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De Carballo
a Carvalho

omo é bem sabido, em Carvalho Calero deu-se nos der-


radeiros anos da sua vida uma mudança no seu uso

C público da língua escrita: uma mudança que podemos


resumir e simbolizar na grafia do seu próprio apelido,
quando começou a empregar para ele a ortografia portuguesa
ou histórica Carvalho, em vez
da comum em Espanha Carballo
(de origem castelhana, mas
usual na Galiza contemporânea,
e ademais, neste caso, «oficial»
na sua documentação pessoal).
Como foi realmente essa
mudança? Este artigo quer ocu-
par-se desse aspecto da biografia
de Carvalho.
Dedicatória de RCC a
Martinho Montero Santalla,
Mudança na concepção linguística? 1984
Há alguma gente que pensa que detrás dessa mudança
na prática ortográfica há uma variação na concepção que

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Carvalho tinha da nossa língua. Mas veremos que não é


exactamente assim: não se trata propriamente de uma mu-
dança na concepção da língua, mas de mudança das cir-
cunstâncias sociais em que a língua se desenvolvia (e,
conseguintemente, perante essa mudança de circunstân-
cias, uma mudança de atitude pela sua parte).
Naturalmente, se Carvalho Calero tivesse mudado de
ideia em quanto à concepção da nossa língua, nada haveria
de irregular nesse feito: Carvalho poderia mudar de opinião
ao respeito, como outros fizeram ou fizemos (nesse mesmo
sentido ou em sentido contrário, como foi o caso de Fil-
gueira Valverde), o que é perfeitamente legítimo. Cada um
defende em cada momento a opinião que lhe parece mais
fundada, e se antes defendia outra cousa ou mesmo o con-
trário, será porque não considerara bem os argumentos ou
agora descobriu outros que lhe parecem mais decisivos. Já
o dizia o antigo adágio latino: sapientis est mutare consilium
‘é próprio do sábio mudar de opinião’. Nada teria, pois, de
anómalo que Carvalho defendesse nos anos da sua madurez
uma opinião diferente da seguida em anos precedentes. E
claro está que, ainda que isso fosse certo, não haveria mo-
tivo para pretender rebaixar a coerência ideológica e pes-
soal de Carvalho sobre essa base.
Mas a verdade é que não houve em Carvalho Calero
uma mudança substancial de opinião a este respeito: a mu-
dança constatável na sua praxe ortográfica não se deve con-
siderar uma mudança de opinião sobre a concepção da
nossa língua.

Romanística e galeguismo
Antes de nada, devemos ter em conta dous feitos que o
próprio Carvalho repetidamente tem aduzido: que a uni-
dade da língua falada na Galiza com o âmbito idiomático
português era um princípio fundamental defendido tanto
pela ciência filológica (pelos grandes filólogos da Romanís-
tica, como Diez, Meyer-Lübke ou Menéndez Pidal) como
polo galeguismo (pelos principais ideólogos, como Mur-
guia, Risco ou Castelao).

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Assim o manifestava Carvalho, por exemplo, no edito-


rial de saudação com que se iniciava a revista Agália em
1985 (artigo editorial publicado sob o nome do conselho
de redacção, mas redigido por ele):
Contra o que alguns desinformados equivocadamente pen-
sam, este posicionamento é o tradicional dentro da Roma-
nística e da Galeguística.
Para aquela, o hispánico ocidental é galego-português, e
se é mester testemunho de autoridade espanhola, sirva a
do grande mestre Menéndez Pidal, na sua clássica Gra-
mática histórica.
Dentro do galeguismo, a unidade substancial do ibero-
románico atlántico foi confessada em palavras memo-
ráveis por Castelao, que propugnava a natural
coordenaçom entre as normas do sistema.
Nada queremos inovar. Só o resistir a desnaturaçom da
nossa fala, devolvendo-lhe o seu posto no catálogo das
línguas, evitando a desmembraçom que a debilite e o
isolamento que a degrade.

