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Tem gente que morre de medo1


Norbert Lechner

O medo como problema político

Quem tem medo e de quê? Compreendendo por medo a percepção de uma


ameaça, real ou imaginária, proponho investigar o medo sob o autoritarismo nas
sociedades latino-americanas do Cone Sul.2 Há certamente percepções específicas
nos distintos grupos sociais, mas existem certos “perigos mortais” que são comuns.
O que as pessoas percebem como uma ameaça vital? Em primeiro lugar, toda
ameaça à integridade física (assassinato, tortura, assalto). Em segundo lugar, o que
põe em risco as condições materiais de vida (pobreza, desemprego, inflação, etc.).
Mesmo sendo a segurança físico-material o interesse vital mais imediato, isto não
explica por si só o sentimento generalizado de temor. Junto aos medos visíveis
existem medos ocultos, mal verbalizados. O medo pela integridade física e pela
segurança econômica destaca-se como a ponta de um iceberg invisível. Uma
angústia, esse medo difuso, sem objeto determinado, corrói tudo; faz desmoronar as
esperanças, se desvanecerem as emoções, apagar-se a vitalidade. Nos invade o frio,
nos paralisamos. Diz-se que a vida não vivida é uma doença, da qual não se pode
morrer. Pois bem, corremos perigo de morte. Um modo de morrer antes da morte é
o medo. As pessoas morrem de medo.
O autoritarismo gera uma cultura de medo. O termo, utilizado por Guillermo
O’Donnell em relação à Argentina, dá conta das violações dos direitos humanos
como uma experiência de massa e cotidiana. Vivemos a estampagem do
autoritarismo sob a forma de uma cultura do medo. E esta herança persistirá,
mesmo que desapareça o regime autoritário.
Quero chamar a atenção para um efeito paradoxal: a ditadura aguça uma
demanda de segurança que por sua vez nutre o desejo de uma “mão dura”. Vejamos
o caso chileno. Em fins de 1986, em pleno estado de sítio, a população de Santiago
tinha muito mais medo do aumento da delinqüência e do uso de drogas do que de
um aumento da repressão. A criminalidade é percebida como uma ameaça inclusive

1
Texto retirado do livro “Los patios interiores de la democracia”, Chile: Fondo de Cultura Económica, 1990.
Capítulo IV, págs.: 87-101. Tradução de Romualdo Dias e Maria Onice Payer.
2
Esta contribuição se baseia e uma conferência realizada no Seminário sobre Culturas Urbanas, organizado por
Jordi Borja, na Universidade Internacional Menendéz da Layo e na reunião de Barcelona, Espanha, em setembro,
1985. A primeira versão foi publicada em La Vanguardia, Barcelona, 26/11/1985.

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maior do que o desemprego ou a inflação, sendo que a situação econômica é


apontada como o principal problema do país. 3 O lugar de destaque que a
delinqüência e as drogas ocupam é chamativo, mas também plausível: a população
pode atribuir a uma causa concreta, talvez vivida na própria carne, a origem de sua
angústia. Circunscrevendo o perigo a um objeto visível, claramente identificável e
oficialmente sancionado como “mal”, o medo se torna controlável. A operação é
simples e conhecida. As diferenças são transformadas em “desvios” e “subversão”
e submetidas a um processo de “normalização”. Sendo impossível abolir as
diferenças, estas são tratadas como transgressões à norma, cuja validade é
assegurada justamente instituindo e, ao mesmo tempo, castigando tais
transgressões. Na alta visibilidade outorgada à criminalidade veio a tentativa de
objetivar o horror inconfessável, projetando-o sobre uma minoria e, assim, a
confirmação da fé na ordem existente. Se fosse assim, se houvesse certeza sobre as
normas básicas da convivência social, então a insegurança cidadã poderia ser
abordada como um assunto técnico-administrativo: um controle policial que
garantisse o cumprimento das leis. Pois bem. Eu presumo que tal enfoque
escamoteia o problema fundamental.
Para entrever o fundamental do problema proponho: 1) distinguir entre a
criminalidade, definida como a transgressão (violenta ou não) das leis estabelecidas
e a violência enquanto violação (criminal ou não) de uma ordem determinada 4; e 2)
referir os medos fundamentais de uma ordem violentada. Visto assim, o medo
explícito à delinqüência não é mais do que um modo inofensivo de conceber e
expresssar outros medos silenciados: medo não só da morte e da miséria, mas
também e, provavelmente acima de tudo, medo de uma vida sem sentido, despojada
de raízes, desprovida de futuro. É sobre estes tipos de medos ocultos que cada um
teve que pagar para continuar vivendo que se assenta o exercício do poder
autoritário5.

