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Texto retirado do livro “Los patios interiores de la democracia”, Chile: Fondo de Cultura Económica, 1990.
Capítulo IV, págs.: 87-101. Tradução de Romualdo Dias e Maria Onice Payer.
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Esta contribuição se baseia e uma conferência realizada no Seminário sobre Culturas Urbanas, organizado por
Jordi Borja, na Universidade Internacional Menendéz da Layo e na reunião de Barcelona, Espanha, em setembro,
1985. A primeira versão foi publicada em La Vanguardia, Barcelona, 26/11/1985.
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E m uma pesquisa realizada por Flacso em San Tiago, em fins de 1986, em pleno estado de sítio, dos 1200
entrevistados 82% declarou ter muito medo do aumento da delinqüência e do uso de drogas. 77% tinha muito medo
do aumento da inflação. 61% do aumento do desemprego e 64% do aumento da repressão. Na mesma pesquisa, 62%
dos entrevistados opinou que a sociedade chilena precisa de mudanças importantes ou radicais, sendo os aspectos
econômicos os mais urgentes.
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De acordo com as minhas informações só no Brasil existe uma investigação mais sistemática da violência urbana.
A mencionada distinção é de Maria Victória Benevides: No fio da navalha; o debate sobre a violência urbana,
CEDEC, S. Paulo, s.d.
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Chama acentuadamente a atenção a semelhança que pareceria existir entre as situações de medo aqui descritas e as
reflexões sobre a condição pós-moderna. Ver, por exemplo, Lyotard, Jean François: “Une ligne de résistence” em
Traverses 33-34, Paris, 1985 e Jameson, Frederic: “Pósmodernismo e sociedade de consumo”, em Hal Foster
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A demanda de ordem
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ao terreno simbólico. Todos vivem com medo de que a pureza do próprio seja
contagiada pelo alheio7. E este perigo de contaminação, este temor generalizado de
estar encurralado e infiltrado, leva a uma retração corporativista, quando não
privatista.
Quanto maior é o medo do intruso (quer dizer, do diferente) mais altas serão
as barreiras defensivas que cada grupo social levanta. Este contexto ajuda a
compreender as situações de fechamento corporativo, de veto e bloqueio recíprocos
que caracteriza a política na América Latina.
Não existe na América Latina essa coesão social e ideologia igualitária que
Tocqueville descobriu na base da democracia norte-americana. O desenvolvimento
do capitalismo, tanto a mercantilização das relações sociais e a industrialização
como o conseqüente desenvolvimento de um welfare state incipiente, pelo menos
no Cone Sul, só aprofunda a heterogeneidade estrutural, tornando-a mais complexa.
Ressalto: na ausência de um referente coletivo por meio do qual a sociedade possa
reconhecer-se a “si mesma” enquanto ordem coletiva, a diversidade social não pode
ser assumida como pluralidade, mas é vivida como uma desintegração cada vez
mais insuportável. Daí nascem o receio ao diferente, a suspeita e também o ódio ao
outro. Perdida a certeza que os referentes coletivos oferecem, a diferenciação social
só pode ser percebida como ameaça à própria identidade. Esta só pareceria poder
ser afirmada pela negação do outro; a defesa vital do próprio se identifica com a
destruição do alheio.
A um tal clima de incerteza total responde o autoritarismo encarnando o
desejo de ordem frente à ameaça de caos. Interpretando a realidade social como um
combate de vida ou morte - ordem versus caos -, a ditadura se apresenta e chega a
ser apoiada enquanto defesa da comunidade e garantia de sua sobrevivência.
Solicita legitimação popular em troca de “colocar ordem”, de impor a ordem:
restabelecer limites claros e fixos, expulsar o estranho, impedir qualquer
contaminação e assegurar uma unidade hierárquica que outorgue a cada um seu
lugar “natural”. O resultado é uma sociedade vigiada, enfim encarcerada.
As ditaduras prometem eliminar o medo. Na realidade, sem dúvida, geram
novos medos. As ditaduras transformam profundamente as rotinas e os hábitos
sociais tornando imprevisível inclusive a vida cotidiana. À medida em que
desaparece a normalidade, aumenta o sentimento de impotência. Mesmo o
ambiente cotidiano é visto como força alheia e hostil. Ao aprender que não influi
sobre suas condições de vida, o indivíduo tampouco se faz responsável por elas;
surge uma apatia moral. Porém, acima de tudo, se expande o tédio. A vida sob a
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Recordo as reflexões de Douglas, Mary: Purity and danger, Routledge & Kegan Paul, Londres, 1966. A respeito da
histórica tensão entre a cidade real e a cidade simbólica ver Rama, Angel: “La ciudad letrada”, em Morse e Hardoy
(Orgs.): Cultura urbana latino-americana, Clacso, Buenos Aires, 1985.
