
o método da visão ampliada (1923); Tátlin e seu estúdio montam Zanguezi,
o poema dramático de Velimir Khliébnikov (1921). No instituto, estudam-se
os processos e as leis da constituição das formas plásticas, a especificidade e os
mecanismos da evolução dos sistemas modernos de pintura (o impressionis-
mo, o cezannismo, o cubismo, o futurismo, o suprematismo), prepara-se uma
meto­do­logia da análise objetiva das artes plásticas baseada nos princípios e nos
procedimentos próprios às ciências exatas. Essa preciosa exatidão da análise
formal dos fenômenos artísticos foi possível graças à elaboração de um aparato
terminológico muito preciso; basta citar alguns dos termos usados: sistema,
elemento adicional, incubação, dosagem pictural etc. Naturalmente, essa ter-

8. Idee und Aufbau des Staatlichen Bauhaus Weimar, Munich, Bauhaus Press, 1923.

279
Caderno de Literatura e Cultura Russa

minologia não pode ser tomada literalmente, pois se trata de um jargão, uma
linguagem específica que por meio de análogos busca descrever ou explicar
certos procedimentos de pesquisa.
O instituto é dividido em sete departamentos, cada um dos quais desenvolve
sua metodologia de pesquisa e persegue seus objetivos peculiares:
1) Departamento Formal-teórico (FTO – formalno-teorietítchieskii otdiel),
posteriormente setor da cultura pictural. Chefiado por Maliévitch, os mem-
bros, na sua maioria, são alunos dele de Vítebsk, integrantes dos UNOVIS
(Afirmadores da Arte Nova – Utvierdíteli Nóvovo Iskustva): Iliá Tcháchnik,
Lazar Khidekel, Liev Iúdin, Vera Ermoláeva, Konstantin Rojdiéstvenski,
Alek­san­dra Lepórskaia e outros. O departamento trabalha na elaboração
de análises puramente teóricas e históricas de cultura artística.
2) Departamento da Cultura Orgânica, dirigido por Matiúchin (colaboradores:
Boris, Maria, Ksiénia, Gueórgui Ender e Nikolai Grinberg) – investiga as pro-
priedades inconscientes dos sentidos tanto nas suas relações dos cambiantes,
quanto nas suas amplas possibilidades de percepção dos estímulos da visão,
do tato e da audição. Como um problema à parte, tratam as investigações
dos centros periféricos da visão. O departamento pesquisa os princípios
lógicos e psicológicos da percepção dos elementos da arte. A cor, o volume,
o espaço estudam-se por um ser humano orgânico, com todos os órgãos
dos sentidos.­
3) Departamento da Cultura Material (ou dos Materiais) – dirigido por Tátlin
até o final de 19259. Aqui as obras da arte são examinadas sob o aspecto da
construção e do material; posteriormente, será transformada na Seção de
Arquitetura Suprematista e, depois, no Laboratório da Ordem Suprematista,
em que, sob a direção de Nikolai Suiétin, serão criadas as formas tridimen­
sionais do suprematismo.
4) Departamento Experimental, dirigido por Mansúrov – investiga a diferença
entre as formas da construção dos organismos, incluindo os seres humanos
e tomando em consideração as condições especiais dependentes dos fatores
externos (o clima, a posição geográfica etc.).
5) Departamento de Ideologia Geral ou de Metodologia Geral da Arte, dirigido
até 1925 por Filónov e, depois, por Púnin, com a colaboração de Suiétin.
Utiliza o conhecimento de todas as divisões do Instituto para elaborar uma
teoria sintética, que integra cada um dos esforços da nova arte e, usando os
métodos e a definição dos conceitos estéticos fundamentais, prepara o ca-

9. Em 1925, Tátlin transfere-se para Escola Superior de Kíev, onde dirige a seção de teatro,
cinema e fotografia, a partir de 1927 é professor dos VKHUTEMAS de Moscou.

280
Instituto de Pesquisa: Uma Forma da Arte, que nos é Contemporânea

minho para uma nova, prática e objetiva realização da arte. O departamen-


to é encarregado de definir o conteúdo exato de conceitos como “espaço”,
“forma”, “composição” e outros.

Anexos a esses departamentos dentro do Instituto funcionam


6) Laboratório fonológico. Diretor: o poeta Ígor Teriéntiev, depois Tufánov, com
a colaboração das OBERIU (Sociedade da Arte Real – Ob’iediniénie rieálnovo
iskustva): Daniil Kharms, Vvediénski e outros.
7) Grupo dos Mestres da Arte Analítica de Filónov, que, após ter deixado a
direção do Departamento de Ideologia Geral, cria tal grupo. Os artistas
trabalham cada átomo da tela comparada com um organismo vivo, com o
corpo humano, pois o mundo percebível é composto de miríades de ele-
mentos, orgânicos e inorgânicos, concretos e abstratos, mentais e corporais,
naturalistas e intuitivos.

Há grande preocupação com a divulgação das pesquisas e dos resultados


práticos do Instituto. Com esse objetivo, os departamentos de cultura pictural
e orgânica participam da exposição “Artes Gerais” (Moscou, 1925), em que
apresentam 23 telas, 28 aquarelas e 30 desenhos. Maliévitch apresenta tabelas
e gráficos que ilustram a teoria do elemento adicional na plenária da seção
psicofi­sio­lógica da Academia das Ciências da Rússia.
A metodologia de pesquisa e de funcionamento desse museu-instituto foi
proposta por Filónov no congresso dos funcionários de museus soviéticos. Ele
aponta para a criação do Instituto de Pesquisa de Cultura da Arte Moderna,
que incluiria o Museu de Arte Nova e Moderna com vários departamentos, tais
como, por exemplo, o Departamento de Ideologia Geral, que estudaria as idéias­
e a gênese das correntes artísticas, as causas de seu surgimento e decadência e
as influencias recíprocas; as seções de análise dos ícones, da produção popular
contemporânea, da produção industrial, do teatro etc.10. A metodologia de
pesquisa, segundo Filónov, basear-se-ia na análise descritiva, histórica e clas­
si­fi­catória dos fenômenos.
Púnin, ao mesmo tempo, critica o princípio cronológico da exposição dos
museus existentes e insiste numa preocupação maior com a cultura artística
– daí a idéia do Museu de Cultura Artística. Tal conceito de cultura artística,
comparado freqüentemente com o conceito de “arquitetura” da Bauhaus, signi-
fica uma plenitude da criação artística baseada na invenção em vez da mimese.
O princípio de cultura artística parte da obra de arte em si, da sua singularidade;­

10. Museu Dentro de Museu, São Petersburgo, Palace Editions, 1998, pp. 363-364.

281
Caderno de Literatura e Cultura Russa

a sua contextualização vem posteriormente. (Seria isso um princípio aris­to­té­-


lico?) Critica-se o conceito de linearidade e proclama-se a liberdade de partida
para uma análise livre, que possibilite a criação quase aleatória de conjuntos
examinados sob vários aspectos e com vários pressupostos, assim como a in-
finidade de tratamentos do objeto e a inexistência de uma verdade absoluta.
Entende-se que a ligação entre os fenômenos diferentes, em vez de exterior
(his­tórica ou condicionada ao uso cotidiano), é interior ou genética, e os
fenômenos aproximam-se ou afastam-se partindo da sua existência artística.
Púnin exemplifica essa teoria com a cadeia de invenções, que demonstra a
dinâmica do círculo: 1) a pedra que cai da montanha; 2) a roda pré-histórica;
3) a charrete; 4) o trem a vapor; 5) o automóvel – aqui a dinâmica do círculo é
revelada a partir do princípio da invenção. “Ou – diz ele – podemos imaginar
como princípio o nosso conceito de espaço e analisar as obras de arte por tal
prisma ou partindo do material, da cor etc.”11.
As conclusões do Departamento de Ideologia Geral partem de uma base
sólida, dos trabalhos práticos empreendidos dentro do Instituto.
Matiúchin, que tinha o seu estúdio “de realismo espacial” nos SVOMAS, no
Instituto de Cultura Artística, concentra-se na confirmação científica da teoria
artística da “visão ampliada”. Com seus alunos, estuda as interações entre a cor
e a forma e as mudanças destas na “visão ampliada”, e tais mudanças levam a
uma “nova dimensão do espaço”, baseada no desenvolvimento orgânico das
partículas elementares e das células. No Departamento de Cultura Orgânica,
é o criado Zorved (ver+saber), centro de pesquisa dedicado especificamente
aos exercícios da visão, que consistem no ato consciente para unir, simultane-
amente, não somente a visão central do olho, mas também a visão das zonas
periféricas da retina – para ativar a visão acomodada. Investiga-se o movimento
dos volumes que vai do interior ao espectador. Realizam-se vários estudos, em
que a visão ampliada se explora vertical e horizontalmente. Nos seus estudos
da sem-esfera, Matiúchin cria um espaço sem margens e sem direções, que
forma uma única profundidade sem fundo. Vários gráficos e tabelas realizados
pelo departamento explicam o trabalho. Maliévitch os expõe na Polônia e na
Alemanha, em 1927.
Maliévitch insiste na análise centrífuga dos fenômenos, partindo do núcleo
para o descobrimento das possíveis influências, do contexto, da integração
dentro de algum sistema definido. Por sistema entende-se um todo organizado,
um conjunto de funções ou partes que formam um todo complexo ou unitário e
cuja subdivisão em partes produz valores parciais, que, somados, não formam o

11. Museu Dentro de Museu, São Petersburgo, Palace Editions, 1998, pp. 364-367.

282
Instituto de Pesquisa: Uma Forma da Arte, que nos é Contemporânea

todo. A visão sistêmica procura entender a influência das partes entre si, e não
apenas cada uma isoladamente. Segundo a visão sistêmica, é preciso contex­tua­
lizar as partes para entender o funcionamento do todo. Partindo desse prin­cípio
e considerando a cultura artística e, mais restritamente, a cultura pictural, o
departamento de Maliévitch analisa as causas da mutação dentro dos sistemas
e as transformações de um determinado sistema em outro. O Departamento
Formal-Teórico (de cultura pictural) é dividido em dois setores – 1o A – da cor
e 2o B – da forma. Os resultados práticos generalizam-se no gabinete teórico.
Analisam-se todos os elementos da obra: as linhas retas, as linhas curvas, as
junções das linhas curvas e retas (os nódulos simples das formas), os porme-
nores e os fragmentos. O desenvolvimento da linha é visto como seqüência
do simples ao complexo – da unidade linear ao princípio do surgimento de
uma construção inteira. É descoberta a linha curva do cubismo – o elemento
adicional específico do cubismo; a linha curva “fibrosa” – a unidade plástica do
cezannismo; o plano retangular como elemento adicional do suprematismo.
A pintura é dividida em tsviétopis (equilíbrio das cores, a “impermeabilidade”
das cores bem definidas) e jívopis (a interpenetração dos tons, a pintura dos
ma­tizes).
E afinal, qual era o objetivo do trabalho do Instituto?
“Desaparece o conceito velho de artista, pois nasce o artista-cientista”
– escreve Maliévitch em 192412, ainda diretor do GINKHUK. A criação
dessa instituição única de pesquisa científica é vista como a aparição de um
novo tipo de criação artística, de uma nova estratégia artística. A criação
espontânea é substituída pela arte-ciência, ou seja, por uma atividade de
pesquisa específica, cujo objetivo é a elaboração de uma metodologia artística
universal, pois vários pesquisadores revelam preocupação com a separação
entre o fazer e o saber, o conhecer. A superação do momento no qual a teo-
ria e a prática passam a ser dois campos diferentes da aplicação da vontade
artística é um dos principais objetivos do instituto. Suas atividades foram
interrompidas em 192613, quando também se desfizeram os grupos formados
nos departamentos e se abandonaram os trabalhos conjuntos. A coletânea dos
artigos de Maliévitch, Púnin e Matiúchin (GINKHUK: Cultura, Teoria), que
devia apresentar a síntese dos resultados do trabalho do instituto, nunca foi
editada.

12. L. Jadova, GINKHUK de Leningrado// Problemas da História da Arquitetura Soviética.


N. 4, Moscou, 1978, p. 26.
13. O INKHUK de Moscou é fechado em 1924.

283
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Abstract: The purpose of this paper is to describe the practice and the theory of the
Institute of Artistic Culture, wich existed in Petrograd in 1921-1926.
Keywords: Visual arts; Russian vanguards; Russian art.

284
A Educação em Museus: A Exposição
“500 Anos de Arte Russa”
Mozart Alberto Bonazzi da Costa1

RESUMO: Esse texto apresenta resumidamente alguns aspectos da educação em exposi-


ções temporárias e o partido adotado pela consultoria pedagógica (Griphos Cultural) para
fornecer aos visitantes uma boa quantidade de informações consistentes a respeito da
arte e cultura do povo russo para a exposição “500 Anos de Arte Russa” (Brasil Connects,
São Paulo, Brasil, 2002).
PALAVRAS-CHAVE: Educação; exposição de arte; memória; patrimônio cultural; cultura ma-
terial.

A exposição “500 Anos de Arte Russa” reuniu, em São Paulo, um raro con-
junto de obras de arte, pertencentes à coleção do Museu Estatal Russo de São
Petersburgo, cidade que, neste ano de 2003, completa três séculos! A mostra,
realizada entre 8 de junho e 8 de setembro de 2002, no Pavilhão Lucas Nogueira
Garcez (Oca), no Parque do Ibirapuera, teve segmentos dedicados à arte re-
ligiosa, ao simbolismo, à arte popular, à vanguarda, ao realismo socialista e à
arte contemporânea.
Buscando características eminentemente russas, um recorte curatorial
determinou para essa exposição a supressão de obras do universo cortesão do
século XVIII (por conterem forte influência estrangeira). Além dos ícones pin-
tados entre os séculos XVII e XIX, exibiram-se obras da passagem do século

1. Mozart Alberto Bonazzi da Costa é Mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Unesp,
Professor dos cursos de Comunicação Social e Design das Faculdades Oswaldo Cruz (SP); foi
Conservador-Restaurador do Museu Histórico e Cultural de Jundiaí (SP); na Griphos Cultu-
ral, foi Consultor Pedagógico do Programa Educativo e Social da Brasil Connects, para a Ex-
posição “500 Anos de Arte Russa”.
Caderno de Literatura e Cultura Russa

XIX para o século XX, geradas em importantes movimentos artísticos russos


como “O Mundo da Arte” e posteriormente no que passou a ser conhecido
como a “Era Diáguilev” (Ballets Russos).
Para obter uma organização visual dos espaços expositivos, no sentido de
facilitar a relação entre o público e as obras, os cenógrafos Daniela Thomas e
Felipe Tassara optaram por uma certa neutralidade dos suportes, para explicitar
a rica arquitetura do prédio projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer no início
dos anos 50. O diálogo entre as obras e a arquitetura ocorreu naturalmente, já
que o arquiteto historicamente tem-se identificado com muitas das propostas
geradas pelas vanguardas russas.
Já em 1903, na Rússia, Stanislávski e o cenógrafo Simov conferiram especial
importância à iluminação cênica, defendendo uma ruptura com o espaço teatral
convencional, enquanto buscavam captar “estados de alma”, por uma fidelidade
conceitual absoluta, como quando montaram A Ralé, de Górki (Mantovani,
1989, p. 23).
O público brasileiro certamente se identificou com os diversos aspectos
relativos à cultura do povo russo presentes nas obras expostas. Essa mostra
constituiu um privilégio, inclusive porque muitos dos originais expostos aqui
permaneceram guardados (e até escondidos), durante grande parte do século
XX, até que a Perestroika e a Glasnost refletissem as novas tendências que se
faziam sentir na Rússia, após 70 anos de autoritarismo.
No precioso conjunto de originais expostos, a religiosidade sobressai como
um fator que impregna desde os ícones tradicionais até as obras representa-
tivas das vanguardas. Mais do que trabalhos artísticos, as obras constituem
espaço destinado à manifestação do sublime, uma janela ou passagem que tem
como finalidade conduzir o observador a um contato com a fonte primordial,
muito além de anseios representativos de uma arte mundana (na Antigüidade,
Platão já apontava para a impossibilidade de representar por meio de suportes
materiais o que só seria possível à essência do pensamento, a qual chamou de
idea).
Conceitos como esses chegaram à antiga Rus (como era conhecido o país
até cerca de 988 da nossa era), quando o grão-príncipe Vladímir, após analisar
diversas religiões, escolheu o Cristianismo Ortodoxo, proveniente de Bizâncio,
como a religião oficial da Rússia.
A tridimensionalidade da escultura pode aguçar os sentidos físicos além das
possibilidades da bidimensionalidade da pintura. Os ortodoxos mantiveram,
entre os mandamentos divinos, a proibição bíblica contra a representação­
de ídolos de pedra, madeira ou metal, o que se restringiu às obras que apre­
sentassem volumes (que poderiam enganar mais facilmente os sentidos), em

286
A Educação em Museus: A Exposição “500 Anos de Arte Russa”

uma tentativa de banir todos os resquícios de idolatria pagã, favorecendo, as-


sim, a pintura, cujo aspecto plano não induziria os fiéis ao “erro”.
Os pintores de ícones deveriam ser fiéis ortodoxos, que atingissem a prepara­
ção para o seu ofício após orações e jejuns, em busca de uma pureza de alma.
Aban­donando-se a uma vontade superior, tornar-se-iam simples instrumentos,
anônimos, não assinando (e, assim, eliminando quaisquer resquícios de indi-
vidualidade...) os trabalhos cuja criação seria creditada a toda a Igreja.
Empregavam cores diluídas em água benta, às quais misturavam minúscu-
los fragmentos de relíquias de santos. As tonalidades conferidas aos rostos e
mãos das criaturas celestiais não poderiam assemelhar-se às da carne humana.
A veneração dos fiéis não seria dirigida ao ícone em si, mas ao próprio santo
representado.
Com tradições que remontam aos tempos pré-históricos, o povo russo
demonstrou, desde o início, uma atitude libertária em relação aos modelos
impostos por Bizâncio. Embora a cristianização, fundamental para a unificação
do país, tenha fornecido um impulso à cultura russa, as velhas tradições eslavas,
pagãs, subsistiram, mantendo o caráter de religião da natureza, embasada por
rica mitologia.
Por terem sido, no passado, considerados inofensivos pela Igreja russa, al-
guns motivos pagãos ainda podem ser encontrados no artesanato e em algumas
formas de expressão popular. Como exemplo, mantém-se viva a tradição da
produção de ovos de barro pintados (assim como nos exemplares manufatu-
rados por Fabergé, em cristal delicadamente lapidado, inicialmente produzidos
por encomenda do czar e, hoje, em escala comercial), que, embora associados à
Páscoa cristã, são originários de modelos “pagãos” que simbolizavam a prima-
vera e a fertilidade (reminiscências de uma cosmovisão pagã também podem
ser encontradas em alguns contos fantásticos de Gógol)...
Profundas influências religiosas presentes em todos os movimentos artísticos
russos chegaram até as primeiras décadas do século XX, quando, com base nas
suas raízes culturais, artistas, como Natália Gontcharova, Lariónov, Ma­liévitch,
Tátlin e Filónov, inauguraram uma modernidade, que promoveu na arte russa
profundas mudanças afinadas com o momento sociopolítico do país, o que
posteriormente influenciou toda a produção artística mundial.
Buscando o primado do espírito, Vassíli Kandínski escreveu em suas me-
mórias: “[...] a perfeição é aparente, efêmera, e não poderia haver forma per-
feita sem conteúdo perfeito: o espírito determina a matéria [...]”. Na mesma
direção,­em 1922, Maliévitch escreveu no “Deus não foi destronado”: “[...] é do
repouso eterno, esse lugar inexpugnável, que nasce toda a imagem real: o ícone
verdadeiro [...]”.­

287
Caderno de Literatura e Cultura Russa

A exposição “500 Anos de Arte Russa” apresentou um segmento dedicado à


arte popular que, naquele país, embasou grande parte da produção das van-
guardas, no início do século XX. É significativo o fato de que, enquanto alguns
artistas modernos como Braque, Picasso, Vlaminck e Derain, se dedicaram ao
estudo das refinadas sínteses geométricas presentes nas máscaras africanas exe-
cutadas em madeira, os artistas russos encontraram nas suas próprias tradições
os elementos necessários à geração de uma nova estética.
Essa experiência potencialmente enriquecedora para o povo brasileiro, que
também possui uma vasta cultura popular, poderia embasar a busca por valores
nacionais, tão úteis ao fortalecimento dos sentimentos de identidade e ci-
dadania.

Mas aí estão os trabalhos artesanais, as flores feitas por mãos sábias, de velhas pacien-
tes, as colchas coloridas como quadros abstratos, aproveitamento de retalhos, de restos de
fazenda. Aí estão os fifós que iluminam as casas mais pobres, aproveitamento dos vidros
vazios de remédios e pedaços de lata.
Mostrando a arte do povo e, ao mesmo tempo, sua vida. Aí está um amplo docu-
mentário sobre as religiões afro-brasileiras – a macumba, o candomblé – tão poderosas
em sua persistência sofrida, vencendo o tempo e as perseguições, vencendo os poderosos
e os pernósticos – vitória do povo, instrumentos de música negra, roupas de santos em
seu esplendor, figuras de orixás misteriosos. Esculturas da África e da Bahia, a mostrar a
nossa ligação com as terras de Aioká. A cerâmica popular de toda a beleza, as carrancas das
barcas do rio São Francisco, rio da nossa unidade e exemplo da força e da resistência do
homem brasileiro. Esteiras, redes, panelas de barro, potes para água fresca, aquilo de que o
homem se serve para o cotidiano da vida, pobres objetos que iluminam sua pobreza com
a poesia de um desenho, de uma flor, de uma figura. Tudo o que o povo toca, nesta terra
da Bahia, transforma-se em poesia, mesmo quando o drama persiste. [...] (Jorge Amado,
1959, in: Araújo, 2000, p. 34).

Mas as bases que sustentavam esse desenvolvimento ímpar sofreriam abalos


suficientemente fortes para gerar um atraso ainda não superado neste início de
século XXI. O apoio às vanguardas artísticas foi mantido até a morte de Liénin,
em 1924, e a sua sucessão por Stálin (processo que se estendeu até 1932), cuja
ideologia totalitária fechou as fronteiras da União Soviética, isolando o país do
resto do mundo e gerando uma arte totalmente submissa ao poder.
Após a morte de Stálin, em 1954, iniciou-se o arrefecimento do rígido siste-
ma que dominou a Rússia por várias décadas. Entre os anos de 1960 e 1980, os
chamados artistas não-conformistas passaram a ironizar o regime político rus-
so, prenunciando as mudanças que se aproximavam. Suas exposições aconte-

288
A Educação em Museus: A Exposição “500 Anos de Arte Russa”

ciam secretamente em apartamentos e pequenos clubes e o seu público era


constituído predominantemente por intelectuais. Após a gradual conquista
da liberdade de culto religioso e de expressão, tornou-se possível o contato
mais próximo com a cultura desse país, que apresenta muitas semelhanças
com o Brasil, como a enorme extensão territorial e a reunião de várias etnias
na formação da sua cultura.
Na exposição “500 Anos de Arte Russa”, foi possível ter contato com originais
que, depois da Revolução de Outubro, ainda não tinham sido contemplados nem
sequer pelo povo russo, como é o caso do pano de boca para o teatro Elisium,
pintado por Lev Bakst em 1906. A obra, enrolada e embalada em 1917, só foi
desenrolada para a exposição pública, em São Paulo, na Oca...
Após o término da exposição, o Departamento de Letras Orientais, área de
Língua e Literatura Russa – FFLCH-USP, realizou a Mesa Redonda “500 Anos
de Arte Russa: Ecos de uma Exposição”, para fomentar os estudos a respeito da
cultura daquele país. Foram apresentadas as seguintes comunicações: “Vanguar-
das Russas no Brasil”, pelo Prof. Dr. Boris Schnaiderman (USP); “Khliébni­kov
e Filónov”, pela Profa. Dra. Aurora F. Bernardini (USP); “Volta às Origens: O
Neo-primitivismo nas Vanguardas Russas”, pela Profa. Dra. Elena N. Vássina
(USP); “O Instituto de Cultura Artística: Teoria e Prática dos Artistas Apresen-
tados na Exposição”, pela Profa. Kristina Dunáeva (Unicamp); e este texto, de
nossa autoria, que aqui se apresenta integralmente.

A Equipe de Educadores

Integraram a equipe de educadores 42 profissionais que atuaram direta-


mente junto ao Programa Educativo e Social2, para o atendimento de grupos
de escolares do ensino pré-escolar ao nível superior, públicos especiais (aten-
dimento especializado a portadores de deficiências), comunidades e público
espontâneo.
Os educadores passaram por um curso centrado na temática da mostra,
ministrado por especialistas em arte e cultura russas, além de representantes
da equipe de cenografia da exposição e conservadores do Museu Estatal Russo.

2. Para definir a linha de atuação do Setor Educativo da exposição “500 Anos de Arte
Russa”, a Brasil Connects convidou a empresa Griphos Cultural para a prestação de serviços
de consultoria, docência e elaboração de materiais educativos, planejamento, implantação e
gerenciamento do serviço educativo, seleção e treinamento da equipe de educadores, entre
outras atribuições.

289
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Ministramos um curso introdutório à exposição aos professores e líderes


comunitários, com o objetivo de fornecer subsídios para que esses agentes di-
fusores de informação levassem aos seus alunos e comunidades os conteúdos
presentes na mostra, antes de suas visitas.
Durante as aulas e as visitas, pudemos observar algumas tendências:
• As escolas públicas visitaram a exposição em maior número do que as par-
ticulares.
• Nem todos os grupos compareceram à exposição acompanhados por pro-
fessores de educação artística, tendo sido a maioria dos grupos conduzida
por professores de áreas correlatas ao tema da exposição, como literatura e
língua portuguesa, história, geografia, e outras.
• As questões mais levantadas pelos grupos disseram respeito, em ordem
decrescente, aos seguintes temas: estética, história, técnicas artísticas.
• O fornecimento de informações prévias aos alunos, em sala de aula, pode
ser determinante para o aproveitamento da visita por eles. Desse modo, na
recepção dos grupos podem ser apresentados seus interesses aos educadores
(monitores), para que o roteiro da visita seja adequado às suas necessi-
dades.
• Segundo informações colhidas com os professores, uma minoria oferece
trabalhos preparatórios, em sala de aula, antes da visita dos alunos; enquanto
que a maioria realiza trabalhos posteriores à visita com os alunos, como
releituras de obras e produção de trabalhos plásticos/cênicos, estudos de
estética e história da arte, desenvolvimento de pesquisas, produção de tex-
tos e debates, relatórios de visitas, avaliação sob forma de prova.

A Educação em Museus

A expressão “o contato com o original é insubstituível...” pode concentrar


muitos significados ligados à necessidade de buscar meios que aproximem o
observador e a obra de arte. Vários tipos de abordagem são possíveis, desde a
apresentação de informações históricas a respeito dos autores e dos períodos
nos quais as obras foram geradas (de extrema importância para a compreensão
das obras por grande parte do público visitante), até a disposição das obras
nos espaços expositivos, sem a apresentação de nenhum tipo de informação,
privilegiando-se aspectos perceptivos, para que o visitante extraia dos origi-
nais o que o seu repertório pessoal lhe permitir (o que mais se ajusta aos pú-
­­blicos que já possuem um conhecimento anterior).

290
A Educação em Museus: A Exposição “500 Anos de Arte Russa”

Além de envolver os sentidos físicos (visão, audição, tato, paladar, olfato), o


contato direto com originais poderá causar impressões que, no observador,
chegarão a atingir com intensidade o campo das emoções. Experiências tecno­
lógicas buscam reproduzir certas reações vivenciadas pelo observador frente
à realidade, porém, apesar da constante evolução dos equipamentos digitais,
ainda não foi possível atingir a definição de imagem da película cinematográfica,
quanto mais a substituição do contato com o real, em toda a sua diversidade
sensorial e perceptiva.
Por meio da educação artística se pode construir um processo permanente e
sistemático de aprendizagem, calcado na cultura material gerada por civilizações
em locais e períodos históricos diversos, como fonte primária de conhecimento,
o que poderá significar, para o indivíduo e a coletividade, um consistente en-
riquecimento cultural.
Esse sistema visa a condução de públicos de diversas faixas etárias a um ativo
processo de conhecimento, apropriação e valorização de sua herança estético-
-cultural, podendo vir a possibilitar um aproveitamento mais efetivo desses bens
culturais e favorecer a concepção e concretização de novos conhecimentos, em
um envolvente processo criativo.
Todas as informações a respeito de patrimônio cultural nacional (e interna-
cional) que se puder veicular para as comunidades poderão beneficiar os seus
integrantes, pelas potencialidades que detêm no sentido de fortalecer os senti-
mentos de identidade e cidadania, o que poderá ultrapassar a produção artística,
exemplificando concretamente, por meio da cultura material, a superação de
obstáculos vitais, alcançada pelas gerações ancestrais (o registro da experiência
pode favorecer o processo evolutivo, colaborando para a redução de erros).
A educação artística pode constituir um instrumento de alfabetização esté-
tica, conduzindo o observador a identificar na obra elementos relativos ao seu
universo sociocultural e ao seu contexto histórico-temporal. Esse conhecimento
pode fortalecer a auto-estima individual ou coletiva, valorizando a cultura na-
cional.
Para que se implantem sistemas de difusão de informações e de proteção e
preservação dirigidos aos bens artístico-culturais, é necessário que se promova
um diálogo entre educadores e receptores ou entre as comunidades e aqueles
produtores de conhecimento, originando processos dirigidos a uma atuação
efetiva embasada em sistemas de parceria.
Entre os vários aspectos envolvidos na realização de exposições de arte está
o da conservação. Os locais que receberão as obras devem conservar as mesmas
características, quanto ao grau de umidade, calor e pressão, do seu lugar de ori-
gem e guarda perene. Do mesmo modo, o ar deve ser purificado, condicionado

291
Caderno de Literatura e Cultura Russa

em sistema no qual os filtros sejam substituídos a cada três meses. Os visitantes


também têm importante papel na conservação da integridade das obras:

Embora estejamos acostumados a conviver com obras de arte, a manusear livros,


a arquivar ou simplesmente guardar papéis, a maioria das pessoas não os olha como
objetos, com características e necessidades próprias. [...] Temos normalmente a
impressão de que são bens permanentes; que possuem intrinsecamente a virtude da
imutabilidade ou, pelo menos, que sua durabilidade não depende de nós (Duvivier,
s.d., p. 15).

Para que as obras de arte possam ser contempladas por inúmeras gerações,
é imprescindível que sejam acomodadas de maneira ideal, para que não sofram
dilatações ou contrações e para que não entrem em contato com agentes dete-
riorizantes. Portanto, deve-se evitar tocá-las, pois a gordura das mãos, associada
a elementos químicos (como os ácidos presentes nos sabonetes...), presentes
em produtos de uso comum, como os cigarros e sujidades em geral, pode vir a
impregnar certas áreas das obras, passando a reagir quimicamente com os seus
elementos constituintes, podendo reduzir drasticamente a sua durabilidade e
até causar a sua destruição.
Muito se tem feito para garantir a preservação da memória, fundamental
ao processo evolutivo do pensar na nossa espécie.
Os museus são as instituições às quais se confiou a coleta, o cuidado e a
preservação da cultura.

Durante milhares de anos, nações, museus, universidades e indivíduos reuniram co-


leções com fins de pesquisa e preservação. Muitas delas contribuíram significativamente
para a pesquisa da história das culturas e civilizações. Essas coleções incluem obras de
arte, espécimes científicos e de história natural, antiguidades e monumentos, desen-
volvimento tecnológico, bibliotecas e arquivos, sítios históricos [...] (Burke & Adeloye,
1988, pp. 13-15).

Por meio da educação artística, podem-se fornecer elementos que possibili-


tem a decodificação de signos relativos a conceitos estéticos, filosóficos, simbó-
licos etc., com finalidades de natureza expressiva, como evidências materiais­ou
manifestações da cultura popular ou erudita, com características ritualísticas,
folclóricas, envolvendo processos de produção artesanal ou industrial, surgidos­
do contato dos indivíduos com o seu meio natural e/ou social.

292
A Educação em Museus: A Exposição “500 Anos de Arte Russa”

O Lúdico como um Caminho Possível

A educação visa fornecer aos estudantes meios para que utilizem as suas
capacidades intelectuais no desenvolvimento de conceitos e habilidades que
apresentem possibilidades de aplicação prática no seu cotidiano. O estudo da
arte pode fornecer incentivos para que se desenvolvam mecanismos para a
compreensão do meio no qual habita o homem e, entre eles, o jogo...

[...] Sem dúvida, brincar significa sempre libertação [...] a banalização de uma existên-
cia [...] contribuiu consideravelmente para o crescente interesse que jogos e brinquedos
infantis passaram a despertar [...] (Benjamin, 1984, p. 64).

Muitas das atividades que constituem a existência humana envolvem as-


pectos lúdicos: desde as grandes atividades arquetípicas da sociedade, o mito,
até as atividades como a fala e a linguagem, a alegria e o riso (Huizinga, 1971,
p. 7).
Por meio de jogos e brincadeiras, a educação artística tem apresentado di-
versas possibilidades para o aprendizado, mostrando o jogo como importante
elemento para a didática. Como exemplo, pode-se falar a respeito de crianças
em idade pré-escolar, para quem a realidade e a fantasia parecem confundir-se.
Os contos ou histórias podem então representar um importante veículo para a
educação.

