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Introdugao “Qual? Porque eles so dois": essa era, a0 que tudo indica, a tese preliminar assumida e a partir da qual todo projeto de leitura de Auguste Comte, até por volta de 1930, se delineava. Assumida a dualidade, era preciso entio escolher entre o Comte do Cours (0 sistematizador do saber positivo) ¢ o do Systéme (0 teorizador da religiéo da humanidade e da sociolatria). Escolha que era feita, evi- deneemente, em fungio das respectivas valorizagdes das duas obras € da consequente alocagio do “bom” C: partir da obra de Gouhier*e do texto capital de P. Amand que mee. $é-lentamente, a essa questio tomou outra figura. Respeitadas as diferengas, pode-se dizer que algo similar ocorre hoje com aobra de Freud, com o agravante de que, em relagioa este, pode-se falar nao em dois aspectos, mas em trés ou quatro, Haveria, por exemplo, o Freud neurdlogo, até por volta de 1897, dataem que, Ou, entao, por fim, teria abandonado definitivamente essa posi haveria o Freud adepto da teoria da sedusio até por volta da mesma época, quando, percebendo seus enganos, teria posto esta de lado e colocado as verdadeiras bases da etiologia das neuroses através dos conceitos de fantasia e sexualidade infantil. Erros longinquos e fx- cilmente expliciveis, poder-se-ia dizer, jé que se trata exatamente dos momentos dificcis da consticuigdo da psicanélise, em que, por- tanto, as hesitagbes e os descaminhos sio de esperar, Todavia, as questées nao estacionam nesses pontos. Como es- quecera famosa reviravolta dos anos 1920? A comesar, por exemplo, pela introdugio da nogio de “pulsio de morte” através da qual, tudo parece indicar, a teoria psicanalitica encontraria outras bases de fundamentagao. A insisténcia dos estudiosos do pensamento de Freud nesse ponto nao deixa de ser inquietante, como veremos. Para tomar um tiltimo exemplo, hé também, nos anos 1920, a subs- tituigio, operada por Freud, da primeira tcoria, a topogrifica, do aparelho psiquico, por uma segunda, conhecida como teoria estru- tural. Aqui, mais uma vez, 0s fandamentos da primeira teoria pare- ccem ser abandonados em fungio dos de uma outra, nova. Ni & dificil perecber, com a ajuda desscs exemplos, que, se se tomam essas “mudangas” num sentido estrito, acaba-se por cindir a obra de Freud em(¢réshaveria um primeiro corpus que sc estenderia até por volta de 1897, um segundo que estaria delimitado desde A interpretagio dos sonhos até mais ou menos os escritos sobre Me- tapsicologia, ¢, por fim, um terceito, que se abritia com Além do principio do prazer. O problema que nasce dessa visio da obra é como manejé-la? Que textos temos 0 diteito de usar e quais devem ser arquivados? Mas, sobretudo, o que sc torna problematico & a utilizagio de rextos de diferentes épocas para abordar um determi- nado problema, como, por exemplo, no caso da histeria. Esse pro cedimento é muito frequente quando se analisa um conceito ou uma temética na obra de Freud. Um trabalho de justificagao parece se impor como preliminar. Tomemos um exemplo: que atitude devemos adotar com relagio ao texto do Projeto de wma psicologia para neu- rélogos, de 1895? Duas grandes correntes, em franca oposigio, se instalaram. A primeira nao vé nesse texto nenhum outro interesse senio o de mera erudigio histérica. Texto inacabado, nao publicado endo reconhecido pelo autor, ele deve, portanto, set encarado como uma pega de museu. Jia segunda corrente, representada por autores com preocupacées mais filos6ficas, vé no Projet... o embriio do 16 conjunto de teses e teorias psicanaliticas que Freud desenvolveré ou explicitard no decorrer de sua obra posterior. Nessa iltima hipétese, no entanto, nao se detecta nenhum corte, nenluma censura radical em sua obra c uma certa identidade permanece nos seus diferentes textos, no s6 no nivel dos Zemas como também no nivel dos prin- cfpios ¢fundamentosdateoria, Percebe-se que estamos defronte & duas opgies de: de Freud ¢ ambas acabam desembocando em problemas de dificil solucio. Se se quer ver delimitagées radicais, o procedimento é seccionar a obra ¢, passo seguinte, valorizar um dos segmentos em detrimento dos outros. Essa opgio, que ao nivel abstrato pode ser coerente, acaba, na verdade, indo de encontro a problemas de dificil solugio?, Se, pelo contrério, roma-seo outro partido, fica sempre de péaquestio: qual é 0 correto? E por causa disso que muitas vezes, quando operadas certas