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Doutorando do programa de pós-graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo
Cruz/FIOCRUZ
Desta maneira, no primeiro momento, abordarei o comércio negreiro para a região citada e
posteriormente analisarei a relação do comércio de escravos africanos com as epidemias de
varíola.
A entrada dos primeiros escravos africanos na região amazônica ocorreu entre o final
do século XVI e início do XVII sob os cuidados dos ingleses, que os enviaram para o extremo
norte do Brasil com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento da agricultura (REIS,
1961: 347-53). Mas os portugueses - ao passo que avançaram na conquista e colonização da
região amazônica - prosseguiram com a política de introduzir escravos provenientes do
continente africano por meio de assentos com os homens de negócios e, sobretudo, por meio
do estanco, ou seja, estabelecimento de companhias de comércio. O tráfico negreiro deste
modo configurou-se de maneira diferente ao longo dos anos. Até a primeira metade do século
XVIII constituiu uma atividade modesta e irregular na região amazônica, ganhou visibilidade
somente na segunda metade do século com a ascensão de Sebastião José de Carvalho e Melo
(Marquês de Pombal), primeiro ministro do reinado de D. José I, que iniciou um conjunto de
reformas com o objetivo de reerguer a economia decadente do Estado do Grão-Pará e
Maranhão que se encontrava em um estado de miséria motivada entre outros fatores por falta
de braços2 que a colonização necessitava para o crescimento da região (DIAS, 1970: 164 e
169).
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Um dos problemas que afetava a carência de mão de obra diz respeito às epidemias, como mostra Manuel
Nunes Dias “as epidemias ceifavam vidas preciosas, despovoando o Estado de braços” (1970: 166).
de mão-de-obra, com a introdução de escravos que seriam fornecidos aos lavradores em justas
condições” (DIAS, 1970: 200).
Durante mais de vinte anos de atuação da CGCGPM, segundo Manuel Nunes Dias,
“os navios da empresa colonial pombalina transportaram, pelo menos, dos centros de resgates
do Atlântico africano [...] uma quantia de escravos negros superior a vinte e cinco mil
(25.365)”. Esses centos de resgate compreendiam essencialmente Bissau, Cacheu e Angola e
completados pelos entrepostos: Cabo Verde e Serra Leoa (DIAS, 1970: 465 e 470). Dessas
áreas muitos escravos desembarcaram não somente na época da vigência da CGCGPM, mas
em outros períodos, pois após o monopólio da CGCGPM, o tráfico negreiro prosseguiu por
meio de assento, que segundo Vicente Salles “geralmente negociados mediante contratos da
Fazenda real com particulares” (SALLES, 2005: 50). A Coroa portuguesa fez contrato com
Cacheu e Cabo Verde, mas como argumentou Salles, sem muito sucesso, abrindo espaço para
a iniciativa particular, outra modalidade, que segundo o autor, foi “realizado irregularmente
durante todo o período do tráfico” (SALLES, 2005: 50). Conforme Marley Antônia Silva da
Silva - que debruçou-se na temática ao estudar o comércio negreiro para o estado do Grão-
Pará e Rio Negro pós-CGCGPM - a Coroa portuguesa interviu na realização da atividade
negreira na região após a extinção da CGCGPM por meio da isenção de impostos aos
interessados em traficar e comercializar escravos, igualmente facilitou de todas as formas a
venda dos escravos aos moradores das capitanias do Pará e Maranhão, posto que tal prática
visava também o desenvolvimento da região amazônica (SILVA, 2012: 112 e 113).
Desse modo, o tráfico negreiro, por meio de assentos ou de particulares com o apoio
da Coroa portuguesa prosseguiu para a região amazônica especialmente no final do século
XVIII e início do século XIX, período em que houve vários surtos epidêmicos de varíola. A
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Para Bezerra Neto, durante a vigência desta companhia houve efetivamente a introdução de 9.832 escravos na
região (2001: 28).
doença na visão de moradores e autoridades políticas e comerciais estava associada
diretamente com o comércio negreiro. A presente pesquisa encontra-se em andamento, não
posso ainda afirmar se todos os casos de epidemias na região relacionavam com a doença da
varíola, mas posso afirmar que este discurso foi constante em todo o período analisado. É
sobre a relação das epidemias de varíola com o comércio de africano para a região amazônica,
que procuro discutir na próxima parte do texto.
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Entre eles Dauril Alden e Joseph Miller (1987), Manolo Florentino (1997), Marcelo de Assis (2000), Jaime
Rodrigues (2005).
