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2.

Todas as vezes que andei


no grande vaticano erguido
sobre o baldo,
eu lembrei dela,
Rita Lee antes dos 20 anos
tocando harpa nos Mutantes,
como um sotaque distinto, antigo,
uma litania,
uma voz que se desata dos mangues
da noite geral

3.

97
O céu da ribeira
às 4am pode ser
para nós
a procissão de luzes das catedrais portuguesas
a nota final de uma música esquecida
uma pergunta escrita num bilhete e perdida
no alvorecer do viaduto do baldo,
uma sorte de vidraças quebradas com a via crúcis estampada
uma ligação perdida, uma abóbada celeste,
um massacre simultâneo de cem bois (que é o mesmo que a
palavra “hecatombe”)
carpas nadando no rio morto, o cais solene e vário espreitando
a manhã que descerá em chumbo e lava

e nós, tantas vezes bêbados


tantas vezes perdidos
pisamos na terra prometida
pois é dela o reino dos
sonâmbulos
4.

O Brasil é o país mais deprimido da América Latina


é por isso que aqui jamais prosperou o cinema de ação
o cigarro Pink elephant
as bromélias amarelas
o tango e a luta corporal e
talvez também seja por isso
que as bailarinas morrem tão cedo
e talvez seja por isso
que a poesia nunca sobe
que as veredas se bifurcam
por isso que fumamos crack
na sacada de sua casa
às 5 horas da manhã,
98 minha cara musa sem nome

[vez por outra vislumbro


a rua dos náufragos,
as motos passando em réstias
e o corpo ingênuo da musa sem nome
levitando sobre os prédios mortos
da cidade]

e é por isso que imagino


que as estátuas e as crianças
devem odiar morar no país
mais depressivo da américa latina
desde que o samba cessou
e o sonho da juventude é a marcha nupcial sob as pedras
e deve ser por isso que o radiohead jamais virá
os animais silvestres as máscaras de carnaval
os nossos olhos cegos
os fios de cetim/ferro retorcido
que compõem o corpo
da musa sem nome, mais uma vez

6.

invoco meus dentes


e minhas mãos
de metal
para que toquem
os pássaros de neblina
ou as flores de sargaço
nos seios da iemanjá inconstelada

assumo os ventos e as diásporas

para que os aviões passem por mim


e repousem na gravidade de aço 99
que é onde esperarei
você ou a bomba-h ou o último molotov
em silêncio
inaugurado pela fumaça do meu
cigarro camel
na cidade estrangeira

7.

Eu vou construir uma nave


espacial
dessas que flutuam no vácuo
e esbarram em estrelas
para enviar você,
mandrágora da av. Tavares de lira
e seu séquito de damas invisíveis
travestis de pernas mecânicas
e seu séquito de damas invisíveis
lavadeiras do rio potengi com mãos de ouro & mirra
e sob teu crânio,
fustigado pela noite vazia da rua Chile,
acenderei velas para a pomba-gira do absoluto

mais uma vez


é verão na cidade do natal
e o tédio é nossa guerra
nossa bandeira estendida contra o ventre do tempo
mudo,
apocalipse do céu nublado

9.

não rimarei
não nadarei no absoluto
não lerei as cartas de Newton Navarro
100 não olharei o potengi sob o abismo
não vingarei na cidade objeto
cidade qualquer coisa
palimpsesto
medusa
muralha de ossos
naufragada, mil vezes destruída e reconstruída
e atravessada por fuzilados e fuzilamentos
não voltarei

10.

ao caminhar na noturna avenida


afonso pena
entre manequins nas lojas fechadas
e fumaça de crack que despencava
de céu nenhum
senti o sol
atravessar as ruas do pós chuva
como cruel ironia
atravessar as ruas do pós chuva
como cruel ironia
a erguer-se contra mim

nada posso fazer


além de parar e morrer lentamente
sob o sol de satã
e dos tigres do capitalismo
que avançam contra nós
como se fosse uma marcha
ou uma invasão
lodo, reficção

o sol não é deus e nem é


uma víbora que engole perdizes;
espraiado em todas as ruas do mundo
onde passam os bêbados e os doentes
as crianças descalças e os librianos 101
o sol toca clarinetes
contra a lua dos pântanos
a lua da ribeira das 6 horas da manhã
os ônibus lotados que atravessam o abismo
meus pés contra o chão do mundo
e o mundo outra vez voltando sozinho
contra si mesmo e contra nós,
praticando o sartorialismo febril ou a diáspora
ou a depressão no pior país da américa latina

a poesia no claustro
nem sobe e nem desce
vai, apenas
folha joice

poema pra você me fuder

se chegas mansinho
eu mio e engatinho
só toma cuidado
a gata não mia
à toa no cio

