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O TRÁFICO NEGREIRO E A VARÍOLA NA AMAZÔNIA COLONIAL

Benedito Carlos Costa Barbosa1

De acordo com a historiografia, a varíola, conhecida também como bexiga, é


considerada a enfermidade que mais problema acarretou na Amazônia no Período Colonial e
Pós-Colonial. A inserção da doença na região relaciona-se diretamente ao comércio de
escravos africanos, notório a partir da segunda metade dos setecentos com a reforma
pombalina. Ao longo desse período muitas embarcações entraram na região amazônica para
distribuir escravos aos interessados, em particular durante a vigência da Companhia Geral de
Comércio do Grão-Pará e Maranhão (CGCGPM) entre os anos de 1755 e 1777, que
regularizou o comércio escravista africano para a região. No decurso e após a atuação dessa
companhia, diversos escravos saídos de diferentes áreas do continente africano, entre as quais
Senegâmbia e Costa Atlântica, desembarcaram na Amazônia. Entretanto, parte da escravatura
morria na travessia do atlântico, muito provável, por causa das péssimas condições de higiene,
saúde e alimentação, além de outros fatores que contribuíam para o aparecimento de doenças
entre os indivíduos a bordo das embarcações. Os que conseguiam sobreviver às longas
viagens oceânicas, certamente, constituíam patógenos para a doença, que foi propagada em
muitos momentos de maneira epidêmica tanto no percurso marítimo, quanto em solo
amazônico, problemas que colocavam em risco a saúde das populações locais, notavelmente
os povos indígenas e os escravos considerados os mais susceptíveis ao contágio. Embora as
autoridades coloniais estabelecessem medidas para coibir ou controlar a entrada de
embarcações sem inspeção, provavelmente as normas eram sempre burladas, pois a doença se
tornou constante no contexto do negócio negreiro para a região amazônica. Da mesma forma
que em outras áreas do Brasil, na Amazônia, o tráfico negreiro foi responsável pela
introdução de doenças, a exemplo a varíola que matou muitas pessoas no decorrer dos anos. O
presente trabalho - baseado em fontes documentais arquivistas, em obras clássicas
especializadas e no BDCTE (Banco de Dados do Comércio Transatlântico de Escravos) -
pretende analisar a relação do tráfico negreiro com as epidemias de varíola na Amazônia na
segunda metade do século XVIII e início do século XIX, especificamente de 1755-1806.

1
Doutorando do programa de pós-graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo
Cruz/FIOCRUZ
Desta maneira, no primeiro momento, abordarei o comércio negreiro para a região citada e
posteriormente analisarei a relação do comércio de escravos africanos com as epidemias de
varíola.

A Amazônia na rota do comércio de escravos

A entrada dos primeiros escravos africanos na região amazônica ocorreu entre o final
do século XVI e início do XVII sob os cuidados dos ingleses, que os enviaram para o extremo
norte do Brasil com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento da agricultura (REIS,
1961: 347-53). Mas os portugueses - ao passo que avançaram na conquista e colonização da
região amazônica - prosseguiram com a política de introduzir escravos provenientes do
continente africano por meio de assentos com os homens de negócios e, sobretudo, por meio
do estanco, ou seja, estabelecimento de companhias de comércio. O tráfico negreiro deste
modo configurou-se de maneira diferente ao longo dos anos. Até a primeira metade do século
XVIII constituiu uma atividade modesta e irregular na região amazônica, ganhou visibilidade
somente na segunda metade do século com a ascensão de Sebastião José de Carvalho e Melo
(Marquês de Pombal), primeiro ministro do reinado de D. José I, que iniciou um conjunto de
reformas com o objetivo de reerguer a economia decadente do Estado do Grão-Pará e
Maranhão que se encontrava em um estado de miséria motivada entre outros fatores por falta
de braços2 que a colonização necessitava para o crescimento da região (DIAS, 1970: 164 e
169).