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Arthur Viana mostra um quadro estatístico da mortandade no século XIX. VIANNA (1975: 55-75). Sobre o
século XVII e princípios do século XVIII, ver: CHAMBOULEYRON (2006: 79-114).
A partir da segunda metade do século XVIII com o estabelecimento da CGCGPM
houve a regularização do comércio negreiro entre a Amazônia e o continente africano que
introduziu com mais intensidade escravos na região. Mesmo com a extinção da CGCGPM, o
tráfico negreiro prosseguiu sem sofrer redução significativa da atividade econômica. Desta
maneira, durante o período estudado, a doença atingiu não somente Belém, considerada o
centro da região, mas também o sertão amazônico. Várias epidemias de varíola propagaram-
se na região. Esse estudo é parte de uma pesquisa maior que estou desenvolvendo. Como
mencionei na parte anterior, não sei precisar de todas as epidemias relacionavam-se com o
tráfico negreiro, mas existe um discurso muito forte nas fontes pesquisadas. Como a minha
intenção neste trabalho é relacionar o tráfico negreiro com a varíola, busco analisar o BDCTE
que traz com mais precisão as cifras de escravos. Este banco de dados mostra que nem sempre
os números de escravos embarcados nos portos africanos eram compatíveis com o número de
escravos desembarcados nos portos de São Luis e Belém. Cruzando essas informações do
BDCTE com a documentação arquivista constatei que uma das causas da diferença entre os
números de escravos embarcados e desembarcados repousa na mortalidade. Muitos escravos
morriam durante as viagens. Um dos motivos para a mortandade eram as doenças, entre elas a
varíola, que concorreu para a redução nos números de escravos embarcados e também para a
propagação da doença na região amazônica, igualmente em outras regiões em que houve rotas
negreiras. Abaixo apresento um quadro mostrando os números de escravos embarcados,
desembarcados e mortos6 nas embarcações negreiras entradas na capitania do Grão-Pará.
EMBARCAÇÃO ESCRAVOS
Entrada Armação Nome Capitão Lugar de Saídos Entrados Mortos
Aquisição
1757 Galera Santana e Jerônimo Luanda 508 379 129
S Joaquim Gonçalves
1758 Galera S Luís Rei José de Carvalho Luanda 551 427 124
da França
1759 Galera NS da Antônio de Pontes Luanda 658 526 132
Conceição Lisboa
1762 Galera NS da Joaquim José das Luanda 514 410 104
Conceição Mercês
1762 Galera NS Madre Francisco Duarte Luanda 705 545 160
de Deus Serra
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No BDCTE existem outros casos que evidenciam o número de escravos mortos, no entanto para este trabalho,
selecionei somente alguns casos para a análise. O quadro pode ser consultado no site: www.slavevoyages.org
1762 Galera S João José de Oliveira Luanda 424 313 111
Batista Bulhão
1764 Corsário S Lázaro Gaspar dos Reis Luanda 557 414 143
Chegou a este Porto hum Navio de Angola, e o Capm. delle me entregou as Cartas,
q’ com esta seraõ prezentes a V.Ex.ª das quaes abri a que no Sobscripto dis
pertenceria ao Governador do Porto onde fosse ter o dito Navio; a qual sempre
remeto a VExª. Para que veja o que ella contêm. O Clerigo em que ella falla, ja sahio
desta Cidade buscando a de Pernambuco, para delas e transportar a de São Thomê
para onde foy mandada. O dito Navio chegou aqui com quatrocentos e vinte e tantos
negros, os quais vinham com a epidemia de bexigas, e sem embargo de boa
quantidade. Sempre lhe mandey fazer quarentena para S. Francisco porem chegando
inteiramente adª. epidemia e pondosse os negros todos bons, se venderaõ ja efica o
Navio a partir para o Reino, o que fara em huas das aguas do mês que vem
(VERGOLINO-HENRY e FIGUEIREDO, 1990: 75-76).