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E m uma pesquisa realizada por Flacso em San Tiago, em fins de 1986, em pleno estado de sítio, dos 1200
entrevistados 82% declarou ter muito medo do aumento da delinqüência e do uso de drogas. 77% tinha muito medo
do aumento da inflação. 61% do aumento do desemprego e 64% do aumento da repressão. Na mesma pesquisa, 62%
dos entrevistados opinou que a sociedade chilena precisa de mudanças importantes ou radicais, sendo os aspectos
econômicos os mais urgentes.
4
De acordo com as minhas informações só no Brasil existe uma investigação mais sistemática da violência urbana.
A mencionada distinção é de Maria Victória Benevides: No fio da navalha; o debate sobre a violência urbana,
CEDEC, S. Paulo, s.d.
5
Chama acentuadamente a atenção a semelhança que pareceria existir entre as situações de medo aqui descritas e as
reflexões sobre a condição pós-moderna. Ver, por exemplo, Lyotard, Jean François: “Une ligne de résistence” em
Traverses 33-34, Paris, 1985 e Jameson, Frederic: “Pósmodernismo e sociedade de consumo”, em Hal Foster

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Não basta pois denunciar as violações aos direitos humanos e a desordem


que elas provocam. A cultura do medo não é só o produto do autoritarismo mas,
simultaneamente, a condição de sua perpetuação. Ao produzir a perda dos
referentes coletivos, a desestruturação dos horizontes de futuro, a erosão dos
critérios sociais sobre o normal, o possível e o desejável, o autoritarismo aguça a
necessidade vital de ordem e se apresenta a si mesmo como a única solução. Em
resumo, o que o medo delineia e, particularmente, esse “medo dos medos” é,
definitivamente, a questão da ordem, e esta é a questão política por excelência.

A demanda de ordem

A sociedade norte-americana tem uma capacidade de elaborar a pluralidade


que a sociedade latino-americana nunca teve. Nesta sociedade, toda diferenciação
rapidamente se torna rebelião, fragmentação e desagregação. Na realidade, não
pode haver pluralidade sem referência a uma ordem coletiva, e esta não é
concebida na América Latina como uma construção. Predomina, desde a época
colonial, uma concepção “holista” da sociedade como uma ordem orgânica,
hierarquicamente estruturada6. Esta idéia forte de comunidade sobrevive inclusive
aos movimentos de independência, subordinando o universalismo republicano à
nação. As jovens repúblicas latino-americanas se apoiam mais na idéia de Estado
Nacional (e, portanto, uma noção de comunidade como unidade pré-construída) do
que nos procedimentos democráticos. Não se delineia pois a ordem como um
problema político, ou seja, como uma obra coletiva e conflitiva.
Esta visão quase ontológica de ordem e da política foi questionada,
certamente, desde o início, pela exclusão de amplos setores sociais. Ao discurso de
ordem se contrapõe desde sempre uma história de invasões: invasão de
conquistadores e fazendeiros, como de índios e camponeses, e sucessivas formas de
“marginalizados”. Poder-se-ia narrar a história da América Latina como uma
contínua e recíproca “ocupação de terra”. Não há uma demarcação estável,
reconhecida por todos, nenhuma fronteira física e nenhum limite social oferecem
segurança. Assim nasce e se interioriza de geração em geração um medo ancestral
do invasor, do outro, do diferente, venha “de cima” ou “de baixo”. Medo de ser
expropriado por um latifundiário ou um banco, de sofrer alguma “ocupação
militar”. E, por outro lado, medo de ser assaltado por bárbaros: o índio, o imigrante,
enfim, as classes perigosas. A luta pela terra própria, no sentido literal, se estende

(Organizador): La pós-modernidad, Editorial Kairós, Barcelona, 1985.


