Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
JSTOR is a not-for-profit service that helps scholars, researchers, and students discover, use, and build upon a wide
range of content in a trusted digital archive. We use information technology and tools to increase productivity and
facilitate new forms of scholarship. For more information about JSTOR, please contact support@jstor.org.
Your use of the JSTOR archive indicates your acceptance of the Terms & Conditions of Use, available at
https://about.jstor.org/terms
Indiana University Press is collaborating with JSTOR to digitize, preserve and extend access to
Chiricú Journal: Latina/o Literatures, Arts, and Cultures
Não sei mais que dia é hoje. Pode ser quarta, sexta. Porto Alegre
segue com seu ritmo de carnaval. Até a temperatura tem se mantido
estranhamente estável. Não digo que é um eterno dia da marmota,
porque hoje saí de casa. Não foi como ontem, nem como antes de
ontem, nem como antes de antes de antes de antes. Fui até a igreja
desses tempos: o Zaffari, lugar de peregrinação e reunião periódica,
do pão nosso de cada semana, quinzena, do álcool bento que salva
e protege. Botei roupas de corrida, tênis e dei um trote de uns três
quilômetros por ruas menores até chegar lá. Fiz compras como se
um furacão fizesse ondas no Guaíba e, antes de ir embora, me senti
um pouco clandestino: estava chegando perto dos caixas e fiz meia-
volta. Fui ao freezer das cervejas e peguei uma longneck. Gelada.
Mais gelada do que o habitual para um supermercado. Não tivesse
que pagar pela garrafinha e teria escondido da menina do caixa,
que, protegida por trás de um capacete de esquadrão antibomba,
registrou compra por compra como se eu estivesse levando granadas
sem pino. Vai saber. Caminhei de volta para casa tomando a cerveja
criminosa devidamente desinfectada. O parque da caixa d’água vazio
numa tarde de sol sugeria uma segunda-feira, mas pode ser domingo.
Não acredito em sugestões. A rua, virada em pista de motociclismo,
estava calma. E não estava. Segui pela Vinte e Quatro e decidi não
atalhar pelo posto. Passando dele, uns dez metros à frente, tinha
uma nesga de sol batendo na calçada. Lembrei do A praia do futuro,
Wagner Moura tirando o capuz num dia frio, recebendo cheio de
orgasmo os raios esbranquiçados do sol de um dia de inverno ou
outono em Berlim. Avancei rumo à luminosidade, caminhei mais
devagar enquanto estive sob a luz.
Não é mais do que um jogo de palavras, mas hoje fiz quarenta anos
de quarentena. Muito mais gente fez. Mais significativo é redescobrir
a casa. Tenho passado mais tempo nessa sacada do que devo ter pas-
sado ao longo de todos os anos desde que nos mudamos para esse
apartamento. Termino mais uma taça de vinho, deve ser quase meia-
noite e só sei que dia é hoje porque acordei com um feliz aniversário.
O mais perto de uma festa acontece mesmo é lá embaixo. Também
pode ser uma briga. Eles gritam na praça, não dá para saber se o
empurrão que um desfere agora é amizade ou agressão ou as duas
coisas. Um grunhido parecido com risada. Nessa noite são quatro
os caras no acampamento na praça. Um passa uma garrafa para o
outro e não deixo de pensar em álcool gel. O que comemoram, do
que estão rindo? Levanto, entro na sala, pego a camiseta que estava
jogada no sofá e visto. Calço os chinelos, abro a porta e vou para as
escadas.
um por si e por suas luvas. Dizem que foi cuidado com a saúde de
todos, penso em taxas de condomínio atrasadas, flexibilização de
leis trabalhistas, demissões. Agora é tarde em todos os sentidos.
Não vou subir nove andares para pegar máscara e luvas. Saio para a
rua, que segue rindo da gente, seja lá que dia, noite for hoje. A risada
das ruas tem o som rude das risadas dos habitantes da praça e, às
vezes, fica sinistra quando uma ambulância dessas passa berrando o
desespero de alguém sem ar para gritar.