passagens no interior da obra (do Projet. A Metapsicologia, para continuar na mesma linha de exemplos), 0 leitor pode ficar tomado por diividas sobre a legitimidade de tal operacio. Em suma, salvo raras excegées, até hoje, nem uma nem, jeurada obra outra posigio parecem ter justficado claramente a sua legitimidade. Isso talvezsej um indicio de que o problema nao ests bem colocado, que acontece, de fato, hd tempos, é que nos enclausuramos num impasse em forma de dilema; ot 0 pensamento de Freud forma sum bloco monolitica oid, em algum lugar, uma descontinuidade equivalente a uma ruptura, Ambas as posigdes, como j indicamos € como veremos no decorrer deste trabalho, sio muito dificeis de ser sustentadas, Poder-se-ia argumentar que é propria colocagio do problema que gera impasse, como acabamos de dizer, e que, se se observa mais atencamente o conjunto da obra de Freud, assistimosa um desenvol- timento até um estégio final em gue nem tudo é mantido, mas também nem tudo é negado. Essa hipdtese é interessante porque, de um lado, parece dar conta das varias mudangas ocortidas ao longo da obrae, de outro lado, mantém um principio de continuidade que unificaria essa mesma obra y As metéforas evolucionistas so sedutoras mas problematicas. Fica-se pensando se, quase sempre, nao acabam por mascarar, através de um nome, aquilo mesmo que se pretende resolver. O termo de- senvolvimento, por exemplo, é extremamente ambiguo, Em certos momentos, tem uma conotagio gradativa evidente, como quando se fila, por exemplo, no desenvolvimento fisico de uma erianga. Asvezes parece implicar certas mutagdes qualitativas, como quando se fala no desenvolvimento da crislida & mariposa. No primeiro aso, é sempre a figura do “mesmo” que esté presente, No segundo, é toda a querela milenar do “mesmo” ¢ do “outro” que se instala. Tado isso ¢ por demais conhecido para que insistamos. Voltando 20 nosso problema: dizer que hé uma “evolugio” do pensamento de Freud ou um “desenvolvimento” em sua obra (coisa «que nfo pretendemos negar) é apenas escamotearo cerne da questio. Pode-se dizer que hi um desenvolvimento do pensamento fieudiano, mas é preciso esclarecer o que se entende por essa ideia, caso con tsério, estaremos apenas rotulando um problema enio o solucionando. Mannoni, por exemplo, afitma que, embora as superando, Freud rnunea abandonou ou renegou uma sé de suas idcias'. Pode ser que seja verdade ¢ pretendemos investigar esse ponto, O importante é que, insistimos, inti colocar essa tese (ow a sua contritia) no plano de uma afirmagio genérica vaga. A verdade é que até hoje essa discussio nao foi organizada e sistematizada. Para a grande maioria dos estudiosos de Freud, sem- pre ha uma opgio prévia perante a colocagio dessa questo. Nao estamos questionando em nenhum momento esse direito de escolha, O que estamos tentando salientar € que um trabalho prévio, antes de pressupor ou indicat, jaa continuidade, seja a ruptura, seimpée do ponto de vista lbgico, o de tentac fandamentar qualquer dessas Gpsces. Nesa perspeciva um dos merit da obra de Rieu’ € 0 i sob certos aspectos, tentar explicitar as razoes pelas quais opta Porumadeterminada eitura, reseees © presente trabalho tem como ponto de partida a ideia de co- SSAC a organizar mais sistematicamente os polos dessa discussio 8 para, a partir dal, centar comparé-los e, se possivel, se ndo indicar solugées, apontar os defeitos de algumas propostas. ‘Acé agora utilizamos de forma genérica ¢ vaga termos como “mudangz’,‘continuidade’ “rupeura’, sem nos preocuparmos muito «em precisar o sentido destes quando aplicados de maneira mais es- pecifica & obra de Freud. Contencamo-nos em apontar algumas amostras daquilo que certos autores consideram, por exemplo, momentos de ruptura no pensamento de Freud. “O exemplo é a coisa mesma” (“Das Beispiel ist die Sache Selbst”)*, anotava Freud ao escutar um de seus mais famosos pacientes. Etinha razdo. Mas é preciso concordar também que haja, para que isso seja verdade, a explicitagéo das determinagoes que ai estdo contidas. Que Freud tenha, no decorrer de sua carrera teérica, mudado vrias vezes de posicio a respeito de determinados problemas é uma verdade elementar que o simples olhar enderegado aseus textos prova insofismavelmente. Quantas vezes, em suas diversas obras, ele néo 1 seus pontos de vista de acordo com as novas indicagoes que lhe fornece a pritica clinica? Um exemplo, tomado 20 acaso, 6 posigio de Freud