102 ***

procura-se um amor
que a lambida felina do vento cruze
com minhas chinelas de dedo encardidas.
procura-se uma amor
que como um edifício
estranho na rua a sorrir
procura-se um amor
que seja de si e queira
viajar até mim
procura-se um amor
que me dê cãibras nas
pernas e molhe o colchão
procura-se um amor
que a companhia em
me estar seja voar
procura-se uma amor
repartido, múltiplo
como orgasmo
procura-se um amor
que distraído ou espontâneo vamos nos achar
procura-se um amor
duas gingas e tapioca
procura-se um amor
que recíprocos de fraqueza na guerra vamos nos abraçar
procura-se um amor
que venha na linguística
do verso livre
procura-se um amor
que chegue, talvez, em tempo de rugas ou cabelos brancos,
conhecedor que ao tempo o charme.
procura-se um amor
como quem nada procura

*** 103

pós bruxa

ser for pra ser profética


serei,
profana,
como as bruxas
que foram queimadas
na inquisição,
descabida de moralidades
fumaçarei sufoco
em teus pulmões.

***
a preencher me a desmedida do corpo ao copo
eu apreendi a contemplar os dias que ao mundo posso
gritar e
assumo: SOU FRACA
de uma leveza rarefeita
soufraca
egrito
MEDEIXEM
eu desvario em encruzilhada
MEBASTO

***

anestesia é quando grito minha saudade pra dentro.


arame farpado essas algas silenciosas que se estalam
no meu peito
104 no rádio jim frequenciava people are strange
há uma doçura de tablete em ser sem encaixe
é como picada intravenosa
e “puro açúcar branco blue”.

***

a esquizofrenia

seu perfume de acarajé invadindo meus ouvidos


silenciosas madrugadas
as garrafas prestes a ficarem secas
e do outro lado a cidade uivava
como se fosse o centro e seus prédios
apenas em pé pra manter a estrutura estática da poesia
nunca adormeci entre quereres bem aceitos
interrompida por falhas seria
a minha língua louca de cadela de rua
mas não sei mijar em postes e assobio um fragmento baiano
ah, gostaria de te levar pra conhecer
um pouco da minha cabeça mesmo
havendo chances de te prenderes em meus cachos
acostumei a esperar a lua cheia
enquanto menstruações correm e faço poemas
como se fosse piva pederastando numa esquina qualquer
pra me manter social eu escorrego meu cérebro
entre ressacas e asmas
eu sou todos elas aqui mas só tenho duas pernas
tropeçar é o passo mais espontâneo

***

capricorniana

105
felina como sou
se quero carinho
espera, primeiro
eu passar
entre tuas pernas.
acaso e
ao contrário,
fujo pra cima de
qualquer muro.

***

anarquia de um corpo

nesse corpo
livre substituo
o concreto
dos órgãos
por nome
de mulheres
mas o
coração
vou pinxar
com meu
próprio nome,
só, meu

falho.

***

seria fácil se só chorasse


por mim, todavia
o mundo todo fudido
106 e não faço desuso dos olhos
pra calar, choro como quem
assobia a terceira pessoa do plural
choro eu e elas.

***

meu ex amor tem cheiro


de larica de esquina
aquele hot dog
bauru com alface
febre virose de verão
hipocondríaca vã
meu ex amor que acenei despedida
foi embora mas barulhenta
deixou aquele passo:
dois pra lá dois pra cá
meu ex amor
& eu
em hemisférios distantes
quando anoitece e ninguém
nus vê
talvez
nos sorriamos

***

107
jota mombaça

pós-versos por uma escrita pós-gênero

Eu deveria começar descrevendo a mobília, as paredes


brancas, a malha dulcíssima que acoberta os dias; ou
no máximo adivinhar o céu, os pássaros eventuais e
eventualmente um fio que esganasse num choque um
filão do cosmos. Há um poema antes do poema, mas
o segundo poema está cansado de ser subordinado
ao primeiro. Por isso esta literatura vê diásporas:
debandadas recorrentes de moléculas desconectadas;
descaminhos amontoando-se como barracos na Favela
Mor Gouveia. Supere-se o suporte! o que conta é o
108 nervo, o peitopulso! um poema é um corpo. Ou não é.

***

monólogo a dois

sou o mais miserável de nós dois


mas tenho você
por isso não deixe que os automóveis te atropelem
na volta de casa

és o mais miserável de nós dois


e não me tens
mas não deixe que os automóveis te atropelem
na volta de casa

***
artistas do mercado de trabalho, uni-vos !
(24/9/2011)

dai-vos as mãos
agora.

depois silêncio nas antessalas,


passos em falso,
minas no quintal de casa –
acirradas competições para eleger a obra
mais bem paga.

dai-vos as mãos
depressa.

antes de desafinar a ópera,


narinas de platina, 109
veias desertas na cidade –
enormes zumbis de concreto
velho.

dai-vos as mãos
sem medo.

e fechem os olhos,
e rasguem a língua.
com a benção dos padres,
se encham de publicidade (!)
da felicidade
na publicidade.

***

girassóis para van gogh

(para jota medeiros)


minha espingarda é de abater elefantes,
mas tenho preás para janta; o zunido diuturno das moscas,
um prato de sopa requentada e nenhum pão.

