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INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO CIÊNCIA E

TECNOLOGIA CAMPUS SÃO PAULO

MELISSA CRISTINA DE CARVALHO MARTINS

LITERATURA NO IRÃ: REPRESENTAÇÕES SOBRE


PERSÉPOLIS E LENDO LOLITA EM TEERÃ

SÃO PAULO

2019
Melissa Cristina de Carvalho Martins

LITERATURA NO IRÃ:

Representações sobre Persépolis e Lendo Lolita em Teerã

Orientador: Prof. Dr. Fausto Henrique Gomes Nogueira

SÃO PAULO

2019
Dedico este trabalho a meu eterno amigo,
em memória de Filipe Varea Leme.
RESUMO

Esta pesquisa se propõe a analisar a construção da imagem feminina no Irã a


partir da leitura das obras Persépolis (2000) de Marjane Satrapi e Lendo Lolita em Teerã
(2004) de Azar Nafisi, na produção do contexto pós-revolução de 1979, e compreender
as maneiras através das quais as autoras analisam as representações acerca do feminino
iraniano e sua participação política e religiosa na sociedade. Para compreender como
estes dois porta-vozes de mulheres iranianas no Ocidente representam ou não as
mulheres e sua resistência na República Islâmica do Irã utilizamos os estudos sobre
orientalismo, imaginação social e interpretações fenomenológicas.

Palavras-chave: Revolução Iraniana de 1979; Orientalismo; Persépolis; Lendo Lolita


em Teerã; Fenomenologia.
ABSTRACT

This research proposes itself to analyze the construction of the image of the
feminine in Iran from the literature of Persepolis (2000), by Marjane Satrapi, and
Reading Lolita in Tehran (2004), by Azar Nafisi, in the post-revolution of 1979 context,
and comprehend how the writers deal with the life in the Islamic regime, the
representation of the feminine Iranian society and the political and religious participation.
To understand how these two voices of Iranian women in the Western and represents or
not the women and its resistance in Islamic Republic of Iran, we utilize the orientalism
studies, social imagination and phenomenological interpretations in the geography.

Keywords: 1979 Iranian Revolution; Orientalism; Persepolis; Reading Lolita in Tehran;


Phenomenology.
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO
1.1 Contexto Histórico
1.2 Desdobramentos da Revolução de 1979 na sociedade iraniana
2. OBJETO DE ESTUDO
2.1 Azar Nafisi
2.1.1. Lendo Lolita em Teerã
2.2 Marjane Satrapi
2.2.1. Persépolis
3. METODOLOGIA
4. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
5. DISCUSSÃO DAS FONTES
6. RESULTADOS
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. INTRODUÇÃO

A presente pesquisa tem como finalidade analisar as representações acerca das


resistências femininas no Irã pós-revolução de 1979, a partir dos best-sellers Persépolis
(2000) de Marjane Satrapi (1969-) e Lendo Lolita em Teerã (2003) de Azar Nafisi
(1948), ambas as escritoras iranianas que expõem suas visões e articulam discussões
sobre a Revolução de 1979 com base em suas próprias experiências e as dificuldades
enfrentadas em relação ao regime islâmico. Objetivamos discutir tanto o cotidiano das
mulheres nesse regime, bem como as possíveis formas de resistência.

1.1. CONTEXTO HISTÓRICO

Para compreender o Irã é importante nos darmos conta das principais


características que inserem o país tanto no contexto da globalização capitalista bem como
em relação à sua religião majoritária, o islamismo. Geograficamente o Irã está localizado
em uma região de constantes intercâmbios culturais entre um conjunto intenso de
civilizações, rotas estratégicas e impérios, ligando a Europa e a Ásia.

Além das características geográficas físicas, as características culturais iranianas


são muito particulares, tanto pela sua origem persa quanto pelas diversas religiões
precedentes à invasão árabe (LEVY, 2010, p. 56).

Semelhante ao imperialismo turco otomano, que permitia a autonomia do povo


conquistado, em troca do pagamento de tributos ao conquistador, o império persa, foi
construído por diversas dinastias, como a Aquemênida, Sassânida, Safávida, Selêucida,
Afshar e Qajar, o que garantia a variedade cultural e religiosa do império.

A conquista muçulmana da Pérsia trouxe a queda do Império Sassânida, em 644 e


o fim dessa dinastia em 651, o que culminou no declínio da religião zoroástrica na
região.

1
A religião islâmica de ramificação xiita, que representa a segunda maior
ramificação do islã, entre 10 a 13% da população muçulmana no mundo, é majoritária
em alguns países como o Irã, Paquistão, Índia e Iraque1.

A religião islâmica teve origem na Península Arábica, nas redondezas de Meca,


atual Arábia Saudita, por volta do século VII, quando Mohammed, o Profeta, de acordo
com o Alcorão Sagrado, passou a receber mensagens e revelações divinas. Com a morte
de Mohammed em 632, conflitos acerca de sua sucessão dividiram o islã em
ramificações e interpretações variadas.

Há diversas divisões e ramificações do Islã a mais conhecida é a


divisão entre sunitas e xiitas depois da morte de [Mohamed] as Sunnas
do Corão passaram cada vez mais a ser conhecida como Sunnas de
[Mohamed], no entanto o conjunto de tradições se mostrou incompleto
com o passar do tempo, e sobretudo à medida que os árabes
expandiram e entravam em contato com povos não árabes. Justamente
por causa dessas lacunas do Alcorão, criou-se no mundo islâmico a
tradição das hadith, ou seja, homens que ditavam a maneira mais
adequada de se agir diante das situações sobre as quais o alcorão nada
mencionava. Os sunitas desenvolveram um código legal, a Shariah, que
deriva do Corão, da tradição islâmica e do consenso entre suas
comunidades. Os xiitas apoiam-se em leituras mais estritas do Corão.
Os xiitas acreditam que todas as revelações divinas foram recebidas por
[Mohamed] e estão contidos no Corão, o livro sagrado. Por esse
motivo, lideranças religiosas altamente preparadas, os imãs, são
necessários para interpretar com rigor O Corão. Os xiitas (que formam
10% de todos os muçulmanos, residindo sobretudo no Iraque no Irã)
estão “a favor de Ali”, genro e primo de [Mohamed] e um dos
primeiros califas ou sucessores, como líder da comunidade muçulmana.
Os xiitas acreditam que o líder do islamismo deveria estar entre os
descendentes de Ali e estaria “escondido” em outro domínio da
existência. (COGGIOLA, 2007, p. 22- 23)

O reinado da última dinastia persa, os Qajar, experimentou no século XIX


grandes perdas territoriais depois das guerras contra os russos entre 1804-1813 e 1826-
1828, com os imperadores shah2 Fath-ali e shah Mohammad, que tentou modernizar o
exército iraniano e reconquistar território, sem sucesso.3

1
“Mapping the Global Muslim Population: A Report on the Size and Distribution of the World's
Muslim Population". Pew Research Center, 2009. Disponível em:
https://www.pewforum.org/2009/10/07/mapping-the-global-muslim-population/. Acesso em 19
abr. 2019.
2
Shah, ou xá: denominação atribuída a uma série de monarcas iranianos, cuja origem remonta à
dinastia Aquemênida.
3
GHANI, Cyrus. Iran and the Rise of the Reza Shah: From Qajar Collapse to Pahlavi Power.
Nova Iorque: I.B. Taurus, 2001, p. 99.