Em certa época, muitos e muitos anos atrás, num lugar solitário das estepes rus-
sas, viviam o czar e sua jovem esposa. Habitavam um castelo vermelho com muitas
torres, circundado de um rio que corria murmurante através dos prados cobertos
de flores.
[...] Foi justamente numa límpida noite de inverno, na qual milhares de estrelas cin-
tilavam no céu e toda a natureza calava como se esperasse qualquer coisa, que o silêncio
do castelo foi rompido pelo vagir de uma criança. A czarina era mãe de uma belíssima
menina [...] mas a alegria tinha sido grande demais para o seu coração de mamãe e ela
adormeceu para sempre.
[...] o czar se sentia cada vez mais sozinho e mais triste, e um dia resolveu escolher
nova esposa. A nova czarina era uma senhora muito formosa, mas fria e soberba [...] Às
vezes, de noite quando todos já dormiam, ouvia-se abrir lentamente uma porta e se via
uma sombra furtiva sair do quarto. Era a czarina [...] afasta uma cortina de veludo negro
e descobre um espelho tão grande como ela [...] Diga-me, espelho encantado, acaso existe
no mundo mulher mais bela do que eu?

293
Caderno de Literatura e Cultura Russa

[...] a princesa errou sem destino até que todo o bosque emergiu na escuridão. [...]Mas,
enfim, lá no fundo mais fundo do bosque, uma luz brilhou na escuridão [...] A princesa
atirou-se contra a porta, abriu-a e... sete jovens galhardos e vigorosos estavam diante dela [...].
(A Princesa e os Sete Cavaleiros, publicada em São Paulo, pela Livraria Martins Editora,
s.d. Enciclopédia da Fantasia, vol. 4, é uma versão russa da fábula da Branca de Neve e os
Sete Anões.)

Os educadores que atuaram junto aos estudantes em visitas escolares à expo-


sição “500 Anos de Arte Russa” prepararam histórias para apresentar aspectos da
cultura russa ao público infantil. Por meio de brincadeiras, muitas vezes se pode
tornar possível o fornecimento de informações nessa importante fase da vida.

As Obras e os Objetos: Testemunhos da Cultura

Os objetos e obras de arte criados pelo homem se apresentam impregna-


dos de registros representativos de vários aspectos relativos à sua finalidade,
assim como às configurações formais que revelam o pensar na época em
que foram gerados. Esses traços podem ser “lidos”, se o observador possuir
o código específico que lhe possibilite decodificar os significados presentes
nas formas e símbolos, sendo, portanto, importante o desenvolvimento da
capacidade de observação e análise dirigidas a fenômenos determinados.
As visitas a exposições podem envolver a realização de leituras de obras em
processos interativos, nos quais os visitantes tratem de aspectos estéticos, além
de receber informações históricas a respeito de obras e autores.
Para que a análise do objeto estético seja frutífera, é conveniente subdividir
e selecionar, entre os seus múltiplos aspectos, aquele a respeito do qual se deseje
tratar. Desse modo, favorece-se o desenvolvimento de conceitos e habilidades
específicas adaptados às necessidades dos alunos. A descoberta constitui sempre
um fator a ser cultivado. Todo objeto estético possui registros que podem vir
a despertar interesse.
O início das investigações a respeito do objeto estético pode se dar por meio
de simples questões como, por exemplo, quais os aspectos físicos (estrutu­ra,
suportes, materiais)? Quais as direções das linhas das suas formas? O objeto­
tem função? Como foi construído? Tem valor histórico? Apresenta interesses
comerciais? Quais as informações levantadas por meio da observação e aná-
lise? Que discussões geraram entre os alunos? A que conclusões chegaram?
Em sala de aula, os professores podem lançar mão de reproduções em dis-
cussões que, devidamente fundamentadas, poderão ser favorecidas pela pre-

294
A Educação em Museus: A Exposição “500 Anos de Arte Russa”

sença de elementos visuais, podendo gerar análises enriquecedoras, o suficien-


te para ampliar o alcance do repertório dos alunos.

Antes, Durante e Depois: Visitando Exposições


e Formando Opiniões
Para a visita de escolares a uma exposição é de fundamental importância
a preparação prévia dos alunos, por meio da apresentação em sala de aula de
informações a respeito do tema da mostra e dos objetivos da atividade. Tais
procedimentos podem incentivar a discussão a respeito dos conteúdos abor-
dados durante a visita, conduzindo a análises surpreendentes, por parte dos
alunos, o que se recomenda desenvolver, após a atividade extraclasse, por meio
da realização de trabalhos envolvendo diferentes linguagens (produção de tex-
tos, poemas, fotografias, elaboração de roteiros para peças de teatro e cenários,
objetos, figurinos etc.) para apresentação em sala de aula ou à comunidade.
Desse modo, o professor pode assumir o papel de agente cultural, incen-
tivando os alunos a descobrirem as possibilidades do universo da arte e da
cultura, vindo a inseri-las no seu cotidiano. Assim a intervenção do docente,
como formador de opinião, pode ser determinante para o surgimento de um
público crítico e preparado para intervir no meio sociopolítico-cultural.

Considerações Finais: Brasil e Rússia,


um Encontro entre Culturas
A cultura dos antepassados contém informações a respeito de resultados
obtidos em diversas experimentações voltadas à sobrevivência, pela superação
de problemas ou dificuldades cotidianas. A socialização, tão importante para a
construção da identidade, pode surgir desse contato com o outro. O indivíduo
pode tornar-se apto a compreender e aceitar a diversidade cultural ao comparar
informações que tratem da produção de cultura por outros indivíduos, e até
por grupos sociais que não o seu, às do seu universo pessoal.
Brasil e Rússia são países pluriculturais, podendo-se encontrar muitos tra-
ços comuns na formação das suas culturas. Para os dois países, a Europa tem
constituído um pólo, ou um “centro” (embora nem sempre seja aceita como
tal). A formação da cultura brasileira, pela fusão das culturas européia, indígena
e africana, encontra paralelo na cultura russa, formada pela fusão das culturas
européia e asiática... Os conflitos e contradições, surgidos da necessidade de
unir em um mesmo contexto nacional mundos tão diversos, são desconhe-
cidos pelo Ocidente, enquanto se forma um discurso cultural inconcebível para

295
Caderno de Literatura e Cultura Russa

a Europa Ocidental. Outro traço característico da cultura dos dois países é


a contraposição da mentalidade utópica à cartesiana (Cavaliere, 1999, p.
209).
O contato direto com obras de artistas russos, na exposição realizada no
Parque do Ibirapuera, conduziu à busca de valores comuns, sugerindo possibi-
lidades para o aprofundamento das relações culturais entre os dois países. Os
patrimônios culturais russo e brasileiro não se restringem aos objetos artísticos
e/ou históricos, e nem aos espaços patrimoniais já consagrados e protegidos por
leis e por instituições estabelecidas. Essa riqueza também diz respeito ao que
se pode chamar de patrimônio vivo da sociedade, no qual se inserem as artes
manuais, as técnicas de plantio, cultivo e colheita, a caça e a pesca, a constru-
ção de moradias, o emprego de plantas para a alimentação ou com finalidades
terapêuticas, a culinária, a música e as danças, a religiosidade, os rituais, festas
religiosas, o idioma, as relações familiares e sociais.
Que esse encontro com a cultura do povo russo, que, ao longo dos sécu-
los, vem enfrentando adversidades, sejam elas climáticas, político-sociais ou
culturais, procurando manter viva a sua identidade, possa contribuir para o
desenvolvimento de um olhar crítico sobre a nossa própria cultura.

[...] uma hora e meia mais tarde, chegavam a Petersburgo. Ibraim olhava curioso
para a capital recém-nascida, que se erguia do pântano por um capricho da autocracia.
Diques nus, canais recentemente cavados e pontes de madeira atestavam por toda parte a
vitória recente da vontade humana sobre as forças adversas da natureza. As casas pareciam
construídas às pressas. Em toda a cidade, nada havia de magnificente, com exceção do rio
Nievá, que ainda não fora enfeitado com moldura de granito, mas já estava coberto de
navios de guerra e comércio [...] (Púchkin, 1999, p. 31).

Bibliografia

Albera, François. Einsenstein e o Construtivismo Russo – A Dramaturgia da Forma em


“Sttutgart” (1929). Trad. Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo, Cosac & Naify Edições,
2002.
Araújo, Emanoel. Arte Popular. São Paulo, Associação Brasil + 500, 2000.
Barros, Sebastião do Rego. “A Revolução de Outubro: 80 Anos”, Estudos Avançados.
São Paulo, IEA, vol. 12, n. 32, jan.-abr., 1987, pp. 19-36.
Benjamin, Walter. Reflexões: A Criança, o Brinquedo, a Educação. São Paulo, Summus,
1984.
Burke, Robert & Adeloye, Sam. Manual de Segurança Básica de Museus. Rio de Janeiro,
FENS/Fundação Pró-Memória, 1988.

296
A Educação em Museus: A Exposição “500 Anos de Arte Russa”

Cavaliere, Arlete. “Um Poeta da Cena Russa: Meyerhold e o Teatro Russo de Vanguar-
da”, Revista de Estudos Orientais, São Paulo, DLO/FFLCH-USP, 1997, n. 1, pp. 93-
103.
. “Arte e Cultura na Rússia Antiga. Beleza e Santidade”, Revista de Estudos
Orientais, São Paulo, Humanitas/FFLCH-USP, 1999, n. 3, pp. 11-37.
. “Elena Vássina: Um Panorama Cultural da Rússia”, Revista de Estudos Orientais,
São Paulo, Humanitas/FFLCH-USP, n. 3, pp. 209-217, 1999.
Duvivier, Edna May. Como Preservar Pinturas, Papéis e Livros. Rio de Janeiro, s.d.
Guinsburg, J. Stanislávski, Meierhold & Cia. São Paulo, Perspectiva, 2001.
Huizinga, Johan. Homo ludens: O Jogo como Elemento da Cultura. São Paulo, Pers-
pectiva, 1971.
Lamare, Tite de. Caminhos da Eterna Rússia. Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1997.
Dabrowski, Magdalena. Contrastes de Forma: Arte Geométrica Abstrata 1910-1980.
São Paulo, Masp/Sociedade Cultural Arte Brasil, 1986.
Mantovani, Anna. Cenografia. São Paulo, Ática, 1989.
Púchkin, Aleksandr. A Dama de Espadas: Prosa e Poemas. São Paulo, Editora 34, 1999.

ABSTRACT: This text presents some aspects of the education in temporary exhibitions and
the party adopted for the pedagogical consultoria (Griphos Cultural) to supply to the visitors
a good amount of consistent information about the art and culture of the Russian people
in the exhibition “500 Years of Russian Art” (Brasil Connects, São Paulo, Brazil, 2002).
KEYWORDS: Education; art exhibition; memory; cultural patrimony; material culture.

297
Educador explanando a um grupo de estudantes em meio à coleção de
arte antiga russa. Foto de Denise Andrade.

Educadora recepcionando um grupo de estudantes. No subsolo, coleção de cartazes de cine-


ma russo. Foto de Denise Andrade.
Rampa de acesso ao segundo andar: coleção de arte antiga russa. Foto de Denise Andrade.

Vista interna do pavilhão Lucas Nogueira Garcês (Oca), do arquiteto Oscar


Niemeyer. No canto inferior esquerdo, painel representativo do
realismo soviético. Foto de Denise Andrade.
Vista do segundo andar da Oca: ícones componentes da coleção de arte antiga russa do
Museu Russo de São Petersburgo. Foto de Denise Andrade.
A Segunda Sinfonia de
Chostakóvitch
Euro de Barros Couto Junior

Resumo: A motivação para estudarmos um pouco dos aspectos relativos à Segunda Sinfo-
nia de Chostakóvitch, Op. 14, vem do fato de estarmos, já há vários anos, imbuídos do
propósito de pesquisar as obras compostas no período pós-revolucionário pelos compo-
sitores ditos de vanguarda. Nossas pesquisas levaram-nos a estudar o contexto histórico e
a inserção de Chostakóvitch em uma época relativamente atribulada da História da Rússia.
Palavras-chave: Dmítri Chostakóvitch; Segunda Sinfonia; Aleksandr Bezymiénski; música
da década de 1920.

Conversa com Chostakóvitch

– Dmítri Dmítrievitch!!!... Zdrástvui! Por que tanta pressa?...


– Ó, és tu, Aleksandr Nikoláievitch! Zdrástvui! Tenho de mostrar este tra-
balho ao Prof. Glazunov! Ele viaja ainda hoje!
– Posso acompanhar-te até o outro lado do pátio.
– Com prazer!
– Mas, o que tens aí? Mais um esboço da ópera?
– Não, não! Aqui, tenho algumas páginas com trechos que ainda precisam
ser burilados... Ainda falta um certo encadeamento temático e é isso que vou
mostrar ao Prof. Glazunov... Mas, e tu? Não devias estar na aula de trompete?
– A aula acaba de terminar. Tenho lições de teoria para repassar e meu pro-
fessor me deu um verdadeiro castigo: devo decorar algumas passagens do livro
do velho Prof. Rímski-Kórsakov. Tu sabes... Vê isto!
Caderno de Literatura e Cultura Russa

– É... dá para pensar em desistir. Olha, talvez eu componha algo para ti.
Tenho algumas idéias que ainda necessitam de mais tempo para brotarem
definitivamente.
– E esse calhamaço que seguras com tanta energia?
– Ah!... Não devia te contar, mas... são justamente os esboços de uma nova
sinfonia. Se o Prof. Glazunov me der alguma orientação, termino-a em poucos
dias.
– Não falarei a quem quer que seja sobre isso. Eu juro!
– Eu só não quero que tu estragues a surpresa que farei para as comemo-
rações dos dez anos de nossa Grande Revolução de Outubro. Ainda tenho de
escolher um poema para ser adaptado à parte final desta Segunda Sinfonia.
Achas que eu esperaria chegar à Nona para compor minha Sinfonia Coral?
Ha, ha, ha, ha, ha!!!
– Ha, ha, ha! Eu sei, eu sei... Se Beethoven estivesse aqui e te ouvisse, dar-
-te-ia um peteleco na orelha.
– Além disso, sou um compositor soviético e vejo nossa época como algo he-
róico, corajoso e jubiloso... a música não pode ter uma base política... e não pode
existir música sem uma ideologia. O camarada Liénin disse que a música é o meio
de unificação principal das massas, porque ela tem o poder de ativar certas emoções
naqueles que a ouvem. A boa música eleva, encoraja e inspira as pessoas para o
trabalho e para a realização. Ela pode ser trágica, mas tem de ser forte!1 
– Bravo! Bravo! Isso é verdade! Eu concordo! Temos de considerar a música
como algo para unificar as massas!
– Mas não te preocupes tanto com as minhas tarefas e as minhas idéias. Tu
tens as tuas. Eu, no teu lugar, estaria bastante preocupado, pois, pelo que sei, esta
sinfonia que estou escrevendo pode estrear durante as festividades da Revolução.
– E por que deveria eu preocupar-me com isso?!...
– Simplesmente, porque tu fazes parte do conjunto orquestral que vai
interpretá-la!
– Como?! Não sabia!
– Ninguém sabe ainda. E o Prof. Glazunov me disse que adaptasse um texto
à música, justamente para que o coral da escola esteja lá, também. Agora, tu
estás entendendo?
– Então... todos nós interpretaremos a tua sinfonia?!...


1. Estas palavras, publicadas no jornal norte-americano The New York Times, em 5 de
dezembro de 1931, foram atribuídas a Chostakóvitch, quando ele afirmou e justificou o con-
teúdo político de sua música, e apesar de esta frase não estar relacionada especificamente com
a Segunda Sinfonia, composta, então, quatro anos antes, cremos que tal expressão não se apli-
caria tão bem a qualquer outra obra deste compositor.

302
A Segunda Sinfonia de Chostakóvitch

– Talvez. Não depende de mim escolher as obras que farão parte do concer-
to comemorativo. Se dependesse, pararia de compor a ópera, apenas para
terminar tudo isto e vê, ainda tenho de falar com aquele copista da Associação
dos Músicos Proletários. Tu o conheces?
– Não... Acho que não...
– Não queiras conhecê-lo! Ele é quase intratável. É muito rápido e preciso,
mas é quase intratável. Depois da Revolução, ele mudou: agora, tem um cargo
e pagam muito mais por suas tarefas. Aliás, se ele tem trabalho ou não, pagam
do mesmo jeito...
– Agora, lembro-me vagamente desse sujeito. Ouvi falar de sua competência.
Ele sabe o que faz e esmera-se em seu ofício. Ele e um colega andaram fazendo
as partes para os músicos da associação tocarem a primeira audição da Sétima
Sinfonia do Prof. Glazunov.
– Disso eu não me lembro, mas sei que vou passar por maus bocados, quando
estiver frente a frente com ele... Ele é muito chato: não quer rabiscos e correções
mal apagadas nos originais. Imaginas tu que o vi discutir com o Prof. Glazunov
sobre isso?
– O quê?!
– É mesmo! O professor quase o espancou! E tu sabes como ele é calmo e
compõe bem. Já viste seus originais?
– Já! São limpos e sua escrita musical é clara. Imagina só!
– Bem, tenho de entrar. O Prof. Glazunov vai viajar amanhã à tarde e não
sei quando voltará2. Nesse tempo, quero ter toda a sinfonia terminada e tu me
conheces: não mexo mais em uma nota sequer!
– Dmítri Dmítrievitch, tu também és muito rigoroso contigo mesmo! Eu
não conseguiria fazer nem metade do que tu fazes!
– Vai estudar, homem! Tu não sabes o que te espera!
– Do-svidánia!
– Do-svidánia!
Algumas observações referentes à Conversa com Chostakóvitch são necessárias:
1.  zdrástvui = olá;
2.  do-svidánia = até mais ver;
3.  Os russos tratam-se por tu, quando íntimos ou em colóquios informais.
Para tornar o texto com certas características russas, tomamos a liberdade de
adaptar as referências entre os interlocutores, russificando-as.


2. Glazunov viajaria para o exterior, em 1928, sendo que, entre esse ano e 1932, conhece-
ria vários países da Europa Ocidental, quando, então, recebera referências para uma possível
saída definitiva da União Soviética, fato este que ocorrera em 1932, ano no qual estabeleceria
residência na cidade de Paris e onde faleceria quatro anos mais tarde.

303
Caderno de Literatura e Cultura Russa

4.  A personagem Aleksandr Nikoláievitch Schmidt (1889-1955) apenas apa-


rece como interlocutor de Dmítri Dmítrievitch Chostakóvitch, sendo que, na
primeira metade do século XX, ele foi uma das figuras proeminentes da Or-
questra Filarmônica de Leningrado, como seu trompetista.
5.  À exceção dos parágrafos relacionados com notas de rodapé números 1
e 2, o restante desse diálogo é totalmente adaptado, para que as idéias contidas
nos referidos parágrafos tenham uma razão de ser.

Introdução

A motivação para estudarmos um pouco dos aspectos relativos à Segunda


Sinfonia de Chostakóvitch, Op. 14, vem do fato de estarmos, já há vários anos,
imbuídos do propósito de pesquisar as obras compostas no período pós-revo-
lucionário pelos compositores ditos de vanguarda. Nossas pesquisas levaram-
-nos a estudar o contexto histórico e a inserção de Chostakóvitch em uma
época­relativamente atribulada da História da Rússia. Para tal estudo, foi-nos
lógico, intuitivamente, estudar outras obras cronologicamente próximas a esta
Segunda Sinfonia, como, por exemplo, a sua ópera O Nariz (Op. 15), a pequena
peça Trote do Taiti (Op. 16) e a música para o filme A Nova Babilônia (Op. 18).
A década de 1920 trouxe muitas inovações ao mundo da arte – não somente
na Rússia. Raras vezes, numa única época, houve tantas novidades, conjunta-
mente observada na história da arte e, especificamente, na história da música:
os exemplos são muitos; daí podermos considerar uma psicodélia musical.­
Nessa época, começaram a surgir propostas bastante diversificadas e, na
recém-constituída União Soviética, vários autores passaram a expressar-se
por meio de uma quase literal mecânica da música, em que, para alguns, os
instrumentos eram tratados como ferramentas de operários de indústrias pe-
sadas, de aço e ferro, de movimentos mecânicos sistemáticos, como foi o caso
de quase todos os compositores soviéticos de então. Prokófiev, cuja carreira já
se havia conformado quase plenamente, e para quem a década de 1920 fora
motivada por obras importantes (muitas ainda experimentais e inovadoras!),
sobreviveu com a ópera O Amor por Três Laranjas, Op. 33, composta em 1919
e estreada em 1921. Essa fase de composição de Prokófiev, afirmam diversos
musicólogos, foi uma das mais significativas em sua vida musical, pois, até
hoje, algumas dessas obras ainda são consideradas muito avançadas, mesmo
em relação a obras posteriores, principalmente, quando de seu retorno à União
Soviética, em 1936: tais obras trazem, em seu aspecto técnico, inovações e pro-
postas ainda não bem entendidas nem mesmo aceitas, porém é inegável que,

304
A Segunda Sinfonia de Chostakóvitch

para aquela época, elas ultrapassavam as barreiras do inteligível (musicalmen-


te falando). Mossolov passou dos limites e abusou dessa tendência meca­nicista,
compondo obras com nomes sugestivos, como A Fundição do Aço (Op. 19) e até
usando de formas tradicionais (concerto, sonata etc.), tratou os instrumentos,
tanto em músicas orquestrais como de câmara, como se fossem ferramentas.
Esta tendência, da presença de uma característica mecânica na arte, generalizou-
-se e não somente a música haveria de receber sementes maquinais: a escolha
de palavras para poemas e textos literários em geral diferenciavam a escrita
mecânica daquela que até havia alguns poucos anos antes estivera em voga; a
coreografia dos balés, as encenações de peças teatrais e as seqüências de cenas de
filmes também exigiam dos atores posturas mecânicas e maquinais, fazendo-os
assemelharem-se a mecanismos não-humanos. A mesma tendência é, portanto,
encontrada em muitas obras de arte importantes dessa época.
Posto isso, acreditamos poder ter, de forma resumida, dado algumas pin-
celadas na área de atuação encontrada por Chostakóvitch, para que ele tivesse
desenvolvido sua arte em uma época cheia de variantes inusitadas.

O Compositor

Escrever sobre uma personalidade marcante como a de Chostakóvitch é


tarefa árdua. Os seus biógrafos têm essa opinião. Aqui, neste pequeno texto,
não temos a intenção de produzir uma biografia. Não faz muito tempo, de-
pois de grandes biografias terem sido publicadas, encontraram-se algumas
obras escritas pelo então jovem Chostakóvitch. Nenhum desses livros sequer
mencio­na a existência daquelas obras pueris. Como o conhecimento parece
conter mean­dros complexos, não vamos, aqui, tentar desvendar os segredos que
estão relacionados intrincadamente com a exuberante e dramática vida desse
artista.­
Dmítri Dmítrievitch Chostakóvitch, nascido na cidade de São Petersburgo
em 25 de setembro de 1906 e falecido em Moscou, em 9 de agosto de 1975, foi
um dos mais eminentes compositores russos do século XX, além de ser um
líder social. Artista do Povo da URSS, título recebido em 1954, também foi
Deputado do Soviete Supremo da URSS, em sua sexta legislatura. Foi membro
do Comitê Eslavo da URSS e do Comitê Soviético de Defesa da Paz. Ensinou
no Conservatório de Leningrado, entre 1937 e 1939, e no de Moscou, de 1943
a 1948. Além disso, recebeu vários títulos honoríficos de singular importância,
como o de Doutor em Crítica de Arte. É considerado como um dos mais des-
tacados compositores da modernidade.

305
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Com um inovador trabalho, principalmente sinfônico, Chostakóvitch ten-


de, caracteristicamente, à personificação de conceitos profundos e, ao mesmo
tempo, mordazes sobre ideais que contêm um significado vital, freqüentemente
de conflitos trágicos, do complicado mundo das emoções humanas.
Chostakóvitch enriqueceu a arte musical com notável produção em diversos
gêneros musicais: quinze sinfonias, duas óperas, quinze quartetos de cordas,
dois concertos para piano e orquestra, dois para violino e orquestra e dois para
violoncelo e orquestra, além de várias outras peças orquestrais e came­rís­ticas.
Merecem uma breve citação alguns dos alunos de Chostakóvitch: Ígor
Gueórguievitch Bóldyrev (nascido em Viatka, em 1o de junho de 1912), Riévol
Samuílovitch Búnin (nascido em Moscou, em 6 de abril de 1924, e falecido em 3
de junho de 1976, em Moscou), Ákhmed Djiévdet Gadjíev (nascido em Nukha,
Azerbaijão, em 18 de junho de 1917), Guiérman Guiérmanovitch Galýnin (nas-
cido em Tula, em 30 de março de 1922 e falecido em 1966), Oriést Aleksán­dro­
vitch Evlákhov (nascido em Varsóvia, em 17 de janeiro de 1912), Kara Abulfaz
Karáiev (nascido em Baku, Azerbaijão, em 5 de fevereiro de 1918 e falecido em
13 de maio de 1982, em Moscou), Iúri Abrámovitch Levítin (nascido em Poltava,
em 28 de dezembro de 1912), Abram Mikháilovitch Lobkóvski (nascido em
Vítebsk, em 28 de dezembro de 1912), Evguiéni Petróvitch Makárov (nascido
em Pienza, em 19 de novembro de 1912), Gueórgui Vassílievitch Svirídov (nas-
cido em Fatiéj Kúrskoi, em 16 de dezembro de 1915 e falecido em 5 de janeiro
de 1998), Boris Ivánovitch Tíschenko (nascido em 23 de março de 1939, em
Leningrado), Galina Ivánovna Ustvólskaia (nascida em Petrogrado, em 17 de
junho de 1919) e Karen Suriénovitch Khatchaturian (nascido em Moscou, em
19 de setembro de 1920, sobrinho do famoso Aram Khatchaturian).

O Escritor

Aleksandr Ílitch Bezymiénski (nascido em 19 de janeiro de 1898, na cidade


de Jitomir, na Ucrânia, e falecido em 26 de junho de 1973) foi membro do Par-
tido Comunista desde 1916. Tendo terminado o ginásio na cidade de Vladímir,
em 1916, ingressou no Instituto de Comércio de Kíev. Participante das mani-
festações da Revolução de Outubro na cidade de Petrogrado, passou a fazer
parte do Comitê Central da União da Juventude Comunista da Rússia (Rossíski
Kommunistítcheski Soiúz Molodióji, RKSM) da primeira legislatura. Suas pri-
meiras publicações datam de 1918. Entre os anos de 1923 e 1926, foi membro
ativo da Associação Russa de Escritores Proletários (Rossískaia Assotsiátsia
Prole­társkikh Pissátelei, RAPP) e colaborador da revista A Postos da Associação

306
A Segunda Sinfonia de Chostakóvitch

Moscovita de Escritores Proletários (Moskóvskaia Assotsiátsia Proletárskikh


Pissátelei, MAPP). Os primeiros livros de poemas, Imagens de Outubro (1920) e
Em Direção ao Sol (1921), são exemplos das bases da poesia de traços abstratos
daquela época. Mais tarde, Bezymiénski superou a influência da Organização
Proletária Artístico-literária e Instrutivo-cultural (Prole­társkaia Literaturno-
-khudójestvenaia i Kultúrno-prosvetítelstvenaia Organizátsia, ou, simplesmente,
Proletárskaia Kultúra, Proletkult) e dos kúznitsy (poetas do grupo Kúznitsa – A
Forja – 1923, e outros) e dedicou-se à representação de ações corriqueiras sobre
a revolução (na coletânea Como Fede a Vida, 1924, e nos poemas A Respeito do
Chapéu, A Respeito das Botinas e outros). Bezymiénski pertenceu, na década
de 1920, à plêiade de poetas da União da Juventude Comunista (Kommunis­
tít­ches­ki Soiúz Molodióji, Komsomol) e muitas de suas obras dessa época são
dedicadas àquela entidade (os versos dos poemas A Guarda Juvenil, de 1922, A
Marcha da Komsoflot, de 1924, o poema Komsomólia, de 1924, e outros).
Ele escreveu brilhantes obras sobre Liénin (o poema Vladímir Ílitch Lié-
nin) e sobre Dzerjínski (o poema Fiéliks). No poema Uma Noite Trágica (1930),
de­dicado aos construtores da central hidroelétrica do rio Dniéper, passa a
atmosfera de ascensão trabalhista e de luta intensa das primeiras obras
socialistas­e mostra o surgimento dos novos métodos de trabalho e o de­sen­­
vol­vimento­criativo do homem soviético. Depois dessa fase, Bezymiénski,
expondo satiricamente ao ridículo o carreirismo, a burocracia, a bajulação,
provoca uma rea­ção internacional com o poema Um Dia de Nossas Vidas
(1928), a peça em versos O Tiro (1929) e algumas outras obras. Nos versos
satíricos (manual intitulado Estrofes Irritadas, 1949), Bezymiénski critica
severamente os provocadores das guerras. Contra burocratas e oportunistas,
Bezymiénski endereça o poema satírico Sobre o todo-poderoso que canta à toa
e sobre o onipresente que não canta à toa (1961). Bezymiénski sobressai como
ensaísta, publicista, mestre em epigramas, autor de artigos sobre literatura
satírica. Na poesia, Bezy­miéns­ki caracteriza-se por sua atualidade temática,
sua habilidade em mostrar­os fatos selecionados da vida à luz dos grandes
questões de sua época. Em­pre­gando criativamente as várias técnicas poéticas
de Vladímir Maiakóvski, Bezymiénski tende ao aforismático, à criação de
caráter mordaz, às glosas.