***

o pai

Tétrico,
Triste,
carrancudo.
Fúnebre,
medonho,
horrível.

110 ***

com carinho (28/1/2014)

onde está você, cachorro magro?

terá deslizado das prateleiras, escritor mal vendido,


soterrado sem vida no amontoado de livros de uma loja
de departamentos,
onde outrora um outro fixou olhares num retrato de Anna
Akhmátova?

ficou preso às elipses, encurralado nos armários,


triste e infame, passando da meia-idade,
com os olhos vidrados, numa sala secreta do prédio do
governo?

resíduo de cidade, por onde você caminha agora?

de um confinamento a outro, miserável mas sadio, é verdade


que anda gordo,
comendo os rabos mais fáceis, e se perguntando se teria
sido grande
caso tivesse ousado escrever as coisas caladas em respeito ao pai?

pergunte ao pó, cachorro magro, da tua geração em frangalhos,


conte os cacos e as condecorações, faça a matemática.

quanto mais esperaremos para que tua memória, teus livros,


tuas aspirações de grandeza, tua carne cinza,
sequer se deduzam da geografia arruinada da terra natal?

ou você também procurará bumbas-meu-boi na night zombie da


metrópole?
e forjará folclores, enquanto eu chupo tuas bolas e outros escuros?

***
111

por telefone, jota mombaça comunicou que

Jarbas Martins,
você não percebeu minh’art-pop?
minha linguagem Ti Ti Ti total…
gestada na barriga da miséria…

A Classe Média, Chernobyl e todos os não-lugares


por que meu vago olhar de novela teve de passar.
por que não o Grande Irmão caçando Winston?
assim eu qual BBB

Polêmico, Prolífico, Patético


merda no ventilador
e o leite mau na cara dos caretas.

***
auschiwitz quer dizer alagadiço

remove teu comboio, salu,


de dois ou três escravos nordestinos.

que eu voume embora para sá viana.

em 1992 eu era um saco brilhante de lixo no jardim gramacho,


der Muselmann sob o sol de satã.

faça uma topografia do nosso momento über crack!


obture minha paisagem desolada. confine-a.

a canção inexprimível da gulag, o desterro do baldo,


as palavras no sumidouro, uma literatura de diásporas,

mas tu, elena… “o teu canto mais parece um silêncio”.


112
***

óperas silenciosas, tímpanos estilhaçados

(para nina rizzi)

– o viaduto vai silenciar o viaduto.

– toma a barcarola, a nau dos loucos.

não fossem os urubus a nos sobrevoar, recostava minha cabeça


turbulenta no teu ombro selvagem e chorava o choro in
dócil doutro poema em fuga.

becos, avenidas estreitas, esgotos, gramachos,


sucessão de polaroides – e a hiroshima onde meus pés.

minha geografia sentimental é a do desterro.


baldo, dez de maio.

***

carnaval em chernobyl

Por Lobo Errático

falves silvas insolenes


atravessam, diáfanos
a luz deficiente que nos banha as casas
e ruínas,
enquanto eu fumava pedra
na manhã rarefeita

quem te assassinou, cidade, 113


desde á paixão-mulher de moacy?
e por que você sobreviveu?

quem te assassinou, cidade,


desde a saúdade de civone?
e pra que você sobreviveu?

***

fotografia

Uma praia onde desovar cadáveres. E aos domingos as famílias.

***
cantinela nuclear

Chernobyl sob os meus tênis


avante, manco!
sair vamos para catar abortos

tudo esgotado

dos esgotos
junto a lama da boca do lobo
escorrem obus e poetas
empurrados pela maré dos canos

Água não-potável de beber


, carcará
114
debaixo do céu de Estamira
nuvem de poeira no asfalto
Chernobyl sob os meus tênis
Chove ácido São Paulo
mergulhar Petróleo em Oceano Índico

meu coração:
iminente bomba
anti-rosa
ao Império!

Fukushima, mon amour

***
gessyka santos

O menino do sertão
De chão batido, retalhado pelo facão
Sonha em ser pescador
De nuvem.
Vê o céu sem beira, azul mermim o açude que sua avó
Neide tanto lhe enfeita
E pensa que as águas arribaram, mermo, foi pro céu e
quem sabe pescando, ele possa furar o peito da nuvem e
dela correr todo açude
Fazendo com que as rachaduras que pisa e as do rosto de 115
vó Neide
se inundem.

