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José Honório Rodrigues e a

Historiografia Brasileira
Francisco Iglésias

gos pomposos ou atitudes retumban­


a historiografia brasileira, José tes, pois viveu dedicado a uma causa
Honório Rodrigues ocupa uma - o cultivo da história -, consumin­
posição especial: primeiro, do-se nela. Nesta breve notícia, ape­
como o pesquisador que mais nas se falará de sua formação e dos
se dedicou ao tema, no exame cargos que ocupou evidenciando uma
da produção de livros de história, a coerência exemplar de comportamen­
tal ponto de poder-se dizer, sem he­ to. Aí está a chave para o entendi­
sitação, ter sido quem mais o culti� mento de quanto escreveu.
vou e contribuiu para o seu desen­ Nascido na cidade do Rio de Ja­
volvimento; segundo, como autor de neiro no dia 20 de setembro de 1 9 1 3,
vários livros de história relativos a dela saiu algumas vezes para viagens,
assuntos, acontecimentos ou figuras quase sempre de trabalho. Mesmo a
marcantes da trajetória nacional. passeio, não deixava de visitar biblio­
Para falar sobre a importância de tecas, arquivos e museus. Teve tem­
José Honório na historiografia nacio­ poradas mais longas no exterior, com
nal, pretende-se seguir um esquema bolsas de estudo e pesquisas, ou como
que constará de um resumo biográ­ professor, em missões de grande sig­
fico, uma tentativa de classificação de nificado no cultivo da especialidade
seus livros, seguida de análise, e um escolhida. No Rio de Janeiro passou
breve enunciado do ideá rio e legado quase toda a existência, o que lhe
de sua obra como historiador_ agradava, pois amou a cidade com
exaltação, seja em seu Centro antigo,
I. NOTICIA BIOGRAFICA
rico de passado, seja em Ipanema, no
apartamento próximo da praia. No ex­
A biografia de José Honório, como terior quase sempre deslocado, rene­
é comum entre escritores, é eminen­ gando os hábitos ou comidas, saudo­
temente intelectual. Não se procurem so da paisagem habitual. Com entu­
em sua vida lances de aventura, car- siasmo referia-se à condição de ca-
Estudos Hlst6rlcos, RJo de Janeiro, n. I, 1988 p. 55-78.
56 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1 988/1

rioca, de raízes materna e paterna. não tinha a disponibilidade atribuída


Orgulhava-se de ser contemporâneo aos conterrâneos. Tipo legítimo do gê­
de dom Pedro J[ e Machado de As­ nero seria Marques Rebelo, seu amigo
sis e outros brasileiros eminentes, mas e admirador. Oulro, embora seríssimo
amava sobretudo o seu povo, de modo e até obstinado em sua fé, era Alceu
de ser alegre e descontraído. Sobre Amoroso Lima, também por ele admi­
o tema escreveu a]gumas vezes. so­ rado: o Alceu jovialíssimo, aberto ao
bretudo em 1965 e 1966, quando do mundo e às pessoas, mesmo às mais
I V Centenário da cidade, em dois diferentes dele, de tolerância sem
longos artigos - "Características his­ igual, sem mágoas ou rancores.
tóricas do povo carioca" e "O des­ José Honório tinha algumas admira­
tino nacional da cidade do Rio de Ja­ ções e cultivava inúmeras animosida­
neiro" -, incorporados ao livro Vida des. Destituído de senso lúdico ou de
e história. Via na origem minhota e humor, era, nesse sentido, bem pouco
no negro banto a razão principal das carioca. Decerto cultivava certo gosto
características notadas no povo de sua de viver - mas. desajeitadamente,
cidade. não se adaptava às situações -,
Curiosamente, orgulhoso da terra e amando o mar. a praia. as caminha­
do povo, não tinha muito de carioca. das. Contudo, implicava com pessoas
Decerto, a afirmativa prende-se ao es­ e coisas, chegando a odiá-Ias. Prova
tereótipo: o carioca seria solto, ale­ do traço é seu gosto pelo futebol: ia
gre, despreocupado, chegando, nas aos estádios como apaixonado torce­
formas extremadas e distorcidas, à dor do Flamengo, vendo nos outros
gaiatice e certa irresponsabilidade. Os clubes inimigos; O jogo não era uma
clichês do gênero - sobre o gaúcho, disputa esportiva, mas uma guerra. O
o mineiro. o baiano c outros - não futebol dava-lhe mais desgosto que
nos agradam: há neles muito do ar­ prazer, pois. se festejava as vitórias
bitrário e vazio; toleráveis quando de seu quadro, amargava as derrotas
no nível do folclore, parecem-nos per­ e sobretudo as glórias dos outros. Ser
niciosos quando se pretendem sérios fluminense, vascaíno ou botafoguense
ou científicos, na linha da discutí­ era um insuJto. embora tivesse, como
vel psicologia de povos, cultivada no não podia deixar de ter, amigos com
século passado e hoje condenada pela essas filiações; aceitava-os, mas, no
ciência social. O caráter naciona1 é campo, quando advertido dessa con­
noção psicologizante e subjetiva, o dição, fazia-lhes restrições, como se
contrário do proposto cientista_ Usa­ fosse pecado ou crime não ser torce­
dos em geral como folclore - minei­ dor do Flamengo, condição meramente
ridade, gauchismo, carioquidade -, passional.
tais conceitos têm pouco valor ou Esta palavra é importante: passio­
são meras curiosidades. O autor con­
J
nal. Gostava de ir a congressos, reu­
tudo, embora com reservas, deixou-se niões. academias. mas indispunha-se
levar por essas formas, como se vê facilmente com O próximo, gerando
nos artigos citados e em passagens do atritos desnecessários, que muito lhe
livro Aspirações nacionais. perturbavam a existência, como sa­
Na linha do estereótipo, era pouco bem quantos conviveram com ele. En­
carioca: quase nada lírico, sem senso tretanto. gostava de ser convocado
de humor, obcecado pelo trabalho e para debates e conferências, e do con­
por quanto julgava ser verdadeiro. vívio sobretudo com jovens. Desejava
JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES E A HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA 57

