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Luto ou Melancolia Introjetar-Incorporar REALIDADE METAPSICOLOGICA E FANTASIA A incorporacao corresponde a uma fantasia e a introjegéo, a um processo: eis uma precisdo util, que nao deve nos surpreender e que encontramos algumas vezes em textos kleinianos. O que, ao contrario, no deixa de espantar, é ver qualificar a fantasia, um produto do ego, anterior ao processo, produto do psiquismo como um todo. Nesse pon- to fundamental, nossa concepgao se distancia do panfantasismo: ela tenta restringir 0 conceito de fantasia a um sentido mais preciso ¢ 0 faz colocando-o em contraste com o que a fantasia é chamada a mascarar. Com efeito, se convencionamos chamar “realidade” (no sentido me- tapsicolégico do termo) tudo 0 que age no psiquismo de maneira a the impor uma modificagao topica — quer se trate de uma restrigdo ends gena” ou “exdgena” —, poder-se-d reservar 0 nome de “fantasia” a toda Tepresentagdo, toda crenca, todo estado do corpo, que tende 20 efeito Posto, isto é, 4 manutengdo do status quo tépico. Uma definigao como &ssa nao diz respeito nem aos contetidos, nem aos caracteres formais, mas exclusivamente a fungdo da fantasia, fun¢ao preservadora, conser vadora, por mais inovador que seja seu génio, por mais extenso dhe moe © campo em que ela se descortina e a complacéncia que guarda para Mt A Caco, om os desjos. Nossa concerto significa sustentar que gf com iment narisic: mais do que atentar contra o sujeng ght esse formar o mundo. O fit de ela ser freqlentementeinggr t® a tmGgnifca que estja fora do assunto, mas que ela se refeg 8 tpi secretamente manta. Desde enti, compreender ung gat ‘aire um sentido preciso: €assinalar, coneretamente, aque mse tiga ela é canada a resist. A fantasia originatia sera ory a mia apropriada para salvaguardar a t6pica origina, a gy? ue ela seja posta em pergo. Toda ateoria metapsicolégica ng st fbta em itima andlise, para explicar © como © o porque da fanag de seus futos? Dizer que fantasia sustenta 0 processo implica une feinversio, cheia de conseqiléncias, de toda metodologia psicanaliny Procurar, 20 contréri, saber, atravessando uma fantasia, aque modi cago processual ela vem se opor, é passar da descricio do fendimenoi Snucompeténcia transfenomenal, é manter-se nesse ponto geomérico, partir do qual podria ser lida a origem metapsicolégica de cada fanaa até a “origem” do préprio origindtio, INCORPORAGAO: FANTASIA DA NAO-INTROJEGAO Inseparivel ao mesmo tempo da conjuntura intrapsiquica (que els 6 chamada a salvaguardar) e da realidade metapsicolégica (que relams ‘uma mudanga),a fantasia, quando nao é mais truncada ou deformads deve ser duplamente clogiiente: tanto da parte do sujeito que ainvens ‘quanto da do perigo que a conjura, Dentre todas as fantasias, remetitis assim & sua fangfo, algumas possuem um cardterprivilegiado, as que ilustram a conjuntura da instincias em seu conteddo mesmo. elas ~ como sabemos! ~ as arquifantasias de cena primitive, dec io, de sedugdo. ‘Mas hi também ~ menos conhecido — um outro tipo de ea tamibém prvilegiado, que, por seu contetido, ilustra o proceso Pe SE a topica esté prestes a se modificar. Queremos falar das ann corporagao. Introduzi no corpo, nele deter ou dele expulsat WE todo ou parte —ou uma coisa, adquirr, guardar, perder, tants, fatasistcas, que caregam em si, soba forma exemplar 6427 7 iE se, Pur, UT Laplanche € JB, Pontalis, Vacabulaire de la psychanalls ps9, ps0 80880 4s wn rig fingida), a marea de uma situa inrapsquca (ott esau que a realidade criou a partir de uma perda sofrida a ca pen, oS rtifcads, mporia una recom pps. A fantasia de incorporardo pretende realizar isso de sis PO indo no proprio o que sé tem sentido no figurado, cumpr ii” a perda que se imagina engolir, ter engolido, o que rie Fraley forma de um objeto. Na magia incoporane perce epi, procedimentos conjugados: 2 desmetaforzaga (a see aia do que se entende no figurado) e a ojerivacdo dono € uma feida do sujeito, mas a perda de um ob (a seni por incorporago dispensa do trabalho dooroso 1 posi. Absorver o que vem a faltar sob forma de aliment, se rel, no momento