***

inútil lhe escrever qualquer palavra que seja


Tal qual um Betta azul num aquário tentando sobreviver às
garras dum gato preto
Que já sente o gosto do pouco sangue contido em seu
corpo
Lembra que naquela noite falamos sobre espinhos
Que estavam em minhas costas e queu não conseguia
retirar?
Você cuidadosamente os arrancou
Palavra por palavra
E no fim seu peito me aqueceu como nunca
[repousei]
Tolo é o Betta que pensa ter encontrado quietude
Em sua casa de vidro mas quando menos espera
Passa pelos dentes afiados
Pelos restos de comida
e é digerido no estômago
Pintando de azul
O interior do bichano

***

você me diz que domingos são tediosos


e que funcionam como máquinas do tempo
que te levam a recordações indesejadas [às vezes]
fica inquieto ou quieto demais
e sua constante falta de atenção
me tira o ritmo
me organizo em ideias que são vazias
planejo coisas que logo serão esquecidas
116 me adapto ao desejo que você tem de ser invisível
todo domingo
e todo final do final da semana tento fazer
com que esse mistério do tempo pare
pra que o hoje-real-palpável seja mais forte do que
o peso nostálgico que esse inicio de fim de noite traz
pra que domingos sejam menos cinzas
e transforme-os em segundas terças ou quintas
só pra que pesem menos sobre teu corpo
[ que se curva toda vez]
só pra que meus dedos caminhem por suas costas
definindo tuas constelações
pra criar novos planetas nos nós dos teus dedos
ver no canto da sua boca a curva do mundo
e esquecermos enfim
o dia da semana.

***
As turbinas rasgam o céu
Levando seus olhos de sol escaldante
Transformando os meus em garoa
Fina
Fria
Condensando o ar
Deixando rastro dos km que separam
Natal de sp
E eu espero
[Com as cortinas entre abertas]
Sentir os teus primeiros raios
Queimarem novamente minha pele.

***

Minhas pernas procuram pelas tuas


Debaixo do lençol fino 117
Que nos cobre cuidadosamente
Enquanto minhas mãos
Religiosamente
Caminham por entre os pelos do teu peito
É impossível pensar em qualquer coisa
quando o cheiro forte do teu corpo
Invade as narinas e
Me atrai até teus lábios carnudos
Encho a boca
Me farto
Me lambuzo
Lambo as pontas dos dedos a cada punhado teu
[Insaciávelmente]
Até que teu sabor doce/salgado
Esteja em mim fixado.

***
Minhas mãos têm
Urgência
De colher do pé
O teu fruto
E de pensar na
Explosão do sabor no palato
Salivo
Como quem está
Em jejum a meses
Como quem há tempos
Não sente na ponta dos dedos
A aspereza de teu sumo
E se contorce de desejo
E come desesperadamente
Sem regras
Sem etiqueta
Como um bicho
118 Estraçalhando sua presa.

***

Meu corpo carne


À beira cama
Tempera teu mascar
Entre um goto e outro
Quando há de me engolir?

***

feito porra
um fio de luz me bate a cara
desperto
com olhos semicerrados vejo a hora
[caralho,já são sete horas!]
noite passada eu só consegui dormir às cinco
pensando na falta de dinheiro
e no macarrão velho que jantei no dia anterior
puxo o lençol que ainda tem o cheiro de suor daquele escroto
o que fudeu minha vida.
[preciso lavar essa porra]
foda é que depois de tanta merda só quero dormir mais um
pouco
esquecer as últimas bombas que foram jogadas na minha vida.
[dormir sempre é a melhor saída]
o ventilador espalha ainda mais o corpo dele na cara
sinto falta
minhas mãos descem o corpo tentando refazer o caminho
qu’ele fizera da última vez
[peitos-barriga-coxas-virilha...]
com três dedos estimulo o clitóris
recordo da língua macia fazendo sempre os movimentos certos
que meu corpo exige. 119
o dedo indicador me penetra, numa tentativa desesperada de
recobrar a lembrança do seu pau-médio entrando
centímetro por centímetro em mim.
o suor aumenta
a mente brinca com as lembranças
os dedos acompanham
[de-quatro-de-costas-de-lado-em-cima-em-baixo-chupando...]
o corpo contorce e enquanto grito o nome dele
GOZO!
[pernas-trêmulas-boca-seca-cheiro-de-corpo-espalhado]
meus músculos relaxam
pego o lençol uma outra vez e fecho os olhos
[esse escroto vai sempre fuder minha vida - e a boceta]
adormeço.

***
Caminho com o mundo entre as pernas
que vê por debaixo da saia meu sexo
e aplaude e saúda
o nascimento de mais um

o mesmo mundo
que abre o guarda-chuva
quando de mim chove sangue
e pelos
e meus mais íntimos desejos

caminho com o mundo rompendo


os dias e noites
noites e dias
dias e noites
noites e dias
até me deixar exausta
120
e ainda assim continuo
enquanto em meu corpo existe vida
enquanto meus olhos veem, minimamente, onde piso
caminho com um passado de sangue nas costas,
com os ecos de outras em meu peito
com flores murchas sobre o chão escarlate de oitos de
março, de agosto, setembro

caminho com unhas e dentes


para ser mais que mãe esposa filha
caminho por ser mulher.