Esse navio, igualmente a tantos outros vindos de Angola, constituiu um dos meios
para a propagação de epidemias de varíola na região amazônica. No quadro I, dentre os
escravos exportados para o Grão-Pará no período analisado sobressaíram os saídos de Angola
que apresentavam um número grande de mortos: Galera Santana e São Joaquim (129), Galera
São Luís Rei da França (124), Galera Nossa Senhora da Conceição (132), Galera Nossa
Senhora da Conceição (104), Galera Nossa Senhora Madre de Deus (160), Galera São João
Batista (111), Corsário São Lázaro (143), Galera Nossa Senhora da Conceição (180), Galera
Nossa Senhora do Cabo (35) Galera Nossa Senhora do Cabo (69), Galera Santo Antônio
Delfim (57), Galera Santo Antônio Delfim (58), Corveta Correio de Angola (a) Rei de
Portugal (2), Galera Águia Lusitana (35). Por esses números, é possível entender que o
comércio tratado com Angola preocupava os envolvidos no tráfico negreiro. Diante das cifras
é importante destacar que, provavelmente, os comerciantes estivessem desinteressados em
continuar o comércio com Angola em razão das doenças que acometiam os escravos e
geravam prejuízos, como aponta uma carta do reino no ano de 1795 sobre o comércio de
escravos com Angola.
Ponho também na presença de V.Exª. as duas Contas correntes que os Donos, e o
Correspondente das Negociações d’Escravos dos Navios Francezinha e Correyo
d’Angola me apresentaram [...] quanto aos Donos da Francezinha penso que não
prosseguem com serem os mais ricos d’esta terra em razão do grande prejuízo que
tiveram por grande mortandade na Escravatura, inferior qualidade d’ella, e infecção
de moléstias de que chegou acometida o q’ tudo lhes motivou grande despesa, e
grande demora para o embolso da que lhes ficou em estado de dispor. Nestes termos
roguei ao sobredito Governador, e Capitão General d’Angola quisesse intervir para
que não ficasse esta Capitania sem introdução d’Escravos como antes estava [...]
(VERGOLINO-HENRY e FIGUEIREDO, 1990: 204).
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Sobre a relação do tráfico negreiro com doenças e mortes de escravos, alguns autores argumentam que, os
escravos muitas vezes saíam infectados dos portos e as infecções se alastravam na região em razão das péssimas
condições dos tumbeiros e do precário regime alimentar, como Manuel Nunes Pereira (1952), Ferreira Reis
(1961), Antônio Carreira (1983), Rafael Chambouleyron (2006), Magali Romero Sá (2008).
O tráfico negreiro por ser encarado como um negócio lucrativo, sempre preocupou os
diversos segmentos envolvidos no comércio, em destaque nos momentos de mortandade. Nos
anos em que ocorriam epidemias de varíola, as autoridades coloniais tomavam algumas
medidas para combater a doença, como fica visível na correspondência para o Senado da
Câmara da Cidade, em 1778:
Eu tenho cada dia novos motivos que bem me fazem persuadir do quanto VMces
em desimpenho das suas obrigações cuidam em promover as utilidades, e
conservação do Publico. Novamente a mim se verifica no bem lembrado projeto, em
que entraraõ de querer mandar estabelecer hum Lazarêto de querer mandar digo um
Lazarêto, no qual indistintamente houvessem de fazer quarentena as embarcações de
qualquer parte vindas, e que a sua Carga contenha Escravatura afim de se
acautelarem no modo possível aquelas terríveis e prejudiciais consequências
infelizmente já aqui experimentadas, e que com efeito, nos consta estão
presentemente padecendo, e suportando os moradores da Capitania do Maranhão por
causa da indiferença com que alhi se permitiu a licença para entrar, e descarregar no
porto daquela Cidade uma embarcação vinda da Costa de Leste inficionada com
Bexigas. [...] (VERGOLINO-HENRY e FIGUEIREDO, 1990: 182-184).
Francisco Pedro Ardasse medisse que VM depois de concluída a visita ordenará que
o Navio de escravos começasse a sua descarga hoje às dez horas da manhã.
Aparentemente creio que VM ignora as providencias que tenho dado a respeito de
Navios d’Escravatura porque não se torne a infeccionar esta Cidade de Bexigas
como já sucedeu principalmente vindo aquele navio do Maranhão onde aquela Peste
está fazendo os seus costumados estragos. Eu disse ao dito Ardasse que tal descarga
não fizesse sem que primeiro me constasse pela informaçaõ dos Professores porque
mandei visitar adita Escravatura o estado d’ella e porque não suceda outro engano
semelhante fique Vou de acordo deque feita a visita aos Navios que entrarem n’este
Porto me dava Vm. vir dar parte do que achar e dispuser segundo o que em todos os
outros do Brasil vi praticar (VERGOLINO-HENRY e FIGUEIREDO, 1990: 190).
