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“MÚSICA NORDESTINA” E AS MEMÓRIAS EM DISPUTA: O

BALANCEIO DE LAURO MAIA (1945-1950).

ANA LUIZA RIOS MARTINS

RESUMO

O que é música nordestina? Quando surgiu essa nomenclatura? Por qual motivo o baião de Luiz
Gonzaga passou a representar musicalmente essa região? Em um levantamento de trabalhos
sobre o tema é possível observar que essas são questões amplamente debatidas. A musicóloga
Elba Braga Ramalho, a socióloga Sulamita Vieira e o sociólogo Elder Maia são alguns dos
responsáveis por pesquisas que tiveram amplo destaque em suas respectivas áreas. Ambos
estabelecem um debate sobre o “Rei do Baião” e a monumentalização do Nordeste através da
trajetória de migrantes, da seca, da fome e da pobreza. Considerou-se então a possibilidade de
deslocar o olhar do “centro” para a “periferia”, ou seja, compreendendo que é preciso trilhar
caminhos incomuns para se obter novas tábuas de explicação de fenômenos sociais. Nesse
sentido, surgiu a figura de Lauro Maia, compositor e instrumentista que ressignificou em
meados do século XX, a ideia de artista regional através do balanceio, negociando com estações
de rádios e gravadoras as imagens cristalizadas do Ceará.

Palavras Chave: Mediação Cultural; Nordeste; Balanceio.

O SERTÃO E O LITORAL: TRAJETÓRIAS DE LAURO MAIA ENTRE O CEARÁ E


O RIO DE JANEIRO.

A inserção de gêneros das mais diferentes regiões do país seguia a sua trajetória de
ocupação no rádio e no disco, dividindo gostos e apropriações diferenciadas. Nesse período,
vários artistas cearenses alavancaram as suas carreiras se lançando no mercado estabelecido no
eixo do Rio de Janeiro e de São Paulo. De acordo com Durval Muniz na obra supracitada, a
situação foi festejada pelo discurso nacionalista como um fator de integração nacional, um fator
de encontro e interpenetração dos “dois Brasis” que ameaçavam se distanciar
irremediavelmente. As grandes cidades do Sul seriam enfim o lugar onde se gestaria a cultura
nacional de há muito perseguida.
Os seus primeiros contatos com a música foram feitos através de sua mãe, Laura Maia
Teles de Menezes. Compositora, pianista e professora de música, Laura Maia foi autora de


Ana Luiza Rios Martins – Doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE e Bolsista
CNPq.
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várias peças que obtiveram relativo sucesso, porém se perderam no tempo pela falta de gravação
e da edição em partituras. As referências sobre essas composições foram feitas por Miguel
Ângelo de Azevedo, que recorda sobre gravações perdidas em solo de piano no acetato na PRE-
9, do tango Salve Regina, Santa Rosa de Viterbo e da valsa Miss Moderno, editados pela Ceará
Musical de A. Mouta & Cia. (AZEVEDO, 1991, p.9)
Assim como o seu filho, Laura Maia ocupou um espaço de mediadora cultural e
experimentou o trabalho fronteiriço, que, do ponto de vista de Heidegger, citado por Homi
Bhabha, não é um ponto onde algo termina, mas, como os gregos reconheceram, é o ponto a
partir do qual algo começa a se fazer presente. Quando criança estudou na França durante vários
anos. Esse trânsito em que o espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de
diferença e identidade, aparentemente teve colaboração dos parentes. (BHABHA, 1998).
O início do seu aprendizado de teoria musical se deu aos dez anos de idade, contra a sua
vontade. Por isso mesmo, sua mãe resolveu entregar a tarefa à professora Elvira Pinho, com
quem Lauro estudou algum tempo, passando depois a ser aluno de Chiquinha Menezes. Lauro
Maia só voltou a estudar com a sua mãe, quando o interesse pela música já era mais acentuado.
Nesse período, frequentou o Colégio Cearense e ao sair das aulas passava no Cine Majestic,
onde tocava ao piano algumas músicas de sua mãe e de outros compositores.
Terminando o curso no Liceu do Ceará em 1932, Lauro Maia fez o vestibular e ingressou
na Faculdade de Direito. Em 1933, no mesmo ano em que ingressou na Faculdade, Lauro
começou a trabalhar na Seção de Contabilidade da Administração Central da Diretoria de
Viação e Obras Públicas do Estado do Ceará, que funcionava na Praça da Alfândega. Deixou o
cargo em 1945, ano em que transferiu residência definitiva para o Rio de Janeiro. Nesse período
as suas composições já conquistaram fama nacional e muitas delas foram gravadas em discos.
Quando deixou o emprego ocupava a função de Tesoureiro Padrão.
Os registros apontam que uma de suas primeiras apresentações no rádio ocorreu em
Fortaleza no ano de 1935, numa participação no programa A Hora da Arte, aos 23 anos de
idade, recebendo o comentário de “optimo ao piano, como sempre”, pelo crítico Alma em
matéria para o jornal Unitário. (UNITÁRIO, Fortaleza, 18 de Maio de 1935, p. 2). Artista
consagrado no meio erudito, Lauro Maia atuou como pianista nas orquestras do Maestro
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Antônio Moreira, do Maestro Euclides da Silva Novo e do Ceará Jazz. Por algum tempo tocou
na sala de espera do Grêmio Dramático Familiar, dirigido por Carlos Câmara.
De acordo com Miguel Ângelo de Azevedo, Lauro Maia foi um dos primeiros músicos
a ser contratado pela P.R.E.9, deixando a Direção Artística da emissora apenas em 1941,
passando-a para Dermival Costa Lima. Em 1936, o pianista iniciou pequenos projetos, reunindo
alguns rapazes do Liceu do Ceará no Quinteto Lupar com Paulo Pamplona, Tarciso Aderaldo,
Rui e Rubens Brito e Ivan Moreira do Egito. No Jornal A Rua, na coluna Sintonia, a crítica
elogiava a quantidade de recursos do teclado e julgava a falta de apego do pianista às
composições nacionais.
Zé Cavaquinho comenta no documentário sobre o artista para a TV Assembleia, que
Lauro Maia se projetou como instrumentista, compositor e arranjador depois que passou a
dirigir o seu próprio programa na Ceará Rádio Club, intitulado Lauro Maia e seu Ritmo. As
primeiras músicas compostas por Lauro Maia sofreram grande influência dos gêneros norte-
americanos. Um fox-trot feito em uma das mesas do Café Emydio, na Praça do Ferreira,
intitulado de Chega Pia! O título da música foi criado por influência de um ditado popular
muito em voga na época em Fortaleza.
Pelo repertório de artistas pesquisados nos três principais acervos que guardam a
memória sonora da capital cearense é possível perceber que no fim do século XIX ocorreu um
aumento do trânsito cultural oriundo das mais diferentes regiões do país e do estrangeiro. Não
obstante, a década de 1940, foi marcada por uma intensa transformação nos hábitos e costumes
dos cidadãos fortalezenses. Entre os anos de 1942 e 1945 os citadinos conviveram com os
soldados norte-americanos que se instalaram em uma base militar montada no Ceará.