Entre as reformas destaca-se principalmente a criação da CGCGPM, segundo Manuel


Nunes Dias, para introduzir mão de obra africana no estado do Grão-Pará e Maranhão. No
entendimento do autor, “o tráfico de escravos seria encarado pela empresa pombalina como
um negócio vital, porquanto, suposta a liberdade do índio, seriam os negros africanos que
cultivariam os gêneros tropicais que os navios da sociedade mercantil haviam de transportar
de S. Luiz e de Belém para Lisboa” (DIAS, 1970: 459). Ainda segundo Nunes Dias, a criação
de uma Companhia de comércio na compreensão de Francisco Xavier de Mendonça Furtado
(irmão de Marques de Pombal e governador Geral do Estado do Grão-Pará e Maranhão no
período de 1751 a 1759), seria “o único meio de arrancar o Estado do abastecimento em que
se encontrava”. Além do que, “a empresa solucionaria o grave problema da escassez crescente

2
Um dos problemas que afetava a carência de mão de obra diz respeito às epidemias, como mostra Manuel
Nunes Dias “as epidemias ceifavam vidas preciosas, despovoando o Estado de braços” (1970: 166).
de mão-de-obra, com a introdução de escravos que seriam fornecidos aos lavradores em justas
condições” (DIAS, 1970: 200).

A implantação da CGCGPM, de acordo com o José Maia Bezerra Neto, buscava


estimular a agricultura, com base na força de trabalho africana ao mesmo tempo, fornecer
apoio financeiro e outras facilidades para o transporte e comercialização de escravos para a
Amazônia (BEZERRA NETO, 2001: 26). Dentro dessa lógica, a CGCGPM impulsionou a
introdução de escravos nas capitanias do Grão-Pará e do Maranhão em quantidades
significativas, se comparado ao número introduzido nos anos anteriores a sua existência. 3

Durante mais de vinte anos de atuação da CGCGPM, segundo Manuel Nunes Dias,
“os navios da empresa colonial pombalina transportaram, pelo menos, dos centros de resgates
do Atlântico africano [...] uma quantia de escravos negros superior a vinte e cinco mil
(25.365)”. Esses centos de resgate compreendiam essencialmente Bissau, Cacheu e Angola e
completados pelos entrepostos: Cabo Verde e Serra Leoa (DIAS, 1970: 465 e 470). Dessas
áreas muitos escravos desembarcaram não somente na época da vigência da CGCGPM, mas
em outros períodos, pois após o monopólio da CGCGPM, o tráfico negreiro prosseguiu por
meio de assento, que segundo Vicente Salles “geralmente negociados mediante contratos da
Fazenda real com particulares” (SALLES, 2005: 50). A Coroa portuguesa fez contrato com
Cacheu e Cabo Verde, mas como argumentou Salles, sem muito sucesso, abrindo espaço para
a iniciativa particular, outra modalidade, que segundo o autor, foi “realizado irregularmente
durante todo o período do tráfico” (SALLES, 2005: 50). Conforme Marley Antônia Silva da
Silva - que debruçou-se na temática ao estudar o comércio negreiro para o estado do Grão-
Pará e Rio Negro pós-CGCGPM - a Coroa portuguesa interviu na realização da atividade
negreira na região após a extinção da CGCGPM por meio da isenção de impostos aos
interessados em traficar e comercializar escravos, igualmente facilitou de todas as formas a
venda dos escravos aos moradores das capitanias do Pará e Maranhão, posto que tal prática
visava também o desenvolvimento da região amazônica (SILVA, 2012: 112 e 113).

Desse modo, o tráfico negreiro, por meio de assentos ou de particulares com o apoio
da Coroa portuguesa prosseguiu para a região amazônica especialmente no final do século
XVIII e início do século XIX, período em que houve vários surtos epidêmicos de varíola. A

3
Para Bezerra Neto, durante a vigência desta companhia houve efetivamente a introdução de 9.832 escravos na
região (2001: 28).
doença na visão de moradores e autoridades políticas e comerciais estava associada
diretamente com o comércio negreiro. A presente pesquisa encontra-se em andamento, não
posso ainda afirmar se todos os casos de epidemias na região relacionavam com a doença da
varíola, mas posso afirmar que este discurso foi constante em todo o período analisado. É
sobre a relação das epidemias de varíola com o comércio de africano para a região amazônica,
que procuro discutir na próxima parte do texto.