Agália, núm. 1, primavera 1985, pág. 1


Xaquín Marín, 1981

Uma atitude de stand-by


Porém, em geral, este princípio, que podemos considerar
«oficial» no galeguismo, não passou do campo da teoria, e
teve escassos reflexos na prática escrita da língua. Prevalecia
a ideia de que, na situação anormal em que a língua da Galiza
vinha desenvolvendo-se secularmente, com a sua ausência
da vida oficial e do ensino, intentar forçar a unidade gráfica
com o território de além-Minho podia aumentar a resistência
ao seu uso escrito, visto que o único sistema ortográfico que
os galegos escolarizados conheciam e sabiam usar era o es-
panhol. Estava-se, pois, em quanto à normativa linguística se
referia, numa situação de provisoriedade, que poderíamos de-
nominar de stand-by: isto é, na espera de que chegassem tem-
pos melhores para a língua, e, nomeadamente, que acedesse
ao campo do ensino.
De resto, por causa da secular separação política, eco-
nómica e cultural com Portugal, os próprios escritores ga-
legos tinham difícil conseguir publicações em português,

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tradicionalmente ausentes das livrarias galegas, e por-


tanto tinham poucas possibilidades de conhecer adequa-
damente o sistema ortográfico e a normativa linguística
portuguesa.
É significativo, a este respeito, o que declarava o escritor
galego Wenceslao Fernández Flórez em 1929 no jornal lis-
boeta Diário de Notícias:
quando me leio em português, a minha prosa e com ela o
meu estilo –calor anímico– ganha em realce [...], e eu tenho
a impressão de que estou lendo o meu amigo mais íntimo.
[...] O certo é que, se me fosse possível escrever em português,
respiraria melhor…
E propunha:
Já que difícil se torna adotar o português de um dia para o
outro, é preciso ir depurando o galego a pouco e pouco pela
acção do seu idioma culto.

Na indecisão dos escritores galegos influiria também


negativamente o feito de que a ortografia portuguesa
comum mantinha ainda nos começos do século XX uma
certa anarquia, com simpatias pela tradição latinizante
(com a revitalização de grafias como philosophia ou mys-
tica, que, contra o simples sistema ortográfico medieval, in-
tentavam recuperar a grafia latina, provavelmente por
imitação da cultura francesa, muito viva em Portugal na
época moderna).
Ainda assim, não deixou de haver entre os escritores gale-
gos do primeiro terço do século XX tentativas de levar à prá-
tica na língua escrita a teoria da unidade linguística
galego-portuguesa, em graus diferentes, mas em qualquer caso
com o emprego das grafias mais características do sistema or-
tográfico português, como lh e nh, em vez das grafias castelha-
nas ll e ñ (por exemplo, mulher e caminho, em vez de muller e
camiño) e m final em vez de n (como bem em vez de ben).
Podemos citar, entre outros casos menos significativos,
escritos de Murguia, de Noriega Varela, de Lugris Freire, e
até justificações teóricas da unificação gráfica como as de
Viqueira, de Correa Calderón e de outros. Mais geral vinha

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sendo já desde os escritores do século XIX o uso etimoló-


gico ou histórico de ge, gi (por exemplo, Geologia) e da letra
j (por exemplo, ajudar) e mesmo da cedilha (ç: por exemplo,
cabeça), que na área portuguesa se conservara ininterrup-
tamente desde os tempos medievais.
Mesmo nessas tentativas minoritárias havia abundantes
incoerências. Porém, não podemos dar grande importância
ao feito de que esse uso não seja sistemático ou contenha
erros. Pelo contrário, devemos reconhecer o mérito desses
esforços, que implicavam realmente uma rebeldia de ten-
dência reitegracionista contra a praxe ortográfica comum
e castelhanizada.
Até naqueles casos em que há menos sistematicidade or-
tográfica, cumpre atribuir a este género de indícios a impor-
tância que realmente possuem: esses esforços contra-corrente
indicam uma consciência, mais ou menos desperta, do carác-
ter lusófono da Galiza, embora se manifeste de modo esporá-
dico e mesmo incoerente. A anormalidade linguística em que
o cultivo da língua na Galiza teve que desenvolver-se explica
sobradamente essas incoerências, devidas muitas vezes à in-
comunicação com o mundo de língua portuguesa e ao natural
desconhecimento das normas linguísticas nesse contexto.