A propagação da varíola pela Galera Santo Antônio Sertório, comandada por José
Gonçalves da Costa, mostra que as normas postuladas para combater a doença eram
ineficazes. Nem sempre eram cumpridas, o que certamente contribuíam para a propagação de
epidemias como aconteceu com a dita embarcação proveniente de Luanda com 321 escravos,
dos quais apenas 286 desembarcaram. Embora o BDCTE não mostre os números de mortos
para essa embarcação no ano indicado no quadro I, suponho que os 35 morreram, pois Arthur
Vianna argumenta sobre o navio que “durante a travessia a varíola reinara nos porões e matara
não poucos escravos; a bordo havia ainda muitos doentes”. Arthur Vianna argumenta ainda a
respeito dessa embarcação que, “o governador José Narciso de Magalhães de Menezes
ordenou imediatamente que o navio fundeasse próximo à ilha Arapiranga, e aí ficasse em
rigorosa quarentena”. Mas de acordo com o autor, “esta ordem salutar foi clandestinamente
violada, de modo que a varíola dentro de alguns dias apenas, manifestava-se na cidade, o que
levou o capitão-general a adotar a remoção dos doentes para a fazenda Pinheiro” (VIANNA,
1975: 45).
Para Magali Romero Sá, os surtos de varíola e o tráfico negreiro são considerados
faces da mesma moeda. Por um lado, o crescimento de infectados pela varíola tornou-se
importante para a regularização de uma rota negreira entre Amazônia e África para suprir a
região amazônica com mão de obra escrava. Por outro lado, as embarcações negreiras ao
aportarem na região amazônica para desembarcar escravos, tornavam um dos meios de
transmitir a varíola, que contaminavam e consequentemente matavam muitos especialmente
indígenas. As mortes de indígenas abria espaço para a necessidade de mais escravos africanos.
Para a autora, a regularização do tráfico e a falta de higiene nos navios aumentaram a
capacidade de contaminação da doença. Embora o governo tenha tomado providências por
meio de vigilância e inoculação, pouco efeito houve e a chamada “peste branca” se
desenvolveu no decorrer dos anos em que o tráfico negreiro existiu, vitimando parte da
população (SÁ, 2008: 3, 5, 8-9).
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Dentro do quadro esboçado, o tráfico negreiro - por meio da CGCGPM ou por meio de
particulares com a intromissão da Coroa portuguesa - prosseguiu para a região amazônica
especialmente no final do século XVIII e início do século XIX. Causou muitos malefícios não
somente porque transformou incontáveis africanos em escravos, mas porque provocou muitas
mortes advindas de variados fatores entre os quais as doenças, como a varíola. Esta constituiu
um grave problema no contexto do comércio de escravos, pois dizimou africanos na travessia
do atlântico e também indígenas nos sertões amazônicos. Ainda que os administradores
colônias tomassem algumas medidas para coibir a doença (fiscalização de navios, inoculação,
mormente nas crianças negras e índias e outras), a varíola continuou causando danos de
distinta natureza, principalmente nos anos em que o tráfico negreiro prosseguiu e certamente
constituiu um empecilho ao processo de colonização da região amazônica.
Referências bibliográficas
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195-244.
BARBOSA, Benedito Carlos Costa. Em outras margens do Atlântico: tráfico negreiro para o
Estado do Maranhão e Grão-Pará (1707-1750). Dissertação de Mestrado – Universidade
Federal do Pará, Belém, 2009.
BEZERRA NETO, José Maia. Escravidão negra no Grão-Pará / séculos XVII-XIX. Belém:
Paka-Tatu, 2001.
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1800”. In: TOPLIN, Robert Brent (org.). Slavery and race relations in Latin America.
Westport: Greenwood Press, 1974, pp. 112-45.
REIS, Arthur Cezar Ferreira. “O negro na empresa colonial dos portugueses na Amazônia”.
Actas do Congresso Internacional de História dos Descobrimentos. Lisboa: Comissão
Executiva das Comemorações da Morte do Infante Dom Henrique, vol. V, II parte, 1961, pp.
347-353.
SÁ, Magali Romero. “A ‘peste branca’ nos navios negreiros: epidemias de varíola na
Amazônia colonial e os primeiros esforços de imunização”. Anais do III Congresso
Internacional de Psicopatologia Fundamental. Rio de Janeiro:, UFF, 2008.
SALLES, Vicente. O negro no Pará, sob o regime de escravidão. 3ª edição, ver. Ampl.
Belém: IAP; Programa Raízes, 2005.