Chego perto dos colchões e papelões espalhados entre o
banheiro público trancado e o chafariz seco. O cheiro é agressivo,
mas fico observando os carrinhos de super cheios de qualquer—ou
haverá critério, curadoria nessas seleções—tralha. Garrafas plásti-
cas, sacolas, papéis, quentinha, uma cabeça de boneca, um rádio
velho, um tecido imundo é o que consigo ver enquanto me sento
em um dos colchões, pegajoso, sinto umidade atrás das minhas
coxas, na palma das mãos, e ainda assim sento e penso nas sacolas
de supermercado lavadas com água e sabão e estendidas no varal do
apartamento. Olho para trás e tento ver nossa sacada lá no alto, do
outro lado da rua, isolada do mundo atrás daquela tela azul, enorme
mosqueteiro cobrindo o prédio. Risos vêm do meio da praça. São
três sujeitos que conversam lá no centro, debaixo dessa luz antiga
do poste. Dois caras estão sentados num banco, o outro está em pé,
se movimenta. Conversam como se houvessem saído de uma par-
tida do time deles, sem medir distâncias, nem se preocupar comigo
abancado sobre suas camas. Um carro passa às minhas costas,
poderia ser um carro de som da prefeitura, Fique em casa, não faça
aglomerações. Sinto a espuma do colchão rasgado tocando a palma
da minha mão, eles seguem falando de algo muito animado, eles
entendem o recado da prefeitura? Quanto tempo um vírus sobre-
vive na espuma de um colchão? Parece que o restaurante do outro
lado da rua faliu, não vai mais abrir quando tudo isso passar. Olho as
grades cerradas, o comércio às, que horas são, tão igual ao comércio
de dia: fechado. Para evitar circulação. Comprar é o que nos faz sair
de casa, andar, circular. Se não há o que comprar, não há por que
sair de casa. Reparo no silêncio e vejo que os caras se movimentam,
devem estar vindo para cá, sempre juntos, eles circulam mesmo
Globonews fala das bolsas, do pior mês para venda de carros, dos
temores do varejo, mas não dá uma notícia sobre o comércio de
crack, da cachaça em garrafa de plástico. Subiu, desceu? A maconha
e a cocaína devem estar passando por bons momentos, talvez tam-
bém estejam nesses caixotes fosforescentes que riscam as noites de
moto e bicicleta. O corpo deitado na calçada está de costas e de
lado para mim que olho de cima: cabelos ensebados, sem camisa,
calça deixando parte da bunda de fora. Pelo infla-desinfla do tronco,
respira. Vive. Pelos cabelos, não parece ser Meu Amigo, nem Nosso
Amigo. Olho o corpo respirante, a tentação de cutucar com a ponta
do pé, mas aí dizer o quê, o coração acelera. Será que a garganta vai
fechar de novo: e se fechar, e esse ar que já falta, como saber se é
pânico, ansiedade, crise respiratória aguda, ou. Tento sincronizar o
ritmo da respiração com o ritmo lento do corpo deitado na calçada,
minha boca segue seca e o coração não acalma, pego da calçada uma
garrafinha de água que está do lado do corpo e emborco um gole.
Arde. Não é água. A ardência no esôfago, na boca do estômago, no
estômago, nas juntas, no olho, no cabelo, é maior que tudo. Boto
a garrafa no chão e esfrego minhas mãos sem álcool gel ou sabão.
Daqui já não dá mais para distinguir meu apartamento por trás da
tela, só a tela, e esse corpo assintomático que não conheço, não é
Meu Amigo, Nosso Amigo, esse corpo estará aqui amanhã? Uma
ambulância passa e, em algum lugar secreto do meu cérebro, tenho
medo de ser recolhido. Ando.
Atravesso a rua e olho para trás e para o corpo que daqui já
não se vê se respira ou não. Se tiver parado de respirar, ou se perder
ar e sufocar, quem recolhe? No Equador há mortos espalhados
pelas calçadas, deve haver em outros países, mas as notícias não
chegam. Talvez até aqui. Dou as costas para o corpo que estava vivo
e a imagem de um caminhão da prefeitura me vem de novo, me
dá medo, talvez o caminhão do lixo recolhendo o corpo que ainda
respira, o Meu Amigo, Nosso Amigo, os caras na praça, e triturando
com outros dejetos, enquanto no alto da cabine um alto falante
repete Não saia de casa, um caminhão total que esvazia as ruas e
manda ficar em casa, um caminhão total, e dou uma risada e me
assusto. E tenho medo de ter sorrido e mais medo ainda de talvez
ter falado Caminhão total em voz alta, tenho mais medo disso do
que de estar a essa qualquer hora na rua e tenho ainda mais medo
do pensamento fugindo, querendo avisar Meu Amigo para tomar
cuidado com o caminhão, as pernas cambaleiam, coço o olho, como
faz para não sair de casa quem está vivendo na rua? Já não enxergo
o corpo que respirava caído-deitado na calçada, e o chinelo engata
em uma lajota solta, tropeço, desabo, as mãos lixando-se na fricção
com o basalto, esmagando vírus, a pele dos joelhos vai ralando
também, e o frio na barriga pode ser do contato com o chão. É do
contato com o chão, sinto agora, encostando a bochecha na pedra.