2
Em 1872 o shah Nasir-Al-Din, filho de Mohammad Shah concedia direito
exclusivo aos ingleses, mais especificamente ao Barão Julius Reuter de comandar as
indústrias do país, “irrigar as fazendas, explorar os recursos minerais, expandir as
estradas de ferro e linhas de bonde, criar seu banco nacional e emitir sua moeda”
(COGGIOLA, 2010, p. 26); nos anos seguintes, os ingleses receberam os direitos de
prospecção de minérios e abrir bancos, enquanto os russos garantiram exclusividade para
explorar caviar.

Os britânicos ficaram com o Sul e os russos com o Norte. Uma faixa


entre as duas áreas foi declarada como de autonomia iraniana, limitada
pelos interesses estrangeiros, o governo iraniano não foi sequer
consultado, mas apenas informado, do acordo, assinado em São
Petersburgo. (COGGIOLA, 2010, p. 27)

O shah vivia muito distante da realidade da população e, em linhas gerais, todas


as riquezas do país estavam em mãos estrangeiras, o que deu origem a novos
movimentos nacionalistas.

Nesse processo, o político Seyec Zial-al-Dian Taba Tabai prometeu mudanças à


população, como “reforma agrária, industrialização, reformas políticas e o fim do
Tratado Anglo-Persa” (COGGIOLA, 2010, p. 35), junto com Reza Khan, ministro da
guerra e comandante da única instituição armada moderna e disciplinada do país,
conforme, os dois organizaram o golpe militar e instauraram uma ditadura, derrubando a
Dinastia Qajar em outubro de 1925. Reza Khan fez com que o Parlamento o nomeasse
shah da Pérsia e fundou assim a Dinastia Pahlevi.

Treinado nas brigadas cossacas, Reza, à frente de um grupo de oficiais


de sua confiança, passou a governar com mão de ferro, como seu ídolo
Kemál Atatürk, o modernizador da Turquia. Assim como o líder turco,
reprimiu a religião e estimulou o culto à sua personalidade. Aplicou sua
vontade pelo terror exemplar, por castigos públicos, mas, por outro
lado, diminuiu a influência estrangeira, proibindo a venda de terras a
não iranianos, e revogou a concessão britânica para produzir moeda
nacional. Construiu fábricas, portos, hospitais, edifícios, avenidas,
introduziu o sistema métrico e o casamento civil. Em 1935, anunciou
que não mais aceitaria que o país fosse chamado de Pérsia, como era
conhecido no exterior. Dali por diante a nação seria conhecida pelo
nome usado pela própria população: Irã. (COGGIOLA, 2010, p. 35)

O shah Reza manteve-se no poder por vinte anos, cujo governo foi caracterizado
pela repressão a movimentos separatistas e sociais e viu a ascensão do nazi-fascismo, do

3
qual não escondia sua simpatia, e apesar dos temores dos Aliados o Irã declarou-se
neutro na Segunda Guerra Mundial.

Reza governou até 1941, quando abdicou do poder em favor de seu filho
Mohammed Reza Pahlevi, exilando-se nas ilhas Maurício. Nesse período, a Grã-
Bretanha havia invadido o Irã, temerosa de perder suas fontes principais de petróleo.
“Mohammed Reza Pahlevi, agora shah, fora educado em Londres e nem sequer falava
persa (farsi) ” (COGGIOLA, 2010, 35). A saída do shah Reza foi positiva para os
movimentos Feministas de Estado, denominados assim pela presença de mulheres,
mesmo que não-religiosas, no parlamento, que legislavam em favor dos direitos das
mulheres, enquanto possibilidade de viabilizar organizações independentes 4, que até
então eram fortemente reprimidas. Os objetivos destas organizações voltavam-se
essencialmente pela liberdade, educação, abolição da poligamia.

Ainda assim, organizações ligadas ao governo como a “Women’s Organization of


Iran”, uma organização oficial e governamental, criada pela princesa Ashraf, marcavam
forte presença e realizavam apenas atividades governamentais. A organização conseguia
fazer com que fossem apresentados projetos de lei ao Parlamento e propunha algumas
medidas a fim de melhorar o estatuto legal das iranianas, mas por fim só favoreciam as
mulheres urbanas.

Nas dinâmicas conflituosas entre interesses imperialistas e outros países do


Oriente Médio decorrentes da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a União Soviética
passou a exercer maior influência política em outras regiões como o Mediterrâneo e na
Ásia Ocidental. Nos anos seguintes, caracterizados pela Guerra Fria e os desdobramentos
da Doutrina Truman de 1947, os Estados Unidos se comprometeram a “apoiar os povos
livres que se opunham a se submeter ao jugo de minorias armadas ou de pressões
estranhas (...), como se vê os Estados Unidos já se reservavam o direito de definir o que
era uma ‘minoria’ e o que era ‘estranho’.” (COGGIOLA, 2010, p. 38)

No que se refere ao Irã, em relação à produção petrolífera, nas refinarias as


condições de vida eram miseráveis e insalubres, os salários eram baixos e enquanto os
britânicos enriqueciam, a população sofria com a falta de saneamento básico.
4
“The Organization of Iranian Women”, “Women’s Party” e “Women’s League”, eram algumas
dessas organizações, as organizações ligadas a movimentos políticos eram a “Women’s
Democratic Organization” e “Women’s Progressive Movement of Society of Iranian Socialists”.
(OLIVEIRA CARVALHO, 2016, p. 11)

4
Reivindicações trabalhistas fizeram com que o governo, sob pressão, procurasse um
acordo com os britânicos para maior divisão dos lucros sobre os barris de petróleo, o que
foram desprezados pelos europeus. Neste contexto, o nacionalismo iraniano e suas
lideranças tomavam espaço e a figura de Mohammed Mossadegh ascendeu como
Primeiro Ministro indicado pelo shah, ele era líder do grupo parlamentar nacionalista e
próximo à hierarquia islâmica xiita.

O governo de Mohamed Mossadegh levou o Irã à nacionalização do


petróleo. O apoio popular a Mossadegh, eleito em 1951, foi esmagador,
beirando os 100%. A crise agravou-se quando Mossadegh, ao descobrir
que os britânicos conspiraram contra ele, rompeu relações diplomáticas
com a Grã-Bretanha, expulsando todos os seus representantes. Nesse
momento, os Estados Unidos fizeram sua entrada no processo e o
presidente do país, Harry Truman, tentara contemporizar, ou seja, fazer
com que os britânicos aceitassem a nacionalização, em nome da
“autodeterminação dos povos”; era, na verdade a arma política que os
Estados Unidos usavam para substituir a Grã-Bretanha na região (o país
era então admirado no Irã, o “Grande Satã” da época era a Grã-
Bretanha). (COGGIOLA, 2010, p. 39)

No entanto, logo as limitações de classe do então primeiro ministro começaram a


aparecer, a reforma agrária que fora prometida não aconteceu, as reivindicações de
liberdade democrática não foram concedidas e Mossadegh aprovou uma lei de interdição
de greves. As atuais insatisfações populares foram manipuladas e aproveitadas por
agentes estadunidenses e britânicos, numa operação que ficou conhecida apenas décadas
depois, como Operação Ajax, de acordo com Coggiola (2010):

Turmas de provocadores foram contratadas para fazer arruaças no


centro da cidade, em nome de Mossadegh. A depredação, o
vandalismo, o suborno de jornalistas para manipular a opinião pública,
aliados ao embargo imposto ao país pela Grã-Bretanha foram os meios
da preparação golpista (p. 41).

Em 1953, o primeiro ministro fugiu do país, ameaçado por manifestantes que


marchavam em direção a sua casa, assumindo em seu lugar, o general Zahedi.

Daí em diante o shah Reza Pahlevi passou a governar como um ditador.