O SAMBA DE ROÇA: DIVERGÊNCIAS ENTRE O USO DA SANFONA E O


TRIÂNGULO NO LUGAR DA CUÍCA E DO TAMBORIM.

Quando Lauro Maia em abril de 1945, mudou-se definitivamente para o Rio de Janeiro,
gravou o primeiro balanceio lançado nacionalmente pelos 4 Ases & 1 Curinga, que tinha como
título: Eu vou até de manhã, “uma mistura dos ritmos típicos do Nordeste com a marchinha
carioca”. A música obteve grande sucesso no Cassino Atlântico, onde Lauro Maia se
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apresentava como pianista. Eu vou até de manhã ganhou uma segunda “versão carnavalesca”
intitulada A Marcha do Balanceio, mais comercial para a divulgação do novo ritmo. A gravação
da marcha-balanceio foi feita pela dupla Joel & Gaúcho com acompanhamento de Abel e sua
Orquestra.

A marcha do balanceio

Oi balancê, balança
Balança pra lá e pra cá
Eu vou até de manhã bis
Só nesse balanceá

O balanceio é muito bom


O balanceio é de amargar
Quem cair no balanceio
Dança até o sapato furar. (MAIA, 1946, 12.678-b).

Em um dos trechos da programação da Ceará Rádio Club para o ano de 1944, o crítico
Paulo comentava sobre o sucesso da música Eu Vou Até de Manhã: “Agora o carioca pergunta
de si para si: Como se dança o balanceio? Só vendo, meu amigo. Só vindo ao Ceará. Porque a
palavra é pálida demais para descrever tantas riquezas”. Na coluna Sintonia, do jornal A Rua,
para o ano de 1935, é notório o desinteresse de Lauro Maia em incorporar elementos da tradição
popular no início de sua carreira. O crítico do jornal aponta que o compositor foi “acusado de
desprezar a música brasileira”. (Sintonia. A Rua, Fortaleza, 6 Junho de 1935, p. 7). No entanto,
uma década depois esse artista percebeu que não só poderia ocupar um espaço no mercado de
discos com essa estratégia, mas também redefinir os padrões musicais estabelecidos para os
“artistas nordestinos” que gravavam no Sul do país.
Em uma análise atenta da obra de Lauro Maia fica evidente as apropriações de ritmos e
timbres da tradição popular do interior cearense, somadas às suas influências urbanas e ao seu
apreço à boemia. O balanceio é o resultado do esforço do compositor de reunir em sua produção
musical o erudito e o popular, o rural e o urbano, a tradição e a modernidade. Não é à toa que
essas influências são citadas por dois conhecedores de sua obra, Miguel Ângelo de Azevedo e
Calé Alencar. Enquanto o primeiro aponta que o balanceio tinha características sertanejas, o
segundo comenta que o balanceio é idêntico ao baque virado do maracatu de Recife. É um ritmo
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sincopado com um tempo quebrado, uma quiáltera, ou seja, figuração rítmica resultante da
divisão irregular de um ou mais tempos.
O baque virado é uma versão urbana do maracatu, que reúne influências do processo de
enraizamento dessa manifestação cultural na capital. O miudinho de Lauro Maia também
exemplifica esse trabalho da transposição fronteiriça do compositor. Ele incorpora a marchinha
carnavalesca carioca nesse ritmo. Essas ressignificações musicais recorrentes em sua obra são
frutos da relação do indivíduo com o seu lugar social de origem, com as suas raízes familiares
e com as experiências com outros artistas.
Com relação às hibridações, Néstor García Canclini (1997) comenta que elas não são
estratégias das instituições e de setores hegemônicos. É possível vê-las também na
“restruturação” econômica e simbólica com que os migrantes do campo adaptam seus saberes
para viver na cidade e seu artesanato para atrair o interesse dos consumidores urbanos; quando
os operários reformulam sua cultura de trabalho frente às novas tecnologias de produção sem
abandonar crenças antigas, e quando os movimentos populares inserem suas reivindicações no
rádio e na televisão. Qualquer um de nós tem em casa discos e fitas em que se combinam música
clássica e jazz, folclore, tango e salsa, incluindo compositores como Piazzola, Caetano Veloso
e Rubén Blades, que fundiram esses gêneros cruzando em suas obras tradições cultas e
populares.
O momento em que mais se estende a análise da hibridação a diversos processos
culturais é na década final do século XX. Mas também se discute o valor desse conceito. Ele é
usado para descrever processos interétnicos e de descolonização; globalizadores; viagens e
cruzamentos de fronteiras; fusões artísticas, literárias e comunicacionais. Como a hibridação
funde estruturas ou práticas sociais discretas para gerar novas estruturas e novas práticas? Às
vezes, isso ocorre de modo não planejado ou é resultado imprevisto de processos migratórios,
turísticos de intercâmbio econômico ou comunicacional. Mas frequentemente a hibridação
surge da criatividade individual e coletiva. Não só nas artes, mas também na vida cotidiana e
no desenvolvimento tecnológico.
Lauro Maia reconvertia uma tradição musical a reinserindo em novas condições de
produção e mercado. Esse conjunto de competências são necessários para reinvestir seus
capitais simbólicos em circuitos nacionais. Também são encontradas estratégias desse tipo de
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reconversão econômica e simbólica em setores populares: os migrantes camponeses que