A varíola no contexto do tráfico negreiro para a Amazônia

É comum na historiografia4 a associação do tráfico negreiro com a propagação de


doenças, muitas das quais letais, principalmente a varíola ou bexiga, como era conhecida no
período colonial. Com relação o lugar de origem da varíola, não se tem informações precisas.
É provável que tenha surgido na Índia, mas também é descrita na Ásia e na África; na Europa,
matou muita gente e trouxe grandes consequências à população. Desses lugares a doença
propagou-se e atingiu o Brasil, mais precisamente à Bahia, em 1563 (SCHATZMANYR,
2001: 1526). Do mesmo modo que outras regiões do Brasil e das Américas, a Amazônia
sofreu sucessivos surtos epidêmicos de varíola. A doença, introduzida desde o século XVII, se
prolongou, segundo Arthur Viana, até o início do XX, e trouxe resultados negativos do ponto
de vista socioeconômico, pois matou parte dos povos indígenas considerados os mais
suscetíveis ao contágio (Viana, 1975: 55-75). 5

De acordo com Rafael Chambouleyron, a varíola propagou-se na região desde o


século XVII desencadeada pelo comércio negreiro e resultou na morte de muitos indígenas, o
que, por sua vez, impulsionou a vinda de mais africanos para suprir de mão de obra o
desenvolvimento da região (CHAMBOULEYRON, 2006: 79, 80, 81, 83). Esse problema
continuou nos séculos seguintes atormentando a vida da população amazônica em especial os
povos indígenas e escravos, que segundo a historiografia constituíram as maiores vítimas da
peste na região. Para a primeira metade do século XVIII, Benedito Barbosa, ao estudar o
comércio negreiro para o estado do Maranhão e Grão-Pará, destaca duas grandes epidemias
da doença. A primeira ocorrida na década de 1720 e outra na década de 1740, ambas
relacionadas a atividade do comércio negreiro (BARBOSA, 2009).

4
Entre eles Dauril Alden e Joseph Miller (1987), Manolo Florentino (1997), Marcelo de Assis (2000), Jaime
Rodrigues (2005).
5
Arthur Viana mostra um quadro estatístico da mortandade no século XIX. VIANNA (1975: 55-75). Sobre o
século XVII e princípios do século XVIII, ver: CHAMBOULEYRON (2006: 79-114).
A partir da segunda metade do século XVIII com o estabelecimento da CGCGPM
houve a regularização do comércio negreiro entre a Amazônia e o continente africano que
introduziu com mais intensidade escravos na região. Mesmo com a extinção da CGCGPM, o
tráfico negreiro prosseguiu sem sofrer redução significativa da atividade econômica. Desta
maneira, durante o período estudado, a doença atingiu não somente Belém, considerada o
centro da região, mas também o sertão amazônico. Várias epidemias de varíola propagaram-
se na região. Esse estudo é parte de uma pesquisa maior que estou desenvolvendo. Como
mencionei na parte anterior, não sei precisar de todas as epidemias relacionavam-se com o
tráfico negreiro, mas existe um discurso muito forte nas fontes pesquisadas. Como a minha
intenção neste trabalho é relacionar o tráfico negreiro com a varíola, busco analisar o BDCTE
que traz com mais precisão as cifras de escravos. Este banco de dados mostra que nem sempre
os números de escravos embarcados nos portos africanos eram compatíveis com o número de
escravos desembarcados nos portos de São Luis e Belém. Cruzando essas informações do
BDCTE com a documentação arquivista constatei que uma das causas da diferença entre os
números de escravos embarcados e desembarcados repousa na mortalidade. Muitos escravos
morriam durante as viagens. Um dos motivos para a mortandade eram as doenças, entre elas a
varíola, que concorreu para a redução nos números de escravos embarcados e também para a
propagação da doença na região amazônica, igualmente em outras regiões em que houve rotas
negreiras. Abaixo apresento um quadro mostrando os números de escravos embarcados,
desembarcados e mortos6 nas embarcações negreiras entradas na capitania do Grão-Pará.