A Sinfonia

Não é possível entender tanto a Segunda quanto a Terceira Sinfonia de


Chostakóvitch sem considerar o aspecto cultural e político dentro do qual tais

307
Caderno de Literatura e Cultura Russa

obras foram escritas. A década de 1920 foi uma era de revoluções na música
ocidental: a tonalidade foi, até então, aceita como um princípio universal e uma
reação tinha aparecido contra aquilo que era visto como um certo comodismo
da era romântica, ou seja, intensamente contra a expressão de caráter subjetivo.
Politicamente, aqueles anos assistiram às primeiras tentativas, na Rússia pós-
-revolucionária, de colocar a ideologia marxista em prática. Foi imposto que a
nova música devia representar uma parte importante no estabelecimento de um
novo padrão de vida: as questões sociais e morais foram impin­gidas mais pesa-
damente sobre os compositores do que as considerações estéticas­pertinentes e
a música passou a ser considerada mais como um instrumento­da propaganda
e menos como uma expressão da visão pessoal dos artistas. Por algum tempo,
admitiu-se que as tendências progressistas na música florescessem, posto que
era (e ainda é) claramente difícil definir o conteúdo político (se é que ele existe)
de uma sinfonia puramente instrumental ou de um quarte­to de cordas. Em
Leningrado, na década de 1920, a nova música de Bartók, Hinde­mith, Krenek,
Berg e dos exilados russos Stravínski e Prokófiev eram interpretadas, admitidas
e admiradas.
Tanto a Segunda como a Terceira Sinfonia de Chostakóvitch ilustram as
tendências desta fase de transição da música russa, em que coexistiam técnicas
orquestrais progressistas ao mesmo tempo que simples corais com textos litúr-
gicos ou mesmo revolucionários. Em ambas as obras, Chostakóvitch abandona
os conceitos tradicionais da formada sinfonia e também do desenvolvimento
temático. Cada uma contém um curto final destinado ao canto de grandiosos
corais.
A Segunda Sinfonia não foi intitulada como tal, ou seja, como sinfonia, pois
à página de rosto aparecem as inscrições D. Chostakóvitch, Opus 14, A Outu-
bro, uma Dedicatória Sinfônica, com um Coral Final escrito sobre as palavras de
Aleksandr Bezymiénski, para Grande Orquestra e Coro Misto, e no canto superior­
direito desta mesma página pode-se ler Proletários de Todo o Mundo, Uni-vos!
Ela foi escrita para o décimo aniversário da Revolução de Outubro. As palavras
de Aleksandr Bezymiénski narram o sofrimento e a opressão das massas, antes
que elas fossem incitadas à revolta: Nós íamos e pedíamos trabalho e pão, / os
corações estavam apertados por morsas de saudade, e termina com uma saudação
a Outubro, à Comuna e Liénin. A parte puramente instrumental é quase toda
experimental, muito dela desafinada e densa em textura. Na segunda seção
desse prólogo instrumental, um trio formado pelo violino, pela cla­rineta e
pelo fagote, bizarro em sua harmonia e em seu ritmo, bem como na própria
formação instrumental e na sua textura, está construído sobre um ruí­do de
treze acordes independentes sobre as madeiras e as cordas. Um outro toque

308
A Segunda Sinfonia de Chostakóvitch

futurista, uma rajada de um apito de fábrica (alternativamente substituído por


instrumentos de metal), anuncia a introdução do coro.
A Segunda Sinfonia, em si maior, Op. 14, foi apresentada pela primeira vez
no dia 5 de novembro de 1927, pela Orquestra Filarmônica de Leningrado e
cantada pelo Coro Acadêmico da Filarmônica de Leningrado, ambos conduzi-
dos pelo maestro Nikolai Andriéevitch Malkó (nascido no governo de Braílov
Podólskoi, Rússia, em 4 de maio de 1883, e falecido em 23 de junho de 1961, em
Sidney, Austrália), em um concerto que celebrava, então, o décimo aniversário
da Revolução de Outubro.
Apesar da excitante dedicatória, de ter sido favoravelmente recebida pela
crítica e de ter sido muitas vezes apresentada logo após sua composição – ela
foi interpretada simultaneamente em Leningrado, Moscou, Kíev e Khárkov – a
Segunda Sinfonia não conseguiu adquirir o grande respaldo e a popularidade
da Primeira. Ela logo desapareceu do repertório e, juntamente com a Terceira
e a Quarta, não foi tocada de novo na Rússia, até a década de 1970.
O porquê desse obscurantismo pode ser explicado por uma típica crítica
sobre esta sinfonia, que nos é apresentada por um dos biógrafos de Chosta­
kóvitch, Davyd Abrámovitch Rabínovitch: “Ela sofre de abstracionismo. [...]
A clareza da melodia na parte coral final está em contradição com tudo o que
a precede e somente serve para acentuar a disparidade geral entre o meio mu-
sical encontrado pelo compositor e o objetivo por ele próprio imposto, para
personificar em música a grande revolução do povo”.
Não podemos discordar dessa balizada opinião, mas temos motivos, hoje,
para afirmar que tal opinião estaria incompleta, pois, é justamente a contra­po­
si­ção entre um suposto não-tema e o tema coral final que a obra faria sentido.
Ou seja, Chostakóvitch sobrepõe partes que parecem não fazer sentido melódico
e, como em um funil, vai permeando as notas e as supostas não-melodias até
atingir o ápice da obra, quando o coro entoa, com bravura, o poema do poeta
Bezymiénski, como um laço consensual de união da massa proletária.
Outro biógrafo conhecido, Ivan Ivánovitch Martýnov, também escreve
naqueles termos: “Uma comparação deste conjunto com aquele da Primeira
Sinfonia revela as grandes modificações que ocorreram na consciência do
compositor. As bem definidas imagens e a clareza da construção da Primeira
Sinfonia foram anuladas pelas abstrações de fragmentos individuais só super-
ficialmente interligados”.
Também, aqui, validamos a opinião balizada do referido autor, mas com as
devidas ressalvas feitas no parágrafo anterior. Além disso, sabemos, hoje, que
quase certamente a intenção de Chostakóvitch era mostrar musicalmente a
conscientização pela qual o povo russo teria passado até atingir um grau que

309
Caderno de Literatura e Cultura Russa

permitisse a própria existência dos atos relativos à Revolução de Outubro: de


uma preexistente consciência caótica até a plenitude, até a coerência que, então,
levaria a uma conscientização máxima de caráter social.
A Segunda Sinfonia foi escrita durante um período em que a música sovié-
tica estava dividida entre as asserções dos chamados compositores proletários
e aqueles que pertenciam a um grupo de oposição, os quais eram influenciados
por alguns dos mais radicais desenvolvimentos da música da Europa Ocidental.
Aquele Chostakóvitch de apenas 21 anos de idade procurou, então, transpor
o vale com o que lhe parecia ser um sensato compromisso: uma sinfonia coral
cujas palavras refletiriam os ideais proletários, mas cuja música incorporasse
tendências vanguardistas.
Portanto, entre os mais formalísticos esquemas deste trabalho em um
movimento estão o tratamento canônico de uma escala cromática descen-
dente, tocada por nove instrumentos de sopro e dispostas em intervalos de
fusas, com uma progressão resultante em paralelo, de acordes de nonas, e
uma instância do que um analista denominou politonalidade polirrítmica.
Os referidos­acordes têm os contrabaixos tocando semínimas, os violoncelos
em col­cheias, as violas em trios de colcheias, os segundos violinos, divisi, em
semi­col­cheias e em grupos de quatro e cinco, e os primeiros violinos, divisi, em
se­micol­cheias e em grupos de cinco e seis, além do uso simultâneo de várias
claves diferentes.
Entre os interessantes aspectos da orquestração está o uso de um api-
to de fábrica (uma concessão da passageira moda da música industrial),
para o qual o compositor aceita a opção auxiliar de que o tal apito pode ser
subs­tituído por quatro trompas, três trombones e uma tuba, tocados em
unís­sono.
Em conformidade com os ideais da sinfonia, as seguintes palavras, retiradas
da parte coral final, servem para exprimir seu espírito: Ó, Liénin: / Tu forjaste
a liberdade desse sofrimento, / tu forjaste a liberdade dessas mãos calosas. / Nós
entendemos, Liénin, que nossa união leva um nome: / luta!
O desenvolvimento da música de acordo com suas próprias leis foi logo im-
pedido, na Rússia Soviética, pelas crenças políticas. Chostakóvitch, no entanto,
não se furtou a seus objetivos artísticos e a essência de seu estilo permaneceu
indissolúvel, bem como suas obras tornaram-se mais enigmáticas e paradoxais.
Sendo esteticamente imperfeitas, tanto a Segunda quanto a Terceira Sinfonia
demonstram claramente as características que Chostakóvitch estava refinando
e integrando: um alto grau de tensão nervosa, iniciando justaposições para
uma escrita musical diatônica e cromática,­e trazendo uma simplicidade e uma
veemência tipicamente mus­­sorgs­kianas.

310
A Segunda Sinfonia de Chostakóvitch

O Poema

Eis o poema de Bezymiénski, cantado pelo coro misto, no final da Segunda


Sinfonia de Chostakóvitch:

Мы шли, мы лросили работы и хлеба,


сердтса были сжаты тисками тоски,
заводские трубы тянулися к небу,
ка руки бессильные сжать кулаки.
Страшно было имя наших тенёт:
молчаные, страданые.
Ηo громше орудии ворвалис в молчаные
слова нашей скорбы.
О Ленин:
Τы выковал волю страданые,
ты выковал волю мозолистых рук.
Μы поняли, Ленин, что наша судьба носит имя:
борьба! борьба!
Борьба! Ты вела нас к последнему волю.
Борьба! Τы дала нам победу труда.
И этой победы над гнётом
и тьмою никто не отнимет у нас, никода.
Пусть каждый в борьбые будет молод и храб.
Βедь имя победы Οктьябр.
Οктьябр! Это солнце желаного вестник.
Οктьябр! Это воля восставших веков.
Οктьябр! Это труд, это радость и песня
Οктьябр! Это счастие полей и станков.
Вот знамя октьябр.
Вот имя живых поколений и Ленин.
Коммуна и Ленин.

Eis, então, uma tradução livre, sem nenhuma pretensão poética deste autor:

Nós íamos e pedíamos trabalho e pão,


os corações estavam apertados por morsas de saudade,
as chaminés das fábricas estendiam-se ao céu,
e mãos enfraquecidas cerravam os punhos.
Terrível era o nome de nossas sombras:

311
Caderno de Literatura e Cultura Russa

o silêncio, o sofrimento.
Porém, ruidosamente armas irrompiam silenciosas
palavras de nossas aflições.
Ó, Liénin:
Tu forjaste a liberdade desse sofrimento,
tu forjaste a liberdade dessas mãos calosas.
Nós entendemos, Liénin, que nossa união leva um nome:
luta! luta!
Luta! Tu nos conduziste à plena liberdade.
Luta! Tu nos deste a vitória do trabalho.
E esta vitória sobre a opressão
e sobre as trevas não será tirada de nós, nunca.
Que cada um na luta seja jovem e corajoso.
Que o nome da vitória seja Outubro.
Outubro! É o sol do mensageiro da esperança.
Outubro! É a liberdade de épocas de insurreição.
Outubro! É o labor, é a felicidade e a canção.
Outubro! São os alegres prados e ferramentas.
Eis o sinal de outubro.
Eis o nome das vívidas gerações e Liénin.
                           A Comuna e Liénin.

Bibliografia

Chostakóvitch, D. D. “Sinfonia nº 2, em si maior”. À Revolução de Outubro, Op. 14.


Coro e Orquestra Filarmônica de Londres, mestre do coro: John Alldis, regente:
Bernard Haitink. London, Digital ffrr, LDR 71035, 1982.
.“Sinfonia nº 2, em si maior”. À Revolução de Outubro, Op. 14. Coro do
Instituto Krupskáia, diretor: Iván Poltávtsev e Orquestra Sinfo-filarmônica de
Leningrado, regente: Ígor Blájkov, Melodia / Angel SR-40099.
Chtiéinpress, B. S. & Iampólski, I. M. Entsiklopedítcheski Muzykálni Slovár. Moscou,
Enciclopédia Soviética, 1966.
Couto Junior, E. B. Uma Visão da Ópera Russa sob O Nariz de Chostakóvitch. São
Paulo, USP [Dissertação de Mestrado], 2002.
Poliakova, L. La musique soviétique. Moscou, Éditions en Langues Étrangères, 1961.
Súrkov, A. A. (red.). Krátkaia Literatúrnaia Entsiklopiédia. Moscou, Enciclopédia
Sovié­tica, 1962.

Abstract: The motivation in studying some aspects concerned to the Shostakovitch’s


Second Symphony, Op. 14, comes from the fact that we are imbued, even for many years , in

312
A Segunda Sinfonia de Chostakóvitch

searching the works composed at the post-revolutionary period by the called Vanguard
composers. Our searches have conducted us in studying the historical context, and insertion
of Shostakovith in a relatively afflicted epoch of Russian History.
Keywords: Dmitri Shostakovitch; Second Symphony; Alexander Bezymensky; music of
1920 decade.

313
O Teatro de Maiakóvski: O
Cubofuturismo no
Texto e na Cena
Arlete Orlando Cavaliere

Resumo: A proposta deste artigo é analisar a evolução da poética teatral de Maiakóvski,


não apenas dentro do contexto artístico e estético na Rússia dos anos 20, mas sobretudo
compreendê-lo a partir da linha evolutiva da própria poética maiakovskiana.
Palavras-chave: Vanguardas russas; teatro russo; Maiakóvski.

A obra e a vida de Vladímir Maiakóvski (1893-1930) estiveram sempre intima-


mente associadas de uma forma excêntrica e até escandalosa. Toda uma traje-
tória subjetiva e, pode-se dizer, psicossocial aparece de maneira muita nítida
no centro de sua produção artística. Maiakóvski participa de um complexo
momento histórico da Rússia durante as décadas de 10 e 20 do século XX e
esteve profundamente ligado às mais avançadas pesquisas estéticas do período,
tanto da Rússia quanto do Ocidente, especialmente no que se refere às investi-
gações e experiências renovadoras em poesia, pintura e teatro.
A sua personalidade, não só enquanto artista, mas também enquanto ho-
mem de sua época, tornou-se quase um símbolo da Revolução Russa de 17,
que, como se sabe, modificaria radicalmente os rumos históricos, políticos e
filosóficos do século XX.
Maiakóvski considerou-se logo um “artista do proletariado” e a serviço do
poder operário, mas o seu vigor e entusiasmo criativos se voltaram, antes de
mais nada, para a busca incessante de uma inovação estética e artística, que
fosse capaz de expressar e contribuir de maneira fundamental para a criação
de um mundo novo que então se projetava a partir da recém-criada sociedade
soviética.
Por isso, o individual e o coletivo se misturam em sua obra. E a subjetivida-
de do poeta, exibida numa blusa de fustão amarela com grandes listas pretas,
Caderno de Literatura e Cultura Russa

desfilava naqueles anos pelas ruas de Moscou, de modo ostensivo, junto a todo
um grupo de artistas, poetas, pintores, músicos e diretores de teatro que, fruto
da inquietação de todo um momento histórico, buscavam também nas artes
uma transformação radical.
Estes artistas se autodenominaram budetliane (de búdiet: será, do verbo byt:
ser) e Maiakóvski foi, sem dúvida, um de seus representantes mais significati-
vos. A denominação “futuristas” tinha caráter pejorativo e fora empregada por
aqueles que os criticavam, mas, apesar disso, acabaram por aceitá-la, embora
tivessem preferência pelo termo budetliane.
Costuma-se dizer que a transformação direta do cubismo em poesia se
encontra no futurismo russo. É nessa perspectiva que se pode avaliar a im-
portância do cubismo para o desenvolvimento do que podemos denominar a
estética do futurismo russo.
Na verdade, o futurismo russo foi apenas o estágio final de uma determinada
trilha da arte moderna, iniciada no final do século XIX. O termo futurismo
abrange uma grande variedade de fenômenos na obra criadora de muitos in-
divíduos, tendo, apesar disso, alguns denominadores comuns. De fato, é difícil
enfeixar no conceito de futurismo a idéia de um grupo absolutamente unificado.
Há, no entanto, em comum entre os vários grupos que o integram na Rússia,
um forte protesto contra os simbolistas, cuja importância foi fundamental no
quadro do desenvolvimento da poesia e da arte russas.
Krystyna Pomorska, em seu livro Formalismo e Futurismo1, salienta que o
simbolismo russo preparou, de certa forma, o caminho para a pesquisa sonora
da poesia futurista. “Criando a ‘poesia como música’ e a ‘poesia de nuances’, os
simbolistas auxiliaram a destruir a ‘poesia como pensamento em imagens’. Por
sua vez, os futuristas se descartaram do misticismo filosófico de seus anteces­sores
e colocaram em seu lugar uma abordagem poética poderosamente­técnica.”­
Assim, há por volta de 1912, na Rússia, um grande movimento de protesto
anti-simbolista que alimentará toda a orientação estética das vanguardas russas
em suas várias modalidades artísticas.
A ala realmente revolucionária deste amplo movimento ficou a cargo dos
cubofuturistas. Outro ramo do futurismo russo foi o ego-futurismo, funda-
do por Ígor Severiánin em 1911, mas que se distanciava do radicalismo dos
cubofu­tu­ristas, pois sua cultura poética mantinha ainda fortes raízes na poesia
do final do século.
Certamente, o cubismo, ao propor o conceito de “forma” como problema ar-
tístico básico, exercerá grande impacto nas preocupações estéticas dos cubofu­tu­-

1. K. Pomorska, Formalismo e Futursimo, São Paulo, Perspectiva, 1972, p. 163.


316
O Teatro de Maiakóvski: O Cubofuturismo no Texto e na Cena

ristas: a arte verbal como também a arte visual cessariam de imitar a natureza pela
descrição de seus objetos. O mundo artístico, o mundo poético torna-se, assim,
válido por si próprio e a “inteligência” do artista substitui a sua “observação”.
Não foi por acaso que a maior parte dos futuristas russos esteve ligada à
pintura e, por isso, a ala mais representativa do movimento recebeu o nome de
cubofu­turistas, numa clara conexão das artes verbais com as artes visuais. Ao
lado da crítica dos futuristas a uma literatura “temática” alinha-se a atitude dos
cubistas em sua rejeição de uma cópia servil dos objetos pela pintura.
Os cubofuturistas surgiram em abril de 1910 com o almanaque Sadók sudiéi
(Armadilha para Juízes), redigido por Velimir Khliébnikov, os irmãos David e
Nikolai Burliuk, Vassíli Kamiénski e Elena Guro.
A estréia de Maiakóvski no grupo se dá logo depois quando conhece David
Burliuk no Instituto de Pintura, Escultura e Arquitetura de Moscou em 1911.
Em sua autobiografia Eu Mesmo (Iá sam) o poeta relembra a noite de 4 de fe-
vereiro de 1912 como uma data fundamental para a história do cubofu­tu­ris­mo:­

A Sala de Reunião da Nobreza. Um concerto. Rakhmáninov. A Ilha dos Mortos. Fugi da


insuportável chatura melodizada. Instantes depois, também Burliuk. Soltamos gargalhada,
um na cara do outro. Saímos para vadiar juntos.
Uma noite memorabilíssima. Conversa. Da chatura rakhmaninoviana passamos à
da Escola, e da escolar a toda a chatura clássica. Em David era a ira de um mestre que
ultrapassara os contemporâneos, em mim – o patético de um socialista que conhecia o
inevitável da queda das velharias. Nascera o futurismo russo2.

Vladímir Vladímirovitch Maiakóvski nasceu no dia 7 de julho de 1893, filho


de um inspetor florestal na aldeia de Bagdádi, na Geórgia. Após a morte do pai,
em 1906, transfere-se para Moscou com a mãe e as irmãs, e aos 14 anos inscreve-
-se no partido bolchevique, tendo sido preso três vezes por atividades políticas
clandestinas. Abandona a política para dedicar-se à arte figurativa, quando
ingressa no Instituto de Pintura. Passa a divulgar seus versos por intermédio
inicialmente de David Burliuk, que o considera desde logo “um poeta genial”.
Em fins de 1912, no almanaque Uma Bofetada no Gosto do Público, e depois
em vários outros que se seguiram3, os cubofuturistas não se cansam de procla-


2. Cf. a tradução deste e de outros importantes textos em prosa de Maiakóvski realizada
por Boris Schnaiderman e reunidos no livro A Poética de Maiakóvski através de sua Prosa, São
Paulo, Perspectiva, 1971.

3. Uma coletânea bastante substancial (480 páginas) de materiais do e sobre o futurismo
russo, organizada pelo Instituto da Literatura Universal da Academia de Ciências da Rússia,

317
Caderno de Literatura e Cultura Russa

mar que “a palavra deveria seguir audaciosamente as pegadas da pintura” e de


forma agressiva e polêmica desprezam Púchkin, Dostoiévski, Tolstói e todo o
passado literário russo, proclamando o direito dos novos poetas de aumentar
o volume do vocabulário com palavras arbitrárias e derivadas.
A estética do futurismo russo deixou, sem dúvida, sua marca em toda a obra
de Maiakóvski, inclusive depois da Revolução de Outubro, quando os futuristas
se autodenominam “tamboreiros da revolução” e pretendem “ensinar o homem
da rua a falar”. Para Maiakóvski isto significava destruir os antigos valores e
construir novos com base na reorganização consciente da língua aplicada a
novas formas de ser.
Mais tarde, já em 1923, quando funda a revista LEF (Liévy Front Iskusstv –
Frente Esquerda das Artes), centro de gravidade do construtivismo russo, outro
importante movimento das vanguardas russas, Maiakóvski chega a considerar
que o futurismo já havia cumprido o seu papel, pois a etapa primeira do mo-
vimento, por ele denominada “etapa da destruição”, já havia sido concluída.
Ainda assim, continua a se proclamar um futurista, como se o futurismo fosse
a bandeira de uma atitude agressiva e inovadora, que foi a sua até o final de
sua vida.
A partir da revista LEF verifica-se uma adesão aos preceitos estéticos do
construtivismo e a busca da organização racional que deveria presidir, se-
gundo o movimento, não apenas o fato artístico, mas também, e sobretudo, a
construção da nova sociedade socialista. Maiakóvski mostra-se, assim, atento
à evolução e ao desenvolvimento dos próprios procedimentos da estética futu-
rista que, segundo ele, deveria abrir-se, de modo incessante, para a renovação
de seus meios de expressão artística e tomar parte ativa no desenvolvimento
da sociedade soviética.
Entre nós, Boris Schnaiderman 4 atenta para o fato de que vários textos
maiakovskianos demonstram, ao lado de um irracionalismo, freqüente no
universo das vanguardas históricas de um modo geral, a preocupação do poeta
pela construção da obra enquanto sistema, identificando, assim, a ocorrência
de um aspecto racional bastante pronunciado na poesia e nas reflexões esté-
ticas do poeta, muito afins às teorias do formalismo russo e às pesquisas do
método formal para o estudo da linguagem e da especificidade da linguagem
literária.

foi recentemente publicada em Moscou sob o título Rúskii Futurism – teória, práktika, krítika,
vospominánia (Futurismo Russo – Teoria, Prática, Crítica, Recordações), Moscou, Editora Nas­
lié­die, 1999.

4. Cf. B. Schnaiderman, op. cit., p. 25.

318
O Teatro de Maiakóvski: O Cubofuturismo no Texto e na Cena

Basta lembrar, neste sentido, o texto de Maiakóvski “Como Fazer Versos?”,


uma das proposições mais brilhantes do poeta sobre o papel da elaboração
técnica vocabular e das especificidades da linguagem na construção de uma
obra poética.
De fato, não se pode negar a estreita ligação de Maiakóvski com o formalis-
mo russo, tendo sido, inclusive, amigo pessoal de muitos de seus componentes,
como, por exemplo, de Víktor Chklóvski e Óssip Brik, e ter publicado trabalhos
de tantos outros em sua revista LEF.
Roman Jakobson, em “O pokoliénnii, rastrátivchem svoikh poetov” (Sobre
a Geração que Esbanjou os seus Poetas)5, texto escrito em 1930, após o suicí-
dio de Maiakóvski, ao chamar a atenção para o papel que o irracional exerce
na obra de Maiakóvski, se refere, no entanto, à “racionalização do irracional”
como característica predominante de sua obra e que pode ser detectada em
muitos de seus textos.
Escreve Jakobson: “À antinomia entre o racional e o irracional é dedicado
o admirável poema Para Casa. É um sonho de fusão de ambos os elementos,
de uma espécie de racionalização do irracional”. Refere-se também ao poema
inacabado “V Internacional”, onde fica evidente a busca da elaboração conscien­
te da matéria poética:

Eu
à poesia
só permito uma forma:
concisão,
precisão das fórmulas
matemáticas.

O construtivismo na Rússia tem sido considerado um desenvolvimento


con­se­qüente do cubofuturismo e das tendências pictóricas de vanguarda.
Se a maior parte dos cubofuturistas e grupos afins se inclinavam fortemente
para o elemento urbano, a civilização moderna da velocidade e das máquinas
(aliás, tema generalizado dentro do universo futurista), exaltando o cinema
como a forma artística mais sintonizada com a precisão e a tecnologia mo-
dernas, os construtivistas retomam essas idéias depois de 1918, radicalizando
o objetivo de fazer uma arte que fosse “filha harmoniosa da cultura industrial”,

5. Este texto de Roman Jakobson foi recentemente traduzido para o português por Sonia

Regina Martins Gonçalves em sua dissertação de mestrado, defendida na FFLCH-USP, em


2001.

319
Caderno de Literatura e Cultura Russa

compartilhando, assim, as aspirações industriais da sociedade soviética nas-


cente.
Não se pode compreender muito da produção poética e, especialmente, o
teatro de Maiakóvski da década de 20, sem o construtivismo.
Aliás, já num artigo de 1913, intitulado Teatr, Kinematógraf, Futurism
(Tea­tro, Cinematógrafo, Futurismo), Maiakóvski escrevera: “A grande transfor-
mação por nós iniciada em todos os ramos da beleza em nome da arte do ama-
nhã, a arte dos futuristas, não vai parar, nem pode parar, diante da porta do
teatro”6.
Maiakóvski e quase todos os cubofuturistas escreveram para o teatro.
Khlébnikov, Krutchônikh, Teriéntiev, Radlov e outros, inspirados, certamente,
pelas experiências geométricas e abstratas empreendidas no campo da pintura,
interessaram-se vivamente pelas possibilidades criativas dos palcos de van-
guarda.
Mas se o teatro (texto e cena) do primeiro decênio soviético nasce das inven-
ções dos pintores cubofuturistas, sua evolução estética, ao longo desses anos,
acompanha o movimento dos pintores de esquerda que passam cada vez mais
a expressar em suas telas os processos mecânicos da indústria e as conquistas da
técnica. O abstracionismo procura agora inspiração no universo das máquinas
e sonha inserir a arte na produção, tornando-a utilitária.
Maiakóvski adere de forma entusiasta às fórmulas construtivistas e, ao
que consta, o poeta adorava as máquinas e os produtos da civilização indus-
trial7.
Portanto, quando funda a LEF em 1923, o poeta congrega cubofuturistas,
produtivistas, suprematistas e até filólogos da Opoiaz (Óbchchestvo izutchéniia
poetítcheskovo iaziká – Associação para o Estudo da Linguagem Poética), em
torno da qual se desenvolviam as teorias formalistas.
O que está em pauta é, assim, o emprego utilitário da arte: “A LEF lutará
por uma arte que seja construção da vida”, anunciava o primeiro número de
sua revista. Em 1925, é publicado o sétimo e último número da revista e, após
uma longa interrupção, ela reapareceria em 1927-1928, sob o título de Nóvy
LEF – Nova LEF. Dentre os doze números editados, Maiakóvski foi o redator
dos sete primeiros e Tretiakov dos cinco últimos.
Como a diretriz da LEF é o emprego utilitário da arte, ela tornou-se a es-
sência e o centro do Construtivismo, e Maiakóvski foi, sem dúvida, um agente
catalisador do movimento, embora travasse polêmicas, como era de seu feitio,

6. Apud B. Schnaiderman, op. cit., p. 263.


7. Cf. A. M. Ripellino, Maiakóvski e o Teatro de Vanguarda, São Paulo, Perspectiva, p. 120.


320
O Teatro de Maiakóvski: O Cubofuturismo no Texto e na Cena

com alguns de seus setores, tendo deixado a Nóvy LEF em 1930, pouco antes de
seu suicídio.
De toda forma, Maiakóvski, embora propugnasse uma arte para as massas,
jamais abdicou do experimentalismo e da sua convicção de que a revolução do
conteúdo deveria ser acompanhada pela da forma, não havendo assim nenhuma
cisão entre a pesquisa formal e os fins programáticos.
Dentro do contexto da cultura oficial que se estruturava após a morte de
Liénin em 1924 e que passa a ter como sustentáculo as posições conservadoras
da RAPP – Rossískaia Assotsiátsia Proletárskikh Pissátelei (Associação Russa
de Escritores Proletários), criada em 1925, o poeta tornara-se, segundo certas
facções, “incompreensível para as massas”, título, aliás, de um poema-defesa
escrito em 1927.
O Partido passa cada vez mais a controlar as questões artísticas e culturais e
o grupo da LEF é visto como um bando de “pequeno-burgueses esquerdistas”,
enquanto a RAPP seria, isto sim, a entidade detentora do verdadeiro “método
materialista-dialético”, com sua ênfase no realismo psicológico e apta, portanto,
a divulgar a “verdadeira literatura proletária soviética”.
No final de sua vida e para a surpresa e a crítica de muitos de seus colegas,
Maiakóvski acabaria por aderir à RAPP, movido certamente muito menos por
convicções estéticas do que pelas contingências extremamente adversas ao seu
trabalho criativo, com a progressiva consolidação da burocracia stalinista e do
realismo socialista.
É dentro desse contexto de perplexidade, diante de um gradativo esvazia-
mento, na década de 20, dos ideais revolucionários em todos os níveis da vida
russa e, em especial, no âmbito da literatura e das artes em geral, que se inserem
as duas últimas peças teatrais de Maiakóvski: O Percevejo, escrita em 1928, e
Os Banhos, de 1929.
Há quem veja no protagonista de O Percevejo, Prissípkin, a imagem reflexa
do próprio dramaturgo. A peça é, ainda uma vez mais, um dos textos em que o
poeta expressa sua eterna aversão pelos costumes pequeno-burgueses. Trata-se,
na verdade, de uma reflexão em tom grotesco e fantástico (o subtítulo assim a
qualifica: “Comédia Fantástica em Nove Quadros”) sobre o desenvolvimento
da vida e da cultura soviéticas, a partir da época da NEP (Nova Política Eco-
nômica), instaurada por Liénin por volta de 1921-1922, quando a Rússia se
abre a um breve período de livre mercado, favorecendo o comércio privado e o
lucro, como forma de substituir o “comunismo de guerra” e combater a fome
que assolava o país.
A peça mostra a história do operário Prissípkin, que abandona a sua classe
para se casar com a filha de um cabelereiro, a manicura e caixa Elzevira Renais­

321
Caderno de Literatura e Cultura Russa

san­ce, o que lhe traria certamente uma vida mais “refinada” e confortável, de-
pois das privações da guerra civil. Renega assim os seus companheiros pro-
letários, muda seu nome para Pierre Skripkin (de skripka,violino, em russo)
e despreza a namorada operária Zóia Beriózkina, que se suicida por amor. O
casamento pomposo na loja dos Renaissance, no final da primeira parte da
peça, termina com um grande incêndio, no qual morrem todos os convivas,
com exceção de Prissípkin, que fica congelado pelos jatos d’água dos bombeiros.­
A segunda parte da comédia se passa no ano de 1979, numa sociedade
do futuro racional e calculista, cinqüenta anos depois do congelamento de
Prissípkin. Este é encontrado numa barra de gelo e o Instituto das Ressurreições
Humanas resolve descongelá-lo. Com ele é descongelado também um percevejo
que surge inesperadamente de seu colarinho.
Com seu violão, seus trajes do passado, seu linguajar e suas maneiras “gros-
seiras”, Prissípkin deixa horrorizado aquele mundo do futuro, onde o amor,
o fox-trot, a vodca, enfim os prazeres triviais, não têm ali mais sentido porque
representam um passado decadente, superado pela sociedade planificada e
racional do futuro soviético.
Prissípkin não quer ser curado dessas “doenças”, resiste, mas seus micróbios
são considerados perigosos e ele acaba enjaulado e exposto num jardim zoológico
a uma multidão que vem de todas as partes, inclusive do Brasil, para observar
o prodígio. Sua única consolação é a presença do amado percevejo que lhe faz
companhia na jaula do zoológico, recordação reconfortante dos velhos tempos.
O diretor do jardim zoológico apresenta ao final os dois parasitas: “São dois
de tamanhos diferentes, mas idênticos na substância: trata-se dos célebres Cimex
normalis e Philisteus vulgaris. Ambos habitam os colchões mofados do tempo.
O Cimex normalis, após empanturrar-se e embriagar-se do corpo de um só
homem, cai embaixo da cama.
O Philisteus vulgaris, após empanturrar-se e embriagar-se do corpo da hu-
manidade inteira, cai na cama. Esta é a única diferença!”8 
As duas partes da peça articulam-se organicamente no plano dramatúrgico
e acabam por sublinhar a extrema ambigüidade que resulta da leitura do texto.
É certo que Prissípkin, na primeira parte da peça, quer fazer parte daquele
bando de népmani, pequeno-burgueses que tinham sede de viver bem depois


8. Cf. V. Maiakóvski, Polnoie Sobranie Sotchinenii (Obras Completas), Tomo 11, Editora
Khudojestvenaia Literatura, Moscou, 1958. Existe em língua portuguesa uma edição publicada
em Lisboa pela Editorial Presença, s/d. Há também uma versão brasileira, adaptação livre de Luís
Antonio Martinez Corrêa, com revisão de Boris Schnaiderman, espetáculo que estreou no Rio de
Janeiro, no Teatro Dulcina, em junho de 1981, e em São Paulo no Teatro Sesc-Pompéia, em 1983.

322
O Teatro de Maiakóvski: O Cubofuturismo no Texto e na Cena

das agruras da revolução e da guerra civil e que pipocavam nos dias da NEP
como insetos em revoada. Maiakóvski os ridiculariza e faz de seu protagonista
um autêntico bufão, que imita de modo grotesco as maneiras, as danças e os
gostos vulgares e grosseiros da classe a que aspira pertencer.
Sob o aspecto composicional, todos os quadros da primeira parte estão
sobrecarregados de objetos, cores e ruídos extravagantes. Personagens cômicas
e grotescas nos remetem ao ambiente filisteu que se quer mostrar e aparecem
cercadas por quinquilharias inúteis de gosto duvidoso, mas que preenchem
o vazio e o tédio daquele universo-simulacro de um Ocidente capitalista e
pequeno-burguês que dava o tom daqueles anos da NEP e que, afinal, se quer
aqui focalizar.
Acumulam-se, assim, os gritos dos pregoeiros e vendedores ambulantes
que oferecem sua mercadoria, a algazarra da rua, as cores vibrantes de um
ambiente festivo e carnavalizado, repleto de surpresas e truques cênicos, que
seduzem o operário Prissípkin. O texto está matizado de números circenses
e de expedien­tes dos teatros de feira russos, que apontam para o colorido e o
dinamismo próprios ao teatro de espetáculo.
O paroxismo dessa linguagem irreverente e hiperbólica da primeira parte
da peça culmina com o episódio do hilariante “casamento vermelho”: toda a
festa, os trajes, os objetos, as comidas, os copos, a bebida, tudo aparece tingido
de cor vermelha. Este universo dionisíaco é, subitamente, surpreendido pelas
labaredas vermelhas do fogo que tudo destrói, e que desmancha e dissolve
na fumaça aquela falsa e vulgar união entre o ridículo operário e a arrogante
família pequeno-burguesa.
Todo o grotesco modulado pelo texto foi transposto cenicamente por
Meyerhold em seu espetáculo, cuja estréia se deu em 13 de fevereiro de 1929.
Para as soluções cênicas, além do próprio Maiakóvski, o diretor contou com o
auxílio de três caricaturistas para os figurinos e a cenografia da primeira parte,
e de Ródtchenko para a criação do mundo ascético do futuro.
A segunda parte da peça se apresenta assim, nos vários níveis composicionais,
em completa oposição à primeira. Há, antes de mais nada, uma reviravolta no
enfoque dramático da personagem. Ao ser descongelado, cinqüenta anos depois,
o operário, ainda com os trajes das núpcias, vê-se lançado num mundo futuro
de homens-fantoches, frios e racionais. A ótica esboçada na primeira parte se
esvai e o protagonista surge, por assim dizer, “estranhado”. O contraste entre os
dois mundos (passado-futuro), posto sob reflexão na segunda parte da peça,
desautomatiza a visão primeira que nos foi apresentada.
Corrobora para isso a estruturação cênica modulada pelo texto: à extrava-
gância cromática da primeira parte contrapõem-se agora, na representação do

323
Caderno de Literatura e Cultura Russa

futuro, a secura e o despojamento do traçado construtivista proposto. A anarquia


visual anterior é substituída pelo rigor e pelo equilíbrio racionais que com­
binam armações de vidro e metal, telas brancas, alto-falantes metálicos, apa-
relhos médicos, cientistas assépticos vestidos de branco; enfim, o ambiente e
os objetos que cercam agora o protagonista são produtos de uma sociedade
“organizada”, geométrica e racionalizada, que congrega uma multidão muito
diferente daqueles fantoches circenses que povoam a cena na primeira parte.
Desta feita, a cena está coberta de autômatos frios e calculistas que não conhe-
cem o ciúme e o amor.
Prissípkin resiste a esse mundo futuro incolor, insosso e sem paixão, onde o
amor é visto como um micróbio nocivo e destrutivo. Não pretende fazer parte
daquele mundo de pretensa perfeição, onde ele não parece mais um indivíduo,
mas apenas um ser “exótico” que deve, como o percevejo, ser capturado e preso
numa jaula para exposição. “Ao diabo vocês e vossa sociedade! Não fui eu que
pedi que me ressuscitassem. Recongelem-me!”, desespera-se, mantendo-se fiel
a seus ideais e preceitos do passado.
A solidão e o sofrimento do protagonista diante de um mundo “racional” e
impassível são postos agora em primeiro plano e Maiakóvski, como que deixan-
do transbordar, mais uma vez, um eu lírico subjetivado (como, aliás, em vários
de seus textos e já em sua primeira peça Vladímir Maiakóvski, uma Tragédia,
de 1913), clama por ajuda e compaixão, revirando os matizes de significação
do texto: “Cidadãos! Irmãos! Meus caros! Mas de onde vêm vocês? Quan­tos
são? Quando os descongelaram? Mas por que só eu devo ficar na jaula? Irmãos,
meus caros! Por que me deixam sofrer sozinho? Cidadãos!”
Muito se tem discutido sobre a apreensão ideológica final da peça. O crítico
A. M. Ripellino chegou a salientar: “Com sua ambigüidade a comédia nos deixa
na dúvida: é verdade que a grosseria filistéia sobrepujou os ideais da revolução,
mas o futuro do comunismo não é mais consolador do que o presente. Quem
seria capaz de resistir num consórcio tão puritano e tedioso?”9 
Se não se trata explicitamente de uma denúncia da sociedade socialista
do futuro, não há como negar uma crítica profundamente irônica aos rumos
que tomava a construção de um mundo novo. Há quem considere também a
imagem final de Prissípkin a expressão da própria frustração do poeta, isolado
entre seus contemporâneos, atacado pelos críticos de todos os lados, vítima da
incompreensão perante um contexto soviético que o acusava cada vez mais de
ser um artista “incompreensível para as massas”.