adaptam seus saberes para trabalhar e consumir a cidade ou que vinculam seu artesanato a usos
modernos para interessar compradores urbanos. Nesse sentido, Clanclini aponta os processos
de hibridação são os verdadeiros objetivos de estudo e não necessariamente a hibridez. A
análise empírica desses processos, articulados com estratégias de reconversão, demonstra que
a hibridação interessa tanto os setores hegemônicos como aos populares que querem apropriar-
se dos benefícios da modernidade.
A partir do sucesso do balanceio no Rio de Janeiro, a sua produção fonográfica se
intensifica, de acordo com Miguel Ângelo de Azevedo. Nesse período surge a parceria com o
seu cunhado Humberto Teixeira e consequentemente o início da polêmica entre o balanceio e
o baião. Lauro Maia conheceu a irmã de Humberto Teixeira no final dos anos de 1930, quando
viajava para a capital carioca com a finalidade de divulgar o seu trabalho com o cantor
paraibano Jorge Tavares.
Djanira Teixeira, casou-se com Lauro Maia antes de constituir residência no Rio de
Janeiro. Lauro e Djanira tiveram dois filhos, nascidos ainda em Fortaleza: Eva Maria Teixeira
Maia, em 10 de julho de 1942, e Lauro Maia Filho, em 12 de dezembro de 1943. Foi no ano
de 1941, que Lauro Maia conheceu pessoalmente o seu cunhado Humberto Teixeira, a quem
depois seria seu amigo e parceiro. A forma como esses projetos eram encarados demonstram
que o conceito de parceria naquele período já obedecia a uma lógica mercadológica, tendo em
vista que Lauro Maia introduziu o nome de Humberto Teixeira em muitas de suas composições
devido ao fato desse último já ser um artista reconhecido nacionalmente.
Sobre essa prática, Humberto Teixeira afirmou em depoimento ao Arquivo Nirez, do
dia 11 de dezembro de 1977, que só tomou conhecimento de que o seu nome foi inserido em A
Marcha do Balanceio, através da gravação. A primeira parceria com o compositor Lauro Maia
foi feita por intermédio do Governador Menezes Pimentel, que havia encomendando uma
música “apoteótica” para a inauguração de uma nova estação de rádio cearense. Humberto
Teixeira aponta que Lauro Maia ficou responsável pela orquestração e ele pela letra.

A minha primeira demonstração musical ao lado do Lauro não foi


propriamente uma parceria. O Menezes Pimentel havia me pedido pra eu fazer
uma música. Tava pra se abrir uma estação de rádio ou qualquer coisa
semelhante, um evento qualquer que o Estado comemorava e ele me pediu pra
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fazer uma música sobre o Ceará. Ele nem precisava pedir porque eu já tinha
feito. Eu já havia composto uma música apoteótica, naquele gênero das
músicas de Ary Barroso. E essa música foi gravada por Déo e a participação
de Lauro Maia. Ele foi quem orquestrou e conduziu a orquestra na gravação
de Terra da Luz, esse poema sinfônico que eu fiz, ou por outra, semi-sinfônico.
Era uma música de exaltação e, você deve saber, foi muito bem aceita aqui no
Ceará, tornando-se inclusive prefixo musical de estações de rádio e televisão.
Uma música que eu gosto muito. Terra da Luz, pra mim, é realmente a
primeira manifestação musical da minha saudade da terra de onde eu vivia
longe. (Trecho do depoimento de Humberto Teixeira para o Arquivo Nirez no
dia 11 de dezembro de 1977).