em que o psiquismo estéenlutado, é ing goss conseghéncas,&recusarintroduzirem ia pare de nao depositada no que est perdido, érecusar sabe 0 verdadero ae da pera, aquele que fria com que, sabendo, féssemos outro, sense, €1ecusar sua introjesdo. A fantasia de incorporacao denun- ‘Som lacuna no psiquismo, uma falta no lugar preciso em que uma ito devera ter ocorrido AINTROJECAO CONCEBIDA COMO UMA COMUNHAO DAS “BOCAS VAZIAS” Finlaaed jogar no interior) ndo seria © mesmo que incorporar? {Siege a imagem ¢a mesma, mas, por ads que vio apart, ree distingui-es, como se distinguiria uma imagem meta ‘aconpra de aaa fotogréfica, ou a aprendizagem de uma lingua ing sg dicondrio, uma apropriagéo de si pela anise ¢ pela Pas orPoragdo” de um “penis”. 1 en pargyetae do temo edo conceit entenda por “intoje [tesignada no. a alargamento do ego cuja condigdo por exceléncia *siasto pei amor de transferéncia, Por mais exemplar que seja equ esa — fica como condigao da introjegao, nao hd divida EMO em coy ae no momento imediatamente posterior ao nasci- M0350 prope os ComParivels. Sem entrar em detathes, bastard Pia experts nt? Observar o seguinte: 0 inicio da introjegio se dew Nene, Eee its do vazio da boca, duplicadas por uma presenga Vazio é inicialmente vivenciado como gritos € choros, 6 A Casco, grencimento aia, depis como ocasito 66 apo, mig ge sr a inguagem. Depos ainda, omo autopreenchimeno feng pel exploragaolinguo-palato-glossal do vazio, em eco a sonora bias dasdeo exterior e, finalmente, como substiuigdo oyna tilda saisfages da boca, cheia do objeto matemo, elas dat Pipia do mesmo objeto, mais cheia de palavras enderevadas ao “Rpassagem da bea cheia deseo boca cheia de palaveas se ens sao de expeiénias de boca vari. Aprendera preencher com pals vazi da boca & um primero paradigma da intojecdo, Compreenie que elas6 pode se operar com a asisténcia constante de uma mae que possua a linzuagem. Sua constincia ~ como a do Deus de Descartes ¢ 2 garantia necesséria da significagdo das palavras. Quando essa garan. tia é adguirida, mas apenas nesse caso, as palavras podem substiuiry presenga matema dar lugar a novas introjegdes. Primeiramente, a beca vazia, depois, a auséncia dos objetos tornam-se palavras, finalment, as experiéncias das proprias palavras se convertem em outras palavras, ‘Assim, o vazio oral original terd encontrado remédio para todas as suas {altas por sua conversao em relacdo de linguagem com a comunidade falante, Introjetar um desejo, uma dor, uma situagdo, € fazé-los pessar pela linguagem numa comunhao de bocas vazias. E assim que a ab- sorgdo alimentar, no sentido proprio, se torna a introjegao no figurado. Operar essa passagem é conseguir que a presenga do objeto dé lugar a uma auto-apreenso de sua auséncia, A linguagem que supre essa au- séncia, figurando a presenga, s6 pode ser compreendida no seio de una “comunidade de bocas vazias”. INCORPORAR: UMA OBRA DE UMA BOCA PARA OUTRA Se toda fantasia ¢ recusa de introjetar e negago de uma lacuni, deveremos perguntar por que algumas delas assumem a forma privile sada de introduzir um objeto no corpo? Em outras palavras, por ques contetido visa a propria metéfora da introjegao? Assim posta, 2 we implica um comego de resposta. Com efeito, para que a incorpors’ proceda de maneira a realizar ao pé da letra a metéfora da intro) € preciso que o processo, habitualmente espontiineo, se tome ° ae de uma tematizagdo, de um tratamento reflexivo de um certo Tt Ora, isso deve ocorer num tnico caso: quando o trabalho de into ‘apenas comegado ou enrevsto se choca com um obsticulo po? porparesee de Fee w : fa fel press © ugar dese obstel: ee 10 posto Ft tamente na boca, onde se assentam os fensm cis rer poses ho pode tec apr certas frases ~ oF FazBes a determinar~ ques tomar sas, emumee omindvel, a propria coisa, O vazio da boca que chang nt fan se preencher, falas introjetivas, torna-se novamente a boca a alimento ants da fala: por nfo pode se nti das palavas to. arte com outrem, ela Vai SE introduzir, fantasisticamente, pessoa inteira cals con como tiica depostaria do que ndo tem nome. Desde a fina considerada impossivel, a