Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resumo
A partir das reflexões de Walter Benjamim acerca da narrativa, são estabelecidos os pontos
de aproximação entre o romance e as imagens da série Não-habitável, desenvolvida pela
autora. Para tanto, são também abordadas obras de Lygia Clark, Virginia Woolf e Aleksandr
Ródchenko.
Abstract
Based on Walter Benjamin’s work about the narrative, the article elaborates on the points of
contact between the novel and the images comprised in the series entitled Não-habitável
[Non-habitable], developed by author of this text. To accomplish this goal, works by Lygia
Clark, Virginia Woolf and Alexander Rodchenko are also addressed.
Até final do século XIX, a imagem cumpria uma função narrativa, registrando, por
exemplo, a vida de um morto, no Antigo Egito; passagens bíblicas, a partir da era
cristã; e, no Renascimento, histórias seculares e religiosas. A arte moderna, como
sabemos, abandonou este modelo de representação rompendo com seu caráter nar-
rativo, isto é, concentrou-se na procura de uma linguagem autônoma, processo do
qual a fotografia participou. Posteriormente, conforme apontado por Arthur Danto, o
expressionismo abstrato esgotou-se “por falta de insumo externo”, tendo a geração
seguinte, em especial os artistas pop, buscado recolocar a arte em contato com a
realidade e a vida.1 Foi então que, por volta da década de 1960, a narrativa voltou a
ser incorporada ao âmbito da arte, em todas as categorias (pintura, escultura, dese-
nho, instalação, fotografia etc.). Neste contexto, a fotografia tem apresentado ampla
diversidade de narrativas – pessoais, ficcionais, com realidade manipulada, com in-
clusão de texto etc.
4319
Sem título, da série Não-habitável (Brest), 2005 fotografia 150 x 100cm (cada)
Desde sua concepção original, o Não-habitável constitui uma série. Entretanto, suas
imagens são autônomas e sua narrativa não é una, tampouco é explicativa, totali-
zante ou consumada. Ao contrário, o que está em jogo é dado pelos fluxos psicoló-
gicos do observador em frente de cada imagem. Neste plano reside o segundo pon-
to de afinidade entre a série Não-habitável e o romance: a fruição da imagem que,
assim como a do texto do romance, remete o „leitor‟ a fabricar uma narrativa que en-
reda a sua subjetividade, no sentido de provocar uma vivência interior.
4322
Numa dialética entre „o dentro‟ e „o fora‟, a vivência interior propiciada pela obra é
atravessada por uma experiência individual, atualizada a cada espectador. Voltemos
então para Benjamin, para quem:
De todo modo, cabe reiterar que nesta obra de Lygia Clark não há fechamento da
arte sobre si mesma, o que significa dizer que não há alheamento do „estar no mun-
do‟. Ao contrário disso, o que há é conexão com a condição de „estar no ser‟, isto é,
com a vida. Com isso, e por isso, A Casa é o Corpo deslinda um desejo de comun-
gar e conjugar vivências que ultrapassa a comunicação individualizada artis-
ta/espectador.
uma experiência dada por “um espaço articulado pelo dinamismo da ação”, 10 no
Não-habitável o espaço é dado de uma só vez, não há sugestão de percurso, e nada
é consumado. No tocante à narrativa, há, entre os dois trabalhos, pontos de aproxi-
mação e pontos de distanciamento. O que os aproxima é que, em ambos, a narrati-
va é subjetiva, isto é, ela é operada pela subjetividade do espectador; o que os dife-
rencia é a instância da subjetividade do sujeito que é incitada para tal narrativa, con-
forme desenvolvido mais adiante.
Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, publicado pela primeira vez em 1925, é um marco
do romance moderno. Com uma narrativa sem linearidade e fluindo entre o sonho e
a realidade, entre o passado e o presente, seu texto retrata a burguesia de Londres
e sua realidade oculta, através da confrontação de sanidade e insanidade, vistas em
conjunto, e da feitura de um retrato psíquico de seus dois personagens principais,
cujas vidas correm paralelamente. Primeiramente, Clarissa Dalloway, a personagem
título do livro, a perfeita dona de casa que prepara uma festa relembrando momen-
tos de sua vida. “Mrs. Dalloway; nem mais Clarissa: Mrs. Dalloway somente”:11
[...] nunca estar inteiramente alegre, nem inteiramente segura [...] tudo vaci-
lava e pendia, como se na verdade houvesse um monstro a roer as raízes,
como se toda a panóplia do contentamento não fosse mais que amor pró-
12
prio! e aquele ódio!
“No final da guerra”, escreve Benjamin, “os combatentes voltavam mudos do campo
de batalha não mais ricos, e sim mais pobres de experiência comunicável”. 13 Em
Mrs. Dalloway, a Londres do Pós-Primeira Guerra Mundial encarna o modelo de ci-
dade habitada por subjetividades abafadas, que não conseguem se emancipar
Não podia ficar sentada junto a Septimus quando ele olhava daquela manei-
ra, e não a via, e tudo parecia terrível [...]. Mas não, Septimus não se mata-
ria; e ela não podia falar com ninguém. [...] O amor torna a gente solitária,
pensou. Não podia dizê-lo, a ninguém, nem mesmo a Septimus, agora, e,
olhando para trás, viu-o sentado sozinho no banco, com seu sobretudo puí-
do, curvado, os olhos fixos. E era uma covardia dizer que ia matar-se; mas
15
Septimus havia lutado; fora um bravo; não era o mesmo Septimus agora.
4325
Neste ponto, é imperativo levantar outra questão, qual seja: como é possível habitar
um Não-habitável? De acordo com Martin Heidegger, “o vigor essencial do habitar”
está em “permanecer”, está no “demorar-se dos mortais sobre esta terra”.16 Seguin-
do a trilha heideggeriana, o Não-habitável parte de uma vivência em determinados
lugares que, capturados fotograficamente, oferecem um „de-morar-se‟ que dá mar-
gem a uma nova experiência do habitar. Mais precisamente, a série Não-habitável
lança mão da imagem para a ativação do freqüentar, do “demorar-se”, num espaço
não físico, fora da imagem, exterior ao corte fotográfico, um “espaço off”.17
4327
O que parece implicado neste jogo projetivo está próximo do que Freud denominou
unheimlich, ao citar Schelling, para quem unheimlich é tudo que deveria ter perma-
necido secreto e oculto, mas veio à luz”20 e “que somente se alienou desta através
do processo de repressão”.21 Tal acepção encontra ecos em outros campos. Por e-
xemplo, de acordo com Anthony Vidler, as escavações de Pompéia desvendaram
um “lado obscuro” do classicismo “revelando o que deveria ter permanecido invisí-
vel”. Neste sentido, Vidler identifica uma „perturbação‟ do que era conhecido e orga-
nizado, pois que as “pinturas e [os] artefatos religiosos desta cidade de fundação
grega estavam longe das formas neoplatônicas da imaginação clássica”.22 Ao mes-
mo tempo, os argumentos arqueológicos de Vidler apontam para um re-
conhecimento, com o que os ecos mencionados se estreitam, uma vez que, seguin-
do o pensamento freudiano, o distúrbio próprio do unheimlich não advém de alguma
coisa externa, estranha ou desconhecida, mas, pelo contrário, de algo estranhamen-
te familiar, que tentamos afastar de nós, mas que resiste aos nossos esforços.
pírito, pois que sentimentos simultâneos e contrastantes vêm à tona; por exemplo, o
prazer que se dá pelo desprazer.25
1
DANTO, Arthur C. Após o Fim da Arte: A Arte Contemporânea e os Limites da História. São Paulo: Odysseus
Editora, 2006, p.114.
2
BENJAMIN, Walter. “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Magia e técnica, arte e
política. Obras escolhidas, p.197-221.
3
Ibid, p.202.
4
Ibid., p.201
5
MILLIET, Maria Alice. Lygia Clark: Obra-trajeto. Editora da Universidade de São Paulo, 1992.
p.111-114.
6
BENJAMIN, Walter, op.cit., p.201.
7
Ibid, p.212.
8
Ibid, p.213.
9
MILLIET, Maria Alice, op. cit., p.114.
10
MILLIET, Maria Alice. Ibid, p.130.
11
WOOLF, Virginia. Mrs. Dalloway. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p.14.
12
Ibid, p.15-16.
13
BENJAMIN, Walter, op.cit., p.198.
14
WOOLF, Virginia. Mrs. Dalloway , op. cit., p.28.
15
Ibid, p.25.
16
HEIDEGGER, Martin, ”Construir, habitar, pensar”. In: Ensaios e conferências / Martin Heidegger, Petrópolis,
RJ: Vozes, 2001, p.128-129.
17
Sobre a noção de “espaço off” ler: “O golpe do corte”. In: DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios.
Campinas, SP: Papirus, 1994.
18
“O espaço pode ser a projeção da extensão do aparelho psíquico. Nenhuma outra derivação é provável. Em
vez dos determinantes a priori, de Kant, de nosso aparelho psíquico. A psique é estendida; nada sabe a respei-
to”. FREUD, Sigmund. “Achados, Idéias e Problemas” (1941 [1938]). In: op. cit., v.XXIII, 1969-1980, p. 336.
19
Idem. “Uma nota sobre o „bloco mágico‟” (1924). In: op.cit., v.XIX, 1996, p.255.
20
FREUD, Sigmund. “O „Estranho‟” (1919). In: op. cit., v.XVII, p.282.
21
Ibid, p. 301.
22
“The paintings, sculptures, and religious artifacts in this city of Greek foundation were far from the Neoplatonic
forms of neoclassical imagination. [...] Archaeology, by revealing what should have remained invisible, had irre-
deemably confirmed the existence of a „dark side‟ of classicism, thus betraying not only the high sublime but a
slowly and carefully constructed world of modern mythology”. VIDLER, Anthony. The architectural uncanny: es-
says in the modern unhomely. Cambridge, Massachussetts / London, England: The MIT Press, 1999, p. 48.
23
PANOFSKY, Erwin. “A Perspectiva como forma simbólica”. In: ARGAN, Giulio Carlo, História da arte italiana:
De Giotto a Leonardo, vol.2. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 125.
24
“O belo da natureza concerne à forma do objeto, que consiste na limitação [...]. KANT, Immanuel. Crítica da
faculdade do juízo, p.90.
25
“[...] a complacência no sublime contém não tanto prazer positivo, quanto muito mais admiração ou respeito,
isto é, merece ser chamada de prazer negativo. KANT, Immanuel, loc. cit.
26
“[...] enquanto o belo lida direta e afirmativamente com o prazeroso, o sublime lida também com o assustador,
com o intranquilizante”. LYRA, Edgard. Estética Moderna (Kant CFJ) – Rascunhos de aula/3, não paginado.
4331
REFERÊNCIAS
ARGAN, Giulio Carlo. PANOFSKY, Erwin. “A Perspectiva como forma simbólica”. In: História
da arte italiana: De Giotto a Leonardo, vol.2. Trad. Wilma De Kantinsky. São Paulo:
Casac & Naify, 2003.
BENJAMIN, Walter.”O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Obras
escolhidas I. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da
cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p.197-
221.
CRIMP, Douglas. “Pictures”. In: WALLIS, Brian (ed.). Art after modernism: Rethinking Re-
presentation. New York: The New Museum of Contemporary Art, 1984, p.175-187.
FREUD, Sigmund. “Achados, Idéias e Problemas” (1941 [1938]). In: Edição Standard Brasi-
leira de Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.XXIII. Trad. do alemão e
do inglês sob a direção geral e revisão técnica de Jayme Salomão. Rio de Janeiro:
Imago Editores Ltda, 1969-1980, p.336.
______. O ’Estranho‟ (1919). In: Edição Standard Brasileira de Obras Psicológicas Comple-
tas de Sigmund Freud. v.XVII. Trad. do alemão e do inglês sob a direção geral e re-
visão técnica de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editores Ltda, 1970, p.270-
315.
______. “Uma nota sobre o „bloco mágico‟” (1924). In: Edição Standard Brasileira de Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.XIX. Trad. do alemão e do inglês sob a
direção geral e revisão técnica de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editores
Ltda, 1996, p.253-259.
HEIDEGGER, Martin. ”Construir, habitar, pensar”. In: Ensaios e conferências / Martin Hei-
degger. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schu-
back. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, p.125-141.
DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico e outros ensaios. Trad. Marina Appenzeller. Campinas,
SP: Papirus, 1994.
KANT, Immanuel. “Crítica da Faculdade do Juízo Estética”. In: Crítica da faculdade do juízo.
Trad. Valério Rohden e Antonio Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1993.
LYRA, Edgard. Estética Moderna (Kant CFJ) – Rascunhos de aula/3, não paginado.
MILLIET, Maria Alice. Lygia Clarck: Obra-trajeto. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1992.
WOOLF, Virginia. Mrs. Dalloway. Trad. Mário Quintana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1980.
4332
Regina de Paula
Artista, professora adjunta do Instituto de Artes da UERJ, doutora em Artes Visuais pela
EBA/UFRJ. Foi artista residente do Centro d‟Art Passerelle, em Brest, França. Participou de
diversas coletivas em instituições como: SESC Pinheiros (SP), Caixa Cultural (RJ), Art in
General e Bronx Museum of the Arts (NY) etc. Realizou sua última individual nas Cavalari-
ças da Escola de Artes Visuais do Parque Lage (RJ / 2009).