Não foi apenas um golpe, foi uma mudança de regime, (...) o shah não
somente reinaria, ele também governaria. O Irã deixava de ser uma
"monarquia constitucional" (ao menos formalmente) no estilo inglês,
com o shah nomeando o primeiro-ministro por indicação parlamentar,
mas sem interferir no gabinete, e passava a ser uma ditadura
monárquica com cobertura parlamentar, de um parlamento esvaziado
de conteúdo e poder. E assim seria pelo próximo quarto de século, com
consequências extraordinárias e contradições insolúveis que a

5
revolução de 1979 traria definitivamente ao centro do palco da história.
(COGGIOLA, 2010, p. 41)

Para os ingleses, negociar com “nativos ignorantes” era um insulto: para eles a
Grã-Bretanha desempenhava uma missão civilizadora nos países onde eram dominantes,
pois “desumanizavam os colonizados e apenas conviviam com a elite local, submetida a
seus interesses, ignorando as péssimas condições de vida que era submetida a maior parte
da população” (COGGIOLA, 2010, p. 42).

Ao invés de reinvestir os lucros dos projetos em melhorias sociais, o governo


investia em tecnologia militar, tornando-se o maior comprador da produção bélica
estadunidense: aumentava o grande vão entre a classe dominante rica e a população, de
maioria pobre.

O shah proibiu o uso do véu pelas mulheres, muitas delas religiosas que viviam
confinadas em suas casas; para o governo, o uso do véu era contrário aos interesses de
modernização do Irã, uma parte significativa da população urbana religiosa passou a
recusar-se em enviar as filhas à escola5. Enquanto isso, as terras de instituições religiosas
foram divididas, e sua renda reduzida; a concessão do direito ao voto às mulheres foi
visto como um plano do shah “para trazer as mulheres às ruas” (COGGIOLA, 2010,
p.64). Ele conferiu o direito à mulher de trabalhar em algumas profissões como a
magistratura ou no exército.

Em 1975, e sendo este um resultado da luta da “Women’s Organization


of Iran”, foi criada a “Family Protection Law”, uma expansão dos
direitos concedidos pela “Family Protection Act” criada em 1967,
aboliu o direito do homem ao talaa (repúdio), e restringiu o seu direito
à poligamia. A mulher passou ainda a ter direitos iguais no casamento e
divórcio, direitos de custódia, foram minimizadas as sanções contra o
aborto e o mínimo de idade de casar para as moças passou para os 18
anos. Foi ainda eleita pela primeira vez uma mulher para Ministra da
Educação (CARVALHO, 2016, p. 12)

Durante este período, apesar de existir um relativo progresso nos direitos das
mulheres, estes direitos acabavam por favorecer as mulheres urbanas instruídas e sob o
controle do Estado.

A maioria da população iraniana era rural, a maioria das


mulheres era analfabeta, a maioria delas habitava no meio rural,
tínhamos um atraso em termos de controle do corpo, o número de
filhos por mulher era bastante elevado, uma média de sete

5
Kian-Thiébaut, In: Rial, 2008, p. 147

6
crianças. Ainda assim, as mulheres obtiveram direitos, mas quem
os utilizou foram as do meio urbano, de classes superiores. A
maioria delas não os utilizou e nem sequer sabia que tinha esses
direitos (...) as identidades sociais femininas não existiam
realmente nessa época, mesmo entre as que se beneficiaram
dessas mudanças de lei. Não havia reivindicações específicas
para as mulheres, o que explica em parte por que elas aderiram
ao movimento islâmico no momento da Revolução de 1979.
(KIEN-THIÉBAUT apud RIAL, 2008, p. 149)

A invasão de uma escola religiosa pelas forças do shah, além das outras diversas
repressões a comunidade religiosa e a expansão secular dos direitos das mulheres
contribuíram para a imagem de inimigo do Islã.

No Irã, a crise do petróleo nos anos 1970 provocou terrível inflação, mas a restrita
classe dominante desfrutava de muito dinheiro na época, em especial a autocracia
governante. O choque entre a população jovem, em crescimento contínuo e um regime
que não oferecia “nem os avanços de um Estado moderno, nem estabilidade de uma
sociedade tradicional” (COGGIOLA, 2010, p. 65) criou as condições perfeitas para a
revolução. A população mais pobre do país tendia a ser o segmento mais religioso e o
menos ocidentalizado.

A Savak, a brutal polícia iraniana, em 1977, segundo a organização Anistia


Internacional, conquistou o primeiro lugar no mundo entre os países violadores de
direitos humanos. Logo surgiram evidências de que as imensas compras de armamentos
já não se destinavam apenas a defender o país de eventuais agressões externas, mas sim
com o intuito de conter as insatisfações internas da população em revolta; em 1978,
aproximadamente 90% dos iranianos colocaram-se contra o governo (COGGIOLA,
2010, p. 67), clamavam por direitos democráticos e distribuição de riqueza, os estudantes
e a classe trabalhadora desafiavam os aparatos repressivos.

Sob a ditadura do shah, sem direito a imprensa livre, partidos políticos ou


entidades estudantis, aos iranianos restavam o único fórum que permanecia aberto: as 80
mil mesquitas existentes no Irã, e por elas passavam-se de hierarquicamente pela
autoridade dos mulás6, que apostavam nos jovens e faziam da religião uma força
motivadora, impulsionado por Ruhollah Khomeini, exilado por se opor ao governo de

6
Mullah: derivado da palavra árabe mawla, significando, mestre, vigário e guardião, no islã xiita,
título dado às personalidades religiosas, especialmente aos doutores da lei corânica.

7
Pahlavi. Na década de 50, Khomeini tinha recebido o título de Aiatollah, o mais
importante cargo da hierarquia do clero xiita.

Mas a mais importante contribuição do clero para o movimento


foi emprestar-lhe a sua secular estrutura de comunicações, no
interior do país quando os aiatolás ditavam palavras de ordem
política para população, elas eram imediatamente transmitidas
para as camadas inferiores da população por uma rede de 18 mil
mulás (...) e ainda para um degrau mais inferior, para 600 mil
saias, crentes considerados descendentes diretos do Profeta.
(COGGIOLA, 2010, p. 70)

O exército começou a se desintegrar quando os soldados passaram a se recusar a


atirar nos manifestantes e a desertar. O país estava à beira do colapso. O shah fez
tentativas de conter as enormes manifestações prometendo uma constituição e libertando
presos políticos, mas era tarde.

O combate à figura do imã Khomeini na imprensa aumentou ainda mais os


conflitos políticos, os iranianos mantinham grande expectativas em Khomeini e quando
ele pediu o fim do regime do shah em 1979, Mohammed Reza Pahlevi foi forçado a
deixar o país.

Khomeini retornou do exílio na França no dia 1 de fevereiro de 1979 e declarou


sem efeito o regime imperial, conclamando a proclamação da “República Islâmica” do
Irã. Khomeini deixava claro que o seu papel na revolução seria denunciar a dança e o
cinema como anti-islâmicos, e anunciou que a liberdade de expressão excluiria tudo
aquilo que não fosse “de interesse nacional”.

O primeiro discurso de Khomeini no Irã foi conduzido na praça dos mártires. Sua
chegada histórica foi televisionada e foi possível ver a multidão levando imagens de
Khomeini e gritando “Allah é grande” e “Khomeini é nosso líder”, em seguida a sua
chegada ouviu-se pela primeira vez o hino da república islâmica. Khomeini ameaçou a
primeiro ministro e exigiu sua renúncia, criticou a dinastia Pahlevi e os Estados Unidos.