com relagio a0 masoquismo. De inicio, Freud pensa-o como secunditio, derivado. Depois, no entanto, de Além do principio do prazer, percebe que deveria existe ‘um masoquismo primétio,e, em uma nota de 1924, nos Trés ensaios sobre a teoria da sexualidade, esereveu: adiciona uma nota para ret Minha opiniao sobre 0 masoquismo foi em grande parte alterada por reflexes ulteriores baseadas em certas hipéteses quanto A estrutura do aparelho da mente eas classes de pulsdes que nel atuam’ Desse ponto de vista, a psicandlise ¢ uma disciplina que, mesmo possuindo um estatuto muito particular, ¢ tio sujeita a mudangas quanto qualquer outra. Estranho seria que tal nao acontecesse. Ocorre’ que 0 problema que estamos tentando abordar nio se situa nesse nivel. O fato de que Freud tenha introduzido adigées,revificagoes, statuto conceitos clinicos novos, nio precisa afetar, em principio, 19 das bases ¢ dos fundamentos tedticos sobre os quais o discurso psi canalitico esta estruturado. Isso ji nos conduz, portanto, a um ponto mais preciso: quando Aiseutrmos o conceit de mudanga,ofaremos no nivel doce prin- Clplos edessesfundamentos. EssasaleracSes advindas da pritica clinica, no entanto, nao nos serio indiferentes, Mas elas s6 nos in. teressario na medida em que possam afetar aesirutura tebrico-expli- catia da psicandlise, O exemplo que demos pouco, assuncae de lum masoquismo primétio, ndo nos parece afetar aesséncia da teoria Psicanalitica; essas mudangas (enquanto adigoes,retificagSes, res. _{tig6es) nio despertario nosso interes". Coisa diferente paiece acontecer, por exemplo, com aintrodugao do conceito de “narcisismo”, Essa nogio, com efeito, acabou por esfamagar o primeiro dualismo ulsional ¢ parece que foi a partir dela, de fato, que Ereud se vin obrigado a introduzir um novo dualismo — este, sim, segundo ini ‘meros autores, tendo provocado uma mudanga radical no estatuto da teoria. Em casos como esse, ento, nossa ; arengao estar também voltada para essas mudangas oriundas da pritica clinica e, assim, quando discutirmos a nogio de “pulsao de motte’, procuraremos entender qual o papel que a introdusio do conceito de natcisismo exerceu nessa reviravolta, Acessa altura, talvez consigamos colocar. um pouco mais de erie aguento ue subjaza esse debate {existe}na obra de Freud, lum ntileo te6rico comum que a atravessa dé Ponta a pontae ave (independentemente de todas as variagoes guecle tena of ide) é ‘azo suficiente para nio pensarmos numa ruptura, isto é, numa mudanga radical de seus préprios fundamentos Oi) ypelo contrério, em algum momento essa teoria se modifica de tal maneita que, entre 0 resultado dessa modificagéo e 0 que havia anteriormente acaba existindo uma incompatbilidade? Por cxemplo, Arlow ¢ Brenner escreveram um estudo? muito interessante em que tentam mostrar que, entre as duas tépicas (a teoriatopogrfica e a toon estrutual, a relagio & de pura incompatblidad,e que a segunda ¢ sempre mais satisfardria que a primeira. A consequéncia disso, dizem os autores, ¢ que nao s6 devemos abandonar totalmente a primeira tépica como também reformular todos os conceitos psi- canaliticos que foram forjados na época de vigéncia da primeira luz dos fundamentos da segunda. Jé outros autores ~ Laplanche, por exemplo!® ~ assumem uma posigio nitidamente contratia, pro- curando mostrar (mas, nesse caso, muito mais em nivel de indic: «bes genéricas, As vezes) que, na verdade, essa incompatibilidade nio existe c que, no limice, as duas t6picas sio perfeitamente concilidveis entre si. Mais uma vez, portanto, aparece a questio: continuidade ou ruptura? Retomando esas colocagoes temos a impressio de que tanto 0 conceito de ruptura quanto 0 conceito de continuidade", quando aplicados & leitura da obra de Freud, parecem nao se aplicar muito bem, pelo menos se tomarmos ambos os conceitos em sentido estrito. Talvez, ¢ é essa a hipdtese que nos servird de guia no decorrer deste trabalho, o que ocorte na obra de Freud seja algo mais sueil e mais complexo, Isso nos levaré, possivelmente, a questionar essa aleerna- tiva (monolitismo/ruptura) pelo menos nos termos em que ela nos éfrequentemente apresentada. £ possivel, de fato, que o estatuto do discurso freudiano seja regido por principios que estéo aquém ou além dessa dicoromia, 0 tes Dissemos hd pouco que sémos intengio de analisar esses proble- ‘mas no interior{da obra de Freud] Gostariamos de prevenir 0 leitor quanto as limitagées de nosso