Quadro I. Embarcações entradas no Grão-Pará com escravos

EMBARCAÇÃO ESCRAVOS
Entrada Armação Nome Capitão Lugar de Saídos Entrados Mortos
Aquisição
1757 Galera Santana e Jerônimo Luanda 508 379 129
S Joaquim Gonçalves
1758 Galera S Luís Rei José de Carvalho Luanda 551 427 124
da França
1759 Galera NS da Antônio de Pontes Luanda 658 526 132
Conceição Lisboa
1762 Galera NS da Joaquim José das Luanda 514 410 104
Conceição Mercês
1762 Galera NS Madre Francisco Duarte Luanda 705 545 160
de Deus Serra

6
No BDCTE existem outros casos que evidenciam o número de escravos mortos, no entanto para este trabalho,
selecionei somente alguns casos para a análise. O quadro pode ser consultado no site: www.slavevoyages.org
1762 Galera S João José de Oliveira Luanda 424 313 111
Batista Bulhão
1764 Corsário S Lázaro Gaspar dos Reis Luanda 557 414 143

1764 Galera N S da José Gomes Ribeiro Luanda 457 277 180


Conceição
1765 Galera N. S. do Manoel da Cunha Luanda 706 671 35
Cabo Bitencourt
1767 Galera N. S. do Manoel da Cunha Bissau 194 125 69
Cabo Bitencourt
1778 Galera S. Antônio Lourenço Gomes Benguela 574 517 57
Delfim dos Santos
1778 Galera S. Antônio Lourenço Gomes Benguela 618 560 58
Delfim dos Santos
1795 Corveta Correio de Manoel Francisco Cabinda 382 380 2
Angola (a) flamante
Rei de
Portugal
1799 Galera Águia João Alberto da Luanda 663 628 35
Lusitana Silva
Aurélio Verissimo
Vieira
1806 Galera S. Antônio Jose Gonçalves da Luanda 321 286
Sertório Costa
Fonte (BCTE: www.slavevoyages.org, acesso 15/07/2016).

Os dados revelam algumas características importantes sobre o tráfico negreiro como o


ano da entrada da embarcação, o tipo de embarcação, o nome do capitão, o lugar de aquisição
dos escravos, e principalmente o número de escravos saídos, entrados e mortos. Cruzando
esses dados com outras fontes, percebo que as mortes estavam condicionadas a vários fatores,
entre elas as doenças, especialmente a varíola. Sobre a questão, Colin Maclachlan argumenta
que, a criação da CGCGPM acelerou os frequentes surtos de varíola na região amazônica que
atingiam a população em proporções críticas. A entrada de escravos de maneira regular pela
CGCGPM possibilitou o contato constante da doença na bacia amazônica. Antes desses
carregamentos, a região repousava em um delicado equilíbrio proveniente das mortes
causadas pelo sarampo e pela varíola nos anos anteriores a implementação da CGCGPM, em
que centenas de indígenas morreram vítimas das doenças. Para o autor, o aumento da
mortandade consistia no fato de que a CGCGPM geralmente vendia parte da carga de
escravos contaminada ao Maranhão e Pará que em pouco tempo infectava o restante da
população, principalmente os indígenas, mais suscetíveis aos malefícios do contágio da peste.
Embora as autoridades utilizassem isolamento, quarentena e outros métodos para prevenir ou
conter a varíola, a doença espraiou-se de maneira incontrolável durante os vários anos em que
a CGCGPM ligou o litoral amazônico à costa africana (MACLACHLAN, 1974: 134 e 135).
Dentre as regiões de exportação de escravos para a Amazônia, merece atenção Angola.
Tratava-se de uma área promissora de escravos, uma região que durante e principalmente
após a vigência da CGCGPM exportou muitos escravos para as capitanias do Pará e do
Maranhão. Mas também tornou uma área que colocou em alerta os lucros dos traficantes e
homens de negócios, pois constantemente surgiam casos de mortalidade de escravos, fato que
preocupava os envolvidos no comércio negreiro, como demonstra a carta abaixo datada de
1765:

Chegou a este Porto hum Navio de Angola, e o Capm. delle me entregou as Cartas,
q’ com esta seraõ prezentes a V.Ex.ª das quaes abri a que no Sobscripto dis
pertenceria ao Governador do Porto onde fosse ter o dito Navio; a qual sempre
remeto a VExª. Para que veja o que ella contêm. O Clerigo em que ella falla, ja sahio
desta Cidade buscando a de Pernambuco, para delas e transportar a de São Thomê
para onde foy mandada. O dito Navio chegou aqui com quatrocentos e vinte e tantos
negros, os quais vinham com a epidemia de bexigas, e sem embargo de boa
quantidade. Sempre lhe mandey fazer quarentena para S. Francisco porem chegando
inteiramente adª. epidemia e pondosse os negros todos bons, se venderaõ ja efica o
Navio a partir para o Reino, o que fara em huas das aguas do mês que vem
(VERGOLINO-HENRY e FIGUEIREDO, 1990: 75-76).

Esse navio, igualmente a tantos outros vindos de Angola, constituiu um dos meios
para a propagação de epidemias de varíola na região amazônica. No quadro I, dentre os
escravos exportados para o Grão-Pará no período analisado sobressaíram os saídos de Angola
que apresentavam um número grande de mortos: Galera Santana e São Joaquim (129), Galera
São Luís Rei da França (124), Galera Nossa Senhora da Conceição (132), Galera Nossa
Senhora da Conceição (104), Galera Nossa Senhora Madre de Deus (160), Galera São João
Batista (111), Corsário São Lázaro (143), Galera Nossa Senhora da Conceição (180), Galera
Nossa Senhora do Cabo (35) Galera Nossa Senhora do Cabo (69), Galera Santo Antônio
Delfim (57), Galera Santo Antônio Delfim (58), Corveta Correio de Angola (a) Rei de
Portugal (2), Galera Águia Lusitana (35). Por esses números, é possível entender que o
comércio tratado com Angola preocupava os envolvidos no tráfico negreiro. Diante das cifras
é importante destacar que, provavelmente, os comerciantes estivessem desinteressados em
continuar o comércio com Angola em razão das doenças que acometiam os escravos e
geravam prejuízos, como aponta uma carta do reino no ano de 1795 sobre o comércio de
escravos com Angola.
Ponho também na presença de V.Exª. as duas Contas correntes que os Donos, e o
Correspondente das Negociações d’Escravos dos Navios Francezinha e Correyo
d’Angola me apresentaram [...] quanto aos Donos da Francezinha penso que não
prosseguem com serem os mais ricos d’esta terra em razão do grande prejuízo que
tiveram por grande mortandade na Escravatura, inferior qualidade d’ella, e infecção
de moléstias de que chegou acometida o q’ tudo lhes motivou grande despesa, e
grande demora para o embolso da que lhes ficou em estado de dispor. Nestes termos
roguei ao sobredito Governador, e Capitão General d’Angola quisesse intervir para
que não ficasse esta Capitania sem introdução d’Escravos como antes estava [...]
(VERGOLINO-HENRY e FIGUEIREDO, 1990: 204).