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Ver Morse, Richard: El espejo de Próspero, Siglo XXI, México, 1982.

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ao terreno simbólico. Todos vivem com medo de que a pureza do próprio seja
contagiada pelo alheio7. E este perigo de contaminação, este temor generalizado de
estar encurralado e infiltrado, leva a uma retração corporativista, quando não
privatista.
Quanto maior é o medo do intruso (quer dizer, do diferente) mais altas serão
as barreiras defensivas que cada grupo social levanta. Este contexto ajuda a
compreender as situações de fechamento corporativo, de veto e bloqueio recíprocos
que caracteriza a política na América Latina.
Não existe na América Latina essa coesão social e ideologia igualitária que
Tocqueville descobriu na base da democracia norte-americana. O desenvolvimento
do capitalismo, tanto a mercantilização das relações sociais e a industrialização
como o conseqüente desenvolvimento de um welfare state incipiente, pelo menos
no Cone Sul, só aprofunda a heterogeneidade estrutural, tornando-a mais complexa.
Ressalto: na ausência de um referente coletivo por meio do qual a sociedade possa
reconhecer-se a “si mesma” enquanto ordem coletiva, a diversidade social não pode
ser assumida como pluralidade, mas é vivida como uma desintegração cada vez
mais insuportável. Daí nascem o receio ao diferente, a suspeita e também o ódio ao
outro. Perdida a certeza que os referentes coletivos oferecem, a diferenciação social
só pode ser percebida como ameaça à própria identidade. Esta só pareceria poder
ser afirmada pela negação do outro; a defesa vital do próprio se identifica com a
destruição do alheio.
A um tal clima de incerteza total responde o autoritarismo encarnando o
desejo de ordem frente à ameaça de caos. Interpretando a realidade social como um
combate de vida ou morte - ordem versus caos -, a ditadura se apresenta e chega a
ser apoiada enquanto defesa da comunidade e garantia de sua sobrevivência.
Solicita legitimação popular em troca de “colocar ordem”, de impor a ordem:
restabelecer limites claros e fixos, expulsar o estranho, impedir qualquer
contaminação e assegurar uma unidade hierárquica que outorgue a cada um seu
lugar “natural”. O resultado é uma sociedade vigiada, enfim encarcerada.
As ditaduras prometem eliminar o medo. Na realidade, sem dúvida, geram
novos medos. As ditaduras transformam profundamente as rotinas e os hábitos
sociais tornando imprevisível inclusive a vida cotidiana. À medida em que
desaparece a normalidade, aumenta o sentimento de impotência. Mesmo o
ambiente cotidiano é visto como força alheia e hostil. Ao aprender que não influi
sobre suas condições de vida, o indivíduo tampouco se faz responsável por elas;
surge uma apatia moral. Porém, acima de tudo, se expande o tédio. A vida sob a

7
Recordo as reflexões de Douglas, Mary: Purity and danger, Routledge & Kegan Paul, Londres, 1966. A respeito da
histórica tensão entre a cidade real e a cidade simbólica ver Rama, Angel: “La ciudad letrada”, em Morse e Hardoy
(Orgs.): Cultura urbana latino-americana, Clacso, Buenos Aires, 1985.