projeto, Ele nao tem, em primeito Jugar, a pretenséo de ser exaustivo. Os temas que nos propusemos discutir foram fruto de umascolha;Embora buscando ser a mais objetiva possivel, toda escolha envolve uma margem de arbitrio pessoal. Pensamos que aquelas questdes que foram por nés selecio- nadas constituem um niieleo importante de debates em torno do pensamento de Freud, isto é,acreditamos ter focalizado questoes que nao sio irrelevanees, Mas, seguramente, andlise poderia ter se estendidoa outrag} SyAcreditamos que as indicagées que tenta- ‘mos fornecer também sio vilidas para esss outras indagares e ape- nas por questio de prudéncia nao nos avencuraremos a fazer ge- cs \_joutto lado, ao | Patalizagoes apressadas. Como jé dissemos, & nossa convicgio que )s6 as andlises concretas devem ter peso. Foi esse 0 principio propulsor | [deste trabalho que, ali, segue indicagSes tedricas do préprio Freud, Em segundo lugar, nio nos propusemos dar solucées prontas ¢ | a¢abadas. Nossa intengio foi muito mais indicar caminhos para .-€884s solugbes ¢ afastar algumas hipéteses que nos pareceram in- sustentaveis. No estgio em que essas questdes se encontram na li 2 Yeratura existente, tomna-se dificil ~& essa nossa impressio a reali- zagio de uma andlise que se pretenda completa ¢ definitiva. Por de Freud é extremamente ric: c] complexa e uma as coisas que aprendemos, ao estudé-la,éa movermo-nos com lentidao precausio. Por causa disso, os resultados aos quais chegamos podem parecer insignificantes em relagio ao volume da discussdo. Esperamos apenas que esses resultados, mesmo pequenos, «stejam, em geral, corretos. Com relagio aos problemas que abordaremos, eles sio em niimero de(quatrd, ou seja, os mesmos que apontamos, a titulo de exemplo, no inicio desta introdugio. Assim, trataremos, em primeiro lugar, das questées que estio envolvidas quando se afirma que Freud al donoua teoria da sedugaio em 1897, teoria essa que até esse momento constitufa o alicerce fundamental de sua teoria psicopatolégica Procuramos mostrar que esse abandono foi um fenémeno de duas faces ¢ que se, de um lado, foi importante para a constituigio do Adiscurso psicanalitico, de outro, produziu uma série de desequilibrios ‘nessa mesma teoria, Procuramos apontar também como podem vie a ser solucionados na propria obra de Freud, Abordaremos, a seguir, a polémica da passagem do texto do Projeto., de 1895, a interpretagio dos sonbos, de 1900. Passagem. crucial porque, segundo se cré, seria nessa ltima obra que Freud teria, deum lado, abandonado de vez seus projetos neurologizantes econstituido a ideia de um inconsciente psiquico,¢, de outro, seria nncla também que a intexpretacio teria explicitamente guido ¢ constitufdo a teoria psicanalitica. Nossa tentativa serd a de mostrar que, no segundo caso, as coisas nao si das prim io simples quanto se pensa e, no primeiro, que possivelmente a questao esteve mal colocada na maioria das vezes. Em seguida, procuraremos discutir o significado da introdugio) S da “pulsio de morte” Nossa andlise se realizar em dois momentos. // Em primeiro lugar, vamos perscrutar o texto de Além do principio do prazer para indagas qual 60 sentido desse conceito no seu interior. Em segundo lugar, buscaremos discutir qual a origem da introducio dessa nogio e se realmente ela significou uma reviravolta total na teoria freudiana. Aqui também procuraremos mostrar que o par continuidade/rupeura nao parece ser um bom ordenador para a Ieitura de Freud | Porsilkimo, abordaremos a passagem da primeira t6pica (a teo- | ria eopografica esbogada no capitulo VII de A interpretagdo dos sonhos) paca a segunda (a teoria estrutural, exposta pela primeira vez em O ego ¢ 0 id). Nossa anilise se fard, aqui também, em dois , tentaremos mostrar que, de fato, a primeira t6pica se ve deffonte a problemas de diftil solugio no interior da prépria teoria e que foram esses problemas que levaram Freud a substitui-la. Por outro lado, no entanto, tentaremos mostrar ‘que a segunda tépica, se levada As titimas consequeéncias, também engendra problemas de solugio dificil no interior dessa mesma momentos. Primeiram: teoria, Nossa intengio é fazer isso através de uma anilise critica da ‘obra de Arlow e Brenner, Em segundo lugar, vamos voltar nossa atengio para os textos de Freud, sobretudo aqueles posteriores 2 1923, para indagar se nao haveria neles indicios para. solugio desse impasse, O resultado a que chegamos, diferentemente