transmitir quanto aprendera, observa­ a trajetória da economia açucareira na


ra. Só se saía bem, contudo, quando revista do lAA - Brasil Açucareiro
não dividia o público com outro ou -, ainda não reunidos em livro. J m­
ou Iras, por exagerado senso de com­ põe-se sua publ icação, pelo relevo da
petição. ESle traço, com muito de ne­ pesquisa, anunciada com O título de
gativo, criou-lhe dificuldades sem con­ Capítulos de história do açúcar, que
la e contribuiu para uma vida de quei­ constituirá, mesmo depois de 40 anos
xas e amarguras, completamente des­ de sua elaboração, importame volume
tiIuídas de razão, pois era bem rea­ na bibliografia da história econômica.
lizado na vída partícular e pública. De 1946 a 1958 foi diretor da Di­
EnCim, peculiaridades secundárias de visão de Obras Raras da Biblioteca
uma personalidade que se afirma por Nacional, outro fala notável em sua
sua obra, não por esta ou aquela vir­ biograGa e obra. No exercício da fun­
tude ou insuficiência. Se se lembrou ção, teve conhecimento do mais im­
o traço de passionalidade e imperti­ portante na biblio!l<afia brasiliana,
nência, aparentemente secundário no mesmo em suas preciosidades. Leu
estudo de urna produção intelectual. quanto pôde - e quase ludo estava
é que ele se reflete em sua obra. a seu alcance -, preparando-se o
No Rio, José Honório cursou, 'como erudito futuro autor de livros fundo­
centenas de brasileiros, 3 Faculdade mentais para domínio da historiogra­
de Direito, bacharelando-se em 1 937. fia, da qual se tornou o mais com­
Foi parte de turma brilhante e teve pleto conhecedor. Sem a passagem pllr
proCessares notáveis, dos quais guar­ esse cargo não teria condições de es­
daria boa recordação, em Case excep­ crever muito do que melhor escreveu.
cional da vída acadêmica. Não se de­ Se estudou bastante aí, também tra­
dicou, contudo, à advocacia. O direito balhou igualmente, dinamizando a di­
Calava-lhe pouco à sensibilidade, vai· visão incumbida de duas coleçoes das
tada para o social em sua dinâmica. mais importantes do órgão - a Do­
Assim, o universo jurídico, preso mais cumentos Históricos e Anais da Bi­
ao ideal do que ao real, não era estio blioteca Nacional, editando em uma 40
mulante para a sua inteligência. Foi e em outra nove volumes, entre 1946
trabalhar no Instituto Nacional do li­ e 1955, número não atingido por ne­
vro, com Sérgio Buarque de Holanda, nhum outro dos diretores da impor­
aí permanecendo de 1939 a 1944. tante divisão da Biblioteca.
Nesse período, teve a oportunidade Paralelamente a este trabalho, c0-
feliz de urna bolsa da Fundação meçou também sua carreira de pro­
Rockfeller para curso na Universida­ fessor. De 1946 a 1956 deu aula na
de de Colúmbia e pesquisas que lhe Instituto Rio Branco, para formação
revelaram a riqueza dos arquivos ame­ de pessoal do Itamarati, tendo perma­
ricanos, a importância dos estudos de necido na seção de pesquisas do mes­
metodologia, quase ignorados entre mo instituto, entre 1949 e 1950, tra­
nós, fato decisivo em sua carreira e balhando no arquivo do Ministério
mesmo na história da documentação das Relações Exteriores, um dos mais
no Brasil. Passou um ano nos Esta­ ricos do país. No preparo de suas
dos Unidos, entre 1943 e 1944. Em aulas escreveu uma história diplomá­
1945 foi bibliotecário do I nstituto do tica do Brasil, que não chegou a pu­
Açúcar e do Álcool (IAA). Escreveu, blicar. Como foi concluída há muito.
desde 1942, inúmeros artigos sobre espera-se venha a ser editada ainda.
58 ESTunos H ISTÓRICOS - 1988/1