9. Cf. A. M. Ripellino, op. cit., p. 179.


324
O Teatro de Maiakóvski: O Cubofuturismo no Texto e na Cena

Apesar de Maiakóvski ter passado para a história oficial soviética como poeta
emblemático do regime, seu teatro foi silenciado por muito tempo, o que indica
a complexidade de seus textos e a dificuldade de enquadramento em padrões
ideológicos rígidos e simplistas.
Na verdade, sua dramaturgia e sua obra como um todo, a par das vincula-
ções temáticas ou ideológicas com o momento histórico no qual se inserem,
devem ser analisadas a partir de uma perspectiva que leve em conta a sua rica
contribuição no campo da poética e da estética teatral.
Tanto em O Percevejo, quanto em Os Banhos, sua última peça, escrita em
1929 e encenada por Meyerhold em 1930, e mesmo antes, em Mistério-Bufo,
de 1918, observa-se a mesma busca de uma nova linguagem teatral vinculada
aos preceitos estéticos que presidiam toda a experimentação que marcava os
diversos campos artísticos no período das vanguardas.
É curioso que durante muito tempo a crítica soviética impôs a idéia de
que a obra pré-revolucionária de Maiakóvski seria “imatura”, enquanto
que o seu ápice criativo estaria nos textos ”revolucionários” da década de
20. Ao mesmo tempo, uma outra visão crítica, como, por exemplo, a de A.
M. Ri­pellino, em seu artigo “Reler Maiakóvski”10, considera, ao contrário, que
o verdadeiro valor do poeta encontra-se em seus textos escritos antes da Re-
volução e que, ainda depois, o melhor de sua obra estaria ligado às propostas
estéticas do cubofuturismo, sendo que seus textos de encomenda, seus artigos
assertivos, muitos deles ligados à propaganda política, seriam desprovidos de
talento e teriam perdido, com o passar do tempo, muito de seu impacto e de
seu brilho.
De fato, não me parece que essa compartimentalização da obra maiakovs­
kiana deva orientar a justa reflexão crítica. É possível apreender, isto sim, uma
organicidade e uma linha estética evolutiva que articulam os diversos momentos
e as diferentes injunções históricas a que sua criação esteve submetida.
Antes de mais nada, o mundo poético maiakovskiano está marcado, de
modo geral, pela visão hiperbólica, que dilata e transforma, de forma irônica
e freqüen­temente cômica, a sua visão do homem e dos objetos, elementos e
arquiteturas que o rodeiam.
Assim, desde o princípio, mesmo em seus textos mais líricos e subjetivos
como, por exemplo, a peça Vladímir Maiakóvski, uma Tragédia, a polêmica
social já está presente, mas por meio de uma série de deformações hilariantes
que marcam a sua obra como um todo: a sua obsessão por figuras obesas, que,

10. Cf. A. M. Ripellino, “Releer Maiakóvski”, Sobre Literatura Rusa: Itinerario a lo maravilloso,

Barcelona, Barral Editores, 1970.

325
Caderno de Literatura e Cultura Russa

aliás, aparecem em vários de seus próprios desenhos e caricaturas, constitui


um traço distintivo.
Além disso, metáforas excêntricas, de onde irrompem, com freqüência, cria­
turas desprezadas, desesperadas, doentes e abandonadas, procedem, sem dúvida,
inclusive em suas últimas peças, de uma modulação visual, própria da pintura
cubofuturista, assimilando seus procedimentos, suas cores, suas decomposições
geométricas. Daí a constante experimentação poética, mesmo em seus textos
dramatúrgicos, com a materialidade do signo verbal, o aspecto sonoro e tangível
da palavra, os jogos verbais burlescos e abstratos que nos remetem ao campo
da linguagem do grotesco e também às próprias investigações lingüísticas dos
formalistas russos, inspiradas também, sob certo sentido, na fragmentação do
objeto e no abstracionismo pictórico.
Mas a comicidade resultante é, na maioria das vezes, e principalmente
em suas últimas produções, tensa e atormentada, caindo continuamente no
trágico, ainda que sob a máscara de uma “comédia feérica” (O Percevejo) ou
de um “drama com circo e fogos de artifício” (Os Banhos). Resta, por isso, até
em seus últimos textos, certa ambivalência angustiante, ainda que cômica: o
anseio da justiça e da crítica social e a busca obsessiva pela transformação do
mundo revelam, em sua contrapartida, a imagem da solidão profunda e da
incapacidade de inserir-se na pequenez do consórcio humano. As hipérboles
e sonoridades dilatadas, os jogos verbais deformantes soam, talvez, como gri-
tos contra a solidão e o sofrimento daquele mesmo “eu lírico” que já se vinha
esboçando desde Vladímir Maiakóvski, uma Tragédia.
No entanto, não se pode esquecer que aparece também no teatro maia­
kovskiano um riso que afunda suas raízes na tradição cultural popular, em
especial no teatro de feira, no teatro de marionetes com suas arlequinadas
cômicas, onde o riso, numa perspectiva bakhtiniana, está ligado àquele autên-
tico riso festivo popular que acentua a visão carnavalesca e cômica do mundo.
Aliás, toda a geração dos futuristas russos esteve muito voltada para a cul-
tura popular, a tradição pictórica dos ícones, por exemplo, a tradição oral das
canções, ditos e provérbios do saber popular, mesmo quando sua utilização se
fez através de procedimentos da estilização e da paródia.
Assim também, a obra dramática de Maiakóvski apresenta, ao lado das ex-
periências mais modernas no âmbito dramatúrgico e cênico, o aproveitamento
da tradição do teatro popular: o humor grosseiro do teatro de feira, o ritmo
frenético circense com seus palhaços e bufões, com suas máscaras grotescas, os
expedientes de variados clowns e seus truques espetaculares, como, por exem-
plo, a viagem no tempo, as ressurreições no futuro (tema, aliás, recorrente), os
fogos de artifício, enfim, tudo isso nos leva a uma aproximação com as figuras

326
O Teatro de Maiakóvski: O Cubofuturismo no Texto e na Cena

e imagens das comédias populares e com as formas do cômico popular da


pra­ça pública. Vejam-se, por exemplo, as figuras estilizadas dos puros (os
burgueses) e dos impuros (os operários) na peça Mistério-Bufo, ou a alga-
zarra festiva e ritualística do casamento de Prissípkin em O Percevejo, ou os
“heróis” burocratas, cômicos e caricatos, em Os Banhos, sem contar a máquina
do tempo­prodigiosa, capaz de a todos enviar em poucos segundos para um
tempo futuro.­
Nesse sentido, Maiakóvski reencontra também todo o filão de autores cô-
micos do século XIX, como Gógol, Ostróvski e até Tchékhov, de cujas imagens
e personagens cômicas e grotescas há na dramaturgia de Maiakóvski inúme-
ras correspondências. Por exemplo, o sistema criativo de Maiakóvski de fazer
corres­ponder os nomes próprios de suas personagens às suas características
físicas ou comportamentais, trabalhando os nomes no sentido de desnudar a
sua própria essência semântica e sonora para criar, assim, máscaras perfeitas
para os personagens, nos remete de imediato aos procedimentos da literatura
gogoliana. Assim como também o aproveitamento de todo o chamado “gênero
baixo” da literatura jornalística, todo o material da atualidade não-literária, a
anedota oral cotidiana extraída das formas da linguagem coloquial e da rea-
lidade imediata das ruas com suas gírias e modismos, tudo isso nos conduz
à “gesticulação sonora”, de acordo com a teorização de Boris Éikhenbaum,
característica da obra de Gógol11.
O que Maiakóvski rejeita de modo ostensivo é o teatro naturalista com suas
análises psicológicas e suas minúcias. Daí com freqüência a sua sátira veemente­
ao Teatro de Arte de Moscou e ao “sistema” de Stanislávski. Basta lembrar o
terceiro ato de Os Banhos, onde a ação e os personagens são transportados,
i­nes­peradamente, para o palco de um teatro, onde se assiste aos ensaios de
u­ma pretensa comédia. Com o recurso da metalinguagem, o que se esboça ali
é uma verdadeira sátira ao teatro realista tradicional.
Em última análise, o que está em pauta nesta poética é uma outra ótica, ou,
melhor, uma outra linguagem cujo “distanciamento” ou “estranhamento” resulta
de uma técnica de deformação que se poderia chamar “nova objetividade”, num
sentido amplo do termo.
Um primeiro componente que se observa é a oposição à concepção tradicio­
nal da arte como mímesis, tal como formulada especialmente pelo naturalismo,
pressuposto genérico e comum a todas as correntes de vanguarda. Daí a libe-
ração da tarefa de reproduzir “fotograficamente” a vida, convertendo o tea-


11. Cf. B. Éikhenbaum, “Como é Feito O Capote de Gógol”, Teoria da Literatura – Formalistas
Russos, Porto Alegre, Globo, 1971.

327
Cadernos de Literatura e Cultura Russa

t­ro numa forma de expressão baseada essencialmente na invenção formal e


orientada no sentido de representar o aspecto inabitual e inesperado do mundo.­
Se a linguagem realista-naturalista, além do princípio da mímesis, postula a
identidade entre a coisa representada e o significado, isso equivale a dizer que
o significado artístico coincide com os acontecimentos apresentados no palco.
A poética teatral maiakovskiana, contrária ao postulado naturalista, baseia-se
no critério da não-coincidência entre o significado e a coisa representada, o que
implica basicamente uma poética antiaristotélica, contrária à identificação do
espectador com a cena e dirigida, isto sim, a um distanciamento reflexivo que
permita fomentar o enriquecimento da própria sensibilidade e da consciência
crítica e estética.
Nesta poética, texto dramático e procedimentos cênicos formam, assim, uma
unidade inseparável em função de uma determinada estratégia. Não foi por
acaso que toda a atividade teatral de Maiakóvski esteve marcada pelo encenador
de vanguarda V. Meyerhold.
A estilização, o grotesco, a estrutura de vinhetas e quadros destacados
adequavam-se perfeitamente à estética teatral de Meyerhold, que, por sua vez,
tragava da linguagem cinematográfica e da teoria eisensteiniana da montagem
a tendência à desarticulação em fragmentos rítmicos, amontoando os acon-
tecimentos numa sucessão de breves episódios, muitas vezes contrastantes.
Também a desproporção, o bizarro, a hipérbole, o excentrismo do music-hall e
do circo para a construção das imagens cênicas demonstram ser absolutamente
comuns as predileções de Maiakóvski e de Meyerhold.
Até em certa impostação política coincidem as fórmulas de Meyerhold e o
teatro de Maiakóvski. No entanto, todo o vivo substrato de inspiração nas formas
da cultura e do teatro popular impediu que seus trabalhos se transformassem
em frios debates didáticos de fórmulas políticas.
Tanto Maiakóvski quanto Meyerhold, servindo-se do movimento, cores,
truques e de toda a experimentação que o palco moderno lhes oferecia, puderam
transformar a arte teatral num dos fenômenos artísticos mais instigantes de
todo o movimento das vanguardas russas, abrindo perspectivas para a criação­
de uma nova linguagem artística, marcada, sobretudo, por uma nova alian­ça
entre a palavra e a imagem e pela inter-relação entre as diversas artes, traço,
aliás, fundamental de nossa contemporaneidade.

Abstract: The purpose of this article is to analyse the evolution of the poetic of Maiakovski’s
theatre in the artistic and aesthetic’s context of Russia of the 20th.
Keywords: Russian vanguardas; Russian theatre; Maiakovski.

328
Três desenhos de Maiakóvski para os figurinos do sapateiro,
do padre e para a cenografia do espetáculo Mistério-Bufo.
O ator Ilínski no papel de Prissípkin em O Percevejo.
O professor e Prissípkin descongelado na 2a parte de O Percevejo.
Zinaída Raikh, esposa de Meyerhold, no papel da
“Mulher Fosforescente” em Os Banhos.
Cena de Os Banhos.
Cena final de Os Banhos.
Herzen Ontem e Hoje
Danilo Morales

Resumo: Este texto discute a vida e o pensamento do escritor russo Aleksandr Herzen.
Relata-se a atuação publicista antes e depois dos processos de 1848. A partir de uma re-
leitura de Nikolai Berdiáev, investigamos as relações culturais de Herzen com movimento
inovador na Rússia czarista, nos caminhos do exílio da Europa, assim como a natureza de
suas afinidades com a cultura eslava, com os horizontes da utopia. É avaliada sua influência
decisiva para a dinâmica da imprensa revolucionária, criando na Rússia espaços de leitura
e de pesquisas, preparando o ambiente de difusão de propagandas das décadas de 1870
e 1880.
Palavras-Chave: Eslavofilia; ocidentalismo; intelliguéntsia; narodnismo; messianismo;
profetismo; liberdade; justiça.

Qualquer pessoa interessada no estudo da cultura russa tenderá a dirigir seu


olhar para o século XIX e de modo particular para a obra de Aleksandr Herzen
(Moscou 1812-Paris 1870). O que nos atraiu a atenção, quando estudante do
colegial (1963) e depois na pós-graduação (1997), foi a vastidão e a multi­pli­
ci­dade de temas, problemas, desafios teóricos que às vezes aproximavam, ora
dis­tan­ciavam, a perspectiva de confrontar as fontes nacionais, acima de tudo, à
história cultural e literária da Rússia. No presente trabalho pretendemos seguir
algumas pistas de construção da história intelectual russa e européia, algumas
manifestações significativas da história literária, bem como os desdobramen-
tos teóricos e metodológicos que nos permitam esboçar a figura de Herzen e
determinar sua contribuição para o pensamento literário e social na Rússia e
na Europa. Para isso nossa exposição será dividida em duas partes: a primeira
parte tratará de um panorama geral da cultura e da literatura russa; a segunda
Caderno de Literatura e Cultura Russa

parte incidirá sobre o pensamento de Herzen e suas repercussões em diferentes


campos do saber.
Na prospecção de fontes que nossa investigação empreendeu, uma primeira
linha temática situa o pensador russo no conjunto dos pioneiros do espírito.
Neste caso tem sido alinhado ao lado de Soloviov e da geração de Dostoiévski e
Tolstói. Uma segunda linha de aproximação focaliza a atuação liberal de Herzen,
tentando observá-lo em suas relações afins ao círculo de Stankiévitch e a Belínski,
no qual florescem os primeiros debates em torno da eslavofilia, do hegelianismo
e da libertação da Rússia. Uma terceira linha temática depara os desdobramentos
de Herzen exilado em Paris, destacando suas relações próximas a Bakúnin, Prou-
dhon, Mickiewicz, Mazzini, Garibaldi, Victor Hugo, entre outros. Uma quarta li-
nha de investigação, com ênfase política, enfoca a atuação de Herzen em Londres,
em Genebra e em Paris, demarcando o desempenho dos “exilados românticos”
em contraste com os “revolucionários científicos”, numa contraposição entre a
visão do movimento naródniki e a concepção de extração marxista.
Essas linhas de perquirição referem-se a estudos dos anos 1960 a 1980. Valeria
acrescentar a elas os campos de pesquisa dos anos 1990, ou que começaram
a ser divulgados no Brasil nessa década, em que despontam as pesquisas em
torno de Mikhail Bakhtin, de Dostoiévski e ensaios sobre cultura russa. Tal
divulgação reavivou a temática dos pensadores que se detêm no senso comum,
no romantismo e na revolução, do mesmo modo que as abordagens lançam
luz sobre o caráter da época e as séries de registro documental e literário. Nessa
direção há os estudos sobre Dostoiévski, Tolstói, Tchékhov, Herzen e Gógol.
Ainda nessa década, existe uma nítida preocupação dos especialistas em
história, economia, sociologia, crítica literária, em avaliar os acontecimentos
anteriores e posteriores ao colapso da União Soviética e da nova ordem mun-
dial, em que reaparece a Rússia da era Gorbatchov, bem como a temática da
transição para o “reino da liberdade”. Nessa atitude busca-se a ressignificação
da idéia de liberdade, a experiência dos populistas russos e a emergência da
democracia liberal planetária. Nesse enquadramento, A. Herzen é revisitado
como um crítico do modelo “liberal-ocidental” e da “burguesia” européia, mas
defensor de uma concepção “socialista” capaz de valorizar as formas de liberda-
de. Nesse domínio situam-se tanto os estudos de A. Walicki como a pesquisa do
antropólogo Rubem Cesar Fernandes. Neste último caso, trata-se de pesquisas
de um antigo exilado na Polônia, que trata de reelaborar a controvérsia dos
populistas russos em confronto com a experiência brasileira, cuja publicação,
no entanto, remonta aos anos 1980.
Nossa exposição buscará referendar-se em diferentes tradições e autores,
que constituem fontes seletivas, a saber:

336
Herzen Ontem e Hoje

– Isaiah Berlin, estudioso da história das idéias, dedicado aos pensadores


russos, com alguns estudos sobre Herzen, suas memórias e o período do exílio;
– Franco Venturi, com estudo importante sobre o populismo;
– Bohdan Chudoba, escritor morávio, de formação católica, com importante
estudo voltado para a Rússia e a Europa oriental, detendo-se na temática do
eslavismo;
– Nikolai Berdiáev, filósofo russo, com obra significativa publicada inicial-
mente na Rússia e depois na França, versando sobre as fontes do comunismo
russo, o sentido da história e o destino do homem no século XX.
– Joseph Frank, conhecido estudioso da obra de Dostoiévski, com impor-
tantes ensaios sobre literatura e cultura russas.
Quanto ao pensamento e vida de Herzen, utilizamos obras disponíveis em
diferentes idiomas. De modo especial devemos mencionar:
Herzen, A. Textes philosophiques choisis. Moscou, Editions em langues
étrangères, 1948.
Herzen, Aleksandr Ivanovic. Il Passato e i pensieri. Milano, Fel­tri­nelli Editore,
1961. A cura di Lia Wainstein.
Herzen, Aleksandr. El desarrollo de las ideas revolucionarias en Rusia. Mé-
xico, Siglo XXI, 1979.

Um Destino Não-manifesto

Ao fazer o esboço de uma visão de conjunto, a primeira impressão que temos


é que a história da Rússia e da Europa, no século XVIII, são como continentes
estranhos e que aquilo que os historiadores costumam designar como Ocidente
foi algo anódino à vida dos povos russos e não-russos pelo menos até 1815,
quando se formam as nacionalidades por toda a Europa. No entanto, o comér-
cio das idéias iluministas já era corrente na Rússia do começo do século XIX,
quando se observam manifestações do Romantismo alemão e do materialismo
francês, o que se refere às camadas cultas da sociedade, que são educadas e se
vestem à moda germânica, lêem e falam o francês, e começam a perceber uma
expressão da literatura nacional.
No século XVIII é possível achar os contornos do império, os chefes e os
nobres da Rússia, em amplos territórios, onde vivem os agricultores em regi-
me comunal. No final desse século, a Europa oriental está dividida em qua­tro­
Impérios – o Império Russo, o Santo Império Romano, o Império Tur­co e
a Prússia. Logo de início, devemos reter dois fatos: a busca de unidade em
vasto território, missão assumida pelo atamã Rázin, bem como a procura

337
Caderno de Literatura e Cultura Russa

pelos extratos cultos da unidade lingüística, em que deparamos com uma


controvérsia entre o russo vernacular e o vocabulário eslavo.
Destarte, a temática da comunidade camponesa, da terra russa e das línguas
faladas é algo permanente na cultura. Um importante documento aparece em
1790, quando Aleksandr Radíchtchev publica Uma Viagem de São Petersburgo
a Moscou, com uma crítica sobre a vida camponesa e a servidão. Da grande
repercussão decorre que o czar o desterra para a Sibéria.
Pode-se observar que o Império Russo crescia em população. O impulso de
expansão é notável na ação absolutista do czar Alexandre I. O fato significativo
é que, em 1812, o exército de Napoleão invade a Rússia. Trava-se a batalha de
Borodinó; o grande exército francês recua, com grandes perdas humanas. Em
1813, o czar vence Napoleão Bonaparte, perto de Leipzig; em conseqüência,
dita as condições de paz, colocando um Bourbon no trono. Na Europa orien-
tal fluirá um júbilo nas elites dominantes, com exceção do povo polonês. No
período 1815-1845 temos o grande capítulo conhecido como Restauração e
Re­vo­lu­ção, em que é possível observar o jogo das nações européias, as elites ilustra­
das­e os povos ainda à margem da civilização ocidental. Indício desse tabuleiro
é o acontecimento de 1814, quando ocorre o Congresso de Vie­na, que visava
ao reordenamento da Europa. Ali o czar russo, vencedor no terreno militar, é
derrotado pelos diplomatas Talleyrand e Metternich. Isso acarreta uma im-
portante reformulação interna na Rússia: o poder czarista tenta exercer um
controle maior sobre a agricultura.
A atitude do czar inclinava-se a confiar às unidades militares, dispersas pelo
Império, tarefas de natureza agrícola, tornando-as um tipo de empresas agrárias
de propriedade estatal1.
Nos anos 1820, as idéias, a moda e as formas de agir da Europa ocidental
são visíveis nos salões de Petersburgo e Moscou. De modo especial as idéias
“francesas”, a par da tradição nacional, especialmente dos poemas de Púchkin,
que entoa o gênio das letras russas. Aparecem grupos da fidalguia que come-
çam a manifestar insatisfação e até irritação para com o poder absolutista. Daí
resultará a sublevação dos nobres em 14 de dezembro de 1825. Esta rebelião
contra a autocracia foi reprimida pelas tropas do czar. Nos estudos históricos e
políticos, aparece a chamada “conjuração dos Decembristas” (cf. Walicki, Uma
História do Pensamento Russo, Stanford, 1979; Ulam, Os Bolcheviques, 1965).
Um aspecto relativamente unânime em torno do fenômeno é que essa rebelião
comoveu camadas jovens da nobreza, além de ter aguçado a percepção dos
intelectuais para a seguinte indagação: O que será que havia em Púchkin e que

1. Cf. Bohdan Chudoba, Rusia y el Oriente de Europa, Madrid, Ediciones Rialp, 1980, p. 159.

338
Herzen Ontem e Hoje

não prevalecia no pensamento e na literatura francesa, então considerada a


mais alta expressão do século?
Aleksandr S. Púchkin não era apenas um poeta de êxito na Corte. Sua obra
transmitia a percepção de um brilhante conhecedor do povo, pois havia viajado
por toda a Rússia, observando a estepe, a montanha, a floresta do Norte, o mar.
Em sua literatura, acalenta um universo variado e compacto. Esta varie­dade
continua nos tipos humanos de Nikolai Gógol, em que celebra uma inspira-
ção mística e uma extraordinária veia irônica. Nessa narrativa aparece tanto a
pequena nobreza conservadora quanto a aristocracia revolucionária, desejosa
de novos caminhos para a sociedade russa. Há um ímpeto de inovação, que
culminará com as reformas do ensino, na década de 1860. Antes disso, há car-
reiras pedagógica e administrativa, que se desenvolvem principalmente nas
cidades de Petersburgo, Kazan e Moscou. Nelas é possível encontrar a atividade
cultural, não só como expressão literária, mas nas pesquisas em matemática
e física. Tal foi o caso de Bolyai e Lobachevski, cujas pesquisas sobre o espaço
levam à geometria não-euclidiana. Neste panorama, podemos encontrar in-
dícios de que o mundo das ciências, em especial a história da matemática, era
um campo fértil, embora dentro de uma Rússia provinciana, que causava certa
repulsa aos viajantes europeus.
O ambiente elevado e culto da aristocracia e dos sábios evidencia a potencia­
lidade que emergirá com as reformas da década de 1860, trazendo o patrocínio
das escolas públicas, mediante a ligação estreita entre Ministério da Educação
e órgãos provinciais e municipais.
No entanto, na década de 1830, jovens intelectuais oriundos da nobreza
manifestam a aspiração de equiparar as condições internas e sociais da Rússia
com o momento mundial vivido pela Europa. Nesse período, as idéias “ale-
mãs” de Schelling e Hegel começam a penetrar nos círculos dos estudantes.
Em particular, Hegel enche de entusiasmo os corações de jovens como Be-
línski, Herzen, Ogariov, Bakúnin. Esses jovens da nobreza moscovita, desde
o início, suscitam dúvidas sobre as “realidades” imediatas. A preocupação
comum dos círculos literários era promover o debate quanto ao que seria a
“nova sociedade” e o perigo de esquecer a individualidade em face da massa
a ser politizada.
Os historiadores caracterizam tal momento da história cultural da Rússia
como a manifestação de uma dominação hipertrofiada em que prevalece um
Estado que não distingue entre povos russos e não-russos. Essa situação avança
com a modernização do país, cuja face se mostrará na principal reforma do
czarismo: a abolição do regime servil (1861). Apesar disso, o regime fundiário
continuará, com a terra atrelada à comuna rural.

339
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Antes dessa reforma, os espíritos mais atilados procuravam fórmulas capazes


de intuir a reconstrução teórica da ordem social. No começo dos anos 1840,
a separação entre o mundo dos nobres e a vida dos camponeses, a sociedade
ilustrada e a servidão, a nobreza empobrecida e os funcionários ou candidatos
a serviço do Estado, tudo isso eram temas de conversas travadas nos círculos
de intelectuais. Estes serão chamados respectivamente de eslavófilos e ociden­
ta­lis­tas.
Em princípio, o fenômeno que se manifestava era o da intelliguéntsia, isto
é, a expressão organizada em redutos intelectuais de sentimentos pessoais, de
aspirações coletivas, de correntes filosóficas de origem idealista (alemã) ou
materialista utópica (francesa). Aparentemente os eslavófilos (Slavianofíly)
tinham um olhar mais detido para o passado, para a tradição da antiga Rússia,
enquanto os ocidentalistas (Západniki) têm o olhar debruçado para o futuro ou
para o passado, mas com anseios de mudança. Esses grupamentos passarão por
várias fases, com alas mais conservadoras ou mais radicais quanto ao projeto
social. Entretanto, enquanto atitude intelectual, o depoimento mais significa-
tivo da intelliguéntsia pode ser encontrado no escritor e crítico Belínski, que
declara, ao resumir os frutos de sua pesquisa filosófica: “todos os sentimentos
puramente pessoais e subjetivos são irrelevantes [...] tudo depende da neces-
sidade objetiva”2.
O relato de Vissarion Belínski corresponde a um itinerário intelectual que
será percorrido também por Bakúnin e por Herzen, todos tendo como referência
o pensamento filosófico de Hegel. Duas obras do filósofo alemão eram objeto de
leitura nos círculos literários: a Ciência da Lógica e a Fenomenologia do Espírito.
Porém, do sistema hegeliano conseguiam extrair o conhecido princípio que era
tomado como axioma: “O que é racional é real e o que é real é racional”. Com
isso aceitavam os fatos reunidos sobre o mundo existente, de tal modo que
pudessem ser classificados por meio de “palavras racionais” e traduzidos por
“juízos”. De modo que o período dedicado à leitura e assimilação de Hegel era
variável e até relativamente curto, de um estudante para outro.­Assim, tanto
para Belínski quanto para Herzen, estava em causa, ao estudarem a religião,
não o cristianismo considerado moral de escravos, mas a convicção de ser ela
uma “fantasia”, um produto ilusório, que mostrava o mundo, antes de tudo,
como um produto do século “moderno”, europeu.
E acaso apareciam sinais da modernidade do século?
As estradas de ferro, as viagens a vapor, a comunicação por cabograma não
eram desconhecidas na Rússia. Contudo, o jovem Herzen evidenciava sua crença

2. Chudoba, 1980, p. 218.

340
Herzen Ontem e Hoje

elogiando o cabograma, que para ele constituía uma “prova de que apenas a
ciência teve a chance do mistério da vida”. Isto significava dizer que os êxitos
alcançados pela ciência representavam certo ideal da Europa ocidental que o
povo russo deveria adotar.
O quadro anteriormente descrito permite que suscitemos a questão central
que será vivida e debatida pela intelliguéntsia russa. Trata-se da posição que
cada intelectual e cada estrato social assumirá diante dos limites de uma dupla
cultura (própria e européia), que tenderá a expressar-se em atitudes caracte-
rísticas da cultura: eslavofilia e ocidentalismo. Costuma-se afirmar que a alma
russa está cindida, mostrando-se emblematicamente nas teses de Dostoiévski
e de Herzen.

Decembrismo e Utopia

Os historiadores Chudoba e Walicki (Walicki, 1979) chamam a atenção


para o desenvolvimento histórico que impregnará a literatura russa do século
XIX. Começa com o império nobiliário de Catarina, que se torna um Estado
hierar­quizado, com estamentos burocráticos e que toma a forma definitiva no
longo reinado de Nicolau, e à medida que a instrução pública se democratiza,
as transformações refletem-se nas elites intelectuais. O fato relevante é que os
razno­tchíntsi (pessoas de todas as origens), filhos de funcionários de baixo es-
calão, membros do clero, comerciantes, artesãos e até servos livres, misturam-se
cada vez mais com os fidalgos.
Se é verdade que as mudanças sociais tornam-se visíveis nos anos 1830-1840,
outro aspecto favorável à modificação na fisionomia das elites foi a filosofia
alemã, que, como assinalamos, havia penetrado na Rússia nos anos 1830.
Schelling e Hegel ali encontram seguidores entusiastas. Discutem-se sistemas
e teorias, mas o que o pensamento russo deseja, de fato, são as conclusões de
ordem prática, que procura extrair de doutrinas metafísicas. Com esta atitude,
os pensadores russos produzem um domínio que se tornará sua especialidade,
a saber: a filosofia da história. Os espíritos atilados, literatos, historiadores,
sociólogos, cientistas, estudarão o destino peculiar da Rússia para deduzir, a
partir da tomada de consciência própria, uma regra de conduta política, ética
e social. Em face dos anos de repressão no pós-guerra napoleônica, os espíritos
acreditam num mundo de males e desgraças, o que é nutrido pela sobrevivência
da servidão. Esse ambiente é que levará ao nascimento dos grupos ideológicos,
das atitudes típicas da cultura russa.
As duas correntes têm em comum um antepassado ilustre: Pedro, o Gran-
de. Ele é considerado o ponto de partida da Rússia como nação, que brotaria

341
Caderno de Literatura e Cultura Russa

da experiência na luta contra os bárbaros mongóis (tártaros). E como teria


surgido a servidão anacrônica dos anos 1840?
Dostoiévski caracteriza o fenômeno como um regime imposto por vare-
gues e mongóis ao povo eslavo. Contudo, no servo, no camponês, está a raiz
e a pos­sibilidade de uma mensagem de fraternidade universal do povo russo.
Ao lembrar o poeta Púchkin em 1880, Dostoiévski fala do povo, salientando
que a grandeza desse poeta foi ter sido capaz de captar a “alma russa”: “não foi
em nossa civilização atual nem em nossa chamada cultura européia, nem nas
formas européias adotadas do exterior, mas a verdade revelou-se apenas no
espírito do povo russo e tão-somente nele”3.
Nessa fala, Dostoiévski questiona a palavra nova que é almejada por certas
camadas, caso a Rússia viesse alcançar um desenvolvimento “econômico e
político”. Ele pondera que a mensagem nova para a humanidade não provirá
da Europa, indagando: o que significa “assimilar a cultura européia”? Para ele,
equivaleria a implantar entre os russos a constituição de feitio europeu. E acaso
isso não seria uma cópia impessoal e servil da Europa? Trata-se da imitação
como tentativa de representar a realidade imediata. Dostoiévski alega que não
se trata de deixar de admirar, de conhecer e assimilar o realizado pela Europa.
Desde que tal admiração não crie obstáculos ao que deve ser a aspiração fun-
damental do povo russo, ou seja, a autoconsciência, o conhecimento da própria
identidade. Sua aspiração é voltada para a educação do povo. E não se poderia
educar o povo, privando-o de seu passado. Caso contrário, em vez de povo,
teríamos uma “horda indigna, bárbara”. O gênio da cultura russa, porém, não
é inferior, apenas diferente do europeu, porque diferentes são as experiências
de seu povo. Assim, o escritor russo eslavófilo reconhece que a diferença entre
as duas correntes é um equívoco, embora corresponda a um equívoco histo-
ricamente necessário.
Herzen concorda com alguns aspectos desse discurso, principalmente no
argumento de ser a Rússia portadora de uma mensagem universal, desde que
tenha rompido os grilhões da servidão. Esclarece que é preciso criar as condi-
ções de possibilidade para utilizar os bens gerados pela ocidentalização. Para
ele, o grande mal dos russos está no modo como eles foram moldados, que não
coincide com os ideais da Europa da qual desejam fazer parte. Segundo Herzen,
essa constitui a tragédia de toda a literatura russa, de toda a sua cultura. Obser-
va que existe um povo pleno de ideais sem conseguir concretizá-los.