dos trés primeiros momentos, éque, de fato, nao hé em Freud, a0 que tudo leva a crer, uma resolugio clara dessa questo. Assistimos, aparen- temente, ao delineamento de um pensamento, ce uma certa ten- déncia que iré cada vez mais se impondo, sem, no entanto, ter se firmado definitivamente Na conclusio, procuramos reunir e sintetizar todo o material que fomos acumulando no decorrer do trabalho para, se possivel, indicar que tipo de movimento de pensamento se encontra na obra SS ee de Freud ¢ como pode-se tentar entender 0 conceito de mudanga no interior de sua obra = Como ler Freud? Essa questdo tem, na vetdade, uma gama razoavel- mente variada de dimens6es através das quais se pode abordécla Limitar-nos-emos a alguns pontos que nos interessam de modo mais particular, Nao pretendemos, em primeiro lugar, enveredar nessa querela de quem deve ler Freud. Argumenta-se — frequentemente invocando o carétertnico, irredutivel ¢absolutamente singular da relagio analitica — que s6 tem direito a discutir a psicanilise quem participar dessa relagio, © argumento seria correto se a psicanilise se reduzisse & relagio analitica, Mas esse nao é 0 caso. Freud insistiu ) ‘muito neste ponto: a psicanilise ¢ zammbém uma ciéncia!*eenguantol tal nao pode ser reduzida a relagao analitica: Enquanto discurso ) clentifico, por mais original que seja, @ psicanilise deve possuir os | -fequisitos minimos que definem qualquer disciplina cientifica e, ‘ipso facto, sex passivel de una Ieieura e de uma interpretagio que, de dircito, qualquer sujeito pode realizar. Filo Tentaremos ler e discutira psicandlise freudiana enquanto discurso rico e, desse ponto de vista, como notou Ricoeur duas aborda- “Bens sio possiveis, Pode-se tentar realizar uma eituna dessa obrd out entio uma interpretagéo filosifica, A interpretagio filoséfica & vim trabalho que pensaa obra aye me contexto e numa proble- mitica que ofil6sofo acredita pertinentes. A letura de Freud, por outro lado, ¢ um trabalho de anilise das ideias, e ela nao coloca problemas diferentes daqueles que aparecem no exame das obras de Kant ou de Bonald, por exemplo, Ela exibe as mesmas questées ¢ pode chegar aos mesmos resultados a que chegam as leituras nesse, campo. Nesse sentido, uma leitura de Freud seria a tentativa de ve. construgio.do movimento de seu pensamento, Reconserugaé Gue ‘no coincidiria necessariamente com umd repetigio pura do autor 24 | em questo", mas que procuraria explicitar as articulagées que co- mandam a estrutura da obra. Desse modo, afirma Ricceur, uma leitura de Freud pode pretender 0 mesmo grau de objetividade que foi atingido, por exemplo, pela histéria da flosofia E nesse sentido de leitura de Freud que este estudo deve ser entendido, Nosso projeto & 0 de tentar esclarecer algumas arti- culagées que guiam 0 movimento de pensamento no interior da obra de Freud, Nossa linha de interpretacéo seguird, portanto, essas indicagGes. Gostarlamos apenas de levantar um problema ao qual Ricoeur nio dé muita atengio e que servird para precisarmos melhor 0 gue estamos entendendo por uma leitura de Freud. A questio é a seguinte: a psicandlise freudiana tem a pretcnsio de ser um discurso cientfico e,como ciéncia, esa disciplina nao colocaria requisites para sua leitura e sua interpretagao que sio diferentes daqucles que si0 exigidos quando se lé um texto, por exemplo, de filosofia, como a obra de Descartes ou Leibniz? ‘Uma cigncia enquanto tal tem um modo proprio e especifico de estabelecer suas teses (papel da observagio, da experimentagio etc.), de encadeé:-as eFndamentt-las. O problema da verdade, por exem- plo, nao se coloca da mesma mancira para o discurso cientifico ¢ para o discurso filos6fico. Nesse sentido, analisar ¢ discutir um discurso cientifico estaria sujeito a outros requisitos e protocolos _-ue nao aqueles utilizados para a anilise do discuiso filoséfico. A andlise do discurso freudiano nao seria, dessa forma, muito mais ~ do dominio daquilo que, hé um tempo razodvel, denominamos fi- Josofia das cigncias? A ciéncia em si deverlamos enderegar outros tipos de questoes, tais como: qual o seu regime de provas ¢ validacao; “ qual o papel da experiéncia e das hipéreses; se hd uma adequagio entre as proposigées que ela coloca e aquilo através do qual procura estabelecé-las. Acreditamos que esse trabalho é possivel elegitimo. Acreditamos também que um outro tipo de leituraé possivel e legitimo, mesmo quando aborda um discurso