***

Ele me disse uma vez que tempo é relativo


Que caminho sobre o passado presente e futuro
enquanto tomamos sorvete de creme às 13:20 de seu
horário de almoço
talvez seja por isso que a veia do meu braço esquerdo salta
pois toda vez que o tempo me pressiona
como lâminas de vidro
o passado me empurra as costelas
o presente comprime os órgãos e o
futuro estraçalha minha caixa torácica

- eu só quero tomar meu sorvete tranquilamente,


só quero respirar tranquilamente

então vemos jogos brinquedos armas


encontramos amigos que partilham dos mesmos medos e
nos abraçamos com os olhos
mesmo perdidos em algum lugar vazio do mundo
eu penso em pílulas e tenho medo
penso em medo e me encolho
ele me diz: confia 121
eu tomo
enquanto minha mente diz
pare
enquanto meu corpo
para
na espera de que a gente tome sorvete
e que o agora seja só o presente.
ayrton alves badriyyah

me obrigaram a engolir um cavalo de aço


eu talhado na madeira podre
sustentáculo das palafitas margeantes deste rio
que rasga o meu corpo de forma precária
rio escoando por caminhos de cupins
de homens que trocam a sua arcada dentária
por um punhado de algemas na língua
e me despertam mais uma vez nesta tarde mal-dormida
com esse toque que seria gostoso
se não fosse frieza metálica

eu engoliria o cavalo mesmo que ele fosse de pano


122 mesmo que não fosse cavalo
eu trocaria a minha língua por uma faca
que despisse esses homens
dos seus uniformes de superfícies
homens que molham meu ânus
com uma sede de 500 mil cactos

minha cabeleira farta é impregnada


por um cheiro de lençol que espera
minha cama é um leito seco de um rio
preenchido com o sabor mental do gozo
desses homens que não puderam amar outros homens
e transformaram suas testas e seus lábios
em mais um pedaço de terra seca

***
***

é você menino da pele dourada


insistindo em lamber meus espaços de caramelo
em mordiscar minha-língua-lábios-açucarados
entre o céu e a terra há qualquer colher de chá
que nos serve de barco sem rumo nesse bálsamo
à deriva nos teus dedos de violão, menino
soo qualquer coisa entre a encenação e a descontinuidade
escalo tua voz para despencar no teu cabelo de mola
levando nossa língua a milperfurações celestes
desalinho da insistência de escorrer
por esta inexplicação luzente
essa ferida que não para
de lapidar o meu olhar sem fundo
devolvendo tudo em carcaças
esta dúvida do nosso poder de imantar o mundo
sobre os travesseiros de manhãs 123
deixando um rastro de saliva com os nossos braços

***

El Greco me escreve
diz que posso tirar os alfinetes da ásia
e atravessar os furinhos no mapa
ao ponto de ver um bicho da seda tecer um rio
uma margem que por trás das minhas unhas
é o traço que renova minhas pálpebras
aqui é a ásia e me comovo como se fosse abraçado por rochedos
como se finalmente achasse um deus que me acariciasse no
fim da chuva
e atravessasse a rua para te perder do outro lado
como se estivesse no rio em sampa ou em floripa
e não me vissem num sinal cuspindo o fogo que antecede a
mágica
ou como se de repente tudo isso fosse costurado aqui ao lado
e uma gueixa finalmente lesse meu futuro no fundo de uma xícara
hoje é o dia em que converso com o silêncio
que encolho e vejo o céu sendo sustentado por joelhos
o dia em que me sirvo dos cadarços para descer a janela
ou lars von trier me amarra nos galhos de alguma mãe protetora
ou pasolini estraçalha meu corpo apara meu sangue e garante
a próxima colheita
viajo no lombo de uns morcegos imaginários
parece que o retrato da família não acumula poeira
mas acumula e por isso
é hora de abrir meu peito para estes trens passarem
dançando o mal-me-quer-bem-me-quer com meus brônquios
e vejo a caricatura da ásia se fazendo na lua
uma pena são jorge matar todos os dragões

124
***

bataille

o tempo passa
e eu me masturbo para além do mar

***

P/ Victor H

amo demais o meu inferno


para querer que o visitem
quando você está comigo
sempre diz que é dia
e o sol de metal nas nossas costas
queima como gelo
mas é sempre noite, amigo
e é sempre à noite que os mistérios
usam escudos
goze com as curiosidades que não se desfizeram
não quero que o meu vir a ser
se crave nas suas mãos e nos seus pés
e lhe envolva numa estrutura tão exposta
me perdoe
se a crosta que o cobre
se rompe com a minha respiração
se me imponho como um colar de bocas mudas
me perdoe por não poder me refazer em dúbios
e me perdoe mais ainda
por fazer com que tudo
aumente a musculatura desse incêndio

125
***

pássaros a desvoar a noite


é o que somos
especialistas em construir
um vulcão orvalhado
ao redor da nossa caixa torácica
como nova roupagem
para a metralhadora em estado de graça
que sublima nosso estado de sítio
sim é por você é por nós é por mim
e sobretudo por mim
que rastejo entre os escombros
com a última palavra bem presa
aos dentes
e talvez quando tudo acabar
possam com ela
reconstruir uma ponte
ou talvez os meus ossos
sim é por você é por nós
é por mim
e sobretudo por mim
que recebo os cortes da pressa
com notas de masoquismo
nasci para passar adiante
o último segundo desta bomba