No SEG, 1928

O jovem Carvalho
Nessa atitude geral do galeguismo (isto é: de uma cons-
ciência de unidade galego-portuguesa em stand-by) é onde
se situa o jovem Carvalho Calero quando, ainda muito novo,
se incorpora ao compromisso com a cultura galega. De que

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a consciência da unidade linguística galego-portuguesa se


achava viva nele, embora numa situação de espera, pode-
mos aduzir algumas amostras.
Nos seus tempos uni-
versitários em Santiago,
quando contava apenas 20
anos, Carvalho publicou na
revista Nós um poema inti-
tulado «Cançón das lavan-
deiras» (Nós, tomo 7, núm.
76, 15 de abril de 1930, pág.
69). O notável aqui é o uso
da cedilha, que podemos ver
no próprio título, tomado
do primeiro verso, na palavra
cançón (que ocorre ainda
outras duas vezes no poema)
e em outros vocábulos desse
texto (avança, avançaba).
À luz da nossa história lin-
guística e da situação na-
quela altura, é óbvio que o
uso da cedilha nesses casos
só se pode explicar como
«Cançón das lavandeiras» , uma amostra consciente de
revista Nós, 1930 unidade linguística galego-portuguesa (como o fora igual-
mente em Rosalia quando em Cantares galegos escrevia,
por exemplo, coraçon).
Se já este género de indícios gráficos delata em Carva-
lho Calero uma consciência do carácter lusófono da nossa
língua, dispomos, ademais, também de um testemunho ex-
presso no mesmo sentido. Em 1933 publicou no jornal El
Pueblo Gallego, de Vigo, um comentário sobre uma antolo-
gia poética do poeta português Antero de Quental, editada
pela Universidade de Santiago. Com esse ensejo, Carvalho
manifestou claramente a ideia substancial que agora nos
interessa: «a lingua de Antero é a mesma nosa». Eis o fun-
damental desse texto:

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Está ben todo o que sexa difundir en Galiza a cultura de


Alén Miño. E ainda tal difusión semella unha das mais na-
turás obrigas da Universidade galega [...]. A mocedade ga-
lega vivíu ate o de agora sin contaito ningún coa cultura
portuguesa. [...] E sin embargo, a lírica portuguesa canta,
pra o ouvido galego, unha canción familiar. Non só a lingua
de Antero é a mesma nosa, senón que o esprito que revelan
os versos portugueses que o galego lé, é un esprito que se
abre inteiro pra o leitor: a maneira de pensar e sentir, a
mentalidade e a sentimentalidade do poeta, son as mesmas
nosas. [...]

Por todo, e por saudoso, en fin, él nos fala nosa linguaxe, e


pra entrarmos no seu mundo non necesitamos enmascararnos
os galegos [...] zugando no mel do verso familiar, aquel
celme vital que decorre pol-as veas da nosa propia i-alma

«Versos de Antero», El Pueblo Gallego, 11 de março de 1933.


No texto da citação, o itálico é meu.

As Normas académicos de 1971


Com o início da guerra civil espanhola em julho de 1936
vieram os longos anos da «longa noite de pedra»: nesses
tempos de obscuridade para a reivindicação e para o cultivo
da língua, é compreensível que não se considerasse tarefa
urgente reafirmar a unidade lusófona. Era tanto o silencia-
mento imposto à língua desde as instâncias do poder, e
tanto o desprezo que daí resultava, que qualquer resquício
por onde a língua pudesse manifestar-se publicamente sig-
nificava uma pequena vitória contra o ostracismo e a hosti-
lidade imperantes. Resultava, pois, de primeira necessidade
a presença pública da língua escrita, qualquer que fosse a
sua ortografia ou mesmo a sua correcção e pureza.
Temos que dar um salto aos anos 60 e 70, quando a re-
pressão cultural por parte do sistema político franquista
começava a afrouxar. Nesses anos aparecem já vozes de
distinguidas personalidades da cultura galega que advo-
gavam por uma «mudança de rumo», na orientação da nor-
mativa linguística galega, em direcção a uma progressiva
aproximação à língua escrita luso-brasileira: ainda hoje
nos resultam admiráveis pela sua clareza (e clarividência)

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as indicações neste sentido formuladas já pelos anos 60