3. F. Dostoiévski, “Para um Discurso sobre Púchkin”, in: Leopoldo Zea, Discurso desde la
marginación y la barbarie, Barcelona, Anthropos, 1988, n. 169.

342
Herzen Ontem e Hoje

A meditação de Herzen incide na realidade dos jovens encarcerados, assas-


sinados ou exilados pelo czar.
Na realidade, sob a tirania de Nicolau I, as duas atitudes se cristalizam e,
como tal, passam a ocupar a centralidade na evolução do pensamento russo.
Herzen, contudo, pertence a uma fração ou ala esquerda dos ocidentalistas, ori-
ginariamente composta por liberais moderados ou conservadores esclarecidos.
Sua primeira identificação é com o grupo que assumiu o liberalismo moderno
na cena social russa, isto é, os decembristas. Ao recordar o movimento­de 14
de dezembro de 1825, Herzen ressalta a quebra das ilusões. Como observador
arguto afirma:

Todo homem consciente via o resultado terrível do divórcio entre a Rússia nacional e
a europeizada [...] Alguns pensavam que não se chegaria a nada deixando a Rússia a re-
boque da Europa. Suas esperanças estavam fundadas na volta ao passado. Outros viam no
futuro apenas infelicidade e desolação. Maldiziam a civilização híbrida e o povo apático.
[...]
Quem é então este monstro que se chama Rússia, necessitado de tantas vítimas e a
cujos filhos só resta a alternativa de perda moral num meio adverso que nega tudo o que
existe de humano, ou que os obriga a morrer no começo da vida?4

O argumento reiterado por Herzen toma forma emotiva, ao acrescentar


que gritos dolorosos na crítica cortam as entranhas da nação. Para soltar esses
gritos é necessária uma grande força de regeneração, para assumir sua perso-
nalidade. Daí decorre a indagação fundamental: Onde estão as provas de que
o povo russo é capaz da rebelião? Sem dúvida, existem opiniões variadas, mas
duas opiniões galvanizam a atenção, pois passaram da literatura à sociedade: o
pan-eslavismo de Moscou e o europeísmo russo. Herzen discute a solução, em
face da velha Rússia e da civilização mundial. Segundo ele, o governo de Nicolau
retrocedeu, apesar de ter promovido reformas. É que os governantes posterio-
res a Pedro, o Grande, mostraram-se déspotas, como os bárbaros mongóis. O
fracasso do projeto civilizador de Pedro recolocaria a questão de se voltar a
buscar a percepção do povo. Herzen interpela o poder: “Não seria necessário
voltar a uma ordem de coisas mais próxima ao caráter eslavo e abandonar o
caminho de uma civilização exótica e forçosa?”5.

4. Herzen, El desarrollo de las ideas revolucionarias en Rusia, México, Siglo XXI, 1979, pp.
152 e 167.
5. Herzen, idem, p. 98.

343
Caderno de Literatura e Cultura Russa

No fundamental, os eslavófilos mostravam aversão à reforma de Pedro, o


Grande, refugiando-se nos braços da Igreja antiga e voltando ao cristianismo
ortodoxo portador de uma verdade abandonada pela Igreja de Roma. Em suma,
o objetivo dos europeístas devia ser o de livrar a Rússia do czarismo e da religião.
Diante desta última caracterização é que os críticos definem a “fração dos
jovens”, ou “ala esquerda” dos ocidentalistas, que caminha para uma negação dos
valores tradicionais. Nesse caso, as etiquetas nem sempre são adequadas à reali-
dade das coisas. De um lado, valeria lembrar a atitude de Bakúnin, que sonhava
levantar os povos eslavos oprimidos contra Berlim, e como tal seria um ancestral
do pan-eslavismo. Por outro, teóricos eslavófilos como Khomiakov e Kiriévski
eram mais impregnados da cultura européia do que um autodidata como Belínski.
Por isso, Raymond Queneau6 prefere falar de tradicionalistas e espiritualistas de
um lado, e de progressistas leigos e racionalistas moderados de outro.
A fração de intelectuais reunida em torno de Belínski e Herzen é ociden­
ta­lizante também em outro sentido. É que eles movem ataque ao momento
presente da Rússia, ao despotismo de Nicolau que buscava apoio na religião
ortodoxa. Por seu lado, os eslavófilos confundiam a natureza do individualismo
europeu e sua forma degradada, o egoísmo. Deste egoísmo faziam depender o
fracasso democrático liberal das revoluções que ocorrem em 1848. Em contra­
par­tida, o modelo de Herzen são os socialistas franceses. Tendo emigrado para
Paris, desembarcou no clima revolucionário de 1848. Na revolução liberal
francesa depositara alguma “esperança”, porém desencantou-se com o proces-
so. Estudiosos como Berdiáev, Carr, Cornu e Berlin ressaltam essa desilusão
de Herzen. Berdiáev notará que tal “desgosto é particularmente russo”7. O que
significa dizer que, embora formada num entorno liberal e radical, hegeliano
e fourierista, a atitude de Herzen era típica da geração de 1840. Ele ficou cho-
cado, é verdade, com o espírito mercantil e pequeno-burguês que veri­ficava ser
corrente nos socialistas franceses.
Essa crença ou “esperança” de mudança, de uma instauração da nova hu-
manidade aparece nas idéias e práticas dos ocidentalistas. Assim, Belínski fala
de sacrificar a pessoa ao bem coletivo; Bakúnin falará do horror da descoberta
de que nas massas não havia “esperança revolucionária”, ao passo que Herzen
renega o passado, dizendo que “não temos lembranças que nos dignifiquem,
nem herança que imponha deveres”. Ao recusar o passado, Herzen criticava o
eslavismo, expresso na Rússia messiânica defendida por Dostoiévski: a huma-

6. Enciclopédie de la Pléiade, v. III, “Histoire des Littératures”, II, dirigido por Raymond
Queneau, Paris, Gallimard, 1957, pp. 1487-1489.
7. Berdiáev, 1938, p. 43.

344
Herzen Ontem e Hoje

nidade não seria salva por novo absolutismo ou ortodoxia. O caráter do povo
russo indicava um povo em abstrato. Persistia no fundo um estímulo redento­
rista. A salvação de um povo não passaria nem pela ortodoxia bizantina nem
pela ortodoxia católica. No limite, a posição de Herzen faz deslizar o debate
para o terreno da personalidade.
Um debate filosófico permeia o conceito de indivíduo e comunidade, que
atinge a concepção de homens iguais entre si, de indivíduos iguais mas diferen-
tes. Herzen confronta a noção de igualdade genérica, destacando as concepções
idealistas que só enxergam numa direção, que só vêem as massas cuja vontade
seria manipulável por eles. Segundo Herzen, o conjunto de múltiplas vontades
é o que origina o êxito, relativo ou nulo, das idéias propostas. Sua concepção
é meridianamente clara:

As massas estão repletas de tendências obscuras, de impulsos apaixonados; nelas o


pensamento não está separado da fantasia, não reside, como entre nós, em estado de teo-
ria, mas se converte imediatamente em ação; se é difícil incutir nelas uma idéia, é porque
para elas uma idéia não é uma troça. Por isso às vezes adiantam-se aos pensadores mais
audazes, abandonam pela estrada aqueles a quem ontem homenagearam e ficam à deriva
de outros, apesar da evidência; como as crianças, como as mulheres, elas são caprichosas,
impulsivas, inconstantes8.

Nesta obra, publicada originalmente em alemão (1850), é patente que as


massas seguem unicamente os impulsos e gostam de autoridade. Elas são ce-
gadas pelo brilho do poder. Por igualdade entendem a igualdade de expressão.
Quanto ao socialismo, apenas almejam o que as beneficia. Seu desejo é chegar
a um governo social, para dele tirar vantagem, porém não passa por sua cabeça
o autogoverno. Nisso Herzen adverte o perigo do eslavismo, entendido como
tendência que julga a massa como raça, e não como os indivíduos que a cons-
tituem. Tal eslavismo repousa na autoridade dos czares e na ortodoxia cristã.
O perigo do eslavismo é que torna o povo um messias disposto ao sacrifício,
mas também a impor sacrifícios. Por isso, Herzen critica o projeto redentorista
dos eslavófilos, bem como o racionalismo abstrato do socialismo burguês, que
esquece a fonte de sua vida, a personalidade humana. Na verdade, sua concepção
de história está assentada num realismo individualista fortemente russo. Com
sua visão de pessoa, esmagada pelo processo histórico, Herzen não reconhece
nenhuma força, na Europa ocidental, capaz de contrabalançar o que denomi-
na “império dos negócios”. Para ele, a figura do operário, exaltado pelos socia-

8. Herzen, De l’Autre Rive, in Textes philosophiques choisis, Moscou, 1956, p. 406.

345
Caderno de Literatura e Cultura Russa

listas franceses, faz parte desse mundo, sendo incapaz de salvar o resto da hu-
manidade do flagelo. Como Bakúnin e Belínski, Herzen recusa uma razão
manipuladora cuja fonte está em interesses obscuros. Concebe a potencialidade
de uma revolução na Rússia com uma concretude anterior à Europa, que os
ocidentalistas visualizam não como uma nova estrutura política, sem a neces-
sidade de uma constituição formal, e cuja anterioridade radicava em educar
para a prática da liberdade. Para eles havia uma virtude latente no camponês
russo, cujo mundo escondia o segredo de ligar o princípio da personalidade ao
da coletividade. Sobre essa potencialidade declarava Belínski:

Se cada um dos indivíduos que integram a Rússia pudesse atingir a perfeição por meio
do amor, a Rússia seria o país mais feliz do mundo sem política; a educação, tal é o cami-
nho da felicidade9.

A âncora de salvação é o caminho da educação obrigatória, que fora a he-


rança de Pedro, o Grande, uma prova da liberdade e o erguimento da estrutura
civil, com recursos nacionais. O caminho doravante estava aberto. Mas não
se tratava apenas da Rússia de Nicolau I, nem de Pedro, que ainda seriam as
trilhas do czarismo. Tanto Belínski quanto Herzen insistem na necessidade de
um projeto civilizatório; sua concepção não tem o caráter doutrinário que,
nas décadas de 1880 e 1890, será a tônica dos partidários do marxismo. O que
está contido na concepção de Herzen é o tema da personalidade humana. Aqui
tomaremos as trilhas da literatura russa que expressará dupla preocupação: pelo
indivíduo como pessoa e pela massa como crisol de onde o indivíduo nasce
ou onde é sepultado.

Literatura e Pensamento Social

Ao traçar a evolução cultural e social da Rússia, os historiadores costumam


estabelecer uma cronologia do século XIX em duas fases importantes: o período­
de Pedro, o Grande, até a campanha da Criméia (1856) e o período da poesia,
arte e ciência, até a reforma de Petersburgo.
Alguns sociólogos na linha de Walicki (Uma História do Pensamento Russo,
1979) esforçam-se por definir o sentido das mudanças na Europa ocidental e
as influências possíveis das idéias na Rússia. Historiadores e sociólogos são

9. Isaiah Berlin, Pensadores rusos, México, FCE, 1979, p. 315.

346
Herzen Ontem e Hoje

unânimes em torno de um acontecimento que marca a emergência da Rússia


moderna: a emancipação do servos.
No reinado do czar Alexandre I (1855-1881), a economia ainda se apóia na
comunidade camponesa, predominando o mir (assembléia) autogovernado
como se fosse uma pequena república. Entre 1866 e 1872, proliferam idéias de
inovação com o conceito de um desenvolvimento capitalista na Rússia. Ainda
se nota a presença ostensiva dos rasnotchíntsi. Nesse meio fermenta a idéia
inovadora que deseja a posse comum da terra como base para a etapa socialista
da agricultura. Na crítica e sociologia dos anos 1880, aparecerão as produções
de Tchemychévski, Píssarev, Lavrov e Dobroliúbov.
É preciso lembrar dois fatos importantes: um antecedente, na política educacio­
nal de Nicolau I, que produziu aumento do número de estudantes e de centros
educacionais. O ministro da Educação, Uvárov, estabeleceu medidas de vigi-
lância por meio da Carta Universitária de 1835, que continuou vigorando até
a década de 1860. Um fato conseqüente foram as reformas das escolas públicas
nessa década. Nessas circunstâncias, embora houvesse prestígio de universidades
e campos de pesquisa (ciências, matemática), permanecia a vontade legitimista
do czar, que propugnava pelo pan-eslavismo. É assim que jovens estudiosos,
insatisfeitos com as condições materiais (vastas regiões que ainda eram per-
corridas a cavalo em estradas precárias) e sociais (a “falta de cultura”), procu-
ram estudar em universidades estrangeiras, como Paris, Genebra, Heidelberg,
Bonn. Antes disso, nas décadas de 1820 até 1848, ocorriam levas de migração
para Paris e Londres, época em que se formam as literaturas dos povos eslavos.
O movimento do Romantismo, de certo modo, eleva os acontecimentos da
França, potencializa os anseios de povos eslavos, que se inspiravam nas idéias
de Johann Herder sobre a origem primitiva desses povos, além dos estudos
de Dobróvski que, com base na análise da língua, demonstrava a afinidade
entre os povos eslavos10. Nessa latência das nacionalidades, cumpre assinalar
a excepcional literatura dos emigrados, que se expressa na tríade Mickiewicz,
Slovacke e Krasinski, representantes da Polônia oprimida pelo jugo czarista. Esta
produção literária assume enorme significado como documento de vitalidade
do povo. Tal dimensão é reconhecida também na delimitação do campo da
historiosofia e da história narrativa. Neste domínio aparecem relatos em que se
introduzem sonhos de mudança e idealizações que visam a enfatizar a perfeição
do gênero humano. Assim, a especulação alemã e francesa irá celebrar a expres-
são do espírito ariano (“germanismo”) ou a gesta dos francos, ambos erigidos
como a Razão e a Civilização. Em face dessa idealização, os povos que se encontra-

10. Cf. Jacques Droz, Europa: Restauración y Revolución 1815-1848, México, 1988, p. 192.

347
Caderno de Literatura e Cultura Russa

vam em condições menos favorecidas sentiram sobrepairar um juízo de inferiori-


dade ou de senilidade.
Constata-se uma reação. Assim é que o sacerdote Vicenzo Gioberti elabora
seu “Primado da Itália” [Da Supremacia Moral e Política dos Italianos, 1843] e
Cieszkowski um Paternostro que prenuncia a primazia do povo eslavo, especial­
mente a do povo polonês11. Essa idealidade e esse juízo histórico são reiterados
por Benedetto Croce, ao discutir o ideal de Giuseppe Mazzini, o qual concebe
sua esperança de mudança opondo-se à hegemonia francesa. Assim suscita o
ideal de uma Giovane Europa, que inculca no povo italiano e em outros povos
a “iniciativa”, a consciência de cada um no processo de emancipação. A partir
daí constrói-se um conceito de grandeza moral dos povos dentro da idéia re-
publicana. Nesta altura Croce adverte o dinamismo da concepção subjacente:

O conceito das nações havia sido próprio dos filósofos e historiadores alemães e per-
tencia ao patrimônio intelectual comum12.

Mazzini havia promovido e implantado tal conceito na consciência européia.


A substituição que ele pretendia do primado francês pelo “primado italiano”
tinha sido precedida pelo “mito da supremacia alemã” e que fora sustentado por
Fichte (A Missão do Sábio, 1794). Portanto, o mito ou idealização tem o valor de
“reconfortar o orgulho de um povo que há de voltar a levantar-se e combater”13.
A condição de mito, sentimento, percepção aguçada não teve a mesma densidade
no plano teórico. Para Croce, Mazzini soube acolher o princípio da associação
(saint-simonismo), a poesia e a arte a serviço de objetivos sociais e similares, e do
mesmo modo “acolheu da ideologia democrática a vaga idéia de Povo, oscilante
entre o todo e a parte, no fundo, uma representação geral cujos elementos eram
oferecidos pelos camponeses espanhóis da sublevação contra os franceses e os
soldados das guerras da república de 1793”14. Mais adiante Croce se detém nas
comoções da idéia de “liberdade” que provocava as revoluções de 1848. Mas
localiza uma exceção: a Rússia, que dominava a Polônia. A dominação do czar
exercia-se por meio de expurgos, censura, extirpando cátedras e restringindo o
ensino da lógica e da psicologia. Isso não impedia que as camadas “instruídas”
lessem as obras de Constant, Destrutt de Tracy e Bentham, ou seja, as gerações
que tomarão contato com as teorias dos materialistas e utopistas franceses. A

11. Cf. Benedetto Croce, Théorie et Histoire de l’Historiographie, Genebra, Droz, 1968, p. 181.
12. Croce, Storia d’Europa nel secolo decimonono, Milano, Adelphi, 1993, p. 193.
13. Croce, idem, p. 147.
14. Croce, idem, p. 148.

348
Herzen Ontem e Hoje

censura e a vigilância estatal não conseguirão impedir a circulação dos escritos


de Liérmontov ou os de Púchkin, nem a ressonância suscitada pelo livro A Rússia
em 1839, do marquês de Custine. Assim, nos meios intelectuais de Moscou e
Petersburgo despontam as idéias novas, nutridas pelos autores franceses, pela
filosofia alemã e por livros de “via­jantes”.
Cumpre esclarecer a referência feita por Croce a Cieszkowski e a primazia do
povo eslavo. O conde August Cieszkowski (1814-1894) é autor de uma filosofia
da história, consubstanciada no livro Nosso Pai (Ojce nasz). A primeira versão
da obra denomina-se Prolegômenos sobre a Historiosofia15, com versão ampliada
posteriormente (Paris, 1848; Posen, 1871, e Paris, 1906). Sua concepção básica
é que na história da humanidade ocorre o crescimento da solidarie­dade cada
vez mais aproximando-se da divindade. Para ele, a história divide-se em três
períodos: a época do ser físico; a época do pensamento, que terminará com a
vinda do Espírito Santo; e a época da solidariedade, o reinado de Deus na terra.
Para esse reinado a humanidade está-se preparando no presente. Desdobra-se
um processo de mudança gradativa; neste processo, as nações eslavas, princi-
palmente a Polônia, teriam um papel predominante, que pode ser acelerado
pela adoção de reformas sociais e econômicas de longo prazo. As reformas se
fundam em três princípios: segurança geral para os proprietários; garantia geral
para aquilo que cada indivíduo é capaz de possuir (padrão mínimo); associação
geral visando que cada indivíduo atinja aquilo que é capaz de possuir. A época
de solidariedade vindoura estará imbuída do espírito religioso e será identi-
ficado com o culto a Deus. Assim, todas as nações que aspiram à liberdade e
ao governo soberano poderiam unir-se na aspiração comum por um governo
universal. Este seria gerido por um Parlamento universal das nações e por um
alto prelado. Nessa época futura, a organização econômica das nações será
fundada no princípio da associação universal.
Essa idéia de um governo universal será levantada também por Victor Hugo
e terá ampla acolhida entre liberais revolucionários e socialistas, tanto aqueles
seguidores dos utópicos franceses, especialmente Fourier, que defendia a abo-
lição da propriedade privada, quanto dos socialistas libertários como Herzen
e Bakúnin, que vão divisar no prisma de Cieskowski a defesa do grande Estado
eslavo. O ponto em comum entre o pensador polonês e os russos era a influ-
ência hegeliana, numa forma simplificada: a existência de uma última etapa na
evolução da humanidade, que coincidiria com a emergência dos povos eslavos,
o que de fato iria contribuir para outro mito: o pan-eslavismo. E aqui haverá

15. Prolegomena zur Historiosophie, Berlin, 1838. Cf. Roland Stromberg, Historia intelectual­
europea desde 1789, Madrid, Editorial Debate, 1995, p. 134.

349
Caderno de Literatura e Cultura Russa

um trabalho excepcional da crítica de Herzen para superar o núcleo mítico e


manter o princípio filosófico que servisse à ação.
Essas concepções de um “primado” germânico ou eslavo revelam um senti-
mento de tradições, bastante arraigado nas camadas rurais da Itália, da Polônia,
da Rússia. São as concepções românticas sobre a formação das nações que se
disseminam pelas universidades e centros de pesquisa, como a Universidade
de Praga, para onde convergem os estudiosos sobre os povos eslovaco, tcheco,
e húngaro. Nesses centros, nota-se um traço comum: pensadores, artistas,
historiadores tomam a iniciativa de definir a legitimidade em prol do futuro
de cada nacionalidade. Assim, toma corpo uma literatura que tem como ideal
político aquilo que fora realizado pelas monarquias parlamentares da Ingla-
terra e da França. Essa, no entanto, não será a intencionalidade dos grupos
da Rússia. Para estes a atualidade era o tema da comuna, da cooperação, do
comunismo. Desde os decembristas até a geração de 1830, incoativamente é
formulado o conceito de que a Rússia trilharia um caminho diferente dos ou-
tros países da Europa e que tal caminho seria encurtado, caso o presente fosse
enlaçado ao futuro por meio de antigas tradições das comunidades agrárias.
Nesse momento percebe-se o contraste: seria possível “pular” a idade burguesa
e liberal percorrida pela Europa? A visão liberal de Croce elucida o grande
problema da Rússia:

[a Rússia], lamentavelmente, ao mesmo tempo havia saltado o longo e minucioso traba-


lho religioso e filosófico da Europa, a secular educação para o pensamento lógico correto
e rigoroso, para a crítica e a cautela, e toda correspondente e complexa experiência, rica
em humanidade... e sua intelliguéntsia, sua classe culta, nem sequer suspeitava o grau de
reafinamento e complexidade da inteligência européia16.

O argumento de Croce incide sobre a questão fundamental da Rússia, o


problema agrário. O que significava, no concerto da tradição européia, analisar
o ordenamento jurídico e político da nação. Ora, a consciência jurídica era
débil na Rússia, ou estava ausente na classe dos grandes proprietários, a única
que teria importância junto ao número elevado de camponeses ainda presos
à gleba. Esta circunstância é que teria feito Herzen dizer que “nenhum país es-
tava preparado como a Rússia para uma revolução integral e para uma radical
‘regeneração social’, bastando para isso um golpe de força”17.

16. Croce, Storia d’Europa, 1993, p. 232.


17. Croce, idem, p. 232.

350
Herzen Ontem e Hoje

Na década de 1870, as concepções de Herzen continuam influentes, pois


persiste o movimento dos naródniki, agora combatendo a idéia de que a ex-
pansão do capitalismo era inevitável. O mais importante nesta linha é Piotr
Lavrov (1823-1900), que será conhecido por suas Cartas Históricas. Professor
de filosofia na Escola de Artilharia de S. Petersburgo, chegou a ser banido para
a Sibéria. Sua crença básica insistia na revolução social como obra das massas,
entendendo que o campesinato russo seria portador de um “socialismo incons-
ciente”, que se manifestava na forma organizada do mir, no artiel (cooperativa
de artesãos) e no espírito independente das seitas religiosas. Para ele, o indi-
víduo é o protagonista da história. De certo modo, suas idéias coincidem com
a crítica ao messianismo de Herzen. Tanto para Lavrov como para Herzen, o
futuro regime da Rússia não envolveria apenas o desenvolvimento econômico,
pois o verdadeiro “progresso” envolvia uma prescrição moral. O socialismo sob
bases éticas é que serviria à causa da liberdade, da justiça, da fraternidade, bem
como ao desenvolvimento harmonioso das pessoas.
Assim a intelliguéntsia era vista como uma espécie de “foco moral da socie-
dade”, um grupo de vanguarda identificado com o sofrimento do povo, capaz de
defender os interesses de todos os “humilhados e ofendidos”. Esta era a posição
sociopolítica de Lavrov18.
A atitude típica do movimento dos naródniki consistia no impulso de pregar
a revolução social, que devia ser preparada pela propaganda ideológica. Essa
inspiração converteu-se na “cruzada populista” (1873-1874) pelo movimento
“ir-ao-povo”, que levou milhares de jovens às aldeias. Essa propagação en-
grossará nas décadas de 1880 e 1890, quando o desenvolvimento econômico é
visível. Então os pensadores naródniki insistem na promessa do campesinato,
como a solução de manter os meios da produção nas mãos dos produtores. Mas
persistia a questão dos camponeses proprietários e dos outros sem recursos.
Assim em 1890, do total de nove milhões de camponeses, dois e meio milhões
eram despossuídos, embora houvesse a posse comum da terra (obchtchi­na). Já
em 1891-1892 centenas de milhares de camponeses pereceram por epidemias
de tifo e cólera, o que indicava que a questão não era apenas de consciência
moral, nem de defender as aldeias. Havia um processo de ociden­ta­lização em
andamento.
Nos anos 1890, o surto econômico na Rússia propiciava revisões nas teorias
liberal e socialista. Dentre os novos escritores, o mais original é Konstantin Le-
óntiev, o “Nietzsche russo” (1831-1891), que se dedicará a ensaios. São valio­sos
seus debates em torno da democracia e liberdade, considerados por ele conse-

18. Cf. Khronos, Moscou, 1980, pp. 65-70.

351
Caderno de Literatura e Cultura Russa

qüência da “desintegração produzida pela Revolução Francesa”. No seu ensaio


Princípios de Bizâncio e Servidão (1875), mostra aversão à civilização burguesa
e defende a estrutura com base monárquica, ou seja, acreditava na missão
da Rússia no Oriente e entre os povos eslavos, propondo uma atitude antio­
cidental19. No mesmo diapasão, Nikolai Daniliévski definirá que a essência da
Rússia era o absolutismo e o regime imperial. Essa tendência, conhecida como
“pan-eslavismo”, receberá objeções de Herzen e também será criticada por
Dostoiévski, que, embora mantendo sua restrição ao “egoísmo do capitalismo
europeu”, achava que tal atitude levaria a Rússia ao isolacionismo.
A partir de 1881 nota-se o auge nos círculos que defendiam a eslavofilia,
ou seja, na preservação da ortodoxia e das tradições populares. Esta atitude se
sustentava na tríade autocracia, ortodoxia e nacionalismo. Enquanto tendência,
torna-se ideologia oficial no reinado de Alexandre III. No começo do século
XX, os eslavófilos servirão de elo de ligação entre czarismo e oposição, tentando
unificar burocracia e direita liberal. De seu lado, os ocidentalistas formarão a
União dos Ziémstvos, que farão propaganda da monarquia constitucio­nalista.
Deve-se atentar para o fato de que o movimento dos naródniki assumira um
tom “crítico”, especialmente entre 1885 e 1895, tal como defendido por Ni­kolai
Mikhailóvski (1842-1904). Jornalista, sociólogo, editor, conhecido como crítico
literário com ensaios importantes, sobressaindo nas obras Que é o Progresso
(1869), a Luta pela Individualidade (1876), chegou a produzir um sistema de
idéias: a crença enquanto amálgama de pensamento, emoção e vontade para
a ação. Seguidor de Lavrov, misturava as correntes dos naródniki num fluxo
único, mas sua intenção básica era de que a ciência social “começaria com certa
utopia”, ou seja, com um ideal social, o projeto de uma sociedade perfeita20.
Mikhailóvski está atento ao discurso marxista, que enfatiza o fundamento
econômico. Ele reconhece que existe um certo “romantismo econômico”, isto
é, aceita que os homens criam valores para o bem ou o mal, para o justo e o
injusto, pois estes são conceitos éticos; considera os objetivos segundo os ideais,­
que são expressão de uma consciência moral. Para o pensador naródnik, a ati-
vidade individual e coletiva é inspirada e orientada por valores que devemos
reconhecer como supremos e tais valores determinam nossa interpretação
histórica (cuja concepção é subjetiva). No decurso da evolução do homem, o
valor supre­mo será afirmado sobre erros e paixões. Assim, o progresso constitui
a marcha­para formas de vida coletiva, pela qual os interesses do indivíduo são

19. Cf. Marc Slonim, Modern Russian Literature, Oxford University Press, 1953, p. 14.
20. Cf. V. Khoros, Populism: Its past, present and future, Moscou, Progress Publishers, 1980,
p. 79.

352
Herzen Ontem e Hoje

assegurados. Porém, não há coincidência entre satisfação pessoal e sociedade


moderna (estruturas tecnocráticas). O homem aspira a reconciliar os interesses
de ordem pessoal e social. No entanto, tal coincidência feliz só ocorreria numa
nova ordem social, que se basearia na cooperação, sem a economia competi-
tiva. Tal ordem é o socialismo. Os homens vêem a emancipação pelo trabalho
até que “o interesse do trabalho coincida com os interesses do indivíduo e o
homem manifeste sua criatividade no trabalho”21.
Alguns consideram a atitude de Mikhailóvski como culto ao trabalho
manual, representando uma atitude arrependida da nobreza. A apoteose do
conceito de Mikhailóvski é semelhante à de Tolstói. Vale, entretanto, lembrar
que o tema do trabalho intelectual humano integra o debate da filosofia ma-
terialista e dialética, que alcançará um ponto alto com Joseph Dietzgen, que
escreveu na Rússia A Essência do Trabalho Intelectual Humano, Exposta por
um Trabalhador Manual. Nova Crítica da Razão Pura e Prática (1869), editado
em Hamburgo. Conforme lembra A. Pannekoek, a contribuição do filósofo-
-operário é ter posto o conhecimento numa relação natural, pois o estado da
sociedade capitalista é um estado transitório, enquanto o homem, “num futuro
próximo, irá libertar-se da servidão de suas necessidades materiais mediante a
regulação da produção social”22.
Na raiz do conceito naródnik, ou “populista”, está o filósofo Vladímir Solo-
viov (1853-1900). O aspecto fundamental de sua reflexão aponta a influência
negativa de Bizâncio exercida sobre a Igreja russa. Apela à universalidade da
cristandade, visando à renovação do pensamento religioso. Como variante, no
fundamental, está operando na polaridade “nacionalismo-universalismo”, uma
das formas de expressão do movimento dos naródniki.
O principal discípulo de Soloviov é o filósofo Nikolai Berdiáev. Este enun-
ciava um “sistema de idéias”, no qual formula a experiência da realidade divina
e uma concepção cíclica da história. Viveu o período da revolução bolchevique,
sendo preso em 1921, e passando a emigrado político. Primeiro vive na Alema-
nha e depois irá residir em Paris. Entre suas obras está Les sources et le sens du
communisme russe (1935-1936) e O Sentido da História: Ensaio Filosófico sobre
os Destinos da Humanidade (ed. russa, 1923; Barcelona, 1936; Paris, 1948). A
reflexão de Berdiáev afirma a crise moral por que passa a civilização do Oci-
dente. Foi definido como um filósofo de “esquerda”, ao caracterizar que a ação
dos socialistas e bolchevistas concorria inconscientemente para a harmonia

21. Slonim, 1953: 22.


22. Pannekoek, em Dietzgen, La esencia del trabajo intelectual humano, Madrid, 1977, p.
181.

353
Caderno de Literatura e Cultura Russa

entre a humanidade e o divino. As aspirações dessas tendências inclinavam-se


para uma sociedade anticapitalista, defendendo o ideal da liberdade. Como
Dos­toiévski, Berdiáev acreditava na Rússia como universalidade religiosa. Mais
tarde, essa atitude reaparecerá em Bugáev,que escreverá sob o pseudônimo de
Andriéi Biély.
Na primeira década do século XX, aparecem Maiakóvski, Khliébnikov e
filólogos como Éikhenbaum, Jirmúnski, Jacobson, que produzirão poesia e
teo­rias que surpreendem pela superação das formas tradicionais. O movimento
futurista russo parece aproximar-se dos movimentos similares na França e na
Itália. No entanto, quando Marinetti visita a Rússia, em 1914, não estará falando
de renovação da linguagem ou da arte, mas repetindo slogans:

A guerra é a higiene do mundo; todo passado é cemitério; a única beleza é a velocidade


– vida longa para heróis e guerreiros, abaixo as mulheres e a feminilidade23.