***

P/ Lu Hiroshi

Você me escreve em meio ao plástico chinês


estourando a bolha
126 eclodindo do seu cômodo único
de sumpaulo que é a terra onde os poetas se lavam
com sabonete e pólvora
que é a terra onde meus olhos ainda não podem vagar vulgares
e meus olhos se queimam nesse escarcéu solar
que é o teu silêncio no centro do mundo
no centro de mim
e o teu silêncio é um gato
se adaptando às minhas entranhas
um dia o gato tomará sua forma
e você eclodirá de mim
enquanto eu estiver atravessando uma faixa de pedestres
no último instante

***

as orquestras escondidas nas pegadas são só para os meus


ouvidos
desfiadores das salivas convulsivas deste tempo
e de todas as bombas prestes a explodir

como uma mulher da Pérsia


transformo os fios do horror em recomeço
em tapetes com paisagens desconhecidas
para substituir a visão ultrapassada das janelas
desenho o globo terrestre no chão da sala
e dou várias voltas ao mundo
me esfarelo para pagar a dívida:
me deixarei um pouco onde meus pés tocarem

escrevo palavras ocas que me prendem


só pelo prazer de poder quebrá-las
como se extinguisse a eternidade das pedras
em pequenos blocos que furam o horizonte
em casas que não me pertencem
127
transcendo para sobreviver nos outros
e não tenho medo
de me matar um pouco para permanecer vivo
de prolongar o corte a viagem
de falhar
por ter a coragem de me fazer aos pedaços

***

quando eu ficava triste


porque o barulho do possante
dessalinizava lágrimas – dizia
olhando pelo retrovisor
as pilhas de sal e tristeza
que ficavam pelo caminho
e quando voltávamos
eu me sentava no paraíso
depois dele ter plantado algodão
nos bancos daquele carro
aquele que poderia ser
o automóvel verde do ginsberg
mas era branco
às vezes máquina do tempo
o fusca 57 do meu avô

***

Uma parede invisível. O tempo. Um senhor manco a colar


cartazes nesse muro. Eu me desgrudando a amassar-me
em busca de um chão. Não há chão. Plena queda. Bem
que vovó falava da fragilidade do calendário. Os meses
128 destacados facilmente. Não, não serão os meses que irão
aparar-me ou me oferecer chão. Abra a boca, Yrto, e diga
Ahhhh. Mar, vó, tá bom? Não estirei-lhe a língua para não
cobrir a possibilidade de você pescar as palavras, mesmo
sabendo da esterilidade da minha saliva. Estou caindo, vó.
Resgato os seus ossos de um arquivo inexistente. Você se
dissolvendo à medida que eu me dissolvo, à medida que
caio. Que péssimo o arquivista-mor que nos circunda. Que
deixa tudo terminar dentro da terra. Dentro da memória.
Como você foi destacada facilmente. Como nós somos
destacados facilmente. Agora vários peixes nadam no
esboço das suas órbitas consumidas. Agora há alguém a en-
cher as redes com crueldade. E é por isso que afundamos
na superfície das águas. Engarrafados em misericórdia.

***
victor h azevedo

II.

quanto que tá o
o suco de caju?
quanto que tá (então) o
o pastel de forno?
quanto (então) que tá o
o café puro?
(então) quanto que tá o
o bombom?

quanto que tá o 129
o picolé de tutti-frutti (então)?
quanto que tá o
o refrigerante de (então) laranja?
quanto que tá o
o (então) sanduíche natural?
quanto que
que tá o
o preço?
quanto que tá
o preço do (então)
(então)
tá o
(então)
o
(café puro) pastel de forno?
(bombom) picolé de tutti-frutti?
(suco de caju) sanduíche natural?
[refrigerante de laranja (pastel de forno)] bombom?
[picolé de tutti-frutti (sorvete de pistache)] café puro?
[bolo de fubá (cigarro)] suco de caju?
{antídoto [para os dias (chuvosos)]} pastel de caju?
{sonolência [furta- (cor)]} picolé de café?
{pedagogia [das (pedras)]} sanduíche puro?
bombom de café de picolé de caju de tutti-frutti puro de
suco puro de refrigerante puro puro caju puro puro de cor
de forno de cor de cigarro de café de cigarro de caju de
pistache de sorvete de pedra de pedras de picolé de pastel
de tutti-frutti de caju de fubá de sorvete de cigarro de picolé
de cor de furta-cor de sanduíche de bombom de antídoto de
para de para de para os dias pedras dias-pedras dias de puro
suco de fubá de refrigerante de sanduíche de tutti-frutti de
furta-frutti de tutti-cor de pastel de café de caju de picolé de
cigarro de antídoto de forno de caju de antídoto de cigarro
de forno de pedra de pedras de sorvete de bombom de
pedagogia de tutti-frutti de pastel de laranja de sonolência
130 de fubá de pastel de cigarro de pedagogia de refrigerante de
picolé de bolo de chuva de antídoto de café de sonolência
de bolo de sonolência de café de antídoto de furta-forno
de furta-dias de furta-cigarro de furta-furta-cor de dias de
pastel de que sorvete de que pedagogia de que pedra de que
pedras de que dias de que chuvosos de que picolé de que
refrigerante de que laranja de que de que de que cigarro de
que pistache de que café de que suco de que tutti-frutti de
que bombom de que caju de que forno de que cor de que
furta de que puro de que sonolência de que antdoto de que