por Valentim Paz-Andrade ou pelo ferrolano Ernesto
Guerra da Cal.
E assim chegamos ao ano 1971, em que a Real Academia
Galega faz públicas umas normas linguísticas de carácter
morfológico. É sabido que o redactor fundamental de tais
normas foi Carvalho Calero. Ora, entre essas normas mor-
fológicas podemos centrar a atenção na que estabelece a
formação dos plurais em -ais (animal / animais). É evidente,
à vista das características dessa forma, que se trata de uma
norma de índole abertamente reintegracionista: a termina-
ção -ais é a usada na grafia luso-brasileira do século XX,
mas nem tem peso notável na fala da Galiza (onde, ademais
do castelhanismo -ales, prevalece a forma popular -ás: ani-
más) nem é tampouco histórica; mesmo na área luso-brasi-
leira foi comum até bem entrado o século XX a forma -aes
(por isso mesmo empregada por Castelao, apesar de não ser
usual nas falas galegas). A introdução desta formação em -
ais foi, pois, um acto de consciente reintegracionismo, de-
vido, já se vê, a Carvalho Calero.
Por sinal, o plural em -ais alcançou logo grande éxito. O
mesmo «Instituto da Lingua Galega», que, em rebeldia às
normas da Real Academia Galega, estabeleceria como nor-
mativo para os seus seguidores num primeiro momento o
plural castelhano em -ales, acabaria finalmente adotando
também -ais. Este caso é uma prova do fácil que teria sido,
nos anos que vão desde então a hoje, realizar sem traumas
um processo de reintegração linguística que devolvesse à
língua da Galiza a sua substancial identidade.
Começava a década dos anos 70 e anunciavam-se mu-
danças substanciais tanto na situação política espanhola
como na vida social da língua, cada vez mais ameaçada.

O artigo de Rodrigues Lapa do ano 1973


Nestas circunstâncias apareceu na revista lisboeta
Colóquio / Letras (número 13) o artigo do filólogo portu-
guês Rodrigues Lapa intitulado «A recuperação literária
do galego».

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Rodrigues Lapa era um dos maiores linguistas de Por-


tugal e conhecido mundialmente por ser especialista na
nossa literatura medieval, nomeadamente na poesia trova-
doresca. A editorial Galaxia publicara uns anos antes a sua
edição crítica das cantigas de escárnio dos trovadores me-
dievais, uma obra monumental que suscitara unânime re-
conhecimento em toda a comunidade científica. E era,
ademais, desde havia bastantes anos, um entusiasta e ge-
neroso defensor da cultura e da língua da Galiza, admirado
e venerado por todo o galeguismo.
Neste artigo de 1973, desde uma atitude de profunda
simpatia e solidariedade, convidava a cultura galega a re-
flectir sobre as ameaças à sobrevivência da língua e propu-
nha levar à prática o velho princípio galeguista de
unificação linguística galego-portuguesa.
Citando as advertências já formuladas naqueles anos
por alguns escritores galegos, enumerava as novas e graves
ameaças que a língua da Galiza deveria defrontar nos pró-
ximos tempos, entre elas o abandono massivo das áreas ru-
rais para os ambientes urbanos castelhanizados ou para
fora da Galiza. E propunha «que, sendo o português literário
actual a forma que teria o galego se o não tivessem desviado
do caminho próprio», a língua escrita da Galiza se reinte-
grasse na «velha casa comum» da língua portuguesa.
A proposta de Lapa estava formulada em termos gerais,
sem precisar pormenores concretos mais que nalguns
exemplos:
Sem nos demorarmos a explicitar os termos exactos desta
opção, julgamos que a primeira operação a fazer no idioma é
a sua descastelhanização, limpando-o de formas que desna-
turam a sua verdadeira fisionomia; e, se assim fizermos, já
automaticamente o aproximamos do português.
Também urge outra operação, mas já em sentido diferente:
aproximá-lo de certas formas do castelhano e português,
postos a par. Estão neste caso formas cultas, idênticas em
português e castelhano, e que no galego conservam ainda
uma configuração inaceitável e antiliterária: pra em vez de
para; orgaizar em vez de organizar; terreo em vez de terreno;
persoalidade em lugar de personalidade; pirmeiro em lugar

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de primeiro; amabamos em vez de amábamos; a-i-auga em


vez de a água, etc.

Primeiro, querer e saber usar o que nos é comum; o resto, que


ainda é muito, virá depois.

Segundo Lapa, os efeitos positivos dessa operação para


a língua da Galiza seriam visíveis a bem curto prazo:
Daqui a vinte e cinco anos, essa língua renascida para a ci-
vilização, incorporada já de pleno direito no idioma de por-
tugueses e brasileiros, seria lida por mais de 200 milhões de
indivíduos; e num prazo de cinquenta anos, assim o dizem
os futurólogos da demografia, serão 400 milhões a falar o ga-
lego-português. É uma perspectiva risonha, que nos deve en-
cher de júbilo e ufania!