A história diplomática foi uma de que pelo período colonial. Foi pro­
suas preocupações mais constantes, o fessor na Faculdade de Ciências Eco­
que o levou a dedicar mais de um nômicas do Estado da Guanabara, na
livro às relações exteriores. Universidade Federal Fluminense, em
Ao longo desse período, desenvol­ Niterói, na Universidade Federal do
veu outras atividades. E m 1950 obteve Rio de Janeiro, mas sem continuida­
bolsa do Conselbo Britânico, realizan­ de ou por períodos longos. Deu aulas
do proveitosa viagem à Inglaterra, on­ regulares por certo tempo na Univer­
de conheceu pessoalmente Arnold sidade de Brasília, mesmo permane­
Toynbee. A cooperação do Instituto cendo no Rio de Janeiro. Foi ainda
do Açúcar e do Alcool - no qual já professor-visitante na Universidade do
trabalbara - e do Instituto ruo Bran­ Texas, em Austin, em 1963, 1964 e
co - no qual era responsável por 1966, bem como na de Colúmbia, em
um curso de história - permitiu a Nova York, em 1970. Recebeu ofertas
visita a outros centros, como Portu­ para permanecer nos Estados Unidos
gal, Espanha, França, Itália e Países na década de sessenta, mas recusou-as.
Baixos. Teve oportunidade, então, de Na verdade, não se sentia bem fora
conhecer arquivos e mais instituições do país, e supunha, com razão, estar
interessadas em história, como se vê aqui, junto de seu povo. o seu cam­
pela importante "Exposição" que fez po, a sua tarefa.
sobre a viagem de 25 de fevereiro a O cargo mais importante que
23 de maio às entidades patrocinado­ ocupou na administração pública foi
ras - Ministério da Educação, Ins­ o de diretor do Arquivo Nacional, de
tituto do Açúcar e do Alcool e Ins­ 1958 a 1964. Ao longo de período
tituto ruo Branco. Sua " Exposição" pouco dilatado, realizou reforma
é peça notável, reveladora de lucidez substancial na velha casa criada em
e operosidade; em três meses, uma 1838, tendo sido o diretor mais di­
visita rendera conhecimento de arqui­ nâmico de toda a trajetória da insti­
vos e instituições de história de di­ tuição: nem antes nem depois. nin­
versOs países, contatos com autorida­ guém fez tanto por ela. Com o co­
des, troca de experiências e at� COn­ nhecimento de arquivos europeus e
vênios de muita repercussão para o americanos - conhecimento como
autor, que viveu instante fundamental pesquisador e visitante a inspecionar
para seus conhecimentos de teoria, organização e formas de trabalho -,
Das visitas e conversas em institutos com energia e alto sentido público,
de estudos, ou de organização de ar­ dinamizou o órgão, então em fase
quivos e trato de documentos, como apagada, desa�sistido de recursos e
se lê pelo folbeto publicado no mes­ técrucos. Soube sensibilizar o então
mo ano As fontes da história do ministro da Justiça - pasta à qual
Brasil l1a Europa, em substanciosas 42 o Arquivo é subordinado - e deu
páginas. Poucas vezes uma viagem andamento a obras fundamentais atra­
terá sido mais lucrativa. vês de convênios com embaixadas, no­
Em 1955 fez o curso na Escola tadamente a dos Estados Unidos.
Superior de Guerra - para ele muito Através desse expediente, consegviu
importante - onde pronunciou confe­ trazer ao Brasil especialistas de pri­
rências, algumas a origem de Aspira­ meira grandeza, corno Theodore R.
ções nacionais. Nessa época passou a Schellenberg, o maior mestre norte-
ler mais interesse pelo presente do amerIcano em arqUlvJshca. e outros.
• • • •
JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES E A HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA 59