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ditadura é tão triste porque nada mais pode entusiasmar. Ao não se comprometerem
com nada e com ninguém, as pessoas perdem a base social. Este desenraizamento
se mostra na desconfiança que reina nas relações sociais. Ocorre um processo de
privatização que restringe drasticamente o campo de experiência social. Em um
contexto já atomizado, tal ensimesmamento reduz ainda mais as capacidades de
aprendizagem. E isto provoca uma alteração no sentido de realidade. O indivíduo
isolado tem dificuldades em observar sua subjetividade, confrontando-a com
experiências diferentes. Diluem-se então os limites entre o real e o fantástico, o
possível e o desejado. Em tais condições, dificilmente se poderá elaborar uma visão
realista. E essa falta de realismo político, ou seja, a incapacidade de determinar as
mudanças possíveis, acaba por fortalecer o poder fático do estabelecido. O
descontentamento com o estado de coisas existente torna-se narcisista, auto-
complacente e, definitivamente, auto-destruidor.
Isto nos remete ao que me parece o efeito politicamente mais grave da
agressão autoritária: a erosão das entidades coletivas. A distância entre a própria
realidade e a história oficial, a diferença entre a auto-valorização e a valorização
social é tal que os indivíduos não conseguem se reconhecer em referentes coletivos.
A vida particular fica enclausurada em sua imediatez; além do mais, há uma
somatória de particularidades sem que se elabore um horizonte transcendental (um
imaginário coletivo ou utopia) por meio do qual a vida em comum possa ser
concebida e abordada como obra de todos. Deste modo, a tendência do
autoritarismo a desorganizar as identidades coletivas acaba por socavar sua própria
base legitimadora. A promessa de ordem desemboca em uma experiência aguda de
desordem. A mesma ditadura que havia invocado o clamor por “lei e ordem” torna
assim a recolocar a questão da ordem. Falta saber se a democracia conseguirá
assumir a demanda de ordem.

A apropriação autoritária do medo

A retrospectiva histórica é indispensável para entender o autoritarismo no


Cone Sul não como uma irrupção, mas como uma reação em um processo mais
amplo. A violação sistemática dos direitos humanos não deve fazer-nos esquecer
que amplos setores da população receberam senão com entusiasmo, pelo menos
com alívio, a instauração de um regime que prometia lei e ordem. Não se pode
explicar esta aceitação exclusivamente pela suposta cultura autoritária da região.
Trata-se de uma opção calculada; a ditadura aparece como um “mal necessário” ou
“mal menor” frente à incerteza provocada pelo período anterior de mudanças e
mobilizações sociais. Mas então, porque tem gente que continua justificando a

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ditadura apesar da morte e violência que ela provoca? De fato, a ditadura só


aprofunda os medos. Cresce a angústia de perder a identidade, o enraizamento
social, a pertença coletiva. E, sem dúvida, o regime autoritário continua contando
com o apoio social que, sendo minoritário, não se explica pela defesa de privilégios
econômicos. Há outros “benefícios” não tangíveis; concretamente, gozar um
sentimento de segurança. Que tal (a segurança) nos pareça completamente ilusória
só ressalta o potencial político do medo.
O autoritarismo responde ao medo apropriando-se dele. Apropria-se dos
medos existentes ideologizando-os. Ocorre uma resignificação quase teológica do
medo que apaga a referência às ameaças reais, transformando-as em forças
demoníacas: o caos, o comunismo. Se antigamente a Igreja se apropriava do medo
da peste ou das catástrofes, reinterpretando-as sob a forma de um medo ao pecado 8,
hoje o autoritarismo reelabora o medo concreto como o medo do caos, o medo do
comunismo, etc. Quando a sociedade interioriza este “medo refletido” que lhe
devolve o poder, já não é necessário uma lavagem cerebral. O novo autoritarismo
não doutrina nem mobiliza como o fascismo. Sua penetração é subcutânea; basta-
lhe trabalhar o medo. Isto é, demonizar os perigos percebidos de modo tal que
sejam inacessíveis.
O medo à ameaça externa é reinterpretado em um medo do inimigo interno.
Hoje já não é o medo ao pecado, mas o princípio que opera continua sendo o
mesmo: acrescentar ao medo a culpabilidade. É o que caracteriza o Estado
Autoritário: instrumentalizar o medo dos cidadãos induzindo-os a sentir-se
culpados.
Atualizando um pânico ancestral, a ditadura domestica a sociedade,
empurrando-a para um estado infantil. O submetimento auto-infligido acarreta, em
contrapartida, a sacralização do poder como instância redentora. Na medida em que
se reforça o sentimento da impotência, a participação política é substituída pela
esperança de soluções mágicas. Não é preciso excluir os cidadãos do âmbito
político; eles mesmos se auto-marginalizam porque se sentem incompetentes ante a
magnitude dos perigos. O processo social aparece como uma luta de deuses para a
qual resulta completamente irrelevante a própria opinião. Desesperadas, mortas de
medo, as pessoas se entregam a uma instância superior para que decida por elas. É
um ato de fé, um “fideísmo”, que pretende ganhar a salvação renunciado à vontade
própria9.