As doenças e a mortandade que acometiam os cativos vindos de Angola não eram


fatos isolados e podem ser analisadas de duas formas. A primeira forma, diz respeito aos
problemas internos que a região de Angola passava ao longo dos anos, que certamente
contribuíram para as epidemias de varíola no contexto do comércio negreiro e a sua
propagação na região amazônica. José Curto e Raymond Gervais ao analisarem a demografia
em Angola no final do século XVIII e na primeira metade do século XIX mostram que nesse
contexto Luanda estava passando por uma série de problemas, como fome, epidemias e secas
consequências da colheita fraca, falta de chuva, falta de alimento, praga de gafanhotos e
outros fatores como a varíola que imperou na região (CURTO e GERVAIS, 2002: 122).
Cruzando essas informações com as fontes pesquisadas, acredito que os desastres vivenciados
por Luanda certamente interferiram nas mortes e contágio da varíola no contexto do tráfico
negreiro para a região amazônica, pois muitos africanos saídos infectados de seus lugares de
origens tornaram patógenos para a doença. A segunda forma pode ser analisada levando em
consideração os dias de viagens. Os dados do BDCTE mostram em alguns casos informações
correspondentes ao tempo da viagem das embarcações. O BDCTE nem sempre divulga a
duração da viagem (em dias) do porto de origem ao de desembarque de escravos. Das
embarcações arroladas no quadro, o BDCTE disponibiliza para a galera Nossa Senhora da
Conceição um percurso de 215 dias, equivalendo sete meses de viagem; para o corsário São
Lázaro, um percurso de 173 dias, equivalente mais de cinco meses; para a galera Nossa
Senhora do Cabo, um trajeto de 181 dias, que corresponde a mais de seis meses. Diante
dessas informações, é importante destacar que os longos dias em que os escravos passavam
nas embarcações ou mesmo nos portos de embarques, atrelado a fome e outros fatores
consequência do processo de escravidão - sem dúvida - comprometeram o seu estado de
saúde. Por isso, as condições de vida dos escravos associados às demoradas viagens
constituíram fatores fundamentais para a disseminação de doenças, em destaque a varíola
durante a travessia atlântica7.

Essa compreensão reforça o pensamento de Diana Maul de Carvalho, de que a


escravidão constituiu um fator importante para as causas das doenças e epidemias e refuta a
ideia de consensos biológicos de Alfred Crosby sobre a ideia que “haveria no planeta áreas
que por possuírem determinadas características, seriam mais propícias ao desenvolvimento de
certas enfermidades causadas por bactérias e vírus”. Diana Carvalho critica a ideia de
consenso biológico. Com relação ao Brasil pré-colombiano, a autora chama atenção para essa
ideia cristalizada em muitos estudos de que os ameríndios não possuíam agentes etiológicos
de doenças e “gozavam de excelente saúde, praticamente desconhecendo doenças”. Dessa
maneira, as doenças que acometiam as populações americanas pós-colombianas eram de
origem africana. Dentro do consenso biológico, os africanos eram portadores de maior
número de doenças que atacavam a população americana e europeia. No entanto, Carvalho
argumenta que, nos últimos dez anos, as pesquisas mostram outros resultados, que “nos têm
obrigado a repensar estes consensos e o contexto das doenças”. Esses estudos mostram que
quando os europeus chegaram ao Brasil os ameríndios já tinham agentes etiológicos de certas
doenças. Da mesma forma que os africanos não eram portadores de certas doenças, mas o
contexto em que eles estavam inseridos contribuía para a doença, por isso, a autora entende
que muitas doenças relacionadas aos escravos africanos, como a varíola, têm que ser
entendidas não como doenças africanas, mas como doenças dos escravizados (CARVALHO,
2007: 5-7). As ideias de Diana Carvalho tornam importante para se analisar com mais
acuidade as epidemias de varíola ocorridas no contexto do tráfico negreiro, levando em
consideração os diversos fatores desse comércio que contribuíram para que muitos africanos
fossem vitimados pela doença ou mesmo tornassem agentes etiológicos no decorrer do
processo, desde a apreensão até a travessia do atlântico.