A alta densidade do slogan surpreendia os poetas russos pela expressão de


dinamismo da vida urbana. Porém, os futuristas russos detestavam as formas
do capitalismo e não se preocupavam com a autocracia. De certo modo esta-
vam inclinados ao movimento libertário, admiravam o gênio do povo russo.
Khliébnikov e Lifshitz chegaram a manifestar suas diferenças com Marinetti:
o futurismo dos asiáticos e a Europa burguesa e predatória. De certo modo, o
futurismo vincula-se ainda à tradição dos naródniki. Por seu lado, o movimento
do neo-realismo retoma a linguagem popular. Neste caso, Aleksiéi Riémizov,
embora participante de círculos socialistas, irá se exilar em Paris, onde produ-
zirá excepcional crônica sobre os transtornos ocorridos no período 1918-1920.
Em resumo, o movimento dos naródniki pode ser entendido como movi-
mento cultural e político na segunda metade do século XIX e nas primeiras
décadas do século XX. Não se tratava apenas de uma expressão ideológica, mas
da confluência de formas culturais que extravasam em manifestações da ciência,
da cultura, da arte e da literatura. Por meio dele, podemos captar em Herzen e
Tchemychévski as modalidades e exigências de uma mentalidade moderna. Após
a Revolução de 1917, persistirá a renovação literária, embora nem sempre­seja
explicitada, já que estudos universitários tendem a ressaltar os aspectos­social,
político e econômico da Revolução Russa. Por outro lado, subsiste o tema da
regeneração da pátria humilhada, que tende a contrapor tradição e revo­lução24.

23. Cf. Slonim, op. cit., 1953, p. 227.


24. Cf. Henri Massis, Découverte de la Russie, Lyon, Lardanchet, 1944.

354
Herzen Ontem e Hoje

Religião e Literatura

Ao delinear alguns percursos da literatura russa oitocentista é possível per-


ceber o desenvolvimento das idéias do movimento naródnik até a revolução
de 1917. Como vimos, o acesso às fontes remete-nos permanentemente para
dois temas: naródnik e orientalismo.
Convém seguir as reflexões de Nikolai Berdiáev relativas à formação do
Estado e sua concepção religiosa. Para ele existe na Rússia um dualismo es-
trutural. Pela sua formação, o povo russo é um povo oriental; por outro lado,
existe o fenômeno russo e nacional. No imenso território ocupado por variados
povos descreve cinco áreas: Rússia de Kíev, Rússia do período tártaro, Rússia
moscovita, Rússia do Império de Pedro, o Grande, e a nova Rússia Soviética. O
livro As Fontes e o Sentido do Comunismo Russo foi concluído em 1936, e aqui
consultamos a versão francesa de Alexis Nerville (Paris, 1938).
A premissa básica de Berdiáev afirma que as reformas de Pedro determi-
naram a história posterior, de modo a definir as tendências que o historiador
encontrará na segunda metade do século XIX. Na fase contemporânea, ao con-
frontar as reformas petrovianas e a revolução bolchevique, Berdiáev observa um
aspecto em comum: o agravamento da distância entre povo e classe dirigente
e culta. Relembrando a fórmula de Dostoiévski, ele indaga-se: o que penetrou
com tais reformas na alma russa?
Considera uma contradição subjacente entre o Estado forte, policial, e as idéias do
reinado tipo messiânico que ganhava a intelliguéntsia e os meios populares. Nesta
direção cumpre identificar um denominador comum na analítica de Berdiáev
e na visão de Herzen: como vive sob a servidão, a maioria acredita no poder do
soberano. Uma atitude peculiar do habitante das aldeias, para o qual parecia ha-
ver injustiça no regime da propriedade: a terra pertencia a Deus, aquele que nela
trabalha deveria usufruí-la. Berdiáev compartilha de um conceito de Herzen: “Um
socialismo agrário estava profundamente ancorado no camponês”25. E qual era de
fato a percepção que a intelliguéntsia possuía do conjunto dos fatos?
A acepção da palavra intelliguéntsia recebe uma conotação geral e específi-
ca. Primeiro, o termo aparece pela primeira vez na segunda metade do século
XIX relacionado ao tipo com traços russos. Inicialmente compreende o cará-
ter russo que expressa desenraizamento, ruptura com a tradição (sentido de
Dos­toiévski) e depois estende-se ao revolucionário, como o “grande errante
da terra russa”. Em ambas as acepções, a palavra aplica-se a uma formação de
indi­­víduos cuja ocupação nem sempre é de ordem intelectual; pode ser enten-

25. Cf. Berdiáev, 1938, p. 21.

355
Caderno de Literatura e Cultura Russa

dida como uma ordem monástica, mas torna-se comunidade ideológica, reco-
nhecida entre diferentes estratos e classes sociais.
Na Rússia dominada pela autocracia e pelo regime servil, as novas idéias
estavam em certo lugar. Socialistas e libertários aparecem “em teoria”. Há, ob-
serva Berdiáev, a impossibilidade da ação política, o que resultou na recusa da
política no âmbito do pensamento e da literatura.
Assim aos críticos literários coube promover críticas de natureza política e
social. Quanto às novas tendências, o traço característico é a persistência de um
dogmatismo intolerante – dogmatismo que correspondia à natureza profunda
dos russos. Eis que brota a peculiaridade da alma russa, como uma disposição
particular para adotar as idéias do Ocidente e abraçá-las de determinado modo.
Esse modo específico consiste em introduzir o dogmatismo nas idéias. Tal con-
cepção é, também, reiterada por G. Aliéksinski26 quando refere a atitude típica
lembrada por Dostoiévski: “Aquilo que para um cientista europeu é apenas
uma hipótese, para um jovem russo é um axioma”. Mas a visão de Berdiáev
não se reduz à eslavofilia:

Quando o russo adota o darwinismo não se trata de uma teoria sociológica para dis-
cussão, mas um dogma. Sucessivamente, do fourierismo ao marxismo os russos absorvem
as idéias de forma dogmática27.

O que está em causa neste argumento não é uma diferenciação quanto ao


passado e ao futuro, mas uma essência, que ele suscita: Qual é a natureza da
alma russa?

A alma russa [...] tende para o Universal, e deseja submeter-se a ele, por um traço
essencialmente religioso28.

O tipo russo teria, pois, a capacidade de aplicar sua energia de índole religio­
sa a objetos que não são religiosos. Ele é capaz de abordar, assim, a ciência ou
a vida social, campos em que prevalece a categoria do relativo. Ocorre que os
primeiros passos da intelliguéntsia russa são marcados pela procura da eman-
cipação intelectual, por meio de pensadores e místicos que padecem o cárcere
e o exílio. Assim, o século XIX foi o século da “revolução interior”.

26. Cf. Grégoire Aliéksinski, La Russie et l’Europe, Paris, Flammarion, 1917, p. 297.
27. Cf. Berdiáev, 1938, p. 28.
28. Cf. Berdiáev, 1938, p. 30.

356
Herzen Ontem e Hoje

Essa manifestação da intelliguéntsia constitui o despertar da consciência,


bem como um sinal de rebeldia contra a Rússia imperial. Os primeiros russos
instruídos e cultos vivem, contudo, em estado de isolamento. Por um lado, o
conjunto da nobreza e funcionários é ignorante, destituído de um ideal. Trata-
-se daquela condição mencionada por Púchkin, a “plebe”.
No reinado de Alexandre I, a Rússia viverá um renascimento literário. Será a
idade de ouro da poesia, a época das correntes místicas, iniciada pela insurreição
decembrista. Tal renascimento só teria acontecido para uma ínfima camada da
nobreza. Assim é vista a incipiente comunidade ideológica da Rússia:

Os amigos da cultura e da verdade aglutinam-se em pequenas confrarias. A maçonaria


[...] desempenha um papel educativo no movimento. Consistia no primeiro modelo de
organização autônoma do sociedade [...]29.

Nas primeiras décadas do século, a modelização da vida espiritual é encarada


como mobilização da “alma russa”. Não passa despercebida uma tensão nesse
movimento, tornando-o permeável a múltiplas idéias, a movimentos sociais. Na
visão de Berdiáev, corresponde à época do universalismo, da presença de uniões
entre confissões cristãs. Sobrevindo as guerras napoleônicas, a Rússia encontrará
o Ocidente. O modelo sofre um impacto externo: os oficiais russos voltam da
guerra providos de uma visão alargada das coisas. Forma-se o “humanitarismo”,
de modo que o próprio czar Alexandre I é um “humanitarista” russo que chega
a participar das cerimônias dos quakers. A alma russa preparava-se para o século
da “revolução”, porém ainda não existe unidade na vida russa.­
O pressuposto na mudança do modelo de organização nos estratos elevados
vem-se elaborando no movimento espiritual e literário. Deles parte o levante
de dezembro de 1825. E, como vimos anteriormente, o depoimento de Herzen
assinala o acontecimento marcante para toda uma geração. Agora Berdiáev rei-
tera alguns traços característicos do estrato social que integrava o decembrismo:

Pequeno núcleo, isolado, que claramente não poderia influenciar o conjunto da vida
russa. A tentativa dos Decembristas está votada ao malogro. Seus condutores foram de-
gredados para a Sibéria [...] A maior parte deles tinha opinião moderada e mesmo mo-
narquista. Apenas a ala esquerda do movimento – Piéstel – pode ser chamada o “primeiro
socialista russo antes dos socialistas”, segundo Herzen30.

29. Cf. Berdiáev, 1938, p. 32.


30. Cf. Berdiáev, 1938, p. 33.

357
Caderno de Literatura e Cultura Russa

É preciso esclarecer esta anterioridade atribuída a Herzen. Na verdade, no


texto O Povo Russo e o Socialismo, Herzen, em carta dirigida a Jules Michelet,
trata da luta dos povos eslavos, do papel relevante do poeta Mickiewicz e da
reconciliação necessária entre povos com interesses comuns. E assim Herzen
especifica a identidade entre russos e poloneses, proferindo:

O mundo eslavo tende a unir-se; esta tendência apareceu logo após o período na-
poleônico. A idéia de uma federação eslava germinava já nos planos revolucionários de
Piéstel e de Muraviov. Muitos poloneses tomaram parte na conspiração russa31.

Esta aproximação dos povos, que podia ser apreendida sob o conceito de
ajuda mútua, como dirá Kropótkin, era mais do que um “germe”, antes repre-
sentava um sinal indicativo de um processo em curso. Berdiáev analiticamente
está voltado para a grandeza do Império e para o grau da concepção em jogo. Ao
verificar a repressão ao movimento, deduz como inevitável a revolução. Assim
a intelliguéntsia formará sua modelagem mental, o tipo raskol. Este, ao falar de
si, dirá “nós”; falando do governo, dirá “ele”. Nesta forma hipostasiada, Berdiáev
observa: a classe culta arriscava-se a ser esmagada entre dois blocos – no alto,
a monarquia autocrática; embaixo, a massa dos camponeses.
Se é pertinente inferir que o pensamento russo vivencia certa “liberdade
interior”, porém, dadas as circunstâncias da vida política, a atividade cultural
apenas conseguirá manifestar-se na literatura, e precipuamente na literatura
de raiz ideológica, a saber, domínio no qual todas as questões são discutidas e
resolvidas de forma extremada. Por isso, os russos terão sonhos sem nexo com
a realidade. Enquanto reinar a servidão, serão discípulos de Saint-Simon, de
Fourier, de Proudhon. Nos salões e círculos literários, os russos tendem a debater
as “questões gerais”. Na verdade, seu primeiro pensador original é Tchaadáev,
com aguda visão expressa na Carta Filosófica. O tema da filosofia da história
é fundamental para o pensamento russo. Os espíritos especulativos incidem
numa temática e desejam resolver um problema: pertence a Rússia ao Oriente
ou ao Ocidente?
A reflexão de Tchaadáev levanta uma denúncia contra o passado e o pre-
sente da nação. A obra de Pedro, o Grande, despertara o gênio criador do seu
povo. Como resposta ao czar desponta o gênio de Púchkin e o movimento dos
eslavófilos e ocidentalistas. Mas persistia uma questão em aberto: a Rússia de-
via continuar a avançar na trilha de Pedro, ou antes retornar ao antigo Estado

31. Ver Herzen, Le Peuple Russe et le Socialisme (1851) in: Textes philosophiques choisis.
Moscou, 1948, p. 507.

358
Herzen Ontem e Hoje

moscovita? A resposta negativa de Tchaadáev constitui o tipo de negação rus-


sa. Seu ocidentalismo tem fundamento religioso, pois simpatiza com o catoli-
cismo, no qual enxerga uma história ativa, organizada, única, apta a revitalizar
a Rússia, indecisa entre o Oriente e o Ocidente, embora pertencendo a ambos
os mundos. Nas páginas sombrias de Tchaadáev, o destino da Rússia deveria
servir de admoestação a todos os povos. Sobre o povo russo emprega sintagmas
como “potencialidade”, “não-revelação”, termos que evidenciam condenação
ao passado, como verificação empírica de que o povo russo não cumpriu nada
significativo na história. Voltadas para o futuro, tais conotações poderiam
conter esperança. Nessa força potencial o século XIX fundou uma certeza: o
povo russo é chamado a realizar uma missão superior. Competirá a ele resolver
as questões deixadas sem resposta pelo Ocidente. O tema da missão da Rússia
comparecerá no livro Apologia de um Louco, em que Tchaadáev exprime as
idéias que fundam o messianismo russo. Aí aparece sua esperança no futuro,
uma postura de simpatia para com a sociedade ortodoxa. Para Berdiáev, tal
julgamento é correlato ao momento em que a intelliguéntsia está impregnada
de um espírito cristão-novo que almeja conciliar cristianismo e socialismo. E
o que seria de fato tal ortodoxia?
A crença ortodoxa russa tende ao universal, o pensamento russo contrapõe-
-se a aspectos da fragmentação ocidental. Os ortodoxos aproximam-se do
idealismo hegeliano, visto que o sistema de Hegel representaria um “sistema
total”. Além disso, a ortodoxia era um dos princípios basilares da concepção
eslavófila, cujos seguidores defendiam a autocracia. A vontade dos eslavófilos
era resgatar o princípio mais autêntico, a alma do povo, o poder absoluto e
racional do Estado. Contudo, consideravam a categoria povo ainda desprepa-
rada para o exercício do governo temporal. Sua vocação básica seria religiosa
e espiritual. Tal ortodoxia era sobremodo prática dos eslavófilos que expressa
o traço­fundamental da intelliguéntsia: seu Narodnismo é a fé no mujique
(mujik, homem varão), entendido como o guardião da religião e das formas
da vida nacio­nal. São os defensores da comuna, o cenário autóctone onde fluía
a vida russa. De modo geral, encaravam o Ocidente como algo degenerativo.
Assim estabeleceram a distinção entre civilização e cultura, que se disseminou
por conta de Spengler. No entanto, os eslavófilos preconizaram a liberdade de
consciência, de palavra e o princípio da soberania popular.
Essa forma mentis do Narodnismo de atribuir a fé no povo simples contém
uma assimetria. É que o povo não é a nação. Se a vida verdadeira estava no
povo, onde estariam as pessoas instruídas, os ilustrados? De fato, as camadas
cultas não se sentiam parte orgânica, o povo estava fora delas. Mais do que isso,
a intelliguéntsia sentia-se culpada diante dos camponeses. O sentimento da

359
Caderno de Literatura e Cultura Russa

culpa vai desempenhar um papel psicológico no movimento naródnik e uma


excepcional ressonância na cultura russa. Assim, a fração religiosa dos naródniki
(Tolstói, Dostoiévski, eslavófilos) e os descrentes (Herzen, Bakúnin) descobrem
no povo uma verdade social. Para eles, o homem por excelência, o que não
carrega o peso do pecado, é o trabalhador, o homem simples. Na Rússia, os
in­­telec­tuais têm uma vocação cultural muito lábil, na verdade sofrem o “de­
sen­rai­­­zamento”. Tratam de tomar contato com o povo e com a terra, como será
a atitude de Liev Tolstói.
Assim foi-se preparando o terreno, de tal modo que no movimento naródnik
despontam as dimensões espiritual e moral. Berdiáev analisa o início da década
de 1860, com a emergência das reformas liberais, com a emancipação dos servos
e a organização dos Ziémstvos. Assim formou-se um caldo de cultura, com
anos de conciliação e nos quais a fração à esquerda da intelliguéntsia aclama o
poder na promoção das reformas. Herzen e Tchemychévski chegaram a escre-
ver artigos encomiásticos ao czar Alexandre II. O sonho por uma libertação
dos servos parecia ter acontecido. Mas o período de conciliação durou pouco.
Segundo Berdiáev, no alto cristalizou-se a tendência reacionária, e embaixo a
revolucionária, que cresceram juntas, e nova tensão apareceu. À medida que a
paixão “reacionária” triunfava no seio do poder, este continuava mais arbitrário.
O movimento revolucionário nascente passa a manifestar-se em atos de terro-
rismo contra o czar. Advêm medidas repressivas, as quais geram as correntes e
as práticas revolucionárias. Um círculo fatal fechava-se na Rússia. Nesta altura
podemos perceber a visada de Berdiáev ante os fatos relatados:

a intelliguéntsia não compreendia que a monarquia russa [...] se apoiava nas crenças reli-
giosas do povo. Os camponeses foram libertos com a terra; a opinião dos que pregavam
a libertação sem a terra havia sido vencida. Mas os camponeses [...] continuaram a ser
miseráveis na nova condição e humilhados na dignidade pessoal32.

Na citação anterior está contida a ressalva que Berdiáev faz à concepção da


intelliguéntsia; o viés da intelectualidade de opor-se ao absolutismo tomado
como coerção política e um modo de ver influenciado pelo socialismo burguês
que preconizava a reforma agrária, subentendendo a proletarização da classe
camponesa. É verdade que Berdiáev adota uma postura reducionista, com base
nas conseqüências de um processo, em que evidencia a técnica da economia
agrária como bastante primitiva, de modo que os terrenos cultivados não
produziam­alimento suficiente para a população, que se mantinha em níveis

32. Cf. Berdiáev, 1938, p. 34.

360
Herzen Ontem e Hoje

baixos de produtividade. Assim de 1860 até a Revolução de Outubro (1917), a


Rússia permaneceu um território da nobreza no qual dominavam senhores
de grandes propriedades, prevalecendo costumes feudais e chefes militares, os
atamanes, eleitos pelas comunidades camponesas.
Após a revolução, o socialismo agrário irá nutrir-se de temas novos. Já havia
começado o desenvolvimento industrial, a emergência de novas classes. O pro-
dutor das aldeias torna-se burguês. Nessas circunstâncias, a questão proposta
por Herzen – se a Rússia deve evitar a etapa capitalista – configurava-se mais
atual e candente.
Nesse contraste do passado e presente, Berdiáev enfatiza que o povo russo
foi a matéria para edificação de um grande Estado, ao mesmo tempo que esteve
inclinado a revolta. Para ele, isso foi possível pela presença de um “fermento
dionisíaco” que contém o fermento da anarquia, o que não era casual pois o
russo encarna nas figuras de Stienka Rázin e Pugatchov, sempre vivos em seu
seio. Berdiáev refere-se ao chefe cossaco Stienka (1630-1671), que comandou
um levante de camponeses. Apesar de sua bravura de cavaleiro cossaco, foi der-
rotado pelas tropas czaristas e executado em 1671. Sua figura havia disseminado
o “pânico e o desgosto” das idéias liberais que seriam incapazes de recon­ciliar-se
com a civilização européia. Alguns homens incomuns oriundos da nobreza ex-
primem revolta, dentre eles deve ser lembrada a figura de Bakúnin, que Berdiáev
designa como o “Stienka Rázin da nobreza”. Reconhece que este revolucionário
é ainda um homem dos anos 1840, amigo de Belínski e de Herzen, próximo
dos eslavófilos, ao mesmo tempo idealista e hegeliano. Sua importância no
pensamento europeu emerge somente nas décadas de 1860 e 1870.
Na obra de juventude, Bakúnin revela idéias sobre o messianismo, especial-
mente o eslavo-russo, pois seria pelos eslavos que “o incêndio mundial deve
ser ateado”. Dessa época escorre a expressão “destruição e paixão criadora”. Seu
pensamento manifesta a vontade de uma insurreição geral, a crença de que das
ruínas de um mundo decadente surgirá, espontaneamente, um novo mundo.
Compartilha do sentimento naródnik, acreditando na verdade oculta no fundo­
das massas obscuras do povo russo, a que ele denomina “o povo da revolta”. Há
em sua obra três princípios da formação do individuo: 1º) homem-animal; 2º)
pensamento; 3º) revolta. De sua exposição sobre o Império Knuto-germânico,
conclui que a missão do eslavismo é a defesa de uma ordem anti-estatal; a
con­ti­nuidade do estatismo mostra a influência alemã e a ciência, reinado dos
professores, que pretende impor um “socialismo científico”. Persiste nele um
eco de profetismo.
A literatura russa é impregnada de sentimentos, pressentimentos e predi-
ções, quase sempre à espera de uma catástrofe iminente. Assim, as obras dos

361
Caderno de Literatura e Cultura Russa

escritores do século XIX refletem tanto a revolução “interior” que acontecia,


quanto a outra revolução em processo. Berdiáev recorda que o problema da
cultura foi sentido pelos prosadores e pensadores sociais. Na dimensão psico-
lógica, Gógol, Tolstói, Dostoiévski se relacionam com Belínski, Bakúnin, Tche-
mychévski. A tese central é que os pensadores russos, os criadores, procuram
atingir não só obras perfeitas, mas também uma vida perfeita, do ponto de vista
da verdade. Esse conceito de perfeição explicaria o realismo da literatura russa
do século XIX. Sua premissa é que todos escritores vivem uma tragédia: a da
obra a ser criada diante da necessidade de transfigurar sua própria existência.
Escritores como Gógol e Tolstói estavam dispostos a sacrificar as obras à criação
de uma vida exemplar. Como escritores russos, penetram no segredo da vida e
da morte. Eis um traço permanente: Gógol, Tolstói, Dos­toiévski ultrapassam
os limites da arte. Para Berdiáev, os grandes escritores russos visam a uma
fórmula de arte coletiva válida para o conjunto do povo, uma arte universal.
A obra de Liérmontov, por exemplo, está repleta de pressentimentos de algo
que se aproxima. Não é casual que Khomiakov padeça com a história russa:
recebe a derrota na Criméia como um castigo justo. Já no começo do século
XX os poetas simbolistas pressentem que a “Rússia voa para o abismo”. Tal
simbolismo evidencia a ruptura com a realidade social. Assim, Ivánov, Biély,
Blok almejam uma arte nacional, buscam o que o comunismo russo chamará
o “mandamento social”.
A figura de Konstantin Leóntiev sobrepuja a todos como revelador das
correntes proféticas. Semelhante a Herzen, Leóntiev coloca de modo agudo o
problema do “mercador”. O alento da burguesia terá efeito determinante sobre
sua vida. Para Berdiáev, esse artista e sociólogo lembra um homem do Renasci-
mento italiano; seu cristianismo é pessimista. Nele as tendências apocalípticas
reforçam-se com tons de pessimismo. Na verdade, deseja uma teocracia livre,
uma ordem que é vista no pan-mongolismo, ou seja, o perigo que representa
a raça amarela para a Rússia e a Europa. Em Relato do Anticristo mostra o fim
que se aproxima nos tempos, anuncia-se a catástrofe da história envolta numa
visão de apocalipse. Na mesma direção aparece Nikolai Fiódorov, que anuncia
a vinda do Anticristo.
Paralelamente a essas correntes proféticas, formava-se uma concepção de
homem novo, a par de uma concepção de mundo dos revolucionários. Nos
anos 1840, foram os precursores dos círculos intelectuais, mais tarde, nos anos
1860, aparecem os niilistas que vivem a influência da “paixão”, desprezando a
obra de Herzen e chamando sua geração de “afidalgada”, e no começo do século
XX os comunistas tratam a antiga intelliguéntsia como “burguesa”. Na pro-
gressão de temas trazidos pelo bolchevismo estão a força e o poder. Para a

362
Herzen Ontem e Hoje

concepção maximalista impõe-se um ser cruel e fatal, representando o operá-


rio e o camponês, que haviam passado pela disciplina da guerra e do partido.
Na estrutura social, tal modelização corresponde a um desejo de plasmar
homens novos, vindos de baixo, estranhos à cultura russa, cujo tipo ideal é o
gênio de Tolstói. Os pais e avós desses homens foram analfabetos, sem instru-
ção, sobreviventes pela fé. Berdiáev nos alerta para a antiga atitude do povo:
doçura e paciência. Com os bolchevistas, há uma transfiguração: triunfa o
furor. Ocorre inversão da “alma do povo”, de tal modo que este, no passado
vivendo sob crenças irracionais, passa a acreditar na máquina em lugar da di-
vindade. Nesta altura Berdiáev monta sua concepção de história. O povo russo
passa do período telúrico (em contato místico com a terra) para o período
técnico (o poder da máquina). São metamorfoses que acontecem na alma dos
povos.
Nesse movimento de mudanças, Berdiáev percebe a singularidade do mar-
xismo russo: a revolução que é feita necessita de novo mito. Assim, o mito do
povo camponês vai transformar-se no mito do proletariado. Nesse sentido,
o nome de Marx foi usado como a consciência da fraqueza da intelliguéntsia
russa. Para Berdiáev, correspondia justamente à mudança da estrutura aní-
mica. As nervuras do seu argumento mostram que os primeiros marxistas
como Plekhánov, Axelrod, Zassonlitch, Deutsch eram de formação européia,
ociden­ta­lizantes. Com o tempo tendem a aceitar o princípio da força. A atitude
adotada de dar primazia ao proletariado não decorre de que os revolucionários­
tivessem piedade pela condição do oprimido, mas da consciência de que a classe
operária é chamada para vencer. Nessa ebulição, emergem as interpretações
sobre a emancipação do trabalho: o marxismo tomado como uma religião; ou
a delimitação que conduzia a concepções estéticas. Assim, alguns reservarão um
domínio para a pesquisa artística e outros, para a pesquisa religiosa. Ocorre a
disputa na Rússia entre a posição ortodoxa (totalista) e a fração crítica (revisão
de aspectos do marxismo). Uma nova concepção idealista busca fundamento
ético ao socialismo.
Acaso o proletariado não é povo? Será que a classe operária tem valores tão
diferentes dos dos camponeses?
Herzen, ao comparar a Rússia e a França, parte de uma premissa: O homem
da Rússia futura é o “mujique”, como o homem da França regenerada será o
operário. Concebe que os povos eslavos têm na família um desenvolvimento
elevado: ela é o protótipo da comuna, ela é una sob um mesmo teto, dirigida
por um avô ou um tio. Não é raro que um avô encanecido dirija os negócios
da comuna. Assim sobrevive o comunismo mujique. Logo após, o que mais ca-
racteriza a Rússia é seu movimento literário – a lírica de Púchkin, as peças de

363
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Liérmontov, às canções de Koltsov. Entre o camponês e a literatura, ergue-se a


Rússia oficial, aquilo que Michelet chamará “Rússia mentira”. Nela há também
uma divisão de estratos: a nobreza e parte do terceiro estado. A parte esclarecida
do terceiro estado pertence à nobreza. E existe, segundo Herzen, um “proletaria­
do nobiliário” que se funda em parte no elemento popular e outro proleta-riado
que atinge o alto, enobrece. Assim, toda a história da Rússia explicita a história
da nobreza e a influência que sobre esta exerce a civilização européia.
Berdiáev, ao verificar o nascimento do marxismo russo, encontra pensado-
res racionalistas e revolucionários de formação “livresca”, como é o caso de
Plekhánov. No início dos anos 1890, o marxismo expressa uma forma radica­
lizada da corrente ocidentalista. Seu ponto de vista defende o desenvolvimento
industrial do país; são os defensores da proletarização dos camponeses. No
fundamental tratam de desenvolver a consciência de classe no opera­riado.­
No marxismo clássico, no jovem Marx existe uma filiação idealista de funda-
mento (Fichte, Hegel, Feuerbach) que sustenta uma psicologia de classe. Nisso
consiste a teoria da libertação do proletariado, uma classe universal, de vocação
messiânica. Segundo Berdiáev, tal classe proporcionaria ao homem uma vitória
sobre as forças da natureza e da sociedade. A antiga consciência dos he­breus é
secularizada: no presente o proletariado é o povo eleito de Deus, a virtualidade
de um novo Israel. Salienta que a missão do proletariado é dominar­o mundo.
Assim, os teorizadores marxistas tendem a remeter-se ao idealismo alemão: a
fé no homem é a fé no espírito; ao cabo, deverá prevalecer a atividade humana.
A dialética hegeliana só vige pelo espírito. Marx transporta as propriedades do
espírito para o império da matéria. Assim aparece uma inter­pe­ne­­tração de fé
e religião.
No marxismo russo, a tendência não é por uma resposta idealista, mas uma
atitude voluntarista em que os marxistas aderem à ideologia da força. Assim
prevalece um conceito de primazia, não pela condição do ser oprimido, mas
pela aceitação de que o proletariado está destinado a vencer, constitui uma
“força em marcha” (cf. Berdiáev, 1938, p. 146).
É preciso esclarecer que a perspectiva analítica de Berdiáev ressalta as
grandes tendências do século XIX, em especial as tendências idealistas, que se
afastam cada vez mais do socialismo, pouco a pouco perdendo sua base social.
Para ele, observam-se os cismas que caracterizam a história cultural da Rússia.
As dissidências endógenas condenariam o movimento idealista à impotência,
acarretando conseqüências fatais à ideologia das revoluções de 1905 e 1917.
Tomada a questão do ângulo do movimento naródnik, o campesinato está im­­-
preg­­nado de valores da terra e do homem, passível da utopia da derrubada do
poder autocrático e a emancipação do trabalho erigida sobre a idéia da comuna.

364
Herzen Ontem e Hoje

Os pensadores naródniki, como Herzen e Tchemychévski, apontam os males


da condição industrial e da proletarização, situação que será objeto dos estudos
de Marx e Engels, na chamada fase de transição do capitalismo para a formação
socialista. Em 1882, os pais do “socialismo científico”, após analisar as condições
da Rússia, chegam a um juízo sobre o mir que poderia servir como ponto de
partida para o comunismo. Porém, o analista Engels dirá que o mir é apenas
uma “ilusão”, já que a Rússia teria ingressado num curso irreversível rumo ao
capitalismo. Isso significa dizer que o prisma da economia política superava a
visão de política: a Rússia de 1890 não é mais a Rússia de 1840.
Esse caminho para a Rússia industrial não era tão inevitável como fazia
supor o discurso revolucionário. No começo do século XX, ocorre um novo
renascimento cultural, religioso, artístico. Uma época em que se mostram o
simbolismo, a metafísica e a mística. Para Berdiáev, trata-se da época em que
ocorre uma volta à tradição da grande literatura, ao pensamento filosófico e
religioso. De Plekhánov e Tchemychévski, volta-se para Tolstói, Soloviov. A in-
fluência de Nietzsche é sentida na Rússia, a par do simbolismo russo que invade
o terreno místico. Nesse período, marcado pela revolução de 1905, emerge a
querela entre menchevistas e bolcheviques.
Esse movimento de renovação cultural não conseguiu avançar, predominan-
do a linha cismática. De um lado, Berdiáev encontra a figura de Lunatchárski,
escritor e autor do livro Religião e Socialismo (1908), que propõe um domínio
de pesquisa sobre Deus e as condições da produção divina. De outro lado, V. I.
Liénin, chefe da ala bolchevique, nega tal âmbito teórico, desejoso de instaurar
uma concepção de mundo integral para os revolucionários. Sua conduta recusa
a liberdade no interior do movimento maximalista. A principal conseqüên-
cia, assinala Berdiáev, é que tal negação estende-se à Rússia inteira. Assim, o
bolchevismo é a “síntese de Ivan, o Terrível, e de Marx”. Quando escreve Que
Fazer?, Liénin exige a organização a partir do alto, tornando-se absolutista, ou
seja, mostra-se um crente da verdade absoluta. Nesse momento, o cisma e a
polêmica deixam para trás os idealistas e os niilistas, e os comunistas passam a
impor um novo traço à intelliguéntsia: a primazia dos temas da força e do po-
der, que deslocam os temas anteriores da paixão, da piedade, do amor à justiça.
Mas o novo tipo psíquico, que será modelizador do bolchevismo, representa
o operário e o camponês na experiência da guerra e da disciplina partidária.
A atitude de Liénin expressa o ato de furor. O que implica a inversão da alma
popular: o povo que começa a acreditar no maquinismo em lugar de Deus.
Assim o povo russo evolui ao período técnico. Esta concepção de Berdiáev é
semelhante à de Spengler (O Homem e a Técnica), que visualiza um estádio
inevitável para os povos do Ocidente.