8
Delumeau, J. La peur en occident, XIV-XVIII siècles. Fayard, Paris, 1978, e sua artigo “Uma pesquisa
historiográfica sobre o medo” no interessante dossiê apresentado em Debates 8, Valência (Espanha), 1984.
9
Uma breve introdução ao fideísmo oferece Bourdieu, Pierre: “Cultur et politiques” em seu livro “Questões de
Sociologia”, Ed. Minuit, Paris, 1981.

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A instrumentalização dos medos é um dos principais dispositivos de


disciplinamento social. Trata-se de uma estratégia de despolitização que não requer
medidas repressivas, salvo para exemplificar a ausência de alternativas. No mais,
basta induzir à desvalorização da capacidade, pessoal e coletiva, influir
efetivamente sobre o contexto público; então só resta refugiar-se no privado com a
esperança (vã) de encontrar na intimidade uma segurança mínima.
O desejo de ordem é tão forte porque o perigo do caos é verossímil. As
pessoas sentem ameaçado o seu “sentido de ordem”, ou seja, o que faz inteligível a
vida em sociedade e o seu lugar nela. Estão atemorizadas pela perda de um “mapa
cognitivo” que lhes permita estruturar espacial e temporalmente suas
possibilidades. Quando tudo parece possível, o perigo do caos torna-se iminente.
Propaga-se o pânico, em sua dupla faceta: a paralisia de toda a vontade, mas
também o fascínio. O poder adquire o esplendor de uma auréola divina. A violência
não é atribuída à ditadura, mas ao caos. Ele é o inimigo que infiltra e subverte a
ordem estabelecida; é o perigo mortal que é preciso derrotar. Aniquilando o caos - a
subversão comunista - defende-se a vida. O ato fideísta mediante o qual as pessoas
aderem à ditadura é, portanto, uma entrega compreensível. As pessoas preferem o
poder autoritário enquanto encarna a vida que luta contra a morte e a derrota. A
ditadura aparece como a salvação10.
Sem entender esta “transubstanciação” da violência ditatorial em um poder
salvífico não se compreende a raiz do regime autoritário. Em geral, sem dúvida,
estas raízes têm sido subvalorizadas ou ignoradas pelas forças democráticas e, em
especial, pelas esquerdas. Por seu racionalismo, tendem a visualizar o medo como
um atraso obscurantista, uma treva que se dissiparia com o advento das luzes. Além
disso, sua ideologia de progresso parece dar tal ênfase às mudanças sociais que a
questão da ordem se dilui como questão prática, hic et nunc. Pois bem, a urgente
transformação de certas condições sociais de vida extremamente injustas não
devem ocultar-nos uma constatação fundamental. A vida em sociedade precisa ser
estruturada, e isto requer instituições com suas regras de jogo, normas sobre o
válido e o proibido, critérios para calcular o normal, o possível, o racional; também
requer sedimentar os acontecimentos em períodos duráveis, delimitar espaços
públicos e privados, individuais e comuns. Especialmente, exige estabelecer limites
sociais, ou seja, produzir diferentes identidades coletivas, organizando as diferentes
experiências e opiniões. Sem tal organização - por tênues que sejam os fios que
separam e ligam as pessoas entre si - o processo de mudança produz perda de
equilíbrio e, definitivamente, torna-se anômico.