Já no exílio, Reza Pahlevi ordenou ao exército iraniano que atirasse nos


manifestantes o quanto fosse necessária, a fim de provocar uma guerra civil. Coggiola
(2010), observa que:

(...) numa fita, divulgada pela emissora de televisão KNTX,


operada pela cadeia CBS. O discurso era uma instrução que o

8
shah dera aos chefes militares dias antes de abandonar o Irã,
gravada numa fita, posteriormente retirada do país, por um
general de exército dissidente. A fita fora entregue à CBS por um
representante da Frente Nacional de Oposição nos Estados
Unidos: suas reproduções eram vendidas a dois ou três dólares
nas ruas de Teerã.

Em Teerã e em outras cidades, homens e mulheres levantavam barricas e muitos


usavam faixas brancas na testa, simbolizando a disposição de morrer em combate, na
simbologia muçulmana. “Envoltas em seus véus negros, os chadores, mulheres de todas
as idades ocupavam-se em uma frenética fabricação de coquetéis molotov”
(COGGIOLA, 2010, p. 77). O convite para juntar-se à jihad7 vinha da mão dos jovens.

O grande marco desta revolução em relação à participação feminina, foi o


envolvimento das mulheres e a relevância delas nesta luta, o véu tornou-se o símbolo de
rebeldia, como havia sido proibido por Pahlevi, as mulheres usavam-no nas
manifestações, representando a sociedade e valores islâmicos. Durante os anos 1978 e
1979, muitas organizações de mulheres foram abolidas, mas muitas outras surgiram ou
reemergiram8, tendo como fato inédito a participação não só de mulheres laicas mas
religiosas.

Por um lado, as mulheres seculares participaram por oposição à


ditadura de Pahlavi, por outro, as mulheres religiosas que apoiavam a
implementação da Sharia. A maioria das mulheres, que não eram
devotas a nenhuma ideologia ou orientação política uniram-se ao
movimento contra Pahlevi na esperança de ver o país livre da ditadura,
da dominação estrangeira e alienação cultural adotada pelo regime de
Pahlavi (MAHDI, 2004, p. 437). Com a ruína do regime de Pahlevi,
Khomeini declarou ilegal o governo de Bakhtiar e elegeu um novo
primeiro-ministro. Após acabar com a monarquia, ele decretou a
República Islâmica do Irã, um governo regido pelo direito islâmico, a
Sharia. E declarou-se Líder Supremo do Irã, a maior autoridade política
e religiosa, cargo que prevalece até aos dias de hoje, agora ocupado por
Ali Khamenei. (OLIVEIRA CARVALHO, 2016, p. 14-15)

7
Jihad, em árabe, de acordo com o Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa (2013):
esforço, combate para a defesa das fronteiras do Islã ou luta interior para o controle das paixões
da alma e aperfeiçoamento espiritual.
8
Entre elas estão a “National Union of Women”, “Committee for Solidarity of Women”,
“Organization of Iranian Women”, “Women’s Populace of Iran”, “Women’s Branch of National
Democratic Front”, “Association of Women Lawyers”, “Women’s Society of Islamic
Revolution”, e “Muslim Women’s Movement”. As duas últimas, associadas a outras pequenas
associações eram afiliadas com o “Islamic Republic Party”, representado as mulheres
muçulmanas que eram leais à Revolução Islâmica (OLIVEIRA CARVALHO apud Mahdi, 2004,
p. 434).

9
1.2. DESDOBRAMENTOS DA REVOLUÇÃO NA SOCIEDADE IRANIANA

O período posterior à Revolução é marcado pela volta do regime ditatorial, desta


vez com a regência dos valores islâmicos e anti-ocidentais. As mulheres, que haviam
apoiado a Revolução, acabaram por ser as que mais sofreram com a implantação da
Sharia, pois Khomeini aboliu a “Family Protection Law” e decretou um dress code para
as mulheres, obrigando o uso do véu. Foi criado inclusive um grupo vigilante feminino
para manter os códigos da aparência feminina em público.

Nas universidades, homens e mulheres foram separados por turmas; as


mulheres foram impedidas de estudar mais de 60 áreas de estudos, entre
eles direito, engenharia e agricultura; foram impedidas de exercer
profissões na área judicial ou música. Foram proibidas de participar em
desportos e de ver desportos praticados por homens. A nova lei
permitiu aos homens o total direito ao divórcio sem justificação, as leis
de custódia também foram alteradas de forma a favorecer os homens:
as mulheres só podiam manter os seus filhos rapazes até aos dois anos e
raparigas até aos sete, a partir destas idades, os pais têm o direito à
custódia completa (CARVALHO, apud MAHDI, 2004, p. 434)

Novamente, os movimentos de mulheres surgiram, com manifestações e protestos


contra as restrições de vestimenta e a abolição da Lei de Proteção à Família; elas exigiam
também salários iguais e o direito de exercer suas profissões de antes.Em contraposição o
regime desenvolveu formas de repressão, tentando sufocar o movimento e neutraliza-lo,
fechando organizações e segregando muitas mulheres do espaço público, cerca de 24 mil
perderam seus empregos (CARVALHO, 2016, p. 15). As mulheres laicas foram as que
mais sofreram, os empregos perdidos eram oferecidos às mulheres religiosas, que já
tinham o costume de vestir-se de maneira religiosa. Muitas mulheres foram presas por
não se vestirem de acordo com o que lhes era imposto e emigravam por não se ajustarem
ao novo regime.

A grande diferença é que até então, os diferentes movimentos


feministas eram sobretudo protagonizados por mulheres laicas e de
classes altas e após a Revolução o que se assiste são mulheres islamitas,
as mesmas que haviam apoiado a Revolução, que começam a
compreender a sua situação e a perceber que o que está a acontecer é
prejudicial a todas as mulheres (CARVALHO, 2016, p. 15).

Assim, após a revolução e a guerra no Iraque, que teve início depois da revolução
e durou oito anos, as mulheres perceberam que a situação da mulher se deteriorava cada
vez mais, novas reivindicações eram necessárias e assim começam a questionar,

10
gradualmente, a leitura masculina que há do Islã e como esta é aplicada nas suas vidas
(KIEN-THIÉBAUT, apud RIAL, 2008, p. 151).

Em 1989, com o fim da guerra no Iraque e a morte de Khoemeini, Ali Khamenei


foi escolhido para novo Líder Supremo do Irã e Akbar Hashemi Rafsanjani foi eleito
presidente.

11
2. OBJETO DE ESTUDO

Nesse contexto, nosso objetivo consiste em analisar as obras literárias Persépolis


de Marjane Satrapi e Lendo Lolita em Teerã de Azar Nafisi, que buscam fazer uma
análise crítica da situação feminina iraniana a partir de suas experiências pessoais de
maneira autobiográfica.

2.1 Azar Nafisi

Azar Nafisi é uma escritora iraniana nascida em Teerã no dia 1 de dezembro de


1949, filha de Nezhat e Ahmad Nafisi. Seu pai foi prefeito de Teerã de 1961 a 1963, na
época, o homem mais jovem a ocupar o cargo e sua mãe, membro do Parlamento, ambos
integrantes do governo do shah Reza Pahlevi. Azar foi criada em Teerã, integrante de
uma família de classe alta e aos treze anos mudou-se para Lancaster, para terminar seus
estudos; posteriormente mudou-se para a Suíça. Ela é graduada em Literatura inglesa e
americana e PhD pela Universidade de Oklahoma.
Depois da Revolução de 1979, Nafisi retornou ao Irã e passou a dar aulas de
literatura inglesa, onde passou dezoito anos; em 1995, em desacordo com as autoridades
e recusando-se a usar o véu, na época obrigatório, deixou a universidade. Nos dois anos
seguintes dirigiu um pequeno grupo de estudos em casa para seletas alunas, o que a
inspirou a escrever seu best-seller intitulado originalmente Reading Lolita in Tehran: A
Memoir in Books (2003), publicado nos EUA, onde a autora descreve suas experiências
no Irã pós-revolução. Nafisi é também autora de outras publicações, acadêmicas e
autobiográficas, como Things I’ve Been Silent About (2008) e The Republic of
Imagination (2014). As publicações da autora por um lado, são muito aclamados,
principalmente nos Estados Unidos, por neo-conservatives, favoráveis a Guerra ao Terror
e políticas anti-iranianas, e muito criticada por acadêmicos estudiosos de assuntos do
Oriente Médio e Direitos Humanos, assunto que trataremos posteriormente ao analisar
sua primeira obra.