cientifico, Leicura dupla que em nenhum "se, em primeiro lugar, tomar um discurso cientifico(um tentar estabelecer 0 conjunto das gencalogias conc ais que fluenciaram e mesmo determinaram, em certa medida, a constitui- Gio desse discurso, Pode-se, por exemplo, tentarretragar toda atrama conceitual que leva de Charcot a Freud com relagi ao problema da histeria. Ou, entio, entar examinar como certas“redes conecituais” (Helmholz, Fechner, Bruckner) influenciaram a ética freudiana na sua leitura dos fenémenos psicopatolégicos! Esse trabalho seria um trabalho de histéria Pde-serambém, em segundo lugat,tomar um discuso cientifico e conferirlhe o “estatuto de uf texto"®,raté-lo como uma rede, um tecido de significagoes! geet ape ser explicitado, comentado, discurido ¢ interpretado, E exatamente nesse sentido que temos engio de ler Freud, no qual achamos que uma “leitura" épossivel © desejavel. Quier dizer, nosso propésito no sera, por exemplo, discutira veracidade da teoria da sedugao ou do complexo de Edipo, mas 0 seu significido ¢ os avatares dessa significagio na trama dos conceitos psicanalitibes. Se se concorda em enominar a primeira dessas tarefas como sendo do dominio da fildsofia das ciéncias ea segunda como sendo do campo da histéria das &igncias, poder-se-a, entio, denominar este timo trabalho de epistemologia'® Nesse sentido, ¢ s6 nesse sentido, o presente projets pode ser considerado um questionamento epistemolégico 4 obra de Freud. Poder-sc-ia ainda objetar que essa proposta uma pura questio de convengio terminolégica e que dar outros nomes is coisas & nfo s6 indil como pode gerat confusio. Que se trata de uma convengio, estamos de pleno acordo, Que ela seja intl e gore confusio, nao temos tanta certeza, O que nos levou a.essas consideragies foi o fato de que, para Rieceur, por exemplo, patecem nao ter muita importincia as caracteristicas particulares ¢ specificas do objeto ao qual aplica uma determinada leitura, F so bretudo (para nio dizer exclusivamente) 0 modo de tratamento que parece sero relevante para ele 26 [Nao estamos seguros quanto a isso, Suspeitamos que a natureza do objeto tem uma importincia rzzodvel no seu modo de tratamento. “Assim, se em linhas gerais concordamos com Ricoeur, pensamos também que certas particularidades de uma modalidade discursiva nao devem ser desprezadas e que, portanto, por mais préximas que possam estar leitura de um discurso filos6fico ea de um discurso cientifico, por exemplo, no sentido que precisamos anteriormente, tal fato nao basta para pensarmos numa identidade. E verdade que esse géncro de leitura de uma ciéncia parece ser algo relativamente recente, de modo que ainda nos movemos de forma bastante indecisa nesses dominios. Por isso mesmo, essas considerages devem ser tomadas pelo que sio: sugestoes. mm Para finalizar, gostariamos de fornecer algumas indicages gerais sobre o presente projeto. Ele trata, primeiramente, de forma exclusiva de Freud. Toda liveratura posterior s6 sera utiizada na medida em ‘que sirva para esclarecer este ou aquele ponto da obra freudiana. E, esses casos nao serdo frequentes. Basicamente, toda bibliografia que utilizaremos tem como tema a obra de Freud, encarada seja em seu conjunto, seja cm alguns de seus aspectos particulares. Desejamos, desde ja, expressar nossa divida para com a obra de J. Laplanche. Suas indicagdes sempre foram para nés preciosos inserumentos de trabalho. Se algumas vezes expusemos nossa diver- .géncia com relagio as suas posigées, gostarlamos que isso fosse en- tendido como uma homenagem a.um autor que sempre nosincitou { reflexio sobre os problemas que a obra de Freud coloca. Gostariamos também que o leitor tivesse presente que, dadas as, caracteristicas deste trabalho, muitas vezes usamos um mesmo texto de Freud com intengécs ¢ finalidades diferentes. Essas reperigbes foram inevitéveis e nio encontramos uma solugio mais apropriada ‘pata esse problema. Desde ja pedimos desculpas ao leitor nao apenas por isso, mas também por eventuais deslizes, Muitas vezes usamos 0s termos “sistema’, “sistematico” ¢ outras expressdes congéneres para indicar a obra de Freud. Seria desejivel, também, que o leitor nao fosse levado a pensar que, com isso, acre- .demos a “sistematicidade” da obra de Freud. \ Acreditamos que seu pensamento tende incessantemente para esse ponto, mas temos consciéncia de que isso nunca foiatingido. Ass «ssas expresses so apenas recursos econdmicos para