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Apoio-me nas reflexões de Franz Hinkelammert, como por exemplo, “As armas ideológicas da morte”, DEI, Costa
Rica, 1977.

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A perda de equilíbrio atemoriza. As pessoas não conseguem apreender uma


realidade cujo ritmo acelerado e diversidade múltipla lhes escapam sem cessar. Já
nada / ninguém está em seu lugar, e o mundo parece fora de controle. Em tal
situação se estende um desejo ansioso de “normalidade”. Inclusive aqueles que
desejam uma transição para a democracia subordinam a mudança à manutenção de
certa normalidade, por precária e ilusória que seja. As pessoas preferem não saber
nada de nada, pois toda informação incrementa a imprevisibilidade, por fim a
incerteza. Ocorre uma espécie de “impermeabilização” mediante a qual as pessoas
isolam sua vida interior, protegendo-a do mundo externo.
Já assinalei o recuo ao privado, buscando âmbitos de familiaridade que
permitam assegurar-se de “si mesmos”. Revaloriza-se a vida cotidiana. Talvez
justamente porque foi tão alterado pelo regime autoritário, as atividades cotidianas
adquirem uma resignificação inusitada. Restabelecer a normalidade é restabelecer
rotinas. E a vida cotidiana é precisamente aquela estrada construída sobre um
entremeado de normas e hábitos, externos e internalizados, visíveis e invisíveis,
que fazem previsível o decurso do dia. A rotina é indispensável; quem se levantaria
de manhã se não soubesse, mais ou menos, o que cabe esperar. Porém esta espera, o
seu caráter repetitivo, acaba enclausurando-se em um “presente contínuo”. Como
disse Humberto Giannini:
“espera, porém sem sair ao encontro do esperado. E é assim
como a rotina acaba por fazer inofensivos seus próprios
projetos, por medo de sair do caminho. ‘Atividades pendentes’
os têm chamado à psicologia. Projetos parasitários de um
presente contínuo. Assim, o rotineiro, que nos mantém graças
ao imprevistos evitados, em uma identidade não questionada,
também nos mantém na linha de fins submersos, já não
separáveis da visão do caminho, indiscerníveis em último
termo do próprio caminho. Em tal visão o futuro não aparece
nem como favorável nem como ameaçador: parasita do
presente, chega contínua e mansamente como norma e
normalidade. E assim também o passado: como o que parece
habitual, irremediavelmente.”11
A citação decreve bem como a rotina - defesa vital em períodos de
instabilidade - chega a ser asfixiante. A preocupação por sobreviver impede de
viver. Para viver, sair ao encontro do esperado, é preciso expor-se. E nesta
perspectiva, Giannini enfatiza outro aspecto da vida cotidiana: a rua. A rua como
símbolo do imprevisível, de ficar exposto a todas as ameaças (“ficar na rua”), mas

11
Giannini, H.: “Hacia una arqueología de la experiencia” em Revista de Filosofía, 23-24, Universidade do Chile,
Santiago, 1984, pág.: 54.

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também símbolo do aberto, do possível. Em que medida as ruas de nossas cidades