O que chama a atenção nessa parceria de Lauro Maia e Humberto Teixeira, são as
tentativas de representar o Ceará a partir de referências atribuídas ao litoral, bem distantes
daquelas imagens do binômio sertão-seca, criadas na parceria de Humberto Teixeira e Luiz
Gonzaga. O título Terra da Luz, não faz só menção a alcunha que o Ceará recebeu por José do
Patrocínio após o fato de ter sido o primeiro estado a abolir os seus escravos, mas também uma
alusão a região ter um clima tropical com uma estação seca bem definida, com temperaturas
elevadas e mitigadas pelo sopro dos ventos do mar. O sucesso da música deve ter contribuído
para a versão não oficial.
Essa nova imagem atribuída ao Ceará, ajudou a indústria turística nordestina. Os
governos estadual e federal precisavam investir na produção de outras formas de dar
visibilidade a essas espacialidades. Já que a ideia que se perpetuava há muito era a seca, a saída
foi investir no litoral e de suas belezas naturais com praias paradisíacas, reforçando o sertão não
mais como um lugar da pobreza, mas da tradição. O mercado também percebeu que poderia
fazer usos de imagens distantes das cristalizadas sobre o Nordeste. Dessas parcerias entre Lauro
Maia e Humberto Teixeira, surgiu uma polêmica que o “Doutor do Baião” teria se apropriado
indevidamente das músicas do compositor Lauro Maia após a sua morte. Na tentativa de
elucidação da suspeita, Humberto Teixeira comenta que:

O meu contato com o Lauro Maia era mais afetivo do que propriamente
musical. Na época, eu fazia música sozinho e tinha outras parcerias, antes do
Lauro Maia. Como eu disse para você, quando o Lauro chegou no Rio eu já
era um compositor conhecido e coisa e tudo isso e tal. Mas não podia deixar
de ser. Meu cunhado e com aquele talento e aquela personalidade humana fora
de série que o Lauro tinha (Trecho do depoimento de Humberto Teixeira para
o Arquivo Nirez no dia 11 de dezembro de 1977).
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Perceptivelmente magoado com a insinuação, Humberto Teixeira também pontua que


“por conta da intimidade quase fraterna, foram muitos os episódios de músicas que eram
inteiramente minhas e que Lauro Maia figurou na parceria. Da mesma forma que eu com ele”.
Essa situação era considerada “incomum” pelo compositor. A relação afetiva entre ambos teria
gerado um envolvimento profissional a tal ponto que não se sabia ao certo onde a colaboração
de um começava e a do outro terminava.
Humberto Teixeira cita alguns casos de músicas formidáveis que ele modificou a letra
como, por exemplo, a de Deus Me Perdoe. “Ele tinha uma outra letra para essa música que eu
não recordo (...). Eu fiz a letra inteira a partir do título Deu me Perdoe. Essa música foi um
sucesso extraordinário no carnaval. É uma melodia maravilhosa do Lauro e, eu acho, uma letra
minha muito feliz”. Contudo, fica notória a estratégia de marketing que há por trás desse relato
aparentemente ingênuo. Os dois sabiam da força que tinham. Não é à toa que tentaram repetir
o sucesso no ano seguinte (1947), com um samba “nos mesmos moldes, o mesmo tema e
melodia parecida”. A suspeita sobre a “real” autoria parece ter surgido após a mudança do título
de algumas músicas gravadas no Rio de Janeiro que já eram conhecidas pelo público da capital
cearense.

Existem outras que o Lauro dava uma idéia muito boa, muito generosa e que
eu melodizei, eu fiz a música. Coisas assim, de várias espécies. Mas com
algumas dessas músicas, antes do Lauro ir pra lá, elas era conhecidas aqui,
surgiu uma história de que eu estaria me aproveitando de músicas do Lauro
Maia ou usando indevidamente o nome dele em músicas que não era minhas
e, o que é pior, depois da morte do Lauro, dizerem que eu herdei o baú de
músicas dele. Isto é um negócio grosseiro, injusto e que, como eu disse para
você, à distância, isso me magoou muito, embora eu tivesse sempre aqui um
defensor maravilhoso, um homem extraordinário, o meu velho e querido
parceiro Luiz Gonzaga. (Trecho do depoimento de Humberto Teixeira para o
Arquivo Nirez no dia 11 de dezembro de 1977).

Não obstante, fica evidente a preocupação de Humberto Teixeira em delimitar o lugar