Lapa era bem consciente de que as suas sugestões, ape-


sar de estar apoiadas na tradição galeguista, poderiam ser
mal interpretadas por alguns na Galiza:
Isto que dizemos, com pureza de intenções, que nascem do
nosso entranhado amor pela Galiza, poderá aos que não con-
hecem o nosso passado galegófilo parecer uma espécie de in-
citação a um Anschluss cultural e linguístico do galego.

Reconhecemos perfeitamente que estas sugestões dum velho


filólogo, preocupado com o destino do idioma galego, a que
é tão afeiçoado, hão-de encontrar resistência em certas es-
feras literárias e não literárias. Há hábitos adquiridos, que
vêm de muito longe, e é custoso removê-los de um golpe.
Além disso, o galego tem reputação de muito teimoso; mas
essa heroica teimosia com que salvou durante séculos a sua
maneira de falar ser-lhe-á fatal agora, se não souber adap-
tar-se às circunstâncias, fazendo da sua língua rural, embora
eminentemente expressiva, um apurado instrumento literá-
rio. É este o problema crucial.

Na realidade, não era nova essa proposta em Lapa, pois


já estava presente em textos seus dos tempos da República
espanhola. Fora nesse tempo –e não na sua ancianidade,
como alguns disseram aqui na Galiza, pretendendo desau-
torizar a atitude de Lapa como «uma teima senil»– quando
começou a preocupação pela língua da Galiza, e o seu con-

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vencimento de que o único modo de sobrevivência para ela


era conservar a unidade lusófona, especialmente no campo
ortográfico.
Em 1932, depois da sua primeira visita à Galiza, onde já
notara «a influência machucadora da civilização caste-
lhana» sobre a língua, numa entrevista no jornal lisboeta
Diário da Noite declarava:
É necessário em primeiro lugar reformar a ortografia galega
no sentido da nossa ortografia oficial, sempre que isto seja
possível, que quase sempre o é.

Teremos então um português ingénuo, delicioso, sabendo a


velho, mas próprio para exprimir todos os matizes da sensi-
bilidade [...]. Depois disto teremos um grupo português-bra-
sileiro-galaico, com [...] milhões de pessoas falando,
aproximadamente, a mesma língua.

As reacções ao artigo de Lapa


Apesar de que o artigo de Rodrigues Lapa foi reprodu-
zido pela revista galega Grial, da editorial Galaxia, nesse
mesmo ano 1973, o texto de Lapa foi pouco conhecido na
Galiza, em parte porque a revista tinha pouca difusão, e em
parte porque mesmo para os leitores habituais de Grial o
título do artigo não dava uma ideia exacta do seu conteúdo
(pois sugeria que se trataria de uma apresentação sumária
do ressurgimento literário galego dos séculos XIX-XX).
Por parte de um sector do «galeguismo oficial» houve
uma reacção algo visceral: creram ver na proposta de Lapa
uma espécie de «emenda à totalidade» do movimento gale-
guista. A manifestação mais clara dessa atitude foi a réplica
de Ramón Piñeiro, publicada igualmente na revista Grial e
reproduzida na imprensa galega.
Na realidade, Piñeiro não compreendera bem o sentido
da proposta de Lapa; mas a sua réplica divulgou-se, e teve
como consequência que alguns, que não chegaram a ler o
artigo de Lapa, fizeram-se dele a falsa ideia que a réplica de
Piñeiro produzia.
A reacção de Piñeiro não se reduziu a essa réplica, mas
promoveu outras respostas de vários escritores galegos.

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Contou-me Carvalho Calero que Piñeiro também a ele lhe


sugeriu escrever na revista Grial uma resposta de rejeita-
mento a Lapa, e que Carvalho lhe respondeu: «Antes de re-
jeitar a proposta de Lapa, teremos que ver se ele não tem a
razão».
Esta atitude de Carvalho suscitou, como é fácil supor, o
descontento de Piñeiro, que se foi transmitindo depois à
maioria do «galeguismo oficial» de Galaxia. Aqui foi real-
mente o começo da mudança na praxe linguística de Car-
valho, e conseguintemente, da sua progressiva marginação
por parte do grupo dirigente do «galeguismo oficial».
Para Carvalho Calero o artigo de Lapa foi como uma
«sacudida» na consciência. Nesse influxo foi determinante
a personalidade de Lapa, pois Carvalho sabia bem que se
tratava de uma pessoa em que se reuniam duas qualidades:
por um lado, a sua alta qualificação ética, demonstrada no
seu velho e sacrificado compromisso democrático com a li-
berdade e com a cultura e com a língua da Galiza, e, por
outro lado, a sua alta qualificação científica de especialista
no campo linguístico.
A partir desse momento Carvalho começou a prestar
mais atenção às perspectivas de futuro da língua: com-
preendeu que não era razoável continuar indefinidamente
na inércia histórica do stand-by quando as circunstâncias
sócio-políticas introduziam uma situação nova –e dramá-
tica.
Nas circunstâncias sócio-políticas dos anos 70, quando,
por um lado, se eclipsava o sistema político franquista e, por
outro, o predomínio do castelhano na Galiza se ia tornando
esmagador, a «política da língua» já não podia resignar-se
a ir mantendo uma resistência de qualquer modo, como ti-
vera que ser até essa hora, mas devia projectar uma pers-
pectiva de futuro atendendo a todos os factores que
condicionam o desenvolvimento das línguas no mundo
contemporâneo. Se no passado a língua da Galiza conse-
guira resistir quase milagrosamente, tudo agora indicava
que as condições que tornaram possível esse milagre de
pervivência não iam manter-se no futuro.