que estudaram a situação do Arquivo ensino sistemático de arquivística nO


Nacional e deram sugestões para o Brasil. Algo já se fizera, mesmo no
seu aprimoramento. Pela primeira vez A rq u iVQ Nacional, mas sem a resso­
autoridades no assunto examinavam nância, a amplitude e a continuidade
o problema no Brasil e davam-lhe o então observadas. Ante os bons resul­
possível e necessário encaminhamen­ tados, não puderam mais ser detidos,
to. Além de desenvolverem esse tra­ embora não tivessem sempre o mes­
balho, os visitantes ministraram cur­ mo vulto e importância. O período
sos aos funcionários, para os quais de 1958 a 1964. em que José Hon6-
escreveram especialmente üvros ou rio esteve à frente do Arquivo, foi
apostilhas - não havia textos -, o mais notável da casa e pode ser
logo traduzidos e editados. Muitas pu­ visto como um dos momentos felizes
blicações foram feitas, então, em es­ da administração pública no país, em
forço inédito no país, mas não tive­ geral pobre, ronceira, ineficaz. Sua
direção se caracterizou pelo dinamis­
ram continuidade. A direção do Ar­
mo, criatividade, entendimento global
quivo providenciou também a tradu­
dos problemas e ânimo para enfren­
ção de obras básicas desses e de ou­ tá-los. Dos cargos que ocupou ao lon­
tros autores, em geral feitas por Lêda
go de sua vida, este foi o mais sig­
Boechat Rodrigues, conhecedora da
nificativo, não pelo tempo em que
matéria, pela experiência em organis­
nele permaneceu - seis anos -. mas
mos de pesquisa, vivida com o mari­
pela magnitude da tarefa.
do, seu conhecimento de ünguas, s6-
lida cultura e preparo de historiadora, Depois do Arquivo Nacional, José
que lhe permitiu escrever livros im­ Hon6rio ficou em disponibilidade no
portantes, em contribuições originais serviço público, quando exerceu mais
a merecerem mais atenção. Do mais sistematicamente o magistério e pro­
notável desses especialistas - Schel­ duziu alguns de seus muitos livros.
lenberg - foram editados A avalia­ Não descansou, dando continuidade
aos estudos e à elaboração de obras.
ção dos documentos públicos moder­
Lembre-se ainda sua participação em
nos e Manual de arquivos (1959), •

iniciativas continentais, como no Pro-


Problel1Uls arquivísticos do governo
grama de História da América, do
brasileiro, O preparo de listas de ma­
Instituto Pan-Americano de Geogra­
ços de documentos (1 960) e Documen­
fia e Hist6ria, com o qual colaborou
tos públicos e privados (1963). Do
desde 195 1 participando de discussões
mesmo autor se editou aqui, por outra
em reuniões no México, Havana,
iniciativa, Modem archives. Principies Nova York, Washington e escreven­
and techniques, traduzido por Nilza
do livros para a sua coleção, logo edi­
Teixeira Soares. Poder-se-ia fazer o tados, um em português e dois em
arrolamento das edições promovidas, espanhol, a saber: Brasil, período co­
mas o trabalho é longo e dispensável. lonial (1957), Historiografia dei Bra­
Consigne-se apenas que foram 27 tí­ sil. Siglo XVI (1957) e Siglo XVIl
tulos, entre livros e folhetos, na série (1963). Colaborou também em His­
Publicações Técnicas, alguns dos quais torical Abstracts, dos Estados Unidos,
com valiosas introduções do promotor fez parte da direção da Revista de
da iniciativa, que nunca deixava de História da América, do citado Ins­
dar sua contribuição pessoal. Os cur­ tituto Pan-Americano, e da Revista
sos mencionados foram a origem do Brasileira de Estudos Internacionais,
60 ESTUDOS H ISTóRleos - 1988/ I

e integrou ainda a Comissào de Tex­ pelo Ministério das Relações Exterio­


tos de História do Brasil, do Minis­ res e pelo Instituto do Açúcar e do
tério das Relações Exteriores. Foi Álcool: tais prefácios poderiam cons­
membro da Academia Brasileira de Le­ tituir muitos volumes. Sem falar em
tras - esta não contribuiu em nada colaboração em livros de diversos au­
para seu trabalho, é claro - e do tores, no Brasil e no exterior - Fran­
Instituto Histórico e Geográfico Bra­ ça, Inglaterra, Estados Unidos -, em
sileiro, além de algumas outras insti­ edições críticas, em índices anotados.
tuições nacionais e estrangeiras. Par4 Na dificuldade de arrolamento de
ticipou de dezenas de congressos cien­ tudo, pelas dimensões que tomaria o
tíficos no país e no exterior, com presente artigo, consideram-se apenas
destacada atuação, pois era vivaz e os titulas mais notáveis e que lhe mar­
sempre tinha uma palavra a dar. cam o perfil de historiador.