365
Caderno de Literatura e Cultura Russa

A dialética da alma cindida se distancia da fenomenologia hegeliana do se-


nhor e do escravo, na qual um se mantém atuante perante o outro. O interesse
de Berdiáev vai no sentido de ressaltar o isolamento do senhor e a atitude frágil
do servo, o que se manifesta por mediações da consciência. Sua dialética opera
com a fé versus o aviltamento, a natureza e a sociedade. Assim, ao retornar ao
argumento de Liénin, mostra que este simplificava as idéias originais de Marx. O
problema inicial, tal como concebido por Feuerbach, consistia na religião como
uma expressão da natureza superior do homem, que se aliena dele. No limite, a fé
em Deus exprime a condição de escravidão do homem. Na formação da socieda-
de moderna, a fé constrange o proletariado à miséria. Se o problema de Marx era
a metamorfose da consciência-ser, para Liénin torna-se o problema do “assalto
ao céu”. Lunatchárski quer a “construção de Deus”, teoria que era uma forma de
ateísmo. Por seu lado, Plekhánov concebia a religião no desempenho individual
conforme as condições de instrução, envolvendo a mudança de conceitos, ou
seja, a divindade seria uma questão filosófica. A par dessa querela ideo­lógica,
Berdiáev lembra que Káutski dera sua contribuição, ao religar o cristianismo ao
movimento do proletariado romano; a generalização do seu estudo mostrava
o cristianismo como resultado da ação no meio social. Se subsiste um meio
miserável e aviltado como na Rússia, a definição de Marx sobre a religião não
é apenas levada às últimas conseqüências. Não se trata de um “ópio do povo”,
antes, o comunismo pretende ser uma “concepção de mundo” de um partido
combatente. A suposição de o homem estar a serviço de um ideal remonta ao
cristianismo, porém tomada como propaganda anti-religiosa. Berdiáev mostra
como a adoção dos termos implica uma inversão do conteúdo: no passado
Basílio, o Grande, e São João Crisóstomo haviam declarado um comunismo,
ao criticarem a má distribuição de bens. Concebido num sentido moral, o cris-
tianismo podia servir para combater a Igreja ortodoxa. Tomados os dois pólos
da relação, Berdiáev desconsidera o “ópio” e a “visão de mundo”, procurando
esclarecer a categoria teórica de personalidade, que representa um todo.
Na obra O Sentido da História: Ensaio Filosófico sobre os Destinos da Huma-
nidade (Barcelona, 1936), Berdiáev irá aprofundar sua perspectiva analítica,
ao tratar da crise do humanismo. Nela mostra que o cristianismo pode ser
encarado como malogro histórico, analisado por meio do conceito de “belo”,
cujo principal exemplo é a grande literatura russa, pois nela há fundamentos do
sofrimento, da redenção e espiritual, como em Dostoiévski e em Tolstói. Assim,
detém-se na “Lenda do Grande Inquisidor”, gênese da Inquisição de outrora,
mas também fonte do comunismo soviético. Para ele, os termos do proble-
ma são a liberdade e a coerção. A civilização moderna está jogada na tensão
e procura decidir se o fenômeno que se manifesta é a compulsão, o desejo de

366
Herzen Ontem e Hoje

vida e de cultura. Na análise da história russa, realinha os termos – socialismo


versus pragmatismo e ateísmo versus religião. Toda a sua analítica pende para
uma definição: “criamos uma civilização deformada”.
Cumpre aclarar que o tema da liberdade fora meditado por Herzen, cujas
reflexões aparecem na coletânea de ensaios Da Outra Margem (edição russa,
1855). Um dos ensaios trata abertamente da “religião do futuro”, que seria um
legado que faz na dedicatória ao filho Alexandre: “Que minha bênção te acom-
panhe nesse caminho, em nome da razão humana, da liberdade individual e
do amor fraterno” (Herzen, De l’Autre Rive, p. 359).
Em outro ensaio, escrito após a observação dos acontecimentos de 1848 na
França, tendo visto os combatentes nas barricadas, Herzen aplica a fenome­nologia
hegeliana, dizendo: “Como se bastasse matar Luís XVI para derrubar a monar-
quia. Que semelhança há entre o terror e a lógica?” Para logo adiante concluir: “O
mundo não será livre por muito tempo enquanto o religioso e o político não se
tornarem humanos, simples, submetidos à crítica” (Após a Tempestade, p. 386).
Na visão de Herzen, no processo de mudanças atuam homens generosos e
inteligentes, porém a forma republicana que concebem é um pensamento abs-
trato, seria necessário advertir para a transfiguração do que existe: a república
dos franceses é um “delírio poético do velho mundo”. E que mundo será este,
sobre o qual indagarão os niilistas, os marxistas e Berdiáev? Herzen evidenciava
o cerne do problema:

O velho mundo católico e feudal sofreu todas as metamorfoses de que era capaz;
desenvolve-se em todas as direções até alcançar o mais alto grau de beleza e de horror;
acaba por esgotar-se (Herzen, De l’Autre Rive, p. 404).

Nesse fragmento está evidente o tema das metamorfoses da sociedade


moderna, objeto da interpretação de Berdiáev. Sua conclusão é que a Europa
está decadente, no entanto, seus intelectuais, “generosos e inteligentes”, como
Mi­chelet, acreditam na racionalidade do sistema. Por isso, Herzen admite o
princípio ocidental para mostrar seu núcleo duro:

Os racionalistas gostam de explicar os mistérios da religião, descobrir seu sentido e a


contribuição dos mitos; eles não julgam que sua pesquisa terminará no ateísmo, que sua
crítica dos ritos conduzirá à negação da religião; na verdade, querem salvar a civilização
e a ordem (Herzen, idem, p. 406).

Herzen retira um ensinamento da disputa entre religião e ciência: a salva-


ção do mundo passa pela revolução francesa e pela ciência alemã, que denomi-

367
Caderno de Literatura e Cultura Russa

na “as colunas de Hércules do mundo europeu”. Além disso, percebe a promes-


sa de um mundo novo. A negação do que é e a compreensão do real prometem
ao mundo, no plano teórico, a libertação da tirania da Igreja, da opressão social,­
da autoridade moral. No entanto, os revolucionários não foram ainda capazes
de renegar a organização católica da Europa. Do mesmo modo, a ciência alemã
é uma “religião especulativa”: aqui o símbolo da fé foi substituído por dogmas
sociais. O legislador pronuncia sentenças que considera infalíveis, em nome da
soberania popular. Herzen adverte: nesse novo ordenamento jurídico, o povo
permanecia como o administrado, assistia às liturgias políticas, como se fosse um
ofício religioso, sem nada entender. Nesta crítica à política e à ciência, Herzen
cunha uma importante acepção de liberdade, que de certo modo é reapropriada
por Berdiáev: o ser “livre” estava misturado ao mundo da tradição, do rito e da
autoridade. O nome penetrava nos corações, ninguém permanecia impassível
diante dele. Na Alemanha, formava-se uma tendência que desejava deter o
futuro. Havia camadas religiosas em dois mundos, o do passado, da tradição
e o da transformação. Porém os que repudiam o passado, cria­dores de estru-
turas para o futuro, não possuíam patrimônio nem de um lado (organização
social) nem de outro (iluminismo). A tendência dos recusantes do passado
mostrava um testemunho de sua “força e inutilidade”. Herzen prenunciava as
idéias-força e a inaptidão da mera negação do real. Nas cartas dirigidas a Jules
Michelet (1852), o tema reaparece como luta pela unidade dos povos eslavos.
Agora apresenta uma segunda acepção de liberdade como atitude solidária dos
poloneses: estes, em 1830, haviam compreendido o dever de combater pela “sua
e a nossa liberdade”. Herzen lembra a participação de Bakúnin, conclamando a
unidade dos povos e avançando para a forma prática da liberdade: “a federação
decorre da natureza do gênio eslavo”. E acrescenta que, ao chegar o tempo dos
eslavos, neles radicará a centralidade da revolução européia. Além da liberdade
e da religião, na argumentação de Herzen cabe outro termo: a justiça. O olhar
de Herzen recai sobre a realidade do povo russo: entre os camponeses, um
homem condenado não é um ser desonrado. Os deportados, os forçados são
chamados, em linguagem corrente, “desgraçados”. Nas comunas, reconhecem
tais indivíduos, pois prevalecem relações de confiança (fides), isso porque quem
lhes atribui crédito, autenticidade é a vida comunal, embora não conheçam
contratos, nem compromissos por escrito. Ali predominam as associações; a
associação (artiel) responde por cada operário. Em outro texto, comparando o
povo russo e outros povos, Herzen tende a especificar o atributo de povo:

Quando digo “povo”, falo naturalmente do único povo que existe na Europa, do povo
francês... O operário quando tem a força, necessita do direito... O povo francês está pronto

368
Herzen Ontem e Hoje

para a revolução; sua força é a consciência da injustiça... ele é um exército do comunismo


(Carta a Aleksandr Tchumikov, agosto de 1851).

E logo procura esclarecer o atributo de “povo do futuro” que havia feito


aos russos:

Descobri que a alma russa tem algo mais pacífico que os europeus ocidentais. Como
povo, nós somos passivos. O futuro não existe. Os homens é que o fazem (Carta a Aleksandr
Tchumikov, 1851, p. 536).

É possível perceber no fragmento anterior que subsiste uma combinatória


de elementos operados como realidades imediatas: povo francês (autêntico)
versus povo russo (passivo); presente e futuro; Rússia oficial e Rússia profunda;
círculos de estudo do passado e círculos do presente; amigos do passado e amigos
do presente. Em sua exposição Herzen mostrará os dois pólos da relação como
antinomias que sobrevivem na escolha consciente. Como enuncia, é preciso
renunciar à atitude do “liberalismo literário”, aos hábitos de parlamentares
da oposição que apenas tocam formas de republicanismo político. O sentido
de sua luta é para sair da terrenalidade, “deste mundo da servidão moral e da
submissão”, sair da tutela dos poderes absolutistas, para ingressar no mundo da
compreensão, no domínio da liberdade da razão, que é um correlato da justiça.
Do mesmo modo que não se trataria de mudar o estatuto do privado para o
coletivo, pois o “amor da terra é tão arraigado no camponês ocidental quanto a
idéia de posse comum é acessível ao espírito do campesinato da Rússia” (Carta
a Um Velho Camarada, 1870).
No fragmento anterior, é preciso atentar para o conceito de “amor de sua
terra” própria ao mujique, em que existiria um compartilhamento espiritual
entre Ocidente e Oriente. Trata-se do sentido de liberdade que vem do sânscrito
priya (daí friya, free) quer dizer “querido, amado”. Na forma arcaica freon signi-
fica amar, donde veio a palavra friend (no alemão, freund), amigo, aquele que é
amado. Assim, a expressão inglesa freedom contém a dignidade do ser amado.
Nessa acepção sou livre, não na medida em que sou socialmente independente,
mas enquanto sou amado. Portanto, ao dizer “sua terra” implica essa condi-
ção intrínseca de sentir amizade, fraternidade, humanidade.

Abstract: This text is a discussion of life and thinking of Alexander Herzen’s writer. It reports
his participation prior to 1848’s processes in France, as well as during them, and also of his
futher publicist performance in England. By re-reading Nicolai Berdiáev, we investigate
Herzen’s cultural relations with the innovative movement in czarist Russia, during his exile

369
Caderno de Literatura e Cultura Russa

in Europe, as well as the nature of his affinities with the Slavonic culture, with the horizons
of utopia. It is reported that he influenced definitively the dynamics of the extraterritorial
revolutionary press, both creating space to read and to research in Russia and preparing
the environment of diffusion of propaganda at the end of the nineteenth century.
Keywords: Slavophilism; occidentalism; intelliguéntsia; populism; messianicism; prophe­
ticism; freedom; justice.

370
Boris Schnaiderman:
Um Caso de Amor pela Literatura

Resumo: Nesta entrevista, o tradutor, ensaísta, professor aposentado da Faculdade de


Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP e fundador do Curso de Russo nessa faculdade,
Boris Schnaiderman, fala de tradução e literatura e conta um pouco de sua trajetória pro-
fissional.
Palavras-chave: Tradução literária; literatura russa; Boris Schnaiderman; cultura russa;
curso de língua e literatura russa.

Referência obrigatória quando se trata de cultura e literatura russa, o tradu-


tor e ensaísta Boris Schnaiderman é hoje o maior especialista nessa área,
no Brasil. Autor do romance Guerra em Surdina, cuja primeira edição saiu
em 1964, começou a traduzir obras de autores russos em 1944 e, desde 1957,
publica ensaios­na imprensa brasileira. Entre os seus livros de ensaios, estão:
Dostoiévski – Prosa Poesia (Perspectiva, 1982), Turbilhão e Semente – Ensaios
sobre Dostoiévski e Bakhtin (Livraria Duas Cidades, 1983) e Os Escombros e o
Mito – A Cultura e o Fim da União Soviética (Companhia das Letras, 1997).
Por meio das suas traduções, o público brasileiro entrou em contato com
grandes nomes da literatura russa como Dostoiévski, Púchkin, Tchékhov,
Górki e outros.­
Professor aposentado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Boris Schnaiderman fundou o curso de russo da USP em 1960. Com coragem
e determinação, enfrentou as dificuldades impostas pela ditadura e manteve o
curso aberto, inclusive no período de maior repressão.
Atualmente, dedica-se à revisão de traduções antigas, que estão sendo
relançadas pela Editora 34, e à revisão de seu único romance, Guerra em Surdi-
Caderno de Literatura e Cultura Russa

na, para nova edição. Além disso, o tradutor e ensaísta atende com freqüência
a convites para palestras e mesas-redondas.

P. O senhor nasceu em 1917, em Úman, na Ucrânia, e veio para o Brasil com


oito anos. Quais são as suas lembranças da infância?
R. Da infância, guardo muitas recordações, inclusive da cidade em que passei
minha primeira infância – Odessa. Fui levado para ali quando tinha um ano.
Era época de grande turbulência na Rússia, início da guerra civil, massacres,
principalmente de judeus, e como sou de família judia, os meus pais resolveram
partir para Odessa. Isso é uma longa história. Em linhas gerais, posso dizer que
as impressões da minha primeira infância foram muito fortes, num país em
guerra civil, onde havia fome e desorganização.
Quando eu tinha 8 anos, viemos para o Brasil. Os meus pais passaram
por muitas dificuldades, inclusive financeiras. Quando chegou a época da
faculdade, optei pelo curso de agronomia, que concluí aos 23 anos. Portanto,
sou engenheiro-agrônomo, ou, melhor, prefiro dizer que eu era engenheiro-
-agrônomo, pois deixei tudo isso completamente de lado. Mas exerci a profissão
durante alguns anos. Fui agrônomo de carreira do Ministério da Agricultura.

Sempre quis me ocupar de literatura.


Fiz o curso de agronomia por pressão da família.

P. E quando fez a opção pela tradução?


R. Sempre quis me ocupar de literatura. Fiz o curso de agronomia por pres-
são da família. Naquele tempo, só havia três profissões consideradas válidas
para um jovem de classe média: médico, engenheiro ou advogado. Já existia a
Faculdade de Filosofia de São Paulo, mas diziam que isso era coisa para moças
casadoiras, não para um homem, que precisava ter uma profissão.
P. Como venceu esse preconceito?
R. Bom, devido às circunstâncias, não é? Devido às circunstâncias... Como
já disse, sempre quis me ocupar de literatura. Inclusive depois de iniciada a
carreira de agrônomo, eu fazia traduções. Eu tinha uma dificuldade muito
grande, queria fazer literatura, queria escrever em português, mas no caminho
do meu português estava sempre o russo. Eu achava que o russo me atrapalhava,
dificultava o meu trabalho. Mas hoje em dia é difícil dizer se dificultou ou se
enriqueceu, é tudo junto – riqueza e dificuldade.
Eu precisava ganhar a vida e durante muito tempo não pude exercer a pro-
fissão de agrônomo porque, na época do Estado Novo, havia a exigência de que
o indivíduo, para exercer uma profissão liberal, devia ser já naturalizado e ter

372
Boris Schnaiderman: Um Caso de Amor pela Literatura

feito serviço militar. Então providenciei a minha naturalização. Mas não foi
fácil. Durante o Estado Novo, o simples fato de eu ser russo dificultava tudo;
um russo que queria se naturalizar brasileiro era como um estigmatizado.
Também fiz o serviço militar. Poderia ter feito o serviço militar na assim
chamada linha de tiro de guerra – tipo de serviço militar mais brando. Optei
pelo serviço militar num quartel e acabei indo para a guerra. Foi uma experiên­
cia muito rica e muito importante para mim.
P. No romance Guerra em Surdina, descreve a sua participação na guerra.
Em que contribuiu essa experiência para a sua relação com a literatura e a
tradução?
R. O contato com gente do povo me ajudou muito. Na verdade, tive contato
com brasileiros das mais diversas camadas sociais. Tive companheiros que eram
altos funcionários do Itamarati, um companheiro que estudava engenharia,
outro medicina... Participei da guerra como calculador de tiro e, por isso, estive
no meio de gente de maior escolaridade.
A experiência foi muito rica e procurei transmiti-la no meu livro Guerra
em Surdina, do qual acabei de preparar uma quarta edição revista, que será
lançada em breve. Com o tempo, percebi que era necessário tratar a literatura
de modo mais familiar. Esse livro me ajudou muito nisso. Fiz um esforço para
deixar o estilo um tanto empolado das minhas traduções da época. Fiz o que
era possível na época, mas, relendo agora, verifico que ainda há uns trechos
muito empolados, muito solenes. Por isso a revisão. O livro, como um todo,
me agrada muito, realmente é alguma coisa que me é muito cara.
P. Nele, o sr. trata da questão da brutalização do ser humano, mas, no final,
parece ter havido uma experiência humanizadora, pelo menos no seu caso em
particular.
R. É algo muito complexo. Quer dizer, não foi por ter lido Guerra e Paz que
escrevi o romance. Foi por ter vivido aquilo e ter procurado expressar da minha
maneira. Eu concordo com Tolstói. Numa carta, ele diz que só tem valor aquilo
que é criado, não adianta, simplesmente, colocar a experiência no papel. Claro
que ele disse isso por outras palavras, de maneira muito mais articulada, mas a
essência é a seguinte: não adianta ficar apenas descrevendo experiên­cias pessoais;
isso é testemunho, crônica. Literariamente, só tem valor aquilo que é criado.
A experiência pessoal serve como tema, porém esse tema também poderia ser
algo inventado. No meu caso, tive a vivência do tema.
Ontem (30.11.2002), o grande diretor de teatro russo Aleksandr Sokúrov
realizou um debate extraordinário com o público no CineSesc. Entre outras
coisas, ele disse: “Eu gosto de fazer documentário, mas o que eu faço, o filme
que eu faço não é a vida. Quando faço um documentário, não retrato simples-

373
Caderno de Literatura e Cultura Russa

mente a vida, crio algo mais, que é o próprio documentário”. Documentar,


aliás, segundo a concepção dele, é muito relativo porque sempre há esse fato
– cria-se outra vida. Dostoiévski, quando escreveu Recordações da Casa dos
Mortos, não estava simplesmente retratando, ele estava criando com base na
própria experiência.
No meu caso, a experiência pessoal foi importante, mas a criação resultante
foi mais importante. O romance é outra coisa, não é mais a vida cotidiana.
Como disse Sokúrov, “o meu filme não é a vida”.

A verdade é que não se pode ditar um caminho para a arte.


A arte tem os seus próprios caminhos,
o seu próprio desenvolvimento, a sua própria riqueza.

P. Entramos, então, na questão da interpretação da realidade, o que me faz


lembrar o realismo socialista.
R. A questão do realismo socialista... O que houve de ruim, de péssimo, de
viciado, de detestável foi o fato de quererem instituir o realismo socialista como
a única doutrina, a única teoria, a única literatura válida e aceitável. Dividiam
a literatura em realismo crítico e realismo socialista. Realismo crítico era o
que os escritores russos faziam antes e o que os escritores de países burgueses
estavam fazendo naquele momento... Enquanto isso, na Rússia, só era válido
o realismo socialista.
A verdade é que não se pode ditar um caminho para a arte. A arte tem os
seus próprios caminhos, o seu próprio desenvolvimento, a sua própria riqueza.
Apesar disso, o realismo socialista deixou alguma coisa boa, algumas poucas
obras realmente válidas do ponto de vista da criação.
Um exemplo bastante significativo é o romance O Don Silencioso, de Mikhail
Chólokhov. Não se pode negar a importância dessa obra. Aliás, a tradução do
título em português não expressa bem o título russo. O original é Тихий Дон
(Tíkhi Don). O adjetivo, тихий (tíkhi), quer dizer “silencioso”, mas também
significa algo de suave, é um termo carinhoso. Era dessa forma que os cossa-
cos se referiam ao rio Don, mas não queriam dizer simplesmente que ele era
tranqüilo, queriam expressar carinho e afeição. A tradução para o português
refletiu apenas um sentido da palavra original. Esse sentido é o mais corrente
nos dicionários, mas não é o único.
P. Talvez a escolha tenha sido infeliz.
R. Na verdade é difícil... O tradutor tem de escolher um sentido e, de uma
língua para outra, é uma dificuldade enorme. Os franceses conseguiram tra-
duzir muito bem o título, eles traduziram como Le Don paisible. Paisible é

374
Boris Schnaiderman: Um Caso de Amor pela Literatura

“pacífico”, mas também é “tranqüilo”, “suave”. Essa questão da tradução de


títulos é muito interessante, a boa tradução de títulos é uma arte. Vou dar
alguns exemplos de traduções que foram de uma felicidade incrível. Os tra-
dutores, em certos casos, souberam expressar o sentido do original de ma-
neira admirável.
Há um romance do Somerset Maugham que, em inglês, é chamado The
Moon and Sixpence, literalmente, “A Lua e Seis Tostões”. O penny corresponde
à menor moeda na Inglaterra, então poderíamos usar “seis tostões”, não é? Ou
então alguns traduzem por dinheiro – “seis dinheiros”, mas essa é uma tradução
feia. No francês, foi traduzido de um jeito horrível. Não traduziram o título,
pegaram o sentido do texto e criaram L’envouté. O romance trata da vida do
grande pintor francês Gauguin no Taiti. Então, The Moon and Sixpence repre-
senta o sonho e o cotidiano. Gauguin era um bancário, abandonou o emprego
e a família para viver no Taiti, ou seja, abandonou Sixpence pelo sonho, pelo
delírio até. A tradução francesa tem um título muito prosaico. L’envouté significa
alguém que está enfeitiçado, recolhido, aprisionado; alguém que fica fascinado
por alguma coisa. Nesse caso, não faz muito sentido.
E como é que traduziram para o português? O tradutor fez um achado
notável – Um Gosto e Seis Vinténs. Quer dizer, ele suprimiu aqui a metáfora
da lua, mas deu um toque bem no espírito da língua portuguesa. Ficou exce-
lente.
Quer ver outro? Há um romance utópico do Aldous Huxley que se chama
em inglês Brave new world. É uma citação de Shakespeare. Foi traduzido como
Admirável Mundo Novo. Com esse exemplo podemos ver por que a tradução
não deve ser literal. Brave seria bravo, valente... Embora se tenha perdido a
citação de Shakespeare, a solução do tradutor foi muito feliz.
Às vezes, é difícil traduzir um título. Na minha experiência, tive dificuldades.
Por exemplo, um dos volumes da trilogia autobiográfica de Máximo Górki se
chama В людях (V liúdiakh). O que é esse В людях? Literalmente seria “no meio
das pessoas”, “no meio de gente”. Mas em russo a conotação mais comum é a de
uma pessoa que já se fez, uma pessoa que já se formou, não no sentido escolar,
mas já se formou para a vida. Nesse caso, aproveitei o título de uma tradução
francesa. Traduzi esse volume da trilogia de Górki e chamei-o de Ganhando
Meu Pão. Mas não é original; digo isso em uma nota, aproveitei o título francês.
O fato é que essa solução expressa muito bem o sentido, porque, se você for
traduzir literalmente, não consegue transmitir todo o sentido do original. O
tradutor francês teve uma idéia muito feliz.
Outro exemplo da minha própria experiência é o título de um conto de
Tchékhov, no original Попрыгунья (Poprygúnia). Literalmente, é aquela que

375
Caderno de Literatura e Cultura Russa

pula, aquela que salta, mas isso tem uma relação com a fábula da cigarra e da
formiga, traduzida para o russo por Krylov. Achei difícil traduzir o título, mas,
no final, acho que consegui uma boa solução. Traduzi como “Ventoinha”, porque
o sentido é esse – uma pessoa saltitante, que vira pra todos os lados.
Aqui nós chegamos ao cerne de um problema importante. A tradução nunca
é transposição direta de palavras. Isso é uma noção consagrada. Horácio já es-
creveu sobre isso. Há uma carta de São Jerônimo sobre a sua tradução da Bíblia
(muito criticada então por se afastar do sentido literal) em que ele defende a
opinião de que a tradução nunca pode ser literal. A tradução literal resulta nas
maiores bobagens. Tem-se de transmitir o espírito do original. Não adianta
ficar implicando – ah, traduziu assim, traduziu assado, não está muito correto.
A crítica tem de ser feita, mas o que se traduz é o espírito, não é o texto, não
são as palavras nem as frases. O que se transmite é o espírito do texto, essa é a
verdadeira fidelidade.

[Na tradução] O que se transmite é o espírito do texto,


essa é a verdadeira fidelidade.

P. A tradução seria então, como o senhor próprio afirmou em uma entre-


vista no Estado de S. Paulo, o rigor aliado à criação?
R. Exatamente. O rigor aliado à criação. Rigor tem de haver, mas com liber-
dade. É um problema dialético. Tem de haver rigor e tem de haver liberdade,
tem de haver criação.
P. Um bom exemplo seria o trabalho de tradução que o senhor realizou
juntamente com os irmãos Campos.
R. Ah, sim. Eles tiveram achados formidáveis. Vou dar um exemplo. O Ha-
roldo tem uma tradução do poema Definição de Poesia (Определение поэзии),
de Pasternak. Um dos versos desse poema foi traduzido pelo Haroldo da se-
guinte forma: “A dor do universo numa fava”. É um verso belíssimo. É mais
bonito do que o do original russo. Mas o Haroldo sempre justifica isso da se-
guinte maneira: a tradução segue a lei das compensações. Num trecho eu vou
expressar menos do que o autor expressou. Então tenho de recuperar em algu-
ma outra parte.
P. Nos últimos anos, no Brasil, as editoras têm publicado várias traduções de
obras russas, inclusive de sua autoria. A que atribui esse aumento do interesse
pela literatura russa?
R. Podemos falar dessa questão, do interesse pela literatura russa no Brasil.
A partir do século XX houve um grande interesse motivado pela curiosidade.
Todo mundo estava percebendo que na Rússia aconteciam coisas importantes.

376
Boris Schnaiderman: Um Caso de Amor pela Literatura

Politicamente, havia um interesse muito grande e houve também o impacto


do interesse dos franceses pela literatura russa. Esse maior interesse do público
francês pela literatura russa estava ligado a vários fatores. Em primeiro lugar,
penso eu, devido à aproximação russo-francesa, em conseqüência do jogo entre
as potências. A França, que havia sido derrotada na guerra franco-prussiana,
sentia-se ameaçada pela Alemanha. Dentro da França havia um grande mo-
vimento pela revanche, queriam retomar a Alsácia e a Lorena e faziam outras
reivindicações nacionalistas. Os alemães estavam muito atentos a isso. Existia,
portanto, essa tensão.
Para encontrar um aliado, a França aproximou-se da Rússia. Isso foi no
começo da década de 1880. Além disso, os franceses encontraram na literatu-
ra russa uma visão que se contrapunha àquele positivismo científico, às vezes
muito imediatista, e que estava dominando o Ocidente. E a literatura russa
oferecia algo muito diferente. Escritores como Tolstói e Dostoiévski ofereciam
algo diverso. Isso causou um impacto.
No Brasil, por contaminação, também houve um interesse muito grande.
Lia-se muito literatura russa, mas sempre em francês, em espanhol... Quando
apareciam traduções, geralmente eram traduções indiretas. Depois houve um
interesse muito grande pela Revolução de 1905 e, mais tarde, pela de 1917. Os
brasileiros acompanharam muito de perto o que estava acontecendo na Rússia.
Quase sempre por via indireta, mas acompanharam.­
Esse interesse manteve-se até mais ou menos 1945, com o fim da Segunda
Guerra Mundial. Depois disso, veio o período da Guerra Fria. Naquela época,
o mercado brasileiro foi inundado por obras secundárias, pelo que havia de
pior no assim chamado realismo socialista. Eram obras de pura exaltação, que
afastaram o público.
Em 1958, aconteceu o escândalo Pasternak e o romance desse escritor
tornou-se uma sensação. O Doutor Jivago foi traduzido às pressas em todo o
Ocidente. Por isso, uma retomada do interesse inicial. Mas a obra era muito
complexa para o leitor comum.
Outro fator importante foi o lançamento dos Sputinik russos; mas esse
interesse não chegou a se refletir na recepção da literatura, pois havia essa
imagem negativa, o público estava meio afastado da literatura russa. Havia
aquela admiração pela Rússia, pelos feitos espaciais russos etc., mas isso não
foi suficien­te para despertar um novo interesse pela literatura.
Esse interesse eu estou notando de uns três anos para cá. Acredito que haja
vários fatores para isso. Há o fator de que a literatura russa tem um material
riquíssimo a transmitir e estava bastante fora de circulação. Publicaram muito
nas décadas de 30 e 40, mas de modo geral a literatura russa estava fora de

377
Caderno de Literatura e Cultura Russa

circulação no Brasil. Muita coisa que era divulgada no Ocidente não chegava
aqui. Agora está chegando. E há o fato de que apareceram tradutores do russo,
apareceram e não foram poucos.

Na literatura russa, há muitas obras importantes


que deveriam ser traduzidas para o português.
Inclusive na literatura do período soviético.

P.Talvez agora seja possível apresentar ao público brasileiro obras e autores


russos que ainda não foram divulgados no Brasil. Quais seriam as obras ou
autores russos mais importantes, ainda desconhecidos do público brasileiro?
R. Púchkin está relativamente pouco divulgado. De Liérmontov existe a
tradução do Paulo Bezerra, O Herói do Nosso Tempo, mas há muitas obras
importantes que não foram traduzidas. Da obra de Turguiénev, por exemplo,
foi traduzida uma parte mínima. Górki... Havia um grande interesse por Górki
no passado, hoje em dia foi posto de escanteio, o que é uma injustiça, ele é um
grande escritor.
Na literatura russa, há muitas obras importantes que deveriam ser traduzi-
das para o português. Inclusive na literatura do período soviético. Um escritor
como Zóchtchenko – realmente um grande escritor dos primeiros anos após a
Revolução. Dele existem no Brasil apenas alguns contos isolados em antologias
e também uma coletânea feita pela Tatiana Belinky.
Outro exemplo é o escritor Iúri Oliecha, grande escritor. Dele eu só traduzi
uma novela, Inveja. Mas ele tem obras importantes. Recentemente, saiu um
diário seu. Ele havia publicado em vida alguns trechos de diários, mas agora
saiu um mais completo. Ao que parece, ele estava guardando esse material, não
era para publicar em vida. Na Rússia também há maior divulgação de Oliecha.
Por exemplo, há um escritor do período soviético que até hoje quase não foi
divulgado no Brasil. Numa ocasião, traduzi um continho dele para a revista da USP,
uma coisa bem acidental. Daniil Kharms. Realmente é um grande escritor. Fez uma
literatura do absurdo na Rússia da segunda metade da década de 20. Portanto, é
um percursor de Beckett, de Ionesco. É um escritor muito forte. Eu soube que uma
estudante de pós-graduação de russo esteve traduzindo Daniil Kharms.
Mas, enfim, são muitas as obras que deveriam ser traduzidas. Não se tra-
duziu um trabalho importante do Tchékhov, que é o livro A Ilha de Sacalina.
Não está traduzido.
Das obras autobiográficas de Górki se traduziu muito pouco. Da prosa de
Óssip Mandelschtam, grande poeta, vítima do stalinismo, que durante muito
tempo não foi publicado na Rússia, apareceram recentemente dois trabalhos

378
Boris Schnaiderman: Um Caso de Amor pela Literatura

em prosa, traduzidos pelo Paulo Bezerra – O Rumor do Tempo e Viagem à


Armênia. Mas ele tem outras obras em prosa muito importantes. Por exem-
plo, o livro Conversa sobre Dante é um ensaio extraordinário. Até hoje não foi
publicado em português.
Outro exemplo: Varlam Chalamov. Contos dele saíram publicados em
Portugal. No Brasil, que eu saiba, ele não foi publicado até hoje e é do grupo
dos escritores que saíram do Gulag, que escreveram sobre o Gulag, na minha
opinião é o mais forte deles.
De poesia russa, haveria muita coisa para traduzir. Basta dizer que a obra
fundamental, que é Evguiéni Oniéguin, de Púchkin, não tem tradução em
português. Nós estamos muito atrasados em relação a outros países, principal-
mente em relação aos países de língua espanhola. Em compensação, em alguns
casos, temos traduções melhores que as dos espanhóis. A tradução de poesia
no Brasil atingiu um nível muito alto. Há certa tradição nisso. Inclusive na
geração anterior à nossa. As traduções de Manuel Bandeira, por exemplo, são
magníficas. Isso é reconhecido mundialmente. Mas, em termos de quantidade,
ainda estamos muito atrasados.
P. Vamos aproveitar esse passeio pela literatura russa para voltar à sua car-
reira como tradutor. Quando o senhor começou a publicar traduções do russo?­
R. Comecei a publicar traduções do russo no ano de 1944. Eu me dediquei
bastante às traduções do russo naquela época, sempre com pseudônimo. Sentia
que não estava suficientemente maduro. E realmente não estava. Quando pego
as minhas traduções daquele tempo, vejo muitos defeitos.
Um defeito é o fato de que eu não fazia cotejo. O cotejo é indispensável.
A pessoa fez uma tradução do russo, depois tem de pedir a alguém que leia a
tradução do texto e ela fica conferindo em russo. Para repensar o texto e tam-
bém para evitar as eventuais distrações. Todo mundo se distrai. Não há quem
não se distraia. Por mais que se corrija, por mais que a gente lide com o texto, a
distração aparece. Não existe tradução perfeita, mas o que se pode é diminuir a
percentagem de erros. E eu não fazia cotejo. Não percebia a necessidade disso.
Pra mim, hoje em dia, isso é questão essencial. Não existe tradução literária
boa sem que se faça cotejo.
Mas, voltando à minha carreira, eu precisava ter um ganha-pão, inclusive
depois de estar trabalhando como engenheiro-agrônomo, precisava completar
a renda com traduções. Em 1959, saiu a primeira tradução assinada por mim.
Mais uma vez eu não fiz cotejo. Só depois dessa primeira tradução é que eu
passei a fazer cotejo.
Nas minhas traduções, vejo três fases bem delimitadas. A primeira fase é
essa das traduções que eu assinava com pseudônimo. Depois, vieram as assina-