2.1.1. Lendo Lolita em Teerã: Memórias de uma resistência literária (2003)

12
O livro de caráter autobiográfico publicado nos Estados Unidos em 2003, por Azar
Nafisi, narra em primeira pessoa as experiências pessoais da professora universitária da
Universidade de Teerã, nos contextos contemporâneos ao desenvolvimento da Revolução
Iraniana de 1979 até 1997, na cidade de Teerã. Inicialmente tem a proposta de contar as
aventuras literárias de sete alunas da universidade, que reuniam-se durante dois anos,
todas as manhãs de quinta-feira, para ler e discutir obras proibidas da literatura ocidental
e acabavam abrindo-se e contando suas experiências individuais no Irã, mas ao
desenvolver-se apresenta pensamentos de outros atores da vida de Nafisi e suas próprias
experiências anteriores a formação do grupo de estudos, buscando mostrar as visões
pessoais do grupo das sete mulheres dentro da república islâmica.

2.2. Marjane Satrapi

Marjane Satrapi, nome artístico de Marjane Ebihamis, nasceu em Rasht, em 22 de


novembro de 1969, membro de uma família de classe média. Ela cresceu em Teerã onde
frequentou o Lycée Français; seu pai era engenheiro e sua mãe desginer de vestidos.
Descendente de aristocratas iranianos, seu bisavô materno foi Nasser-al-Din Shah,
imperador da Pérsia de 1848 a 1896, seu avô era um dos filhos das 100 esposas do
imperador, sendo considerado um príncipe.

Sua família possuía forte envolvimento com movimentos comunistas e socialistas e


eram bastante ocidentalizados, integrando os movimentos marxistas da Revolução de
1979, antes da repressão da ala islâmica que também compunha os corpos
revolucionários. Durante sua juventude, Marjane presenciou as repressões do regime do
Aiatollah Khomeini, principalmente em relação a sua família e amigos próximos,
marxistas revolucionários que foram perseguidos, presos e mortos. Seu tio Anoosh,
retratado em sua novela gráfica autobiográfica, permaneceu exilado na União Soviética
antes de retornar à Teerã; acabou sendo capturado e executado. A figura de seu tio
moldou o comportamento e a narrativa de Marjane.

13
Em 1983, os pais de Marjane, enviaram-na a Vienna, para seguir seus estudos no
Lycée Français de Vienne, na Áustria, discordantes com as mudanças regulamentadas no
regime islâmico. Marjane completou os estudos em Viena e após dificuldades pessoais,
retornou ao Irã, onde estudou comunicação visual e tornou-se mestra pela Universidade
Islâmica de Azad em Teerã. Casou-se com um veterano da Guerra Irã-Iraque aos 21 anos
e divorciou-se poucos anos depois, Marjane mudou-se para Strasbourg, na França,
atualmente vive em Paris como ilustradora.

Marjane é novelista, cartunista, ilustradora e autora de livros infantis, produziu


Persépolis, publicada na França nos anos 2000, sua maior obra gráfica, em forma de
História em Quadrinho, ou graphic novel (GHOREISHI, 2018, p. 3-4).

2.2.1. Persépolis (2000)

Banida do Irã sob a acusação de islamofobia, Persépolis é uma novela gráfica


publicada em francês em 4 volumes desde os anos 2000 (respectivamente, o volume 1
em 2000, o volume 2 em 2001, o volume 3 em 2002, e o volume 4 em 2003), idealizada
por Marjane Strapi. Traduzida para diversas línguas, em 2007, Persépolis foi adaptado
para o cinema como animação e ganhou um Óscar nessa categoria. Marjane recusou o
rótulo político da obra e para a autora, apesar das diversas críticas políticas contidas na
obra, não somente ao imperialismo americano, ao governo do shah mas principalmente
ao governo iraniano, o objetivo da obra “era contar a sua história e mostrar o que
significava ser iraniana para ela”9.

9
Disponível em: <https://www.theguardian.com/film/2008/mar/29/biography>. Tradução nossa.
Acesso em 18 abr. 2019.

14
3. METODOLOGIA

A pesquisa foi realizada a partir da leitura de autoras iranianas reconhecidas no


Ocidente pelo público não somente infanto-juvenil, mas também adulto, com ênfase na
repercussão nos Estados Unidos, onde recebeu grande sucesso.

O contexto histórico remonta às pesquisas de Osvaldo Coggiola10 e a autora


Bruna Cecília de Oliveira Carvalho11, que expõe o período pré-Revolução de 1979 e a
revolução em si com aspectos do feminismo islâmico usado em sua pesquisa e a presença
feminina na revolução.

A leitura preliminar dos livros auxiliou a construção da abordagem da pesquisa


anteriormente ao conhecimento factual montando por historiadores e pesquisadores do
caso, o que possibilitou falsear a hipótese de representatividade nos best-sellers e guiar à
pesquisa a uma perspectiva (des)orientalizada da história do Irã.

A fundamentação teórica utilizada na pesquisa se concentrou na análise textual


das publicações a partir da conceituação do historiador Bronislaw Baczko12 e nas
interpretações da geografia cultural e fenomenologia da paisagem, presentes nos
trabalhos de Yi-Fu Tuan13 e Eric Dardel14, apresentados no artigo de Amélia Regina
Batista Nogueira.

A primeira hipótese de preposição de identidade de resistência da mulher iraniana


foi embasada nas fundamentações teóricas afirmadas pelas autoras escolhidas e
desconstruída na argumentação da pesquisadora iraniana, Zahra Seyedeh Ghoreishi, que
analisa não somente as duas obras trabalhadas como a artista visual Shirin Neshat,
também grande sucesso nos Estados Unidos, reconhecida no cinema e na fotografia em
sua tese de mestrado em artes, “Representações visuais e textuais e interpretações de
mulheres iranianas nos trabalhos de Neshat, Satrapi e Nafisi”15 (2018).

10
A Revolução Iraniana, 2008, São Paulo: Editora UNESEP.
11
Tese de Mestrado: O cinema de mulheres no contexto do feminismo islâmico: o caso da
Samira Makhmalbaf. Braga: Universidade do Minho, 2016.
12
Imaginação social (1985).
13
Espaço e lugar: a perspectiva da experiência (1983) e Topofilia: um estudo da percepção,
atitudes e valores do meio ambiente (1980)
14
O homem e a terra: natureza da realidade geográfica (1952).
15
Tradução nossa.

15
Ghoreishi desconstrói a narrativa orientalista presente nas obras e analisa os
eventos expostos pelas das três artistas mencionadas a partir do recorte social individual
de cada uma delas, que diferem da maioria da população, alegando que, por habitarem
diferentes estratificações sociais, as perspectivas da experiência individual de cada uma
divergem e muito dos eventos experimentados pela população feminina iraniana de
estrato social pauperizado.

Foi realizada uma pesquisa para contextualizar historicamente a produção das


obras, que foram lidas integralmente; além de pesquisas laterais em periódicos como a
Identities: Global Studies in Culture and Power, Journal of Postcolonial Writing,
Journal of Feminist Cultural Studies e Critique: Critical Middle Eastern Studies, que
possibilitaram o levantamento de informações contidas em críticos literários e estudiosos
do Oriente Médio sobre as obras de Satrapi e Nafisi.

4. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Nesse sentido, entendemos o texto literário como substrato para o estudo de


percepções, representações, figurações, por meio das quais percebemos os movimentos
de instituição de imaginários e da própria temporalidade (CAMILOTTI; NAXARA,
2009, p. 39). Como observa Roger Chartier, existe uma relação complexa entre literatura
e história, a serem debatidas por referenciais da História Cultural, com ênfase nas
representações, “que nos auxilia na elucidação da construção de ideários e práticas
culturais a partir de determinadas condições sociais” (CHARTIER, 1990, p. 17).

As análises realizadas por Bronislaw Baczko acerca dos imaginários sociais são
produto de experiências coletivas que comportam ações e sensibilidades de um dado
grupo social, e que articula determinados valores, normas e representações, portadores de
sentidos e identidades, no entanto, é importante pensar que as identidade e imaginários
compreendidos socialmente são, às vezes construções pautadas em concepções
orientalistas. “O Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente), como sua imagem,
ideia, personalidade e experiência de contraste. Contudo, nada desse Oriente é
meramente imaginativo. O Oriente expressa e representa esse papel, cultural e até mesmo
ideologicamente como um modo de discurso” (SAID, 1990, p. 15). A partir da ideia

16
apresentada por Said entendemos que tanto Marjane Satrapi quanto Azar Nafisi
incorporam o discurso de moral civilizatória ocidental, corroborando com a hipótese de
Said.

Baczko argumenta que o imaginário é “uma das forças reguladoras da vida


coletiva” (BACZKO, 1985, p. 309). Essas interpretações são significativas para se
compreender as “referências simbólicas”, interpretações, valores, condutas e experiências
que brotam no interior dessa vida coletiva, os imaginários sociais fornecem um sistema
de orientações expressivas e afetivas que correspondem a outros tantos estereótipos
oferecidos aos agentes sociais: ao indivíduo relativamente ao seu grupo social; aos
grupos sociais relativamente a sociedade global, as suas hierarquias e relações de
dominação, etc. (BAZCKO, 1985, p. 311). “A dominação política ocidental sobre o
mundo muçulmano e sua ação militar contra ele durante todo o período colonial foi
legitimado no pressuposto de que as sociedades muçulmanas eram inferiores ao
Ocidente” (BAHRAMITASH, 2005, p. 224).

Ao mesmo tempo, outro conceito importante para os objetivos deste trabalho


refere-se à fenomenologia, sendo que seus princípios se fundamentam na descrição,
intencionalidade, redução fenomenológica e intersubjetividade para fazermos uma ponte
com as nossas análises geográficas (NOGUEIRA, 2005, p. 7). A redução
fenomenológica nos remete às experiências vividas por cada indivíduo antes das
reflexões filosóficas e científicas que recaem sobre eles, são os resultados do
envolvimento do indivíduo com e no mundo.

Para Buttimer (1976): “a noção fenomenológica da intencionalidade sugere que


cada indivíduo é o foco de seu próprio mundo, ainda que possa esquecer de si próprio
como centro criativo daquele mundo” (NOGUEIRA, 2005, p. 20).

Yi-Fu Tuan, um dos maiores teóricos da geografia fenomenológica e referência


no conceito de Lugar na geografia, dividimos cultura e percepção por papéis específicos
em cada sociedade: papéis dos sexos e percepções; diferenças de atitude entre o nativo e
o visitante (TUAN, 1980, p. 68).

O olhar fenomenológico baseia-se em percepção, mundo, espaço, homem e lugar:


“a realidade geográfica é primeiramente o lugar que está, os lugares de sua infância, o
ambiente que lhe chama à sua presença” (BATISTA NOGUEIRA, 2005, p. 3), o que
podemos perceber que está muito presente nas obras autobiográficas de Satrapi e Nafisi.

17
A partir dos conceitos utilizados no campo das representações e dos imaginários
da literatura como fonte histórica, a metodologia da fenomenologia, nos auxiliou a
compreender os imaginários moldados nas representações construídas nas obras
Persépolis e Lendo Lolita em Teerã e também a construção destes lugares geográficos.

18
5. DISCUSSÃO DAS FONTES

Por que tais obras são tão importantes no Ocidente? Quais são os imaginários
construídos sobre eles? Quais são os pesos atribuídos a presença feminina no islã a partir
deste referencial, e quais são os outros referenciais?

A experiência descrita nas obras dá significado aos indivíduos que compõe a


história iraniana e são muito significativas para si, no entanto, quais são os cuidados que
devemos ter ao ler os respectivos títulos?

As possíveis respostas para estas perguntas e contradições entre elas serão


levantadas na discussão das fontes com base em análises de Zahra Seyedeh Ghoreishi,
autora também iraniana, que se propõe a analisar as representações e os imaginários com
o viés das artes textuais.

19
6. RESULTADOS

Tanto nas obras de Nafisi quanto de Satrapi, verificamos críticas ao regime islâmico,
porém “no contexto de representações potencialmente redutivas de grupos sociais
diferentes, textos, imagens e ideias de representações particulares podem se tornar um
território contestado” (GHOREISHI, 2018, p. 3), pois, ambas ocupam um local muito
específico na sociedade iraniana: a elite urbana de Teerã. Algumas das críticas feitas
tanto no livro de memórias de Azar Nafisi quanto na novela gráfica de Marjane Satrapi
ao regime islâmico, poderiam ser contestadas por outras bases da sociedade, que
experimentaram melhorias.

(...) algumas melhorias para as mulheres, como alterações no seu


estatuto perante a lei e poderem participar em competições
internacionais esportivas tiveram espaço com os novos governantes. O
número de mulheres nas escolas e universidades aumentou, e o
presidente Rafsanjani implementou o plano familiar que reduziu o
número de filhos por mulher no Irã. No meio rural, em uma geração, o
número de filhos desceu de 8,1 para 2,1 (ESFANDIARI, 2010, p. 3
apud CARVALHO, 2010, p. 16).

Marjane Satrapi ilustra as primeiras agitações da Revolução Islâmica de 1979 em


sua infância buscando mostrar um pouco dos dois lados, com uma ingenuidade que muda
ao longo da obra e que toma partido de um dos lados. No início de Persépolis, a narrativa
de Marjane paira sobre o uso do véu e sua obrigatoriedade no regime islâmico.

“Em toda parte havia manifestações pró e contra o véu.” (SATRAPI, 2007, p. 3).

20
“A gente não gostava muito de usar o véu, principalmente porque não entendia o motivo”
(SATRAPI, 2007, p. 3).

“Enquanto as mulheres sem véu corriam o risco de ser presas, os homens estavam expressamente
proibidos de usar gravata (símbolo do ocidente) (...) Isso até que era justo” (SATRAPI, 2007, p.
14).

Os papéis dos sexos e a percepção são fundamentais no entendimento da


sociedade iraniana, “nas culturas em que os papéis dos sexos são fortemente
diferenciados, homens e mulheres olharão diferentes aspectos do meio ambiente e
adquirirão atitudes diferentes para com ele” (TUAN, 1980, p. 70).

Azar Nafisi também aborda a questão do véu, com um pouco mais de ênfase e
contrária ao ‘roubo’ das cores dos indivíduos pelos véus negros.