oferecem lugar a novas possibilidades? Abrem-nos possibilidades de sonhar e
experimentar, de inovar e mudar de caminho, de explorar novas pistas?
O âmbito da vida cotidiana não pode ser considerado por uma visão
tradicional da política. Ao contrário vem a ser um aspecto indispensável em nosso
esforço por repensar a democracia. A própria ditadura nos ensinou como os hábitos
e rotinas diários condicionam o sentido comum. Em boa medida, as pessoas
adquirem mediante estas experiências diárias aquele conhecimento prático que guia
suas condutas sociais. Neste contexto imediato aprende o medo e a confiança, o
egoísmo e a solidariedade, ou seja, a significação social de suas condições de vida.
Lamentavelmente, muitas vezes o debate sobre a democracia não leva em conta
este “mundo de vida”. Então, a distância (inevitável) entre o discurso político e as
experiências vitais provoca tédio e, acima de tudo, um crescente desinteresse pela
democracia.
Em resumo, não há uma real democratização, creio eu, se não nos
encarregamos do medo. Bem entendido, tampouco a democracia eliminará o medo.
E mais: a idéia de uma sociedade sem medo há de ser entendida como uma utopia
impossível. O que sim parece possível é diminuir os níveis de suscetibilidade com
relação a situações ambíguas e ameaçadoras e modificar os critérios de percepção.
Concretamente, penso na possibilidade de apaziguar nossos temores frente ao
outro, ser estranho e diferente, e de assumir a incerteza como condição da liberdade
do outro. Porque a democracia significa mais do que somente tolerância. Significa
reconhecer o outro como partícipe na produção de um futuro comum. Precisamente
um processo democrático, diferente de um regime autoritário, nos permite (nos
exige) aprender que o futuro é uma elaboração intersubjetiva e que, portanto, a
alteridade do outro é a de um alter ego. Visto assim, a liberdade do outro, sua
incalculabilidade, deixa de ser uma ameaça à própria identidade; é a condição de
seu desdobramento. É por meio do outro e junto com ele que determinamos o
marco do possível: que sociedade queremos e podemos fazer.
A proposta pode provocar a seguinte objeção: por que responsabilizar a
política pelo medo dos cidadãos? Não estaremos contribuindo para uma
“sobrecarga” do sistema político e, portanto, para a ingovernabilidade da
democracia?
A objeção é grave e difícil de responder. Na realidade, por que a política
haveria encarregar-se do medo? Com igual razão poder-se-ia exigir que ofereça
sentido à morte e à dor. Não é uma proposta que contradiz a postulada
secularização da política, tornando a identificar a política com a salvação da alma?
Estar-se ia apagando a distinção entre política e sentimentos (entre autoridade e
verdade, poder e amor) que havia introduzido a política moderna, ampliando a
esfera da liberdade pessoal. Por outro lado, sem dúvida, como desligar-se do medo

9
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e dos desejos quando eles são precisamente o olhar com que traçamos a imagem de
nossa cidade?
A reflexão de um tema tão existencial como o medo tem-nos conduzido ao
centro da teoria democrática: a relação entre a institucionalidade política e as
experiências sociais. A democracia supõe uma formalização das relações sociais. O
peso emocional e afetivo sobrecarregaria a interação, tornando insuportável a
presença do outro se não colocamos certa distância entre nós. Um modo de
estabelecer distância são os procedimentos formais. Eles neutralizam a dimensão
subjetiva; a validade de um voto ou de uma decisão é vinculante
independentemente das considerações que a motivaram. Porém temos extremado o
campo da racionalidade formal a ponto de identificar a política racional com o
cálculo de interesses; para alguns, a democracia se reduz a um método de calcular
custos e benefícios. Estas concepções mostram sua insuficiência, sem dúvida, assim
que pretendamos - ao estilo do neoliberalismo - alcançar um “mercado político”
auto-regulado à margem dos valores, das motivações e dos sentimentos das
populações. A própria ditadura, apesar de seu discurso tecnocrático, não prescinde
da dimensão subjetiva. Pelo contrário, se apóia justamente em sua
instrumentalização. Na realidade, o avanço da racionalidade formal (a progressiva
burocratização) nunca conseguiu suprimir da política o mundo das paixões. Só que
- uma vez excluída a subjetividade como assunto privado - sua presença nos assusta
como uma irrupção de irracionalidade. A subjetividade que expulsamos retorna
como fantasma. Concluindo, se a democracia não dá lugar ao medo ele se impõe à
nossa revelia. Sucumbimos então ao pior dos medos: o medo de imaginar outras
cidades possíveis.

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