(então)

o preço
=
os dias chuvosos
de refrigerante
=
pastel de pedra
sanduíche de laranja
=
(bolo furta-
cor + suco de
café) ÷ picolé de
antídoto
=
cigarro
de tutti-frutti × [bombom de
pedagogia ( forno
de sonolência²)³]
=
ca-
ju
+ fu-
bá ×
puro
÷ natu-
ral 131
=

(então)

***

yahtzee

Jogo Yahtzee enquanto espero você terminar


De explanar seus conselhos amorosos. Pergunto:
Você acha mesmo que tudo que escrevo é sobre
Amor? — Acho — Mas eu juro pra ti que nem perfume
Eu tenho, me encontro com as pessoas, os objetos,
Os lugares sem deixar cheiro por lá, juro pra ti que
Tento ser esse animal inodoro — Mas tu tem um perfume.
Tenho? — Tem — E eu cheiro a quê? — Tu tem esse cheiro
De jacarandá, suor, persiana — É? — É.

***
132
***

torquemada

Descobri há semanas,
pesquisando o preço a se pagar por uma serenata
e sobre a constelação de nevos na minha epiderme,
que o colégio que eu tanto temia estudar
tem o nome do primeiro poeta
a renunciar sua eternidade numa cadeira,
hoje provavelmente já carcomida
por cupins e topadas de pés desvairados.

E desde de então eu venho buscando


em dúzias de livros já sepultados,
— alguns com dedicatórias furtadas
outros com tiques nervosos entre cada página — 133
imagens que não sejam fáceis para o desjejum.
Procuro o retalho de um livro de mil novecentos
e uns quebrados que me deixe feliz
por ter nascido aqui nesse chão imaturo
e não em Minas Gerais ou Taquaritinga.

Tudo que descubro, porém, é esta retrato desbotado


de ombros nebulosos e bigode meticulosamente aparado.
E uma dúzia de relâmpagos pouco ortodoxos
enfartando as senhoras e senhores
de ceroulas plúmbeas e enferrujadas.

Desencontro esse também o de escrever


bilhetes suicidas toda noite de segunda-feira
mas deixá-los engavetados confortavelmente
sem dar nenhum beijo de despedida
com estes lábios que tem um je ne sais quoi.

***
11|12

(após ler alfonsina brión)

Meu avô geraldo morreu


estrangulado pela própria úlcera.

Apesar de ter cândido em seu nome


tinha sido um homem intransitivo,
obrigava os filhos a trabalhar
garimpando algodão e talhando lenha
e partilhando da hóstia,
transfigurada em bolacha maria,
a cada caminhada quilometricamente diária.

134 Os netos que ele amava,


(eu não fui um deles)
davam para contar nos dedos da mão
de um avestruz.
Isso porque eles o obedeciam sem pestanejar
levando água e café quando ele pedia
inutilizado pela mangueira na frente da casa
que parecia enraizada nas aortas dele
e pela cadeira de balanço na calçada
na qual ficava boa parcela do dia espionando
o movimento na avenida principal.

Penso também na minha avó


agora com alzheimer
que talvez tenha que constantemente lembrar
digo descobrir
que ele morreu
e que sempre vai se assombrar com o fato
de nunca mais precisar esvaziar o penico
ao lado da cama.
Escrevo isso porque sonhei ontem com a casa deles,
provavelmente agora ainda mais habitada por ecos,
e que nela um homem cantava num violão
sobre alguém mitológico que costurava
e remendava a roupa dos outros
com fios de ouro.

Mas eu não tenho saudade do meu avô.


Nem do bigode de pistoleiro que ele deixava florescer,
ou da bengala que não guardava nada de extraordinário.

***

Somos pássaros extintos.


Nosso nome científico não
consta em livros de biologia 135
muito menos nos calhamaços
que sustentam os sonhos onívoros.
Temos nossas penas tingidas de
dilúvio, fermentadas de arrepio.
E mesmo assim nosso ninho
é rodeado pelo indefinido das
espadas. A saliva das nossas asas
limpam as gargantas dos solitários.
As brasas que respingam do
nosso pouso alimentam as
pequenas santidades. Em dias
movediços & adolescentes, ficamos
pelas redondezas, mordiscando
a orelha dos namorados. Bebericando
desse sol sonífero. E não há
jaula de dedos que vá nos capturar
e nos colocar em exposição.