evitar longas pardfrases ou repetigdes continuas, O mesmo vale para o termo “psicanilise” quando aparece isoladamente (a nao ser que 0 contexto indique o contrario). Ele significa “psicandlise freudiana’. Com telagao is fontes es citagées de Freud, elas foram feitas da seguinte forma: citamos, em primeiro lugar, na Standard brasileira. Como essa tradugio deixa muit ditamos ou def lescjar,cotejamos as citagées com o original alemao e, como muitas vezes a modificamos, indica- mos também o texto em aleméo. Em regra geral, a referéncia é a Gesammelte Werke. Assirn, Feeud, XU 32; XI, 22, significa volume pagina nessasrespectivas edigdes. Alguns textos, no enitanto, foram citados na Studiensausgabe, Nesse caso, a ctagio ficard assim: Freud, XY, 2251 (Stud), 15. Os textos utilizados dessa tiltima edigio esto indicados na bibliografia. Mais duas excegdes: 1) O texto do Projeto.. de 1895 & citado na Standard e nacdigio castelhana das Obras completas, A referéncia sera: Freud, 1,352; II (BN), 778, O texto de Breuer, “Consideragdes teéricas’, 3 parte dos “Estu- dos sobre histeria” esti citado na Standard ¢ na edigao inglesa de bolso, da mesma obra, na colegio The Pelican Freud Library. A indicagao ser4: Freud, I, 352; 3 (PEL), 280 Em alguns casos, essas modificagées na tradugao foram uma regra, como €0 caso dos termos Trieb e Verdriingung, que traduzimos pot “pulsio”e “recalque” (ou “recalcamento”), respectivamente. A Standard Edition inglesa foi, para nés, um valioso instrumento de trabalho. Suas solugdes para os problemas de tradugao sio, em ral, muito boas. Usilizamos também frequentemente as solugées de Laplanche ¢ Pontalis para o kexto da Metapsicologia (Idées, Gallimard). Gostarfamos, por fim, de agradecer & professora Matilena Chaui. Suas indicagées ¢ seus conselhos foram sempre valiosos. Gostariamos também de agradecer aos primeiros leitores deste texto, todos criticos severos mas amigiveis: Fabio Hermann, Arno Engelman, Bento Prado J. (a quem tanto se deve a publicagio deste texto) € Lutz R. Salinas Fortes. Nio gostaria também de deixar no esquecimento a colaboracao generosa e desinteressada de Luiz B. Orlandi, ‘Que todos renham certeza de minha amizade, ¢ Salinas, Bento, Fibioe Arno ~ auséncias humanas e intelectuais tao sentidas -, de sminhas saudades. Notas Amand Le moean Dien ~ Priminaied te oli aso, 197.3 1H. Gouhien Lajemese dupe Comte formation du pasion, 336e anos punts. ‘Como, por exemplo,eatar do problema de angst em Freud sem ser eeiado cite textos qie so consideidos por alguns como azendo pte dapéhistéva da pias? O- Manson, Fd, 1970 p22 P Rice, Delincerprization, 196 S. Feud, Comme aut Jer dane analy, ai, FUR 1974, pp 38.38. Esamos tando ea eg pore a ica que ns foresees gr das noes de Fred uma edi bling exremsmente uid Fre, VL 60,2. 25¥,57 0.1 “Temos consienciade gue ia qu cabamos de die andapermanece num ampogendsico, ‘Masa pari dagu.oprxin pss pode ser anv concreta Aton eC. Rennes Coin penn eet Laplanche,Problmatiguer 1,198 [Naverdade oconcito de otinuidade&o peoblemco quanta ode rapt nce c- ontios tanta queer quanto nese ena. Coo. 1 ead, XXI, 3175 XVI 148, 8 PR ewido. haem ich 26 Fo dima hides fo levad cabo recentemente por P,Asroun no seu lio Tnerdacion i eptnloifeudinne 1981, embora sen pane 8. 29 G Lehman, Cid dépsmologe’ In: Manus rersa do Centcode Liga Eien login ~ CLE/Unicamp, vl 1,91. As obserajes que feemos antedorments bua nes artigo, mas emos clara cnsctnca de qs tata de una inerpeeas xa respon sabilidae sos, ramos, novamenss, nos polande, agi no acgo de Lebrun, iad acs: Mais ama ‘er também hemos qo sums inerpreando, No csnon no era, que ‘erndoraicalmente snoring x0 CoNCLUSAO A espiral e o péndulo Apés termos tentado trabalhar os problemas que indicamos na introdugio deste estudo, podemos Fazer uma pausae ventar refletir sobre 0s resultados a que chegamos. Rigorosamente falando, temos muito pouco a acrescentar Aquilo que viemos apontando no de- correr deste trabalho, Partimos de duas posigées com relagio & obra de Freud, em confronto entre si, que quetiam ver ou uma conti nuidade por toda a obra de F ‘ud ou uma ruptura em algum ponto dessa mesma obra. Desde aquele momento de apresentagao externa- ‘mos nossas diividas quanto A validade de ambas e, num certo sentido, nossas suspeitas foram confirmadas. Por um lado, de fato, vimos que ¢falso pensar qu existem rup. turas radicais no pensamento de Freud de tal mancira que, a partir de um