passagem decisiva 4 incorporagdo i pis, no momento em que, nfo vindo as palwrasdaboe e- serovar do suit, este introdu no lugar uma coisa imaginra cx desesperado que consiste em encher a boca de um alimesto ari ter por efeto suplementar — ilusrio também ~ suprimir aida ‘poma lacuna a ser preenchida com a ajuda de palavras, aida mesma {enevessidade de introjecdo. E, portanto — poder-seia concluir ~ a yar da conjugacdo da urgéncia com a impossibilidade vivencada de Falizar uma obra de boca — falar com outrem sobre o que vem a falar quese vai preconizar uma outra obra de boca imaginéria,apta a opor sua denegagdo a propria existéncia do problema em seu conjunto. Eis como, oiunda da parada diante da introjecdo impraticvel, a fantasia de ‘ncorporagdo aparece como sua substituta, a0 mesmo tempo regressiva creflexiva, O que implica igualmente que toda incorporagdo tem a in- trjegdo como vocagdio nostlgica. Se encontra, FALSAS INCORPORACOES Como as falas da introjegao vém a faltar’? Por que essa urgéncia que ‘Schama? Ai mais uma vez as quest6es jé indicam a resposta $6 pode { tratar da perda stibita de um objeto narcisicamente indispensével, ‘tatato que essa perda é de natureza a proibir sua comunicacio. Fmt Sut Outro caso, a incorporagao nao teria rao de ser Conkhe- Faults casos de recusa do luto, de negayio da perd, sem ae Spin £168 provoquem fatalmente uma incorporayao. Venn esa Petzl inesquecivel de um homem solitso, seni 1° + restaurante onde lhe serviam, simultaneamente, duas reeigoes omg a8 absorvia sozinho como se estivesse em companhia de ' pessoa, Esse homem que, visivelmente, alucinava Presens A Casea, 4B Cosco eo Ny deme a esaparid odeve, 9 eta, in ito pelo contrario ~ poder-se-ia SUpOr ~, gracas a essa : rane paia manté-Io fora de seus limites fisicos ~ pee vazio de sua boca e sem dever “absorver” a pessoa desaparecida ido "Nao", parece dizer,“ ser querido nfo morreu, ele ext ye como outora, com seus gostos, em Seu pratos preferidos.”Q crt perc xa stbendo eajuavaohomem com seu8 conselos agar 6 outro pat talvez ele tivesse conhecido os habitos do definta. yy Se veria nada disso em caso de incorporagdo. Se ela acontece, nig? deve saber. 0 fato mesmo de tr tido que perder constiria o oben de negasio. A refeigdo imagindria em companhia do defunto pode x concebida como uma protegdo contra 0 perigo de incorporasio, El lembra a refeigdo funerdria que deve ter a mesma finalidade: a comy, nhio alimentar entre os sobreviventes. Ela pode querer dizer: no igs da pessoa do defuunto, € nossa presenga miitua que introduzimos em ‘nossos corpos sob forma de alimento assimilavel: quanto ao defimto,é na terra que 0 depositaremos e ndo em nés mesmos. A necrofagia,¢x- fim, sempre coletiva, se dstingue igualmente da incorporagao; embrs fantasfstica na origem, sua realizagao em grupo faz dela uma linguagem: aabsoredo real dos despojos simbolizara ao mesmo tempo ~ pondo em cena a fantasia de incorporago — que a introje¢io da perda € impossivel que jé aconteceu. Bla tera por efeito exorcizar o simétrico, que poder rascer com o falecimento de uma incorporagdo psiquica. A necrofigit seria, portanto, néo uma variedade de incorporagdo, mas uma medida preventiva de ant-incorporagao. sete, AFURNA INTRAPSIQUICA ‘Vé-se que todas as perdas nareisicas — ainda que sejam subteiss 4 introjegao ~ no tém a incorporagdo por destino fatal. Este ¢° a apenas para as perdas que ndo podem — por alguma razao~ se ome Sar enquantoperdas. Nese ini caso, aimpossbilidade da inte chega a proibir até que se faga uma linguagem com sua recusa 40 ele Droibir que se signifique que se esté inconsolével. Na falta dess2 So" Socorro, $8 resta opor ao fato da perda uma denegagao radical. nz no ter tido nada a perder. Nao se trata mais de relatar diante tereeio 0 luto de que se ¢ portador. Todas as palavras que N80 Pl, ser ditas, todas as cenas que no puderam ser rememoradas,'* jo do Ego. sown 20 se ndo puderam ser vertidas, serio engoidas, as gions a po, otraumatismo, casa da perda.Engotdose poss ane Suto indizivelinstala no inttir do sueito uma sepa const furna repousa, Vivo, Teconstruido a partir de lembrangas de sea