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Essa era a urgência do assunto, exposta com clarividência


por Rodrigues Lapa. Na consciência dessa urgência baseia-
se a posição de Carvalho Calero nos anos sucessivos.

Carvalho Calero, La Voz de


Galicia, 1975-julho

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Os artigos do verão de 1975


A primeira manifestação reintegracionista pública –pois
em conversas privadas já se vinha manifestando nesse sen-
tido desde havia algum tempo– de Carvalho é o artigo «Or-
tografía galega», aparecido no jornal corunhês La Voz de
Galicia em 27 de julho de 1975. Aí declara já abertamente
que chegara talvez o momento de que a normativa linguís-
tica galega corrigisse o seu rumo.
históricamente non habería outra ortografía que a inspirada
no portugués. É indubitábel que unha nivelación realista coa
práctica escrita deste idioma está de acordo coas orixes e pode
abrir un campo de espansión moi necesario ás nosas letras.
Estamos se cadra no intre en que compre xa unha revisión da
nosa normativa á luz deses feitos. [...] Inserto o noso idioma
no complexo iberorrománico occidental, calquer grafía que
resulte dialectalmente rechamante producirá unha impresión
de indisciplina cultural, que debe evitarse se pode selo [...]
restabelecendo a continuidade que pode ter sido alterada
polo intre dialectal en que a lingua vivíu durante séculos.
Embora ele não fizesse aí referência expressa à situação
política, esse pano de fundo estava na mente de todos: tudo
indicava que a ditadura franquista chegava ao seu fim (e,
de facto, esse mesmo ano, em novembro, faleceria Franco),
de maneira que a situação idiomática da Galiza podia co-
meçar a ser substancialmente diferente. Concretamente, era
previsível um reconhecimento oficial da língua, que impli-
caria o seu acesso ao ensino geral. Previa-se, pois, que mu-
dariam as condições que determinaram ao longo dos anos
a situação de stand-by a respeito da adopção de uma nor-
mativa linguística (nomeadamente ortográfica) integrada
com o âmbito lusófono.
Depois dessa primeira manifestação pública, um novo
artigo só duas semanas mais tarde, com o título bem escla-
recedor «Galego-portugués ou galego-castelán» (La Voz de
Galicia, domingo 10 de agosto de 1975), prosseguia a expli-
cação e divulgação dessas ideias (um labor que já nunca se
deteria nos 15 anos que lhe restavam de vida). Afirmava
aqui que uma «postura de isolamento» da nossa língua
«non sería mais que unha ilusión inxenua, que redundaría

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na promoción dun desgaste progresivo». Renunciar á uni-


dade galego-portuguesa «conduciría á dialectalización do
galego como galego-castelán» e
continuará o proceso encetado hai séculos, pero agora ace-
lerado polas condicións da vida moderna, cara a reducción
da lingua do país a un elemento sustratístico da lingua ofi-
cial. É decir, que un galego-castelán remata, lóxicamente,
nun dialecto castelán de sustrato galego. Unha situación
análoga á do moderno leonés, ou á do aragonés moderno.