Morreu na cidade do Rio de Ja­ Parece-nos possível classificar essa


neiro em 6 de abril de 1987, aos enorme produção em cinco grupos:
73 anos de idade. I. Teoria, metodologia e historio­
grafia: é parte assinalável de sua obra,
por ser a primeira em estudos sis­
il. CLASSiFiCAÇÃO DA BiBLIOGRAFiA temáticos do gênero no país. Por ora,
enunciem-se apenas os títulos, ficando
Autor de vasta produção, José Ho­
a análise para item seguinte: Teoria
nória escreveu dezenas de artigos em
da história do Brasil (1 949); Historio­
jornais e revistas. Se alguns foram
grafia e bibliografia do domínio ho­
aproveitados em Hvros, muitos não O
landês no Brasil (1 949); A pesquisa
foram: relação parcial foi �presenta­ histórica no Brasil (1 952); Brasil, pe­
da por Lêda Boechat Rodrigues em ríodo colonial (1 953); O continente
Bibliografia de José HOl1ório Rodri­ do Rio Grande (1 954); História da
gues, folheio editado em rela­
1956; história do Brasil, a historiografia co­
ção bem mais completa foi feita por lonial (1979). São livros orgânicos,
Raquel Glezer em sua tese de mestra· sistemáticos, de grande alcance didá­
do na Faculdade de Filosofia da USP. tico. O autor escreveu ainda inúmeros
Esta deveria completá-Ia agora, edi­ estudos de historiografia, mas como
tando-a em livro. para a visão larga ensaios, reunidos em diversos livros,
de autor eficiente. Espera-se que o constantes do terceiro grupo.
faça. 2: História de temas: Civilização
O mais importante são os livros, holandesa no Brasil (1 940). sua es­
editados de 1940, com Civilização tréia; Brasil e Africa, outro horizonte
holandesa no Brasil, a 1986, ano da (196 1 ); O Parlamento e a evolução
publicação de Tempo e sociedade. Al­ nacional (1972), primeiro volume da
guns são coletas de estudos apareci­ série Seleção de textos parlamentares,
dos como artigos. conferências, opús· em seis tomos e um de índices e per­
culos, prefácios; os mais significati­ sonáUa; A Assembléia Constituinte de
vos são textos orgânicos, pensados e 1823 (1 974); Independência; revolu·
escritos como livros: são 28 títulos. ção e contra-revolução (1976), em
José Honório deixou dezenas de pre­ cinco volumes; O Conselho de Esta­
fácios em edições de textos, publica­ do: quinto poder? (1978); O Parla­
dos pela Biblioteca Nacional, p'elo Ar­ mento e a consolidação do II/Ipério.
quivo Nacional, pelo Senado Federal, 1840-61 ([982).
) OSÉ HONÓRIO RODRIGUES E A H ISTORIOGRAFIA BRASILEIRA 61

3. Ensaios historiográficos: Aspira­ às vezes longos, raramente simples


ções nacionais (1963); Conciliação e notas.
reforma no Brasil (1965); História e Como se vê, pelo levantamento de
historiadores do Brasil ( 1 965); Vida títulos, é obra enorme, atestado de
e história (1966); Interesse nacional trabalho intenso, de modo a colocar
e política externa (1966); História e o autor entre quantos mais produzi­
historiografia (1 970); História, corpo ram na bibJjografia de história do
do tempo (1976); Filosofia e história Brasil.
(198 1 ); História combatente (1983);
História viva (1985); Tempo e socie­
dade (1986). 1. Teoria, metodologia e hlltoriografla

4. Obras de referência: entre elas, t; a parte mais numerosa do autor


de certo modo podem ser considera­ e, de certo modo, a mais significativa,
das as do primeiro grupo acrescidas pelo pioneirismo. Já antes se tomara
de Catálogo da coleção Visconde do a análise da bibliografia histórica
Rio Branco (1953); os