social da sua música e ao mesmo tempo definir os elementos que a distinguiam das composições
de Lauro Maia, buscando respaldo no discurso do “Rei do Baião”. Os seus argumentos se
baseavam na ausência do baião no repertório de Lauro Maia e a vinculação de suas principais
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obras à parceria com Luiz Gonzaga. Mas confessa no mesmo depoimento que “o Baião deslizou
no tapete, na esteiram na trilha que o Balanceio deixou”.
Em trechos do depoimento de Humberto Teixeira, o compositor questiona os motivos
pelos quais a autoria do Balanceio atribuída à Lauro Maia nunca foi contestada, tendo em vista
que o gênero que ele conheceu no Rio de Janeiro pelo cunhado foi o mesmo criado por Danúbio
Barbosa Lima e Aleardo Freitas em Fortaleza. Contudo, os dois compositores nunca fizeram
polêmica em torno desse episódio. Ao que tudo aparenta Danúbio Barbosa Lima se beneficiou
com a difusão nacional do Balanceio, já que a maior parte das gravações foram feitas pelo
conjunto Vocalistas Tropicais, do qual o músico fazia parte.
Em seu texto Memória, esquecimento, silêncio; Michael Pollak (1989) salienta a
importância dos ditos e dos não-ditos para a construção de uma memória, seja ela coletiva ou
individual. Além, é claro, de ressaltar a importância de rastros significativos que uma pessoa,
um grupo ou uma nação vai deixando em suas experiências de vida e que se tornam pontos de
referência para qualquer estudo histórico. Principalmente quando os rastros, muitas vezes
esquecidos ou ignorados, revelam interpretações distintas da oficial ou mesmo da que se
costuma ouvir.
No caso do depoimento de Humberto Teixeira para o Arquivo Nirez, o não-dito também
chama a atenção, tendo em vista que em nenhum momento o artista que tanto se gaba pelo seu
mérito como compositor do baião e pela sua conquista da parceria com Luiz Gonzaga, insinua
que foi por conta da confiança do sanfoneiro em Lauro Maia que a proposta foi concretizada.
Em artigo para o Diário do Nordeste, no dia 02 de novembro de 2013, Calé Alencar comenta
que: “O Luiz procurou o Lauro Maia, porque já ouvia as suas músicas no rádio, tocando
inclusive ritmos que ele pesquisou no Cariri, e o Lauro o levou para conhecer Humberto
Teixeira”. (Diário do Nordeste. Fortaleza: 02 de novembro de 2013).
Não só a célula do Baião foi tirada do Balanceio, mas o projeto de investir em
apropriações de ritmos nordestinos, conselho dado por Orlando Silva e Dorival Caymmi, que
Lauro Maia tratou de seguir com releituras contemporâneas. O grande insight que Luiz Gonzaga
e Humberto Teixeira tiveram para elevar o Baião à “genuína música nordestina”, foi a
preocupação em comercializá-lo, o tornando acessível tanto aos ouvidos do público, quanto a
execução dos instrumentistas. “A partir do Balanceio de Lauro Maia nós tiramos o pé quebrado,
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que não se assimilava muito para a coisa comercial, dançante e popular, e fizemos um ritmo
contínuo. Pam pampam, pam pam pam. Isso é o Baião”.

O Luiz acha que o Balanceio só não se nacionalizou nem obteve a fama e o


sucesso que o Baião teve devido aquela história do tempo roubado do ritmo
do Balanceio. O Luz diz isso. Cada vez que nós íamos botar o Balanceio para
execução, em qualquer tipo de orquestra, eles claudicavam. (Canta sugerindo
o ritmo Balanceio) Tam tim quê tim tlum tum. Aquele tempinho roubado
enrolava tudo. Enquanto que o Baião era um negócio uniforme. (Canta
sugerindo o ritmo do Baião). Tam tim pam pê tê (Trecho do depoimento de
Humberto Teixeira para o Arquivo Nirez no dia 11 de dezembro de 1977).

Em trecho do livro intitulado Luiz Gonzaga: o sanfoneiro do Riacho da Brígida, do


escritor Sinval Sá, o compositor comenta sobre o surgimento do Baião e sua relação com Lauro
Maia. Luiz Gonzaga fazia parceria com Miguel Lima, considerado por ele ótimo compositor e
bom companheiro, mas “não dava valor àquelas minhas ideias de querer cantar músicas do
Norte, de ritmo ainda desconhecido no restando do Brasil”. Segundo o compositor, as
diferenças entre os dois eram irreconciliáveis e o fim da parceria era eminente, já que “não ia
sacrificar aquilo que em nossa música havia mais autenticamente nordestino”. Foi daí que
surgiu a necessidade de encontrar um outro companheiro que não “quisesse me sacrificar,
renunciar àqueles sonhos. (...) Mas o que interessava mesmo era dar corpo àquelas músicas de
“lá do pé da serra”, músicas que sabia prenhes de sabor, de alma, faltando-lhes apenas uma mão
que as burilasse, lhes desse vida”. Foi nesse processo de ruptura com o antigo parceiro que Luiz
Gonzaga se deparou com as músicas de Lauro Maia interpretadas pelo conjunto 4 Azes & 1
Curinga.

Ali estava, não havia dúvida, um nordestino dos meus, capaz de expressar no
cantar do nosso mais autêntico sentir de povo sofredor, mas feliz, apesar de
tudo. Miguel Lima não podia mesmo fazer nada daquilo, não tinha vivência
das nossas coisas. Lauro Maia talvez fosse a solução, o único a compreender-
me e ajudar-me. (SÁ, 2002, p. 35).