A calúnia de «reintegracionista por despeito»


Pode ser aqui oportuno fazer alusão a uma falsa informa-
ção que tem corrido e que alguns aceitaram de boa fé como
verídica. Alguns propalaram que o compromisso reintegra-
cionista de Carvalho fora provocado pelo seu «despeito» por
não ter sido eleito presidente da Real Academia Galega
quando em 1977 faleceu o então presidente Martínez-Risco.
Trata-se de uma calúnia –entre outras que se propala-
ram contra Carvalho– que é fácil rebater, em primeiro lugar,
com limitar-nos a confrontar simplesmente as datas: Sebas-
tián Martínez-Risco, então presidente da Academia Galega,
faleceu em setembro de 1977, portanto, dois anos depois
desses artigos de Carvalho no verão de 1975. A posição de
Carvalho vinha, pois, de bastante antes de que pudesse sen-
tir nenhum «despeito» por não chegar a presidente da Real
Academia Galega.
Em segundo lugar, como já o próprio Carvalho comen-
tou no seu momento, os estatutos da Academia exigiam que
o presidente tivesse a sua residência na cidade da Corunha,
de modo que nunca ele, residente em Santiago, poderia pen-
sar na possibilidade de ocupar esse cargo. Eis como se ma-
nifestava sobre este assunto no livro de Conversas en
Compostela con Carballo Calero, de Miguel Anxo Fernán-
Vello e Fancisco Pillado Mayor (editado por Sotelo Blanco
Edicións, Barcelona 1986):
No regulamento da Academia Galega, redactado cando a sua
fundazón, estabelece-se que os membros da Xunta de Go-
verno daquela corporazón teñen que residir na Coruña, de

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maneira que, regulamentariamente, era imposível que eu


ocupase ese cargo. [...] De xeito que eu non tiven que plan-
tear-me o problema.

pp. 213-214

E, finalmente, naqueles dias o próprio Carvalho, to-


mando posição perante a campanha de diversos colecti-
vos culturais galegos em favor do seu nomeamento,
rejeitou perentoriamente essa hipótese. Cumpre termos
em conta a sua sistemática e constante renuência a de-
sempenhar cargos públicos, por ele várias vezes manifes-
tada como um traço básico do seu carácter individual.
Dizia nas mesmas Conversas:
Se o regulamento fose outro e eu estivese en condizóns le-
gais de optar à Presidéncia da Academia, desde logo a miña
actitude teria sido a de refugar toda nominazón para este
posto [...] eu, se podo, evito o desempeño de cargos admi-
nistrativos, porque non gosto de empregar o meu tempo
nas mil actividades de governo que exixen estes cargos [...].
De xeito que, con esta posizón mental, o desempeño do
posto de presidéncia da Academia para min teria sido un
tormento. Un tormento no que seguramente fracasaria. [...]
Se residise na Coruña e obtivese os votos unánimes ou maio-
ritários dos meus compañeiros de Academia, tampouco
teria aceitado [...].

pp. 214-215

Apresentaçâo de Da fala e da escrita, 1983, Santiago

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Capítulo

Falar de Carvalho como «reintegracionista por des-


peito» não é só uma ofensa ao seu alto sentido moral, ao seu
compromisso vital com a cultura e a língua da Galiza desde
os anos moços e ao seu rigor intelectual, mas também uma
ofensa ao sentido comum.

À maneira de conclusão
Não se pode, pois, dizer que Carvalho Calero tenha mu-
dado de opinião substancialmente no que diz respeito ao
carácter lusófono da Galiza. O que da análise dos feitos re-
sulta é que nas últimas duas décadas da sua vida, nos anos
70 e 80, concentrou a sua preocupação neste aspecto porque
as circunstâncias sócio-políticas infundiram dramática ur-
gência ao problema.
Passados 40 anos desde aquelas datas, e vista a evolu-
ção social da língua, com a perda massiva e progressiva de
falantes que a coloca numa «situação terminal» (quando
não de «clinicamente morta»), não podemos deixar de ad-
mirar a clarividência de Carvalho Calero –e de agradecer a
generosa entrega à causa da sua sobrevivência.

Bibliografia
CARBALLO [CALERO], Ricardo, «Cançón das lavandeiras», em: Nós: Boletín
mensual da cultura galega (Ourense), tomo 7, ano XII, núm. 76 (15 de
abril de 1930), pág. 69.

CARBALLO CALERO, R[icardo]., «Apuntes. Versos de Antero», em: El Pueblo


Gallego (Vigo), núm. 2795, sábado 11 de março de 1933, pp. 1 e 14. Ree-
ditado em: CARVALHO CALERO, Ricardo, Umha voz na Galiza: Artigos de
jornal (1933-1989). Presentación de Carmen BLANCO, Sotelo Blanco Edi-
cións, Santiago de Compostela 1992 (Colecção «Estudios e investiga-
cións»), 336 pp., núm. 3, pp. 20-22.