determinado momento, a teoria deveria ser repensada em moldes totalmente diferentes. Houve abandlonos temporiios, sem a menor divida, como mostra o exame probiema da tcoria ¢ sedugio, mas nao abandonos definitivos. A primeira imagem que nos ocorre é a de um pensamento que avanga por oscilagdes, ora enfatizando um aspecto, ora o seu contritio, : que, porém, a longo prazo, acaba pofintegiat esses diferentes polos. Por outro lado, vimos também que no corfeto pensar numa “continuidade ininterrupta” na forma deum pensamento que, partindo de um nicleoinicial, iia se expandindo e agregando dados novos, scjam aqueles oriundos da pritica clinica, sejam os que emergiriam como consequéncia de 293 determinadas premissaste6ricas anteriormente estabelecidas. Nao que esses movimentos nao existam no pensamento de Freud, $6 q nio sio el Enfim, tudo parece indicar que a possibilidade ou de um Preud que sempre disse a mesma coisa ou de um outro que em alguns, momentos abandonou tudo para repensar a teoria a partir de outras enovas perspectivas € uma falsaalrernativa. A psicandlisefreudiana parece ter sido muito mais uma lenta gestagio conceitual em que as nogées foram retificadas, precisadas, repensadas ou explicitadas umas ‘em fungao das outias ¢ também em fungio das novas aquisigoes fornecidas pela pritica clinica. Hesitagoes, oscilagdes, abandonos temporirios? Tudo isso houve, sem diivida. Mudangas radicais € definitivas? Tudo parece indicar que nao. Pelo menos nos casos patadigmiticos que examinamos neste trabalho. ‘Mannoni coloca, diziamos, que Freud jamais abandonow wma sé dé-suas ieias. Ou conservou-s, ou superou-as. Esa também ¢ ‘nossa impresa0. Mas é necessirio precisar com maior clareza esse s, parece, que S20 0s seus caracteristicos. conceito de superacio no interior da obra de Freud. Nem sempre se trata de uma superagao do tipo hegeliano. Nesse iltimo sentido, pode-se dizer com seguranca que o pensamento de Freud é muito pouco dialético, Essa superacio em Freud parece estar muito mais ligada a um movimento em que esas oscilagées, das quasjé falamos, acabam por se compor numa unidade, sem que, no entanto, haja necessariamente uma sintese no sentido hegeliano, Isso parece estat muito mais ligado a uma progressiva redefinigio, retificagio o explicitagio dos conceitos. Duas imagens ou metéforas nos parecem indicar, para fixar 0 pensamento, esse movimento do pensamento ficudian0: 0 péndulo) aespiral. Deum lado,o discurso freudiano aparece coma claraente ondula, sto é, ora enfatiza um polo da questio, ora0 seu oposto. Por exemplo, a nogao de ego desenvolvida na primeira parce do Projeto..clea lugat, por longo tempo, a consideragdes do polo oposto (0 inconsciente) até que, por volta dos anos 1920, Freud retoma novamente 0 tratamento da nogio que, se nao tinha sido negligen- 294 ciada nesse incervalo, teve, sem duivida, um tratamento muito sum’ rio. Outro exemplo: o tratamento do problema da sedugio que abordamos longamente no capitulo I. Seguindo, porém, esse movimento pendular, percebemos que ele acabaformando, quando penctrmos neva complica ede rca que € 0 freudismo, um movimentaéspiralads, com a condigao de pensar essa imagem no espago e cilindricamente, em que as mesmas questdes sio abordadas, “esquecidas’ recomadas, mas nao.no mestno nivel em que estavam sendo tratadas anteriormente... Trata-se de varios procedimentos ¢ operagdes... O que cemos é sempre uma progressiva rearticulagio e redefinigio dos conceitos determinada por sua logica interna e pela progressiva integragio dos dados da experiéncia. Ora se trata do aprofundamento e do alargamento de ‘um conceito (sedugio). Ora se trata de uma progressiva diferencia 0 no interior de um mesmo conceito (ego). Orada emergéncia de ‘uma nogéo implicita mas ordenadora (a pulsio de morte) etc. E.cada tama dessas operagoes leva, por sua ver, frequentemente, a que se dobrigue a repensar 0 conjunto dos conceitos que lhe séo vizinhos € assim por diante. Tome-se como exemplo o resumo esquemético que fizemos no final do primeiro capitulo com relagio ao problema da seducio, E sempre com espanto que lemos e relemos o Projeto..€a cor- respondéncia com Fliess. Tudo jd esti li, quase somos obrigados a exclamar, Sim, de certa maneira, quase tudo ja esta ld. Mas serio nccessitios mais de 40 anos para Freud colocar tudo no seu devido lugar, repensar e retificar pacientemente esas ideias 295

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