7
Sobre a relação do tráfico negreiro com doenças e mortes de escravos, alguns autores argumentam que, os
escravos muitas vezes saíam infectados dos portos e as infecções se alastravam na região em razão das péssimas
condições dos tumbeiros e do precário regime alimentar, como Manuel Nunes Pereira (1952), Ferreira Reis
(1961), Antônio Carreira (1983), Rafael Chambouleyron (2006), Magali Romero Sá (2008).
O tráfico negreiro por ser encarado como um negócio lucrativo, sempre preocupou os
diversos segmentos envolvidos no comércio, em destaque nos momentos de mortandade. Nos
anos em que ocorriam epidemias de varíola, as autoridades coloniais tomavam algumas
medidas para combater a doença, como fica visível na correspondência para o Senado da
Câmara da Cidade, em 1778:

Eu tenho cada dia novos motivos que bem me fazem persuadir do quanto VMces
em desimpenho das suas obrigações cuidam em promover as utilidades, e
conservação do Publico. Novamente a mim se verifica no bem lembrado projeto, em
que entraraõ de querer mandar estabelecer hum Lazarêto de querer mandar digo um
Lazarêto, no qual indistintamente houvessem de fazer quarentena as embarcações de
qualquer parte vindas, e que a sua Carga contenha Escravatura afim de se
acautelarem no modo possível aquelas terríveis e prejudiciais consequências
infelizmente já aqui experimentadas, e que com efeito, nos consta estão
presentemente padecendo, e suportando os moradores da Capitania do Maranhão por
causa da indiferença com que alhi se permitiu a licença para entrar, e descarregar no
porto daquela Cidade uma embarcação vinda da Costa de Leste inficionada com
Bexigas. [...] (VERGOLINO-HENRY e FIGUEIREDO, 1990: 182-184).

Ainda sobre as medidas para coibir a varíola, um documento datado de 1800


direcionado para o administrador d’Alfandega demonstra a preocupação das autoridades com
as embarcações que entravam nos portos da região.

Francisco Pedro Ardasse medisse que VM depois de concluída a visita ordenará que
o Navio de escravos começasse a sua descarga hoje às dez horas da manhã.
Aparentemente creio que VM ignora as providencias que tenho dado a respeito de
Navios d’Escravatura porque não se torne a infeccionar esta Cidade de Bexigas
como já sucedeu principalmente vindo aquele navio do Maranhão onde aquela Peste
está fazendo os seus costumados estragos. Eu disse ao dito Ardasse que tal descarga
não fizesse sem que primeiro me constasse pela informaçaõ dos Professores porque
mandei visitar adita Escravatura o estado d’ella e porque não suceda outro engano
semelhante fique Vou de acordo deque feita a visita aos Navios que entrarem n’este
Porto me dava Vm. vir dar parte do que achar e dispuser segundo o que em todos os
outros do Brasil vi praticar (VERGOLINO-HENRY e FIGUEIREDO, 1990: 190).

Além da construção de um lazareto para fazer quarentena as embarcações que


chegasse a região com escravos, outras medidas foram tomadas no decorrer dos anos em que
a varíola se propagou de maneira epidêmica na Amazônia, como a inoculação. Em 1799 uma
ordem do príncipe regente determinava que “se introduzisse e promovesse a inoculação dos
meninos negros e índios contra as bexigas” (VERGOLINO-HENRY e FIGUEIREDO, 1990:
213). Essa ordem sobre a inoculação de crianças índias e negras aparece até o início do século
XIX, o que mostra que a doença continuou atacando na região. Apesar dessas medidas
tomadas para combater, a doença continuou adentrando a região nos rastros das embarcações
e provocando inquietação aos envolvidos no comércio negreiro, como é possível verificar
com outros navios que certamente entraram na região para desembarcar escravos. Essa
assertiva fica evidente com Galera Santo Antônio Sertório, em 1806.