***
alô, quem é?

136

eu

meditação
(porque ayrton pediu)

Meu quarto é minha


câmara de despressurização.
Lá, me exilo do incêndio dos
outros, largo meu casco de
tartaruga e dedico-me à
minha própria tempestade.
E então fuzilo tinta negra
nas penas dos pardais,
trovoo trôpego as cores
úmidas de um lençol
- a cama é um barco,
às pálpebras, a cadeira, uma
bicicleta sem rodinhas -
e rabisco o nome dos meus
futuros filhos na palma da mão.
Um deus silvestre nasce, sempre 137
sem avisar, na margem de um rio
que cruza meu quarto e molha
meus pés ansiosos com as
águas desse abismo.

***

olhar para o céu


azulíssimo
e, sem saber porquê,
lembrar de gosto
do merthiolate.

***
macondo

p/ otávio

os livros que você me enviou


eu digo
tem cheiro de tabaco

minha mãe diz


que tem cheiro de
shopping center

***

falsificação sobre um poema de um amigo a


propósito das pegadas

138
p/ Ayrton Alves

Ao espreguiçar dos semáforos, faço uma prece


que traz em sua silhueta o Ciclone no nome
e concentro os meus poros junto à cama
para medicar as minhas placas tectônicas.
Apalpo os seios do travesseiro
E endereço minhas úlceras ao vento vizinho
Que sempre vai maquinando à frente
Que sempre alforria meu rosto desse azul.
Pouco importa se um desengano
junta-se as cordilheiras nas costas.
Desafino todas às minhas ladainhas
Mas dessa vez sem microfone e nem latitude
O perigo é alguma divindade me reconhecer
e fazer de mim um bibelô de profeta.

***
fulô

poetisa laudeada com espinhos marginais


degenera o corpo com a insônia viagem infinda
ouvidos apurados e língua à mostra tal serpente
venenosa
impiedosos açoites que lhe reabriram cicatrizes
esconderam-lhe o seu brilho imperial
dourado, azul, vermelho e preto
formaram o carnaval dos seus gritos
de batom protetor como beiço de vela apagada
esqueceu-se do brim e seus trajes lindos
manipularam o tempo para compreender o passado
mas de corpo e alma é voraz o meu sangue
latidos e cacarejos ameaçaram o encanto da minha voz 139
voltem, vocês, aos seus afazeres horrendos e podres.

***

poesia de abelha não-operária


mas rainha de todas elas
cria o doce mel do polén
e fel que proporciona as pétalas

colmeia casulo mistério


ao homem que delas precisa
para enganar a amarga saliva de fumo
mas ledo engano,
é de borracha o seu líquido

voando andorinha esperta


olhos de água feroz e felina
sabota o orgulho do macho
que príncipe encantado
só sabe de birra

mas, pobre coitado, perdeu o ditado


que aceite ou cale, eu determino
para nós, mulheres sensatas
não, obrigada!
criamos juízo.

***

amor_in_suficiente

na tua vez,
chegas como quem não quer nada,
dá uma analisada básica
140 como se comparasse preços no supermercado,
coça a barba,
faz cálculos,
conta nos dedos,
faz cara de dúvida,
dá uma volta e
vai embora.

Pseudo
azia no peito
coceira no couro cabeludo
cara de desassossego
receio prematuro
congênito distanciamento
indisponibilidade emocional
cárcere de autocuidado
fobia espiritual
língua ferina venenosa
perfeita para calar desafetos
repertório de narrativas pré-selecionadas
audição alheia não é deserto
vidas que doem agudas nos chakras
parceria relegada ao esgoto
sonâmbulo desviando-se de ciladas
vampiros brincando de vivo-morto
bolo de catarro na garganta estraçalhada
salgadas lágrimas que recusam suas apenadas
migalhas.
19/05/2016
***

Borderline

Fica triste, escreve um poema.


Fica feliz, sorri com vontade.
Fica triste, escreve um conto.
Fica feliz, limpa o quarto.
141
Fica com raiva, destrói tudo.
Fica triste, chora um pouco.
Fica feliz, dança pop.
Fica triste, ouve rock.
Fica com raiva, se agride de fome.
Fica feliz, come chocolate.
Permanece feliz e canta alto.
Fica triste, quer se matar.
Fica feliz, quer o mar.
Fica com raiva, se acha feia.
Fica triste, sente saudade.
Fica feliz, desenha um rosto.
Fica triste, corta os pulsos.
Fica feliz, quer ler.
Fica com raiva, quer bater.
Fica feliz, sente tesão.
Fica triste, fuma maconha.
Fica feliz, sente-se plena.
Fica com raiva e corta a lombra.
A raiva dilata-se em ódio.
O restante do tempo permanece apática.
Vítima do vazio crônico.
De dias que nunca acabam.

***

Incômodo soul
ranzinza
não me kahlo
bato o pé no chão com força
nego veementemente algo
questiono
duvido
contraponho
a lágrima não cai
142 me desenquadro
desencanto
não soluço
soluciono
a injustiça se esvai
resisto
alegro-me
supero
sobrevivo
sossego
problematizo
não desespero
incomodo soul

***
143

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