N magens © de afetos, 0 comelato objeal da pera, enguon, oe ‘completa, com sua Pei rice, ‘bem como 0s momentos ens fei OU supOsts ~ qe avian tomado inten rele rite asim, todo um mundo farts icons mea in vida separadae oculta. Acontee,entetano, que, por 4 pds realizagbes libidinas, “A meianoite’, o fantasma da cra vsombrar o guardidio do cemitéro, fazendo-lhe sinas estranhos ¢ vem rvesiveis,abrigando-o a realizar ato isis, infigind-he Sesapdes inesperadas. ‘im den6s analisou um menino que “carregava’” assim sua inna de dois anos, a mais velha, irma que, antes de morre, ld pelos oto anos de ideo havia“seduzido”. Quando o menino tinha atingdo a puberdade, def roubar nas lojas roupas intimas femininas. Varios anos de relagio smlitca ¢ um lapso providencial —em que ele enunciava para si pré- iva idade que sua ima deveria ter se ela tivesse vivido ~ permitiram _esnstir a situagdo interior e o motivo de sua “cleptomania”: “Sim”, dizee para explicar seus roubos, “aos catorze anos ela teria tdo neces- side de suta”, A cripta desse rapaz abrigava essa menina “viva” cuja neturgo ele acompanhava inconscientemente. Esse exemplo mostra ‘em por que a introjegaio da perda era impossivel e como a incorporagao ‘objeto perdido se tornou para esse rapaz o tinico modo de uma repa- ‘ao narcsica, Seus jogos sexuais, proibides e vergonhosos, néo tinham Fedde consttuir 0 objeto de nenhuma comunhio de linguagem. Apenas eee © 2 identificagdio subseqiiente permitiram salvaguardar mee sua topica, marcada pela sedugao. De portador de segredo ta nl er, tomouese, depois da morte de sua ima, portador de ioe matear bem a continuidad dos dois estaos eemos ta com o temo erprforia. Com efit, ensues qe at atenay oa o© eorporagdo é no poder proceder de aura nants fend ae quando ele esté perdido, um prazer clandestino ‘um segredo intrapsiquico. im como, ACateae 250 Ney AINCORPORACAO COMO ANTIMET pg, RA a nose hiptese. Clinicament, ela podetia significa qug vez que uma incorporagio € evidenciads, ela deve ser atibuita Tio vergonhoso que, aliés, apenas ocorreria depois de um estado a. jftcuad, depos de uma experiencia objetal manchada de vergnyy ‘essa montagem que, por Sua prOpria estrutura, a cripta perpetua, Nie, tripta que ndo tenha sido precedida por um segredo partthado, segredo que, jé previamente,fragmentou a t6pica, Quando evoeann avergonha, a clandestinidade, resta precisar quem deveria enibeses, quem deveria se esconder. Seria o proprio sujeito por se ter tomadg culpado de torpezas, de ignominias, de ages indevidas? Poderiame, supor com prazer que ndo encontrariamos ai uma tiniea pedra pas fazer uma cripta! Para que se edifique uma, € preciso que o segreda ‘vergonhoso tena sido 0 feito de um objeto, desempenhando o papel de ideal do ego. Trata-se, portanto, de guardar seu segredo, de cobir su ‘vergonha. Se seu luto néo se efetua — como de costume ~ com pals tomadas no sentido figurado, ¢ por causa das metiforas uilzadas pan causar vergonha; se fossem evocadas no decorrer do luto,estaiam invalidadas (enquanto metéforas precisamente) pela perda do ideal ue € sua garantia, A solugo do sujeito cript6foro sera anular 0 eftito da vergonha assumindo — as ocultas ou as claras ~ a signifcagto prépa das palavras da infimia, “Introjetar” torna-se novamente “pér na bot’, “engolic”, “comer”; o objeto aviltado, por sua vez, sera — como se 4iz—“fecalizado”,transformado em verdadeiro excremento. A reeus de introjetar a perda do ideal se exprimiré a rigor pela dupla bravat ‘posta ao aviltante e que é resumida pela fantasia e suas inumerives vatiantes de comer, de ter comido exerementos: mé aparéncis, sor ez, coprolalia ete. Vé-se bem que o que importa nessas fantasias ™ € sua referéncia a uma fase canibalesca do desenvolvimento, mas “ cariter anulatério da linguagem figurada, Para salvaguardat 0 0b ideal, cript6foo passa arasteira em todo aquele que queira Ie ca Vergonha: ele neuraliza,afinal de contas, os instrumentos, Pot SS dizer, matersis, da infimia, as metéforas originadas da dejegio 69 remento, tomando-os eomo comestiveis,¢ até apetitosos. Se st

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