Por quase dois anos, todas as quintas-feiras pela manhã, chovendo ou


fazendo sol, elas vinham a minha casa, e, na maior parte do tempo das
vezes, eu não era capaz de superar um sobressalto no momento de vê-
las sem seus véus e túnicas, explodindo em cores. Quando minhas
alunas entravam na sala, tiravam mais do que seus véus e túnicas.
Gradualmente cada uma delas ia ganhando contorno e forma, tornando-
se singular (...) nosso universo autossuficiente desdenhava da realidade
dos véus negros e rostos acanhados na cidade lá fora. (NAFISI, 2009, p.
16)
Satrapi relata seu dia-a-dia em Teerã e seus embates com os guardiões da
revolução, com marcas de classe como roupas jeans, incomuns ao país na época e

21
consumindo cultura pop estrangeira no mercado ilegal, de preços elevados para a
população geral do país (GHOREISHI, 2018, p. 60).

“Essa categoria se juntou aos homens para prender as mulheres que não usavam direito o véu”
(SATRAPI, 2007, p. 14).

Acadêmicos argumentam que mulheres iranianas experienciaram a revolução de


maneira diferente dependendo de sua classe social. Por exemplo, enquanto a imposição
do hijab restringia a liberdade de mulheres de alta e média classe – da experiência de
Nafisi – para a maioria da população rural e urbana de baixa renda, o hijab permitiu a
entrada nos espaços públicos de onde elas eram excluídas antes da Revolução
(BAHRAMITASH, p. 232).

Talvez, tendo passado muito tempo de sua infância fora do Irã, Azar Nafisi sinta
genuinamente que não pertença ao Irã (BAHRAMITASH, p. 234). Um dos personagens
iranianos descritos por Azar diz que Nafisi é muito americana, o que ela reconhece sobre
si.

Eu sinto falta de falar inglês preferencialmente com um sotaque nova


iorquino, alguém que fosse inteligente e que apreciasse Gatsby e
Hagen-Dazs e que conhecesse Lower East Side como Mike Gold.
(NAFISI, 2009, p. 107).

De acordo com Bahramitash (2005, p. 234), indícios como este podem


demonstrar ao leitor que a autora está olhando para o Irã de um ponto de vista de
outsider, como uma pessoa de fora.

22
“Depois de 4 anos morando em Viena, estou de volta a Teerã” (SATRAPI, 2007, p. 124)

Em relação aos papéis de visitante e nativo, o nativo tem uma atitude complexa
derivada da sua totalidade de seu meio ambiente, enquanto portador do olhar geográfico,
é necessário tomar certos cuidados de observação em relação a cultura oriental e evitar ao
máximo o julgamento orientalista de questões culturais, ao mesmo tempo não se
esquecendo do ponto de partida do observador: o cientista não é isento de influenciar o
seu objeto e seu olhar (KUHN, 1998), e por este motivo, alguns questionamentos devem
ser feitos para a análise de ambas as obras selecionadas e a importância que ocupam no
ocidente e como podem legitimar discursos orientalistas.

Ambas as autoras tiveram muito contato com o mundo ocidental juventude,


porém Satrapi, estudante do liceu francês no Irã não tinha a mesma assimilação com o
Ocidente, diferente de Nafisi, que viveu fora do Irã na maior parte de sua juventude,
desde os 13 anos, retornando somente 17 anos depois, logo, seus comportamentos não
exatamente refletem o sentimento da população e das mulheres em relação ao mundo.

Outro ponto importante de destaque em relação às autoras, é que a aparência das


duas em muito se distingue, Azar Nafisi tem traços ocidentais, enquanto Marjane Satrapi
não poderia passar por uma ocidental. Nos seguintes excertos, Marjane passa por uma
situação onde mente sua nacionalidade e escuta conhecidos da cidade de Viena
comentarem o episódio com deboche, pois ela têm traços que ela descreve como
iranianos nariz e queixo longos e grandes, sobrancelhas fortes, etc.

23
“Cheguei a negar minha nacionalidade” (SATRAPI, 2007 p. 197)

“Viu a cara dela?” (SATRAPI, 2007, p. 199)

As autoras partilham de trajetórias individuais parecidas, apesar de não


partilharem sempre de visões de mundo semelhantes, por exemplo, Azar Nafisi, não tem
a mesma visão de crítica ao capitalismo como Marjane, que vem de família de origem
marxista:

Minha família sempre sentiu certo desprezo pela política, sempre


manteve uma postura de condescendência em relação a esse assunto
(...) Quando meu pai se tornou prefeito de Teerã , em vez de
comemoração, houve um sentimento de desconforto na família.
(NAFISI, 2007, p. 109)

Nafisi teve episódios de participação política em sua juventude, mas partilhava de


sentimentos mistos em relação às ideologias adotadas, não tinha interesse de mudar
hábitos de sua vida pessoal em prol do movimento:

(...) aderi ao movimento estudantil iraniano com certa resistência. A


prisão do meu pai e a simpatia nacionalista da minha família me
sensibilizou em relação a política (...) o canto revolucionário e a
atmosfera romântica eram contagiosos (...) com o tempo, os que eram

24
mais militantes e marxistas acabaram por dominar o grupo, e
expulsaram ou isolaram aqueles de tendências mais moderadas e
nacionalistas (2007, p. 108)
Nafisi apresenta na sua obra estar consciente sobre os movimentos políticos do
shah e do domínio por parte dos Estados Unidos sobre o Irã, mas valorizava grandemente
os valores ocidentais, valores iluministas datados e territorializados. No caso de Marjane
existe uma continuidade crítica aos regimes adotados no Irã.

Nafisi vivia nos Estados Unidos e tentava buscar uma identidade iraniana no
Ocidente, que assimilava muito melhor que Satrapi. O saudosismo de Nafisi em relação
ao lugar do Irã assemelha-se muito mais a sentimentos nostálgicos de infância do que de
pertencimento:

Nos meus primeiros anos no exterior – quando estudei na Inglaterra e


na Suíça, e depois, quando morei nos Estados Unidos, tentei moldar
esses lugares de acordo com as minhas impressões do Irã. Eu tentei
filtrar a paisagem, e cheguei a me transferir por um período para uma
pequena universidade do Novo México, porque o lugar me lembrava o
meu lar. (NAFISI, 2007, p. 105)
A relação de Nafisi com o espaço que ela ocupa e suas memórias sobre sua terra
natal são moldadas a partir da lembrança que ela tem de seu lar. “O que começa como
espaço indiferenciado transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e o
dotamos de valor” (TUAN, 1983, p. 6) e dessa forma os espaços ocupados por Azar
Nafisi fora do Irã são preenchidos com outros valores e outros significados distintos dos
que são descritos nas memórias.

O estranhamento de Satrapi em relação aos costumes do Ocidente e seus


sentimentos sobre este estranhamento é relatado nos quadrinhos:

25
“A festa também não era como eu pensava. Nas festas no Irã, todo mundo dançava e
comia. Em Viena as pessoas preferiam se deitar e fumar. E eu fiquei contrariada com todos
aqueles atos sexuais públicos. Vocês queriam o que? Venho de um país tradicionalista.”
(SATRAPI, 2007, p. 187)

“Quanto mais esforços de integração eu fazia, mais tinha a impressão de me distanciar da minha
cultura (...) de jogar um jogo que não era o meu” (SATRAPI, 2007 p. 190)

A identidade também não é encarada por Marjane Satrapi como por Azar Nafisi,
ambas são sim iranianas, não partilham de religião, têm origem abastada e consumem
muito da cultura ocidental, porém a vivência do lugar, em seu contexto geográfico muito
se difere, Azar Nafisi mesmo no Irã, não se sente em casa, pois o lugar que conhecia,
antes da Revolução, já não mais existe, e desta forma, no interior ou no exterior do país,
seus sentimentos não variam como o de Marji, que não distingue seu Lar de antes e
depois.

