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ram apenas registros: algumas fotografias e um

UM LIVRO NO AQUÁRIO óleo, todos de Suzanne. A tela, de 1920, se chama


O readymade infeliz de Marcel Duchamp.
I.

Des~e que Manoel Ricardo de Lima contou por 111.


emall que, na exposição Livros de guerra, agora
apresentada na galeria Sem Título, em Fortaleza Não é qualquer livro que Manoel Ricardo de Lima
um único exemplar de As mãos ficará "dentro d~ faz flutuar no aquário, mas um único exemplar de
um aquário grande num líquido que o faz flutuar As mãos, publicado pela primeira vez em 2003 e
até s~ desfazer completamente", não consigo tirar reeditado duas vezes, em 2006 e em 2012. Nessa
~ssa Ima~em (que não vi) da cabeça. O que signi- última ocasião, para ser relançado junto à primeira
fica um livro flutuando num aquário? Ou melhor: o edição de Jogo de va retas, do qual 14 exemplares
que significa um livro flutuando num aquário até se acham, nessa mostra da Sem Título, trespassa-
que o líquido em que ele está o faça desapare- dos por furos de 16 milímetros, pendurados num
cer? Por que fazer sumir a um livro? Por que deste cabo vermelho à altura do olho. Em ambos os li-
modo? vros, uma mesma afirmação se repete, com um
pequeno detalhe a diferenciá-Ias: "toda história
possível é de amor" (As mãos), "toda história é de
li. amor" (Jogo de vare tas). Aquele "possível" que
Em 1919, Marcel Duchamp, ao saber do casamen- qualifica "história" no livro mais antigo de Manoel
to de sua irmã Suzanne com seu grande ami- parece encerrar a condição mesma de existência
go Jean Crotti, enviou as instruções para que senão da literatura como um todo, pelo menos da
os dois realizassem um readymade: eles deve- narrativa: a possibilidade de se contar uma histó-
riam pendurar por um fio, no alto da sacada do ria. E esta é sempre de amor - ou de morte, que é
ar:>artam~n~oem Paris, um tratado de geome- a mesma coisa.
tria e del~a-Io ali, pegando chuva e sol até que
se destruísse completamente. Como o próprio IV.
~uchamp explicou, décadas depois, em entre-
vista a Pierre Cabanne: "o vento devia consultar Duchamp estava em Buenos Aires quando recebeu
o livro, escolher ele mesmo seus problemas, fo- a notícia do casamento da irmã, de quem gostava
lhear as páginas e destruí-Ias". Do tratado, resta- muito. (Lá, meses antes, também havia recebido

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a n<:>tíciada morte do irmão Raymond.) Por isso, consciente". A primeira traição teria sido o casa-
en:'lou de longe as instruções para que os próprios mento anterior dela com o farmacêutico Charles
nOI~osconfeccionassem o presente de casamento. Desmares. Por sua vez, António Olaio propõe pen-
Ironicamente, Duchamp havia ido para a Argentina sar a infelicidade contida nesse presente de casa-
com Yvonne Chastel, ex-mulher de Crotti. Quando mento como "pertença da simbólica da obra e não
Cabanne, naquela mesma entrevista, comentou de qualquer projecção da subjetividade do autor":
que o Readymade infeliz era um presente bastan- "Comunga da tristeza do Readymade malheureux
t~ "simbólico" para um matrimônio, Duchamp não o sentimento que o casamento é imagem simbó-
titubeou em responder: "Nunca pensei nisso". lica da dissolução de uma ideia". Aproximando o
readymade em questão de outros trabalhos de
v. Duchamp, como a pintura A passagem da virgem
à noiva, de 1912,Olaio observa ainda: "para além
o ~ema central de As mãos não é o começo, mas da visualização da passagem de uma realidade
o fim de uma história de amor. Quem narra é o ho- a outra, por ser infeliz torna implícita a sugestão
mem, encerrado entre quatro paredes (como em que a destruição de uma ideia para outra nascer,
um aquário sem água), diante de uma janela que manifestação simbólica de luto, não é mais do que
se abre para um "lugar de areia e escombro" que traduzir: o que foi não será jamais".
"cheira mal" e "está em guerra" - assim corno ele
mesmo está em guerra: "tenho a guerra dentro de
VII.
mim e tenho medo". Ele escreve desde as ruínas
de "uma cidade que tanto faz" - que é também Talvez a frase que melhor sintetize As mãos esteja
em certa medida, a ruína do próprio casal C'de no conto "Todos os dias ferrugem", de Jogo de va-
agora em diante, estamos todos mortos") - para retas, dita por um personagem que não sabe mais
tentar entender o que aconteceu com eles, o que quem é, a quem o próprio nome lhe foge: "Acho
os "desmanchou assim", o que os "arrebentou as- que esquecer é muito, quase tudo nesta vida. Uma
sim". Ou talvez para tentar esquecer o que passou: lembrança pode morar também numa imagem
a escrita funcionando aí como uma forma de apa- ruim. Mas você é quem some, há dias em que você
gamento. some completamente".

VI. VIII.
É famosa a interpretação de Arturo Schwarz para Um livro flutuando num aquano pode ser uma
o Readymade infeliz este poderia ser visto como "imagem ruim", ou ainda, recuperando o adjetivo
uma resposta à "segunda traição" de Suzanne ao caro a Duchamp, uma "imagem infeliz", mas da-
irmão, que teria por ela "um amor incestuoso in- quela infelicidade evocada por Olaio, entendida

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como "a passagem de uma realidade a outra", IMAGINATION
"a destruição de uma ideia para outra nascer", o
mesmo tipo de mecanismo que está presente no
trabalho do luto. Ao mergulhar o livro num líquido as mãos
que o destruirá, Manoel Ricardo de Lima como que se cruzam
dá corpo à tentativa de apagamento que, na narra-
tiva, a escrita sugere: antes de corroer as próprias
como numa postura
páginas, o líquido deverá fazer com que a tinta do
texto desapareça, tornando-o ilegível. de yoga

se a vida
IX.
não puxasse o tapete
Um livro flutuando num aquário pode evocar ou-
tras imagens: como a do feto no líquido amniótico por hora
(gestação) ou a do feto no formol (conservação).
é o que se tem
No primeiro caso, uma imagem de vida; no ou-
tro, de morte. No fim da exposição, se tudo correr
corno o esperado, não haverá mais nem imagem
de vida, nem de morte, mas um apagamento. Que,
porém, não é total: o livro, apesar da sua dissolu- aperto de mãos
ção, continua lá, no aquário. E também continua lá
gesto de adeus
o próprio líquido, o meio dissolvente. Talvez o que
interesse aí seja alcançar aquele ponto em que,
na destruição de um objeto, que é também o seu Alexandre Barbalho
momento de exposição, objeto e meio não mais
se diferenciam de todo - mas também jamais se
fundem completamente. Talvez estejamos diante
de outro modo de dizer que toda história possível
é de amor.

Veronica Stigger

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