Possivelmente a influência da obra de Lauro Maia foi determinante para o projeto de


Luiz Gonzaga. Contudo, o artista não quis estabelecer parceria porque se sentia incapaz de
materializar por meio de sons essas imagens que no legado do “Rei do Baião” foram
sacralizadas pelas gravadoras. Lauro Maia acreditava que “O Nordeste era muito amplo, com
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músicas muito ricas, que fala demais ao coração. Eu escrevo pouco, sem maiores pretensões,
sem vaidades”. Ele alegava uma dificuldade em colocar letra em música e conceber “essa alma
genuinamente popular”, apesar de já ter criado composições baseadas no folclore nordestino e
dar “uma nova vestimenta”. A reação de Luiz Gonzaga em relação a recusa foi de “espanto e
tristeza”, “não esperava aquela demonstração de tamanha humildade de um talento indiscutível
como Lauro Maia”, mas concordou que essa era uma tarefa pesada e difícil para ser executada.
Apesar de Lauro Maia ter negado o convite, apresentou o seu cunhado para Luiz Gonzaga:

Humberto compunha rapidamente, uma reposta quase instantânea aos


estímulos que lhe chegavam à alma. Inspirado nas coisas do meu sertão e
estimulado por um discreto piscar de olho do Lauro Maia, abri a sanfona e fiz
soar um xote. Não terminei, já os primeiros versos No Meu Pé de Serra
estavam prontos. Eufórico, sapequei uma toada, contei a história da asa
branca, e já o doutor tinha o esboço da música riscado no papel. Nessa altura
o Lauro já ia meio alto, depois de 4 caninhas com limão (Trecho do
depoimento de Humberto Teixeira para o Arquivo Nirez no dia 11 de
dezembro de 1977).

Em trecho da crítica de Paulo para a PRE-9, escrita no dia 2 de maio de 1944, sobre a
música de Lauro Maia, o autor já disserta sobre as variedades de ritmos criados pelo compositor
a partir de cinco células rítmicas do interior cearense e pernambucano. No Ceará esse conjunto
formava o “samba matuto”, “samba de nêgo” ou “samba de roça”. Segundo Paulo, no sertão
pernambucano ele era chamado de “samba matuto” e nos espaços onde predominavam o
trabalho de negros na cultura e na industrialização da cana de açúcar, ele foi batizado de “samba
de nêgo”. Não se sabe ao certo a variação desses ritmos, mas o crítico revela a sua relação com
o forró.
No ano de 1945 é lançado a partir dessas influências citadas pelo crítico, o samba-choro
de Lauro Maia em parceria com Humberto Teixeira, intitulado Samba de Roça. Essa foi a
parceria feita logo após Terra da Luz. A gravação foi realizada na voz de Orlando Silva, com o
acompanhamento de Abel Ferreira e seu conjunto Regional, contando também ainda com a
participação de Raul de Barros no trombone. Ainda em Fortaleza, o samba era somente de
Lauro Maia e os versos da primeira parte eram idênticos aos da gravação.

Samba de Roça
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Sambei num samba dos bons


Sambei até o sol raiar
Sambei não me sinto cansado (bis)

Sambei um bocado
Sambei de rachar
Quem samba num samba de roça
Em pobre palhoça
Só pode gostar

Lá eu tenho uma bela cabocla


Que tem uma boca
Parece um cajá.

Quem samba num samba de nêgo


Naquele chamego
Não quer mais parar
Não topo a eletricidade
Eu sou da claridade
Da luz do luar!...(MAIA; TEIXEIRA, 1945, 12.635-b)