379
Caderno de Literatura e Cultura Russa

das com o meu próprio nome, traduções que sempre estavam ligadas a um
cotejo do texto. Dessa forma, foi possível melhorar o texto. Mas, ao mesmo
tempo em que o melhorava, também incorria num defeito muito grave. Eu
tinha um respeito muito grande pelo texto literário, uma admiração muito
grande, e, com isso, minha produção se tornava muito solene. Havia um excesso
de solenidade. É o que noto nas minhas traduções, por exemplo, da década de
1960. Existe uma ou outra um pouco mais solta, mas, em geral, eram solenes.
Só bem mais tarde eu passei a me controlar mais, procurar um estilo mais solto,
despojado. Isso só recentemente, a partir da década de 1990, eu posso dizer.
Por isso é que, com freqüência, publico traduções revistas. Faço revisões das
minhas traduções da década de 60. Preciso refazer aquelas traduções, quero­
deixar um acervo de obras no nível que estou exigindo hoje de mim próprio.
P. Como o trabalho acadêmico passou a fazer parte da vida do agrônomo
e tradutor?
R. Aconteceu o seguinte. Em 1960, principalmente na fase da euforia com o
lançamento dos Spútnik e das tentativas de aproximação com a Rússia, houve
da parte da USP o interesse pela instituição do curso de russo. Eu soube disso,
apresentei minha candidatura e fui aceito. Eu já havia publicado na imprensa
trabalhos sobre literatura russa. Comecei a publicar trabalhos na imprensa em
1957. E o primeiro livro de minha autoria é de 1964 – a primeira edição de
Guerra em Surdina. Então, aí você vê que foi um caminho bem áspero. Superei
dificuldades.
Na USP, o curso foi iniciado em 1960 como curso livre de língua e
literatura russa e depois, em 1963, foram instituídos os cursos de línguas
orientais. A partir daí o curso de russo passou a ser um curso regular na
Universidade, com concessão de diploma e tudo o mais. Nós tivemos uma
dificuldade muito grande com a situação política. Em 1964, houve o golpe
e o curso de russo recebeu várias investidas. Na Maria Antônia, foram inva-
didas salas de aula. Professores foram espancados, batiam nos professores,
batiam nos alunos.
Eu ficava muito indignado, muito revoltado. E, na primeira vez em que
houve invasão da minha sala de aula, já na Cidade Universitária, eu reagi,
protestei violentamente e fui preso. Passei por várias prisões, mas sempre por
pouco tempo. Foram mais detenções do que prisões. De cada vez passei umas
poucas horas preso. E havia também o inconveniente da atuação política do
meu filho, que estava na guerrilha.
Mas em nenhum momento o curso chegou a ser fechado. Pelo visto, eles
queriam manter o curso aberto, não queriam um escândalo. Havia o problema
das relações com a União Soviética, era uma situação ambígua. O nosso curso

380
Boris Schnaiderman: Um Caso de Amor pela Literatura

foi o único que se manteve; quando houve o golpe de 64, havia vários cursos de
russo em universidades brasileiras, mas o nosso foi o único que resistiu.
P. Nessa época, quem eram os professores do curso? O senhor trabalhava
sozinho?
R. Durante muito tempo, fiquei sozinho. Havia dificuldades de verba, foi
muito difícil. Cheguei a dar 24 horas de aulas por semana. Depois consegui
contratar assistentes. Tive vários assistentes, inclusive, dois assistentes que
eram pessoas de grande valor já faleceram – Sophia Angelides e Paulo Dal-Ri
Peres. Foi realmente uma pena, porque eram pessoas muito capazes. Sophia
Angelides deixou dois livros, publicados só depois da morte dela – os dois são
de correspondências de Tchékhov, pela Edusp, um de cartas sobre poética
e o outro sobre a correspondência com Górki. Paulo Dal-Ri Peres chegou a
publicar alguma coisa, mas ambos deram muito menos do que era de esperar.
Morreram prematuramente.
P. Atualmente o curso de russo da USP passa por uma fase boa.
R. É verdade. Foi possível trazer uma professora russa e professores visi-
tantes. Também há maior possibilidade de viajar para a Rússia. Então as coisas
melhoraram, sem dúvida alguma. Eu fico contente com isso. A publicação dessa
revista também é um fato muito positivo.
Nos velhos tempos, o contato era mais difícil. No período da repressão mais
feroz no Brasil eu estive na União Soviética, em 1972. E lá fui visitar a Instituição
que lidava com intercâmbio de livros com o exterior. A gente mandava livros
a eles, eles mandavam a nós, tanto é que, na nossa biblioteca, temos centenas
de livros que foram conseguidos dessa forma. Eu me lembro de que nos senta-
mos numa mesa e começamos a conversar. Pedi que eles não nos mandassem
livros com foice e martelo. Mas foi o mesmo que pedir o contrário, porque
continuaram enviando livros com foice e martelo. E eu tinha problemas aqui.
Depois que instituíram a censura prévia, eu tinha de receber os livros lá nos
correios, tinha de comparecer lá com carteira de identidade e pagar uma taxa
pela armazenagem dos livros. Hoje em dia, isso é inconcebível.
P. Em Os Escombros e o Mito, o senhor traça um panorama da cultura russa
pouco antes e depois da dissolução da URSS. Qual a sua opinião sobre as mu-
danças ocorridas? Qual será o caminho da cultura e literatura russa?
R. É muito difícil dizer. Eu não tenho lido o suficiente, mas tenho visto
coisas bem interessantes. Houve o fato de surgir à luz do dia toda uma li-
teratura escondida, uma coisa extraordinária. Outro exemplo positivo é a
chegada, ao Brasil, de um cinema praticamente desconhecido, o cinema de
Sokúrov. Essas coisas não acontecem isoladamente. Podemos esperar mui-
to da Rússia.

381
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Abstract: In this enterview Boris Schnaiderman talks about translation, literature and his
own career. Well-known translator and essayist, he was the founder of the Course of Russian
language and literature at Universidade de São Paulo.
KEYWORDS: Literary translation; Russian literature; Boris Schnaiderman; Russian culture;
course of Russian language and literature.

382
Discurso de Saudação
Aurora Bernardini

Conheci o Professor Boris Chnaiderman na década de sessenta. Primeiro pelos


inúmeros artigos sobre literatura russa, que ele escrevia no Suplemento Lite-
rário do jornal O Estado de S. Paulo, pelos quais eu, ainda colegial e já cativada
por aquele estranho mundo de estepes nevadas e corações ardentes, me sentia
fascinada. Depois, em 1963, como aluna do Curso Livre de Língua Russa, que
havia sido iniciado por ele na USP e no qual eu me havia matriculado, após
terminar a licenciatura em Anglo-Germânicas.
Era uma época de intensas leituras e buscas espirituais em que cada um de nós
procurava sua explicação das contradições desse mundo. Era uma época, também,
de grande efervescência para os estudantes da USP da Maria Antônia, em frente ao
Mackenzie. Política universitária, JUC, Polop, AP, PC, reuniões, congressos, am-
pliações, composições, demonstrações, chapas, bancadas, aparelhos: a nomencla-
tura é vasta. Aprendíamos as primeiras lições práticas da democracia e nos pre-
parávamos para ir ao Norte, nas férias, alfabetizar uma comunidade pelo método
de Paulo Freire, quando se deu o golpe. Não foi propriamente uma surpresa. Indí-
cios houve, e muitos, mas não queríamos acreditar. O resto é sabido.
Obviamente, para quem lidasse com qualquer coisa referente à Rússia,
naquele tempo, a probabilidade de vir a ser interpelado era apenas um pouco
maior. Lembro-me do pasmo que nos acometia quando ouvíamos as informa-
ções da queima de livros russos em praça pública, do fechamento das poucas
livrarias que os importavam, das buscas nos apartamentos e nas universidades:
como entender esse fato, da noite para o dia?
Em 1969, já como auxiliar de ensino, encontrava-me uma noite no prédio
de História e Geografia da Cidade Universitária (para lá haviam sido mudados
os cursos da Maria Antônia, após a invasão do “pessoal” do Mackenzie, em
Caderno de Literatura e Cultura Russa

1968), quando começou a correr a voz pelas salas de que o Professor Boris
havia sido preso. Suspendemos imediatamente as aulas e corremos para o gran-
de pátio interno do prédio. De fato, parecia que estavam procurando alguém
entre os alunos, ou podia ser simplesmente uma missão de intimidação, como
muitas outras. Um dos militares disse: “Parece que o professor se alterou e foi
recolhido ao Dops”. A essa altura, alguns dos alunos que estavam assistindo à
aula dele já tinham chegado ao pátio e nos haviam contado o acontecido. O
Prof. Boris estava escrevendo na lousa, quando entrou na sala um grupo de
militares armados, para efetuar a tal “busca”. Ao que o Prof. Boris simplesmente
observou: “Nós estamos aqui com giz e apagador e os senhores vêm interromper
a aula armados de metralhadora?” Conhecedora da extrema calma do Prof.
Boris e de sua coragem moral, tive certeza de que era essa a “alteração” a que
se referira o militar e que, portanto, era possível insistir para que o professor
fosse “libertado” o quanto antes.
Procuramos o chefe da operação e lhe repetimos a versão relatada pelos
estudantes, tentando fazer com que ele aceitasse que se tratava de uma mera
constatação e jamais de uma provocação. O professor Boris jamais faria uma
coisa dessas.
Relutando, mas depois convencido pela insistência e pelos apelos dos alu-
nos que se haviam juntado, um dizendo que a mulher dele estava em casa
passando mal, outro que a filha estava chorando, o fato é que o capitão nos
disse: “À meia-noite podem vir buscá-lo”. Decidimos que alguns de nós iriam
até a casa do professor para tranqüilizar a família e que eu tentaria ir buscá-
-lo à meia-noite no Dops. De fato, assim foi. Naquela época, usava-se avental
para dar aula, e eu me lembro de que, naquele avental branco, sentia-me como
numa armadura, de modo que me apresentei numa das salas mal iluminadas
do andar térreo daquele mal-afamado prédio, como se estivesse fazendo algo
rotineiro e reconhecidamente regular. Disse ao funcionário que me atendeu
que vinha autorizada pelo Capitão X (não me lembro de seu nome), que nos
assegurara que à meia-noite poderíamos levar o Prof. Boris Chnaiderman, que
tinha estado prestando depoimento numa das dependências do local. O funcio­
nário disse-me que esperasse e, quando saiu pela porta da parede dos fundos,
de sinistros tijolos vermelhos meio carcomidos pelo tempo e pelo descuido, só
então reparei como ele era grande e estranho. Um torturador? Perdi-me por
algum tempo nessas fantasias, quando ele voltou e com um ar sensibilizado me
disse: “Parece que não será possível a senhora levar o professor. Parece que ele
se alterou”. Então, passei a insistir, muito pacata, mencionando várias vezes a
família, os filhos pequenos, a cordura, o sentido de dever e dignidade do pro-
fessor e, principalmente, insistindo na palavra dada pelo capitão, que havia

384
Discurso de Saudação

participado da “operação”, presenciando tudo o que eu dizia, e que havia ga-


rantido a soltura da “testemunha”, a quem pedi para ver, antes de ir embora.
Passou-se mais de uma hora de espera, depois da qual, pela mesma porta do
fundo, entraram o funcionário e outra pessoa em mangas de camisa, pessoa
esta que se dirigiu a mim nesses termos: “A senhora está procurando o professor
vestido assim, igualzinho à senhora? Pode ir, ele está lá”. Como ele apontava
para os lados da Estação Sorocabana, agradeci cheia de gravidade e saí, a pé
mesmo, no meio da neblina daquela hora da madrugada. Dei uns cem passos,
bastante incrédula e já estava desistindo, quando o Prof. Boris despontou na
praça como do meio das nuvens, de cachecol e avental branco. Fomos para o
carro, onde, com a maior naturalidade, contou-me que realmente fora interro-
gado, mas que, quando quiseram que ele provasse seu patriotismo, se não me
falha a memória, cantando o hino nacional, ele respondeu, calmamente, que
a maior prova de patriotismo ele havia dado antes que eles nascessem, como
expedicionário da FEB, quando fora voluntário com os pracinhas brasileiros
lutar na Itália. Diante de respostas desse teor, o interrogatório durou pouco.
Ele dobrou seu cachecol, colocou-o embaixo da cabeça e preparava-se para
dormir, quando vieram dizer-lhe que ele podia ir e que agora estava tudo em
ordem.
Da mesma forma que eu compartilhava com o Prof. Boris a paixão pela
literatura russa, aproximava-nos muito o interesse pela Itália de onde eu viera
e que ele conhecera in loco durante a resistência ao Fascismo, como sargento de
artilharia da FEB (controlador vertical de tiro), nos últimos meses da Segunda
Guerra. Foi com sofreguidão que comecei a ler Guerra em Surdina, ainda na
sua primeira edição, da Editora Civilização Brasileira.
Lembrava-me dos nomes das cidades de Nápoles para cima, até o vale do Pó
(Pozzuoli, Tarquinia, Civitavecchia, Vada, Castigioncello, Rosignano Marittimo,
Ripabella, Pisa, Lucca, Fiano, Barga, Castelnuovo di Garfagnana, Silla Porretta
Terme Pistoia, Monte Castello, Pieve di Cascio, Bellavista, Belvedere, Montese,
Gaggio Montano Zocca, Vignola, Parma, Quattro Castelli, Fiorenzuola d’Arda,
Pavia, Piacenza, Cremona) e finalmente, finda a guerra, Milão e as cidades da
Costa Azul, por onde a sua unidade tinha andado quando eu ainda era uma
recém-nascida. Queria confrontar suas experiências com as minhas lembranças
e preciso dizer que muito me surpreendeu, na época, a minuciosa sobriedade
com que o livro fora escrito.
Essa mesma sobriedade fora encontrada pelos componentes de sua banca
de Doutoramento. Ao analisar seu trabalho A Poética de Maiakóvski através de
sua Prosa (publicado em 1971 pela Ed. Perspectiva, com o mesmo nome), lem-
bro que Rui Coelho se admirara com a modéstia do candidato, sóbrio a tal

385
Caderno de Literatura e Cultura Russa

ponto “de esconder sua tese nas notas de rodapé!”. Não apenas para nós, estu-
diosos de literatura russa, o livro de Maiakóvski foi uma sensação. Sucediam-se
discussões, referências e até espetáculos inspirados na autobiografia sintética
Ia sam (Eu mesmo), na sua relação com Lili Brik, nas suas entrevistas. Numa
delas, concedida a Michael Gold, escritor norte-americano conhecido na época
(1925), ainda confiante no futuro glorioso do cubofuturismo, dizia o poeta:
“A arte deve ter uma destinação determinada. E eis a lei da nova arte: nada
de supérfluo, nada sem destinação. Eu arranquei da poesia as vestes da retó-
rica; eu voltei ao essencial. Estudo cada palavra e o efeito que desejo produzir
com ela sobre o leitor: é o que fazem as pessoas que escrevem os anúncios de
vocês. Eles não querem gastar em vão uma só palavra – tudo tem que ter sua
destinação”. Se, por um lado, isso prenunciava a percepção da repercussão que
haveria de ter, no mundo, o tipo de propaganda americano “centrado no pro-
duto”, por outro, levava a um texto de que o Prof. Boris gostava muito: “Como
Fazer Versos?”, o ensaio teórico mais longo de Maiakóvski, onde ele analisava
os dados indispensáveis para um trabalho poético e que Boris Chnaiderman
(só mais tarde seu sobrenome passou a ser grafado Schnaiderman) gostava de
sintetizar com um verso do poeta, “eu piso a garganta de meu canto”.
A colaboração entre os “irmãos Campos” e Boris Chnaiderman tem sido um
capítulo muito importante em nossa vida acadêmica. A partir da publicação,
pela Editora Civilização Brasileira, de sua principal obra escrita em colabora-
ção (ora o Prof. Boris realizando a tradução linear que seria retrabalhada, ora
revendo a re-criação dos poemas), Poesia Russa Moderna, em 1968, a poesia
russa – talvez a maior de todas as artes russas – como lembra o professor no
prefácio, tornou-se de algum modo artigo de exportação, no Brasil. De Alek-
sandr Blok a Guenádi Aigui, as traduções têm encantado gerações. Desfilam
sob nossos olhos atônitos os simbolistas, os futuristas, Velímir Khliébnikov
com seus poemas decisivos como “Encantação pelo riso”, “Bobeóbi”, “Louva-
ção do Ele”; Maiakóvski, com “Lílitchka!” e “Balalaika”; Pasternak, com seu
“Hamlet”, na recriação definitiva de Augusto de Campos, que todos decoramos:­

O marmúrio cessou. Subo ao tablado


Apoiado ao umbral da porta.
Procuro distinguir no eco apagado
Os desígnios de minha sorte.
A penumbra da noite me devassa
Por trás de mil binóculos iguais.
Se for possível, Abba, meu pai
Afasta de mim essa taça.

386
Discurso de Saudação

Amo a Tua obstinada trama


E aceito o papel que me foi dado.
Mas agora representam outro drama.
Ao menos dessa vez, deixa-me de lado.

Mas a ordem das cenas foi prevista


E a estrada chega fatalmente ao fim.
Estou só. Tudo afunda em farisaísmo.
Viver não é passear por um jardim.

E Marina Tzvetáeva, a quem conheci primeiramente na re-criação de seu


poema por Haroldo de Campos, “A Vladímir Maiakóvski”, que inspirou minha
Tese de Livre-Docência:

Acima das cruzes e dos topos,


Arcando sólido, passo firme,
Batizado à fumaça e a fogo.
Salve, pelos séculos, Vladímir!

Ele é dois: a lei e a exceção,


Ele é dois: cavalo e cavaleiro.
Toma fôlego, cospe nas mãos:
Resiste, triunfo carreteiro.

Escura altivez, soberba tosca,


Tribuno dos prodígios da praça,
Que trocou pela pedra mais fosca
O diamante lavrado e sem jaça.

Saúdo-te, trovão pedregoso!


Boceja, cumprimenta e ligeiro
Toma o timão, rema no teu vôo.
Áspero de arcanjo carreteiro.

E, depois, os construtivistas, os formalistas, os inconformistas... Este filão


da poesia russa tem sido levado adiante com grande desvelo por Boris Chnai­
der­man, que publicou há pouco, pela Editora 34, em 1999, com Nelson Asher,
uma coletânea de poemas de Aleksandr Púchkin e mais a tradução revista de
grande parte de sua prosa: A Dama de Espadas – Prosa e Poemas, premiado
com o Jabuti daquele mesmo ano.

387
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Aleksandr Púchkin, Fiódor Dostoiévski, Liev Tolstói, Anton Tchékhov... Os


grandes clássicos da literatura russa têm sido revisitados com uma atenção sem-
pre maior pelo Prof. Boris e seus orientandos. Lembramos aqui, tão-somente, os
primeiros que foram alunos do Curso de Russo: Helena Sprindys Nazario, com
um trabalho sobre Púchkin e A Filha do Capitão (publicado pela Ed. Perspec-
tiva); Iasna Paravich Sarhan com uma Tese sobre A Dama de Espadas; Rubens
Pereira dos Santos com “As reminiscências de Máximo Górki sobre Tolstói”
(publicadas em 1983 pela Perspectiva com o título de Leão Tolstói); Paulo Dal
Ri-Peres com uma tese sobre A Enfermaria n. 6 de Tchékhov; Sophia Angelides
com a correspondência de Tchékhov (publicada, em parte, pela Edusp, como
A. P. Tchékhov: Cartas para Uma Poética, em 1995).
Quanto a Dostoiévski, além das traduções que marcaram nossa época e dos
inúmeros artigos, ele foi objeto de um dos primeiros cursos de pós-graduação,
de análise das estruturas narrativas, em Teoria da Literatura e Literatura Com-
parada, ainda na década de 1970, em que o responsável era Boris Chnaiderman.
O programa “Os contos de Dostoiévski” era subdividido em 12 tópicos, cujo
sumário ainda guardo:

1. Características gerais da arte narrativa de D. e sua relação com a ficção da


época. Traços comuns e traços distintivos. D. e o “ensaio fisiológico” russo.
D. e o romantismo. Púchkin, Gógol e D. O autor acompanha a evolução
do realismo psicológico do século XIX, mas, desde as suas primeiras obras,
fornece elementos para a superação deste.
2. “O Senhor Prokhartchin”, um dos núcleos iniciais da moderna literatura do
“fluxo de consciência”. O problema do tempo nesse conto. O monológico,
o dialógico e o “polifônico”, na base desse texto.
3. “A senhoria” e sua problemática específica. Pode-se falar, no caso, de “conto
mal realizado?” A importância de uma análise estilística dessa narrativa, com
ênfase especial sobre as expressões arcaizantes.
4. O “Romance em nove cartas”, como exemplo do humor dostoievskiano.
5. “A mulher alheia e o homem embaixo da cama”. Qual a função, na ora
dostoievskiana, de uma obra na aparência tão anedótica, inspirada em Paul
de Kock?
6. “Um coração fraco” – entre a caricatura e o protesto social. “Polzunkov” – o
bufão na obra de D. “O ladrão honrado”. Os oxímoros dostoievskianos. A
visão do mundo que se manifesta por meio desta figura.
7. “A árvore de Natal e um casamento.” “Noites brancas.” O mundo estranho
de Petersburgo e sua marca na obra de Dostoiévski. “O pequeno Herói” – a
visão parodística e polifônica de D. (no sentido de Mikhail Bakhtin) per-

388
Discurso de Saudação

mite-lhe profunda penetração psicológica, muito além das limitações da


ciência da época.
  8. “Uma anedota ordinária”: o satírico e o anedótico se enquadrariam, nesse
conto, num plano mais elevado? O conto inacabado “O Crocodilo” – as
situa­ções-limite e as demonstrações pelo absurdo.
  9. “Ela era doce e humilde” e sua estrutura revolucionária.
10. “O menino e o Natal de Cristo”, exemplo da complexidade essencial de D.:
O reacionário por excelência escreve um conto tremendamente subversivo
na época. Relação deste fato com os oxímoros e com a paródia dostoievs­
kiana.
11. “Bobók”, conto que dá a chave de muitos processos narrativos de D. “Sonho
de um homem ridículo.” “O Mujique Maréi.” Os “contos intercalados” nos
romances de D. e sua função específica. Relação com a “sátira menipéia”.
Uma visão múltipla e probabilística do mundo.
12. O ficcionista que intervém na própria atividade jornalística de D. A re-
criação da realidade, sua apresentação multifacetada, era inerente a todos
os momentos da vida do escritor; o exemplo patético de seus depoimentos
como acusado de conspirar contra o governo, ameaçado com a pena de
morte.

Este curso acompanhou a tese de Livre-Docência de Boris Chnaiderman:


“Dostoiévski entre a Prosa e a Poesia”, depois transformado no livro da Ed.
Perspectiva, Dostoiévski – Prosa Poesia (que recebeu o prêmio Jabuti de 1982),
onde o autor, exemplificando com a tradução de “O senhor Prokhartchin” – um
conto de 1846, escrito quando Dostoiévski tinha 26 anos – defende a tese da
ligação entre a linguagem poética e o universo ficcional dostoievskiano e, do
ponto de vista da teoria da tradução, mostra como é essencial conseguir recriar
o espírito e mesmo, muitas vezes, a forma do original.
Entre as muitas e insubstituíveis traduções de Boris Chnaiderman está a de
Khadji-Murat (Cultrix, 1986), uma novela de Tolstói, à qual ele se refere neste
livro, que para nós ficou conhecido sinteticamente como Prosapoesia. “Toda
esta novela está construída sobre uma metáfora: no início, o autor conta como
certa vez, regressando para casa através dos campos recém-lavrados, viu um
tufo de flor, que fora pisado por uma roda, mas se erguera, persistente em seu
afã de vida. ‘Lembrei-me, então, de uma velha história caucasiana, que presen-
ciara em parte e que eu completei com o depoimento de testemunhas oculares’.
Segue-se depois – diz Boris – a história de Khadji-Murat, o chefe caucasiano
rebelde, morto no fim. ‘E esta foi a morte que a bardana esmagada, em meio do
campo lavrado, me fez lembrar’. ”

389
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Esta novela compacta, de estrutura fechada, embora em diversos planos,


construída em volta da “vitalidade humana, em luta contra a opressão e a vio-
lência dos mais fortes”, quando comparada ao mundo caótico dostoievskiano
de, digamos, Os Irmãos Karamázov, seria, segundo Bakhtin, citado por Boris,
um exemplo do monologismo de Tolstói versus o dialogismo de Dostoiévski,
ligado à polifonia. E aqui, entram as reflexões de Boris sobre a evolução do
próprio Bakhtin, a quem teve oportunidade de conhecer pessoalmente, por
ocasião de sua visita a Pierediélkino, em 1972.
Em sua coletânea de ensaios sobre Dostoiévski e Bakhtin, Turbilhão e Se-
mente (Duas Cidades, 1983), o autor acompanha as modificações das visadas
de Bakhtin em relação à obra de Tolstói, particularmente no texto “A palavra
no romance”, escrito desde 1934, mas publicado na íntegra em 1975 (em portu-
guês, saiu em Problemas de Literatura e de Estética, Hucitec, 1988). Diz ele: “Se
um leitor acompanha a obra de Bakhtin em seu desenrolar, [...] torna-se claro
que, para o teórico, no conjunto de seus trabalhos, existem diferentes níveis de
dialogismo e, assim, a ênfase no Tolstói monológico, no pregador religioso e
social, não elimina o fato de que há em sua ficção um dialogismo bem evidente,
como na obra de qualquer grande escritor, conforme Bakhtin passa a admitir,
quando deixa de lado a dicotomia estabelecida no livro sobre Dostoiévski” (p.
72). E ainda, na mesma página: “Em mais de uma ocasião, Bakhtin manifestou
violenta oposição ao Formalismo Russo, mas a ocorrência de elementos teóricos
desta corrente no livro sobre Dostoiévski (Problemas da Poética de Dostoiévski,
que saiu pela Editora Forense Universitária em 1981, na tradução de Paulo
Bezerra) é de uma evidência palmar. A própria noção de dialogismo já fora
expressa nas discussões da época”. Então, Boris cita Iakubínski e “As caretas do
diálogo”, Vinográdov e seu livro sobre Anna Akhmátova e o fundamental Gógol
e Dostoiévski – Para uma Teoria da Paródia, de Iúri Tyniánov.
Aqui está um exemplo de Boris Chnaiderman crítico, atento, cuidadoso,
refratário às paixões súbitas que levam à adesão ou rejeição imediatas. Sabe
estabelecer relações e discutir com os autores, e uma vez feito o balanço, reco-
nhecer o que eles têm de mais ou menos válido.
Isso pode ser notado com igual clareza no último livro de Boris Chnaiderman
Os Escombros e o Mito – A Cultura e o Fim da União Soviética (Companhia das
Letras, 1997). Iniciado sob o impacto do processo da Glasnost e retomado de-
pois de várias tentativas abandonadas, o livro é uma reflexão sobre os últimos
anos da vida cultural soviética. Fruto de pesquisas minuciosas, inclusive em
várias bibliotecas européias, retrata, nas primeiras páginas, o impasse no qual
se encontra, ainda hoje, a ex-URSS. Segue um excerto de 1991, de um texto do
escritor Anuar Alimjanov, por ele citado: “Minha geração foi educada, desde o

390
Discurso de Saudação

nascimento, na base dos planos qüinqüenais, e nós não duvidávamos de que, a


cada qüinqüênio, ficávamos mais próximos do único objetivo sagrado – o co-
munismo. Mas o último qüinqüênio destruiu todas as ilusões, mesmo entre os
idealistas mais firmes. Admitamos que os ideais eram mentirosos, mas, ainda
assim, a provação é difícil; perdeu-se a fé que nos fazia viver, foi colocada uma
cruz em cima dos objetivos para os quais avançávamos”. E, concluindo, com
uma intervenção do mesmo escritor, doze meses depois, na última sessão do
Soviete Supremo da URSS: “Nós sabemos o que perdemos. Mas ainda não
temos consciência do que vai acontecer”.
Quase prenunciando a constatação de Boris, em face do caos cultural:

Os mesmos expoentes da intelectualidade que estiveram empenhados durante muitos


anos na preservação dos valores morais contra a barbárie institucionalizada, lutam agora
pela preservação daqueles valores diante das ameaças de um capitalismo predatório. Mas,
conforme notícias recentes, a situação agravou-se ainda mais com a inundação do mercado
por best-sellers americanos, livros de pornografia, horóscopos etc. Alguns correspondentes
estrangeiros chegaram a afirmar que o livro de cultura tinha simplesmente acabado na
Rússia, o que é um exagero evidente, pois um patrimônio cultural como aquele não se
anula de uma hora para outra.

Mas não é apenas da terrível ambigüidade da situação dos escritores sovié-


ticos durante o stalinismo que trata a parte do livro dedicada especificamente
à literatura, e aí desfilam Óssip Mandelchtam, Aleksandr Tvardóvski, Mikhail
Bulgákov e o jdanovismo que, iniciado em 1946, se encarniçou, em primeiro
lugar, sobre Anna Akhmátova e Mikhail Zóchtchenko; nem apenas da sanha que
se abateu sobre Iúri Oliecha, o grupo dos Oberiúty, Isaac Bábel, Meyerhold e D.
S. Mirsky, entre outros, cujo destino todos choramos; nem apenas dos emigra-
dos russos e dos “ressuscitados”: o que o livro traz também é uma riquís­sima
informação sobre os textos literários aparecidos a partir de 1985.
A famosa literatura “Entre Ficção a História” guardada na gaveta, com o
advento da Perestroika, difundiu-se mundo afora, e Boris, leitor atento, ana-
lisa agudamente a maior parte de seus representantes: Anatóli Ribakov e “Os
Filhos da Rua Arbát”; Vassíli Grossman e “Vida e Destino”; Sacha Sokolov e
a “Escola de bobos”; Andréi Bitov e “A casa de Púchkin”; Vassíli Aksiónov e
“Sviiásk”; A. M. Piatigórski e “A filosofia de um eco ou História da existência
ainda não concluída de um filósofo russo, contada pelo autor e também por
alguns outros mais ou menos filósofos russos”; e ainda “Contos de Kolimá”, de
Varlam Chamalov, que dialoga com “O Arquipélago Gulag” de Soljenitsin, os
livros de contos e anotações de Andriéi Platónov; os cadernos secretos de

391
Caderno de Literatura e Cultura Russa

Mikhail Príchvin; “O arquivo de um escritor” de Constantin Vorobiov, todos


os livros de Nabókov e os contos e as crônicas de Daniil Kharms, grande pre-
cursor russo da literatura do absurdo. Entre as mulheres, principalmente, os
textos de Ariadna Efron, filha da grande poetisa Marina Tzvetáieva, memórias
expressivas de Nina Berbiérova, que vão do início do século até nossos dias;
“Itinerário abrupto” de Ievguiénia Guinsburg, sobre os campos de trabalho e
Lídia Tchukóvskaia sobre o convívio dela com Anna Akhmátova.

A grande quantidade de depoimentos – considera o autor – faz surgir mais claramente o


problema: em que medida podemos confiar no testemunho dos que viveram determinados
acontecimentos históricos? [...] Temos, numa forma penetrante, a descrição de fatos reais,
mas isso não anula uma outra realidade: o pathos revolucionário daqueles dias, a certeza
de que se estava destruindo um mundo de injustiça e opressão. Temos que conviver com
o real de uns e de outros e deixar em nossas bibliotecas Búnin ao lado de Maiakóvski. A
tragédia de nosso século não pode ser apreendida por um só ponto de vista.

Essa e outras lições devemos a Boris Chnaiderman.


Quanto ao passado próximo da Rússia, quanto ao futuro, respondendo a
uma pergunta que eu mesma lhe fiz: “A Itália não se recuperou dos escombros
de quando a conheci? A Rússia também vai se recuperar”.

392
Tabela de Transliteração
do Russo para o Português

Alfabeto Transcrição para Registro Catalográfi- Adaptação Fonética


Russo co ou Lingüístico para Nomes Próprios

А A A
Б B B
В V V
Г G G, Gu antes de e, i
Д D D
Е E E, Ié
Ё Io Io
Ж J J
З Z Z
И I I
Й I I
К K K
Л L L
М M M
Н N N
О O O
П P P
Р R R
С S S, SS (intervocálico)
Т T T
У U U
Ф F F
Х Kh Kh
Ц Ts Ts
Ч Tch Tch
Ш Ch Ch
Щ Chtch Chtch
Ъ ´´
Ы Y Y
Ь ´
Э É É
Ю Iu Iu
Я Ia Ia
Aos Nossos Colaboradores

O Caderno de Literatura e Cultura Russa publica trabalhos científicos sobre


assuntos russos nas áreas de literatura, teoria literária, crítica, literatura com-
parada, semiótica, artes, teatro, ciências humanas.
Solicita-se aos autores que façam acompanhar seus textos de breves resu-
mos (em português e inglês), bem como de um breve registro de sua qualifi-
cação profissional.
As colaborações não deverão exceder 30 páginas.
Título Caderno de Literatura e Cultura Russa
Capa Ricardo Assis
Editoração Eletrônica Aline E. Sato
Amanda E. de Almeida
Revisão Geraldo Gerson de Souza
Formato 18 x 27 cm
Tipologia Minion
Papel de Capa Cartão Supremo 250g
Papel de Miolo Pólen Rustic 85g
Número de Páginas 395
Fotolito FHS – Studio e Pré-impressão
Impressão Lis Gráfica

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