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ditadura é tão triste porque nada mais pode entusiasmar. Ao não se comprometerem
com nada e com ninguém, as pessoas perdem a base social. Este desenraizamento
se mostra na desconfiança que reina nas relações sociais. Ocorre um processo de
privatização que restringe drasticamente o campo de experiência social. Em um
contexto já atomizado, tal ensimesmamento reduz ainda mais as capacidades de
aprendizagem. E isto provoca uma alteração no sentido de realidade. O indivíduo
isolado tem dificuldades em observar sua subjetividade, confrontando-a com
experiências diferentes. Diluem-se então os limites entre o real e o fantástico, o
possível e o desejado. Em tais condições, dificilmente se poderá elaborar uma visão
realista. E essa falta de realismo político, ou seja, a incapacidade de determinar as
mudanças possíveis, acaba por fortalecer o poder fático do estabelecido. O
descontentamento com o estado de coisas existente torna-se narcisista, auto-
complacente e, definitivamente, auto-destruidor.
Isto nos remete ao que me parece o efeito politicamente mais grave da
agressão autoritária: a erosão das entidades coletivas. A distância entre a própria
realidade e a história oficial, a diferença entre a auto-valorização e a valorização
social é tal que os indivíduos não conseguem se reconhecer em referentes coletivos.
A vida particular fica enclausurada em sua imediatez; além do mais, há uma
somatória de particularidades sem que se elabore um horizonte transcendental (um
imaginário coletivo ou utopia) por meio do qual a vida em comum possa ser
concebida e abordada como obra de todos. Deste modo, a tendência do
autoritarismo a desorganizar as identidades coletivas acaba por socavar sua própria
base legitimadora. A promessa de ordem desemboca em uma experiência aguda de
desordem. A mesma ditadura que havia invocado o clamor por “lei e ordem” torna
assim a recolocar a questão da ordem. Falta saber se a democracia conseguirá
assumir a demanda de ordem.
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Delumeau, J. La peur en occident, XIV-XVIII siècles. Fayard, Paris, 1978, e sua artigo “Uma pesquisa
historiográfica sobre o medo” no interessante dossiê apresentado em Debates 8, Valência (Espanha), 1984.
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Uma breve introdução ao fideísmo oferece Bourdieu, Pierre: “Cultur et politiques” em seu livro “Questões de
Sociologia”, Ed. Minuit, Paris, 1981.
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Apoio-me nas reflexões de Franz Hinkelammert, como por exemplo, “As armas ideológicas da morte”, DEI, Costa
Rica, 1977.
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Giannini, H.: “Hacia una arqueología de la experiencia” em Revista de Filosofía, 23-24, Universidade do Chile,
Santiago, 1984, pág.: 54.
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e dos desejos quando eles são precisamente o olhar com que traçamos a imagem de
nossa cidade?
A reflexão de um tema tão existencial como o medo tem-nos conduzido ao
centro da teoria democrática: a relação entre a institucionalidade política e as
experiências sociais. A democracia supõe uma formalização das relações sociais. O
peso emocional e afetivo sobrecarregaria a interação, tornando insuportável a
presença do outro se não colocamos certa distância entre nós. Um modo de
estabelecer distância são os procedimentos formais. Eles neutralizam a dimensão
subjetiva; a validade de um voto ou de uma decisão é vinculante
independentemente das considerações que a motivaram. Porém temos extremado o
campo da racionalidade formal a ponto de identificar a política racional com o
cálculo de interesses; para alguns, a democracia se reduz a um método de calcular
custos e benefícios. Estas concepções mostram sua insuficiência, sem dúvida, assim
que pretendamos - ao estilo do neoliberalismo - alcançar um “mercado político”
auto-regulado à margem dos valores, das motivações e dos sentimentos das
populações. A própria ditadura, apesar de seu discurso tecnocrático, não prescinde
da dimensão subjetiva. Pelo contrário, se apóia justamente em sua
instrumentalização. Na realidade, o avanço da racionalidade formal (a progressiva
burocratização) nunca conseguiu suprimir da política o mundo das paixões. Só que
- uma vez excluída a subjetividade como assunto privado - sua presença nos assusta
como uma irrupção de irracionalidade. A subjetividade que expulsamos retorna
como fantasma. Concluindo, se a democracia não dá lugar ao medo ele se impõe à
nossa revelia. Sucumbimos então ao pior dos medos: o medo de imaginar outras
cidades possíveis.
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