CARBALLO CALERO, R[icardo]., «Ortografía galega», em: La Voz de Galicia (A


Corunha), 27 de julho de 1975.

CARBALLO CALERO, R[icardo]., «Galego-portugués ou galego-castelán», em:


La Voz de Galicia (A Corunha), domingo 10 de agosto de 1975.

[CARVALHO CALERO, Ricardo]., «[Saudaçom]», em: Agália: Revista da Asso-


ciaçom Galega da Língua (A Corunha - Ourense), núm. 1 (primavera
1985), pp. 1-2. [Este editorial de apresentação da revista Agália, sem tí-
tulo mas intitulado «Saudaçom» no índice, embora apareça assinado

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José Martinho Montero Santalha

no fim por “O Conselho de redacçom» foi redigido integramente por


Carvalho Calero].

FERNáN VELLO, M[iguel]. A[nxo]. / PILLADO MAyOR, F[rancisco]., Conversas


en Compostela con Carballo Calero, Sotelo Blanco Edicións, Barcelona
1986, 268 pp.

FERNáNDEz FLóREz, Wenceslao, Entrevista realizada pelo jornalista Novais


Teixeira, em: Diário de Notícias (Lisboa), abril de 1929.

GUERRA DA CAL, Ernesto, Lua de Alén Mar, Editorial Galaxia, Vigo 1959.

LAPA, Manuel RODRIGUES, «Uma entrevista oportuna», em: Diário da Noite


(Lisboa), 24 de agosto de 1932. Reproduzida em: LAPA, [Manuel] RODRI-
GUES, Estudos galego-portugueses: Por uma Galiza renovada, Sá da
Costa Editora, Lisboa 1979, pp. 17-20.

LAPA, Manuel RODRIGUES , «A recuparação literária do galego», em: Colóquio


/ Letras (Lisboa), núm. 13 (maio de 1973), pp. 5-14. Reproduzido em: Grial
(Vigo), núm. 41 (julho - setembro de 1973), pp. 278-287; e depois em: LAPA,
[Manuel] RODRIGUES, Estudos galego-portugueses: Por uma Galiza re-
novada, Sá da Costa Editora, Lisboa 1979, pp. 53-65.

MONTERO SANTALHA, José-Martinho, Carvalho Calero e a sua obra, Edicións


Laiovento (volume núm. 21, «Ensaio»), Santiago de Compostela 1993,
310 pp.

MONTERO SANTALHA, José-Martinho, «Carvalho Calero e Ferrol», em: Ferro-


lAnálisis (Ferrol), núm. 4 (1993), pp. 12-17.

PAz-ANDRADE, Valentín, «A evolución trans-continental da lingua galaico-


portuguesa», em: [VáRIOS], O porvir da lingua galega, Círculo de las
Artes (Instituto de Estudios, Sección de Publicaciones), Lugo 1968, 166
pp., pp. 115-132.

PIñEIRO, Ramón, «Carta a don Manuel Rodrigues Lapa», em: Grial (Vigo),
núim. 42 (outubro - dezembro de 1973), pp. 389-402. Esta carta aberta de
Piñeiro a Lapa foi reproduzida integramente nos últimos dias de
dezembro de 1973 pelo jornal El Ideal Gallego, da Corunha, repartida
em cinco entregas sucessivas. Depois foi incluída na colectânea de
ensaios de: Ramón PIñEIRO, Olladas no futuro, Editorial Galaxia, Vigo
1974, pp. 261-279.

REAL ACADEMIA GALLEGA, Normas ortográficas e morfolóxicas do idioma


galego, A Corunha 1971, 32 pp.. [Compreende normas ortográficas e
normas morfológicas. Ainda que publicadas aqui conjuntamente, as
normas ortográficas (pp. 3-26) foram aprovadas em 15 de fevereiro de
1970, e as morfológicas (pp. 27-30) em 4 de julho de 1971. Publicou-se
uma segunda edição deste folheto em 1977, com apenas leves mudanças
no conteúdo: REAL ACADEMIA GALEGA, Normas ortográficas e morfolóxicas
do idioma galego, Segunda edición, A Corunha 1977, 32 pp.].

VV. AA., Hei de entrar no meu povo: Reivindicarmos Carvalho Calero, Edi-
cións Embora, Ferrol 2019, 200 pp.

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