José Narciso de Magalhães de Menezes, do Conselho do P. R. N. S., Comendador na


Ordem Militar de São Bento d”Avis Tenente General dos Reais Exércitos,
Governador e Capitão General do Estado do Grão-Pará, etc. Faço saber a todos os
moradores d’esta Capital e seus subúrbios que apesar das meditadas providencias e
meios que pude metter em pratica para evitar o flagelo, já tantas vezes destruidor e
fatal a esta Colônia, pelo Contagio das bexigas, com que nos ameaçam os Navios ha
pouco tempo vindos da Costa, d’África Ocidental, principalmente o último
denominado Sertorio, que não, obstante ser logo acautelado e posto de quarentena na
Ilha do Arapiranga, para ahi se purificar e promover como era necessário o curativo
dos muitos enfermos, já tocados d’aquele venenoso mal, com tudo pôde a malícia
por especulações da mais vil e sortida avidez que talvez não me sejam ocultas,
introduzi-lo nesta Cidade, onde se manifestaram 13 pessoas infectadas (VIANNA,
1975: 45-47).

A propagação da varíola pela Galera Santo Antônio Sertório, comandada por José
Gonçalves da Costa, mostra que as normas postuladas para combater a doença eram
ineficazes. Nem sempre eram cumpridas, o que certamente contribuíam para a propagação de
epidemias como aconteceu com a dita embarcação proveniente de Luanda com 321 escravos,
dos quais apenas 286 desembarcaram. Embora o BDCTE não mostre os números de mortos
para essa embarcação no ano indicado no quadro I, suponho que os 35 morreram, pois Arthur
Vianna argumenta sobre o navio que “durante a travessia a varíola reinara nos porões e matara
não poucos escravos; a bordo havia ainda muitos doentes”. Arthur Vianna argumenta ainda a
respeito dessa embarcação que, “o governador José Narciso de Magalhães de Menezes
ordenou imediatamente que o navio fundeasse próximo à ilha Arapiranga, e aí ficasse em
rigorosa quarentena”. Mas de acordo com o autor, “esta ordem salutar foi clandestinamente
violada, de modo que a varíola dentro de alguns dias apenas, manifestava-se na cidade, o que
levou o capitão-general a adotar a remoção dos doentes para a fazenda Pinheiro” (VIANNA,
1975: 45).

Para Magali Romero Sá, os surtos de varíola e o tráfico negreiro são considerados
faces da mesma moeda. Por um lado, o crescimento de infectados pela varíola tornou-se
importante para a regularização de uma rota negreira entre Amazônia e África para suprir a
região amazônica com mão de obra escrava. Por outro lado, as embarcações negreiras ao
aportarem na região amazônica para desembarcar escravos, tornavam um dos meios de
transmitir a varíola, que contaminavam e consequentemente matavam muitos especialmente
indígenas. As mortes de indígenas abria espaço para a necessidade de mais escravos africanos.
Para a autora, a regularização do tráfico e a falta de higiene nos navios aumentaram a
capacidade de contaminação da doença. Embora o governo tenha tomado providências por
meio de vigilância e inoculação, pouco efeito houve e a chamada “peste branca” se
desenvolveu no decorrer dos anos em que o tráfico negreiro existiu, vitimando parte da
população (SÁ, 2008: 3, 5, 8-9).

***
Dentro do quadro esboçado, o tráfico negreiro - por meio da CGCGPM ou por meio de
particulares com a intromissão da Coroa portuguesa - prosseguiu para a região amazônica
especialmente no final do século XVIII e início do século XIX. Causou muitos malefícios não
somente porque transformou incontáveis africanos em escravos, mas porque provocou muitas
mortes advindas de variados fatores entre os quais as doenças, como a varíola. Esta constituiu
um grave problema no contexto do comércio de escravos, pois dizimou africanos na travessia
do atlântico e também indígenas nos sertões amazônicos. Ainda que os administradores
colônias tomassem algumas medidas para coibir a doença (fiscalização de navios, inoculação,
mormente nas crianças negras e índias e outras), a varíola continuou causando danos de
distinta natureza, principalmente nos anos em que o tráfico negreiro prosseguiu e certamente
constituiu um empecilho ao processo de colonização da região amazônica.

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