26
Minha ideia de pátria era paradoxal. Havia o Irã familiar pelo qual me
sentia nostálgica, o lugar dos parentes e dos amigos e das noites de
verão no mar Cáspio. E tão real quanto ele havia esse outro Irã,
reconstruído, sobre o qual falávamos. (NAFISI, 2007, p. 109)
Satrapi tentava se adaptar a nova cultura de seu país, seu lugar de origem. No
campo da fenomenologia Yi-Fu Tuan olha a perspectiva da experiência no lugar como
segurança, enquanto o espaço é liberdade. “Estamos ligados ao primeiro e desejamos o
outro” (TUAN, 1983, p. 3). A relação entre o indivíduo e o lugar tem possibilidades
dinâmicas, de maneira a mudar com o passar do tempo, principalmente em contextos
como os aqui apresentados, retornar ao lugar de origem e construir novas relações e
significados é um movimento comum de ressignificação do lugar.

“E quanto às minhas liberdades individuais e sociais, paciência... eu precisava muito voltar pra
casa” (SATRAPI, 2007, p. 247)

27
“Não era só com o véu que eu precisava me reacostumar” (SATRAPI, 2007, p. 252-253)

O comportamento de ambas em relação à repressão do governo nas obras é bem


crítica, de resistências cada um a seu modo, ambos seguindo uma vertente pautada em
liberdades individuais.

As grandes problematizações feitas por orientais e estudiosos ocidentais se deu


por causa da repercussão das duas obras no Ocidente, ambas lançadas depois do evento
do 11 de setembro, que mudou em muito a política e a visão construída pelo Ocidente do
Oriente, que fizeram com que toda a oportunidade, principalmente da parte dos Estados
Unidos, de levar à liberdade às terras da repressão fossem usadas.

Não é responsabilidade da autora [Azar Nafisi] educar os Estados


Unidos sobre as dificuldades e a luta das mulheres no Irã, o texto é sua
própria história, que os leitores do ocidente se apropriaram (...) muitas
vezes dando um significado geometricamente inverso dos desejos da
autora. (CLEMENS, 2014, p. 593).

Apesar dos apelos da biografia de Satrapi para com os públicos ocidentais e o


sucesso de vendas, “a história de Marji pode falhar em ressoar entre os públicos
iranianos, a maioria das pessoas para quem Satrapi supostamente deveria se tornar uma
voz representativa” (GHOREISHI, 2018, p. 43). Zahra Seyedeh Ghoreishi explana:

28
Durante esses anos, muitas mulheres iranianas voluntariamente optaram
por vestimentas modestas, especialmente o xador. Era somente comum
entre as classes altas ou médias escolherem roupas mais exuberantes e
exporem um pouco de seu cabelo. (2007, p. 39)

Outros tipos de conquistas foram adquiridas com reivindicações por parte da


sociedade, apesar das escolas iranianas serem separadas por sexo, além de mulheres e
homens ocuparem espaços separados nas mesquitas e redutos religiosos, a população
iraniana implacavelmente resistiu à tendência do regime a limitar as interações entre
homens e mulheres: “é também importante notar que alocações distintas de gênero em
espaços não são limitadas a uma só religião ou cultura” (GHOREISHI, 2018, p. 45). E
apesar disso, no Irã a segregação de sexos não necessariamente foi desvantajosa, no caso
da educação, a segregação entre meninos e meninas fez com que as famílias permitissem
que suas filhas frequentassem escolas, o que aumentou drasticamente o grau de instrução
feminino (GHOREISHI, 2018, p. 46). Outro exemplo de melhoria social nos é exibido
por Bahramitash (2005):

Informações do World Development Indicator mostram que a


mortalidade infantil caiu de 131.0 em 1975 para 25.50 em 1999; a
expectativa de vida aumentou de 49 anos para homens e mulheres em
1960 para 70 para homens e 72 para mulheres em 1999; o índice de
doença para mulheres jovens caiu consideravelmente, de mais de 55%
em 1970 para 8.70% em 1999. Mais 32 fontes recentes de informações
indicaram queda de 50% o índice de mortalidade infantil. Outra
mudança recente informa é a queda na taxa de fertilidade de 7.24 em
1960 para 2.66 em 1999. (p. 233)

Desta forma há de se considerar os recortes de classe ao fazer a leitura das obras e


levar em consideração o contexto histórico em que elas estão inseridas, pois a sociedade
iraniana, bem como sua população, não é homogênea e tem diversas possibilidades de
interpretação em suas particularidades.

Ao mesmo tempo também há de se considerar que as obras aqui analisadas têm


finalidades em si mesmas e na experiência individual de duas mulheres e o objetivo de
narrar sua relação com o mundo e a sua própria realidade.

explanatória ou descritiva, a geografia permanece profundamente


ligada ao real (...) é impossível eliminar todo valor moral e estético, ou
suprimir inteiramente o “ponto de vista“ do qual a realidade geográfica
é envolvida, ou apagar a subjetividade do sujeito para quem a realidade
se torna realidade (DARDEL, 1990, p. 4)

29
Para Buttimer16, a noção fenomenológica da intencionalidade sugere que cada
indivíduo é o foco de seu próprio mundo, ainda que possa esquecer-se de si próprio como
centro criativo daquele mundo.

16
BUTTIMER, Anne. Apreendendo o dinamismo do mundo vivido. In: CHRISTOFOLETTI,
Antonio (org.) Perspectiva da Geografia. São Paulo: DIFEL, 1985, p. 185 apud NOGUEIRA,
2005, p. 4.

30
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Azar Nafisi e Marjane Satrapi são artistas dignas de estudos não somente de
experiência fenomenológica na construção de um lugar que as formou como indivíduo,
mas também como exemplo de como discursos de experiências individuais foram e
continuam sendo usadas como justificativa, principalmente pelo Ocidente, para perpetuar
estereótipos de repressão para com mulheres em sociedades islâmicas e a necessidade de
o Ocidente ajudar tais sociedades a se libertar de padrões opressivos em detrimento de
outro modo de vida, “(…) isso assume uma posição binária entre o Ocidente e o Oriente:
o Ocidente é progresso e o melhor lugar para as mulheres, enquanto o oriente
muçulmano é retrógrado, não-civilizado e o pior lugar para mulheres”
(BAHRAMITASH, 2005, p. 222), enquanto idealmente todas as mulheres deveriam ser
suas próprias porta-vozes em sua sociedade, tendo a chance de contar suas percepções,
experiências e construção de lugares, bem como a idealização deles.

Neste sentido, o orientalismo é uma problemática que atinge principalmente o


Oriente mas que tem impactos negativos também no Ocidente, é perpetuado por meio das
grandes mídias e difuso mesmo entre o público infantil, deseducando as diferentes
sociedades com a visão de que existe uma superioridade de um em relação a outro e
legitimando discursos de que o Oriente precisa ser salvo pelos ocidentais.

O discurso das autoras, naturalmente, não tem pretensão civilizatória em relação


ao seu lugar, porém todo o discurso que pode ser incorporado na narrativa orientalista
facilita a desumanização para a dominação. “Restaurar uma região, da sua barbárie
presente, à sua antiga grandeza clássica; instruir o Oriente (para seu próprio benefício)
nas maneiras do moderno Ocidente (...) formular o Oriente, dar-lhe forma, identidade e
definição” (SAID, 1990, p. 94).

O lugar é um importante componente de nossa identidade como sujeito, as


experiências que vivemos nele, as ações que constroem esse espaço geográfico, junto aos
elementos e simbolismos que constroem uma sociedade são passíveis de diversas
interpretações e experiências. No caso das obras estudadas é importante apenas ter
noções mais amplas que a experiência individual, pois a vida das autoras Marjane e Azar

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devem ser olhadas a partir dos diferentes recortes de classes sociais existentes na
sociedade iraniana.

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