O samba de roça do Lauro Maia ao mesmo tempo que agradava, causava certo
estranhamento no ouvinte que já estabelecia padrões de escuta a partir do samba carioca. O
espaço narrado não era o mesmo dos morros do Rio de Janeiro, os timbres da sanfona e do
triângulo eram destoantes do som da cuíca e do tamborim. A denominação de samba para o
ritmo mais lento e com “menos malícia” foi bastante contestada. Acredita-se que essa
institucionalização do samba possa ter contribuído para que Lauro Maia se distanciasse cada
vez mais dessa nomenclatura e se aproximasse do Balanceio, que musicalmente não se
diferenciava tanto do que já tinha sido produzido pelo compositor.
Segundo Marcos Napolitano (2007), a música popular brasileira, entre outras
propriedades, é uma espécie de repertório de memória coletiva. Por outro lado, tal como se
configurou ao longo do século XX, é filha da sociedade capitalista moderna, da industrialização
da cultura e do mercado de massas. Portanto, mesmo sendo produto de uma ruptura, a
modernidade, articula-se enquanto tradição, que pode assumir características próprias,
conforme a configuração da vida cultural de cada país.
Depois de Lauro Maia ter se esquivado do dilema agregado a construção musicológica
do samba como uma tradição carioca, foi a vez do mercado criar um confronto de forças entre
o Balanceio e o Baião. A imprensa declarava de forma taxativa que Luiz Gonzaga e Humberto
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Teixeira foram os criadores do que passou a ser chamado de “música nordestina, notadamente
o Baião”. Antes de iniciar o projeto de se apropriar dos ritmos do sertão, Luiz Gonzaga
sobrevivia no Rio de Janeiro tocando em cabarés, dancings e gafieiras do Mangue. Nas zonas
de meretrício ele executava tangos, valsas, boleros, polcas, mazurcas, ou seja, toda uma série
de sons dançantes de origem estrangeira.
Gonzaga participa ainda como músicos de programas de calouros de Ary Barroso, o que
lhe rende no máximo cinco tostões. É neste programa, na Rádio Nacional, que em 1940, após
executar o forró Vira e Mexe, conquista a nota máxima e é contratado pelo rádio, a mais
importante do país e que congregava artistas de todos os lugares. Segundo Durval Muniz, foi a
partir da influência de um gaúcho chamado Pedro Raimundo Gonzaga, que em 1943, Luiz
Gonzaga resolve assumir a identidade de um “artista regional”, ser um representante do
“Nordeste”, criando para isso uma indumentária típica que reunia a roupa do vaqueiro
nordestino com o chapéu usado pelos cangaceiros.
Neste mesmo ano, grava seu primeiro disco como cantor, ao vencer a resistência da
gravadora RCA Victor, que não achava comercial a sua voz anasalada e seu forte sotaque
regional. Querendo “dar um rumo mais nordestino” às suas canções, Gonzaga vai compor com
Humberto Teixeira por conta da já citada recusa de Lauro Maia. Em 1946, com a música Baião,
Gonzaga lança o ritmo que seria até o ano de 1954 o de maior sucesso no país e com repercussão
até no exterior. Este sucesso leva Humberto Teixeira a se tornar deputado federal em 1949, o
que afasta a dupla.
O apelo de Luiz Gonzaga é forte. Ele dirige a sua música para o migrante nordestino
radicado no Sul do país e ao público das capitais nordestinas que podiam consumir discos. Luiz
Gonzaga se tornou aquele artista capaz de atender à necessidade desse migrante de escutar
coisas familiares, sons que lembravam sua terra, sua infância, sons que o levavam até este
espaço da saudade em meio a toda a polifonia do meio urbano. Ainda segundo Durval, para
vincular mais seu trabalho a esta colônia de migrantes, ele faz programas nas principais rádios,
como a Rádio Record de São Paulo e a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, onde apresentava o
programa O Mundo do Baião. Seu primeiro programa de rádio como apresentador foi na Rádio
Mayrink Veiga e se chamava No Reino do Baião, em 1951.
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Sendo um artista com nítida visão comercial de sua carreira, além de utilizar os veículos
de comunicação e se associar às empresas, Gonzaga desenvolve, como estratégia de afirmação
do seu trabalho, uma estreita ligação com a Igreja no Nordeste, já que era profundamente
cristão, e também com as oligarquias tradicionais, fato que muito inibiu uma postura mais
crítica de seu trabalho, bem como influiu consideravelmente na própria visão da região que irá
veicular em suas músicas.
Humberto Teixeira supõe que Lauro Maia não tinha essa mesma estratégia de
comercializar a sua obra, pois não guardava registros escritos ou sonoros. “O baú do Lauro
Maia (risos) se resumiu a algumas partituras, alguns negócios que ele deixou com os Irmãos
Vitale. Nem a minha irmã tem nada do Lauro. Lauro nunca guardou coisa nenhuma”. E
argumenta que após a sua morte precoce, os únicos escritos que sua irmã conseguiu catalogar
foram entregues para os Irmãos Vitale, os editores do Rio de Janeiro. Todavia, o comentador
não leva em conta que Lauro Maia deixou inúmeras músicas gravadas. A preocupação de
Humberto Teixeira parece recair sobre a despretensão do compositor de construir uma imagem
de sua vida e de sua obra para ficar na posteridade.
Seria ingênuo acreditar que depois das inúmeras viagens feitas a trabalho e de fixar
residência no Rio de Janeiro para viver unicamente de música, Lauro Maia não levasse em
conta a comercialização de sua obra. O artista não parece combinar com essa imagem
despretensiosa difundida em grande parte dos depoimentos, embora parecesse lutar contra o
rótulo de ser um artista regional. O seu problema com o álcool, a paixão pelo carnaval e a
boêmia não impediam que ele fosse um compositor focado. Segundo o relato de Zé Menezes
para a TV Assembleia, Lauro Maia passava noites a fio no processo de composição e estava
sempre tentando fazer parcerias com grandes intérpretes e conjuntos musicais famosos no
período. O primeiro disco dos Vocalistas Tropicais trouxe, na face A o balanceio de Lauro
Maia, Tão Fácil, Tão Bom.
Quando Lauro Maia chegou ao Rio de Janeiro, em 1945, empregou-se na firma Irmãos
Vitale, editora de músicas e revendedora de artigos musicais. Na loja, Lauro tocava ao piano as
músicas escritas nas partituras ali editadas, como forma de divulgação ao público que,
entusiasmado com a execução do pianista, comprava imediatamente as cópias. Ao chegar em
casa nem todo mundo conseguia extrair das partituras a mesma técnica de execução de Lauro
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Maia. Logo que passou a trabalhar para os Irmãos Vitale, Lauro assinou um contrato
considerado absurdo com aquela firma, onde cedia todos os seus direitos autorais referentes às
músicas já editadas e também àquelas que viessem a ser impressas, ficando preso a este contrato
até o fim da vida. Lauro Maia foi também contratado pela Rádio Tupi para apresentações em
estúdio, participar de programas, atuar como copista de música e fazer arranjos e orquestrações.
Trabalhou foi pianista no Cassino Atlântico, onde suas músicas de cunho regional alcançaram
grande sucesso.
Dois anos após a morte precoce de Lauro Maia, Humberto Teixeira contribuiu no
lançamento de O Balanceio Tem Açúcar, gravado em 1952 pelo selo da Continental por
Carmélia Alves e Radamés Gnattali. Postumamente o trabalho do compositor parece ganhar
um tipo de projeção inesperada. A partir das experimentações instrumentais de Radamés ao
lado de Pixinguinha, na Victor, com sua formação adquirida nos estudos de instrumentação
erudita, como pianista e violonista, os arranjos de música popular receberam elementos de
orquestra sinfônica e do jazz. Radamés deu continuidade a este tipo de experimentação
instrumental por muitos anos, na Columbia, e posteriormente na Rádio Nacional, nas décadas
de 1940 e 1950. O contato com a música popular, ainda que urbana, podia render êxitos quanto
à pesquisa musical, à cultura nacional e à formação do gosto.
O balanceio chamou a atenção do maestro porque estabelecia a recriação comercial de
ritmos, timbres e temas desta área do país, assim como o baião; de um código de gosto que
valorizava as músicas dançantes, as de natureza lúdica e, por outro, atendia ao consumo
crescente de signos nordestinos e regionais como signos de nacionalidade. Humberto Teixeira
e Luiz Gonzaga constroem um baião fruto do dedilhado da viola ou a marcação rítmica feita
em seu bojo pelos cantadores de desafio entre um verso e outro, também conhecido como
baiano, fundido com elementos do samba carioca e de outros gêneros musicais urbanos que
Gonzaga tocava anteriormente. De acordo com Durval Muniz:

O baião vem atender à necessidade de uma música nacional para dançar, que
substituísse todas aquelas de origem estrangeira. Daí a enorme acolhida do
baião num momento de nacionalismo intenso, fazendo-o frequentar os salões
mais sofisticados em curto espaço de tempo. O baião será a música do
Nordeste, por ser a primeira que fala e canta em nome desta região. Usando o
rádio como meio e os migrantes nordestinos como público, a identificação do
baião com o Nordeste é toda uma estratégia de conquista de mercado e, ao
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mesmo tempo, é fruto desta sensibilidade regional que havia emergido nas
décadas anteriores. (ALBUQUERQUE, 2011, p. 171).

Por outro lado, a definição desta música como “nordestina” ocorre num contexto de
lutas simbólicas, estabelecendo-se num processo de inclusão e exclusão em relação a
identidades de diversas regiões e cidades do Brasil. Essa construção de identidades sonoras
ligadas a um espaço geográfico contribuíram para emergir a discussão entre o nacional e o
regional. Daí a música do eixo Rio de Janeiro-São Paulo eclodir como nacional e gêneros como
o baião e o balanceio permanecerem vinculados às “ilhas regionais”, mesmo tendo artistas com
materiais divulgados pelas principais rádios e gravadoras do país e um vasto público das
principais capitais brasileiras.
Mas a atribuição desta identidade regional à sua música foi possível por uma produção
discursiva que a tomou como objeto. Como música é intensidade, é diferença, requer
preferências, submetê-la a uma identidade, produzir a semelhança, requer submeter a música a
uma rede de comentários, desde comentários críticos das revistas especializadas em música, as
revistas voltadas para fazer a cobertura do rádio, que eram, em grande número, nesse momento,
comentários do próprio artista, através de suas entrevistas, bem como de todas as atitudes e
hábitos que passam a compor sua identidade de artista. A música de Lauro Maia valorizava
causos, memórias, histórias do cotidiano de Fortaleza e sua obra atinge um público urbano;
enquanto o sucesso de Humberto Teixeira e de Luiz Gonzaga se dava entre os migrantes
nordestinos, que se conecta a saudade do lugar de origem com o medo da cidade grande e com
os seus valores de origem rural.
Muito embora seja passível de crítica, deve-se levar em conta que lançar o balanceio
como baião pode ser interpretado como uma forma de tirar a sua autonomia e construir uma
memória sobre o passado que institucionaliza como o principal gênero da “música nordestina”
a obra de Humberto Teixeira e de Luiz Gonzaga e entrega a de Lauro Maia ao esquecimento.
As experiências comprovam, pois, a existência de um tráfego ininterrupto entre o que o mundo
impõe e o que a mente exige, recebe e reformula. Exatamente com as realidades entre as quais
ela se vê largada, a mente humana, a um só tempo estável e dinâmica, quase nunca permanece
totalmente passiva. A mente é com frequência extraordinariamente eficiente na compreensão
dos contornos e dos significados de suas percepções. Nesse sentido, observa-se que as obras de
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Lauro Maia não foram meramente esquecidas. Os ritmos e timbres de sua escrita musical
sofreram um intercâmbio de ideias e reverberam nas composições de seus sucessores. Não é à
toa que foi lançando em sua homenagem o disco: Lauro Maia – 80 anos, no ano de 1993, com
a participação de grandes artistas que tiveram influência direta ou indireta de sua obra: Evaldo
Gouveia, Ednardo, Fagner, Calé Alencar, Rodger Rogério, Ayla Maria e muitos outros.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, Miguel Ângelo de. O balanceio de Lauro Maia. Fortaleza: Edição do Autor,
1991.

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Ed. UFMG: Belo Horizonte, 2005.

CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.
São Paulo: EDUSP, 1997.

NAPOLITANO, Marcos. A Síncope das ideias: A questão da tradição na música popular


brasileira. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,


vol. 2, n.3, 1989.

SÁ, Sinval. Luiz Gonzaga: O sanfoneiro do Riacho da Brígida. 8. ed. Fortaleza: Realce Editora,
2002.

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