Rio de novo: estou deitado na calçada e não sinto vergonha, como
quando se tropeça e se tenta pateticamente manter o equilíbrio e a
normalidade aos pulinhos, não tenho vergonha: perdi o equilíbrio.
Estou deitado na calçada. Tenho sangue nas mãos, acho. Na ponta
do indicador, o líquido corre fininho e confirmo que, de fato, é
sangue: tenho sangue nas mãos e sinto o gosto, chupando o dedo
para estancar. Estou deitado na calçada chupando a ponta do meu
dado e tudo bem. Faço uma flexão desengonçada como há dias não
faço em casa, como um presidente fazia quando visitava milicos,
e me sento. Me apoio sobre as canelas, fico de joelhos. Tem um
rasgão na minha camiseta, ela parece estar encardida, mas não
vejo bem. Meu joelho sangra e sinto essa falta no pé direito. Olho
para trás: o solado do pé direito do chinelo está lá onde começou
a minha queda. A tira ainda abraça o peito do meu pé, cinto de
segurança que se rompeu.
Apoio a sola do pé direito no chão, a perna esquerda ainda
dobrada, canela encostando na pedra, estou numa posição de cava-
leiro diante do rei. Tomo impulso, me levanto. O dedo cortado na
mão esquerda lateja. Olho, e o sangue já não corre, mas sinto o late-
jar. O pé direito pisando o basalto é bom. É estranho. É bom. Um
pé toca o piso, e o outro, a borracha; um sente o frio, e o outro, um
leve grude de suor e não sei há quanto tempo estou caminhando.
Caminho e o chinelo cola na pele só um tantinho e solta e bate no
chão e recebe o peso do pé prensando a borracha contra a calçada.
Já foram uns quantos passos só prestando atenção no contraste de
um pé e outro, como se eu fosse dois caminhando ao mesmo tempo.
Não sei se o cheiro fétido é dele, meu, do meu bafo ao dizer Meu
Amigo. Consigo empurrar um pouco ele, que parece um boneco de
pano. Nos separamos. Os olhos dele são embaçados e não me veem
ou não reconhecem. Não é o Meu Amigo. Não sei que é. Empurro
ele mais um pouco. Me afasto. E Meu Amigo pode estar caído morto
com meu vírus de assintomático em qualquer canto da cidade, ou
mastigado num caminhão da prefeitura. O homem à minha frente
fecha os olhos, e eu vejo um caminhão que vem subindo a Barros
Cassal. Sinto um tranco no peito. Me levanto. Deixo o corpinho para
trás, arrasto meu pé o mais rápido que consigo, ando, arrasto, ando,
olho para trás e o caminhão passa, não me viram. Na outra esquina
tem um cara com uma caixa verde-limão pendurada nas costas. Ele
está apoiando uma bicicleta numa coluna e agora se dirige para o
degrauzinho da entrada de um prédio antigo. Ando e me arrasto
rápido e pego no guidão da bicicleta. Vejo o cara apertando um botão
no porteiro eletrônico, batendo no vidro e monto na bicicleta. Dou
uma pedalada forte e o embalo da lomba abaixo deixa para trás uns
gritos, uma sirene perdida, cruzo uma avenida na inércia, a cidade vai
ficando plana de novo e pedalo e pedalo e pedalo e pedalo e pedalo
e pedalo e pedalo e pedalo e pedalo e cruzo outra avenida e sinto o
zunir de um ônibus às minhas costas. Perco o equilíbrio, tento sus-
tentar a bicicleta, mas a queda parece inevitável. No asfalto uma seta
aponta para a direção contrária, parece que é sobre ela que vou me
esborrachar. E lá vou eu.
Reginaldo da Luz Pujol Filho holds a PhD in creative writing from the Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul and has done postgraduate work at the Universitat de
Barcelona and the Universidade Nova de Lisboa. He is the author of three short story collections and
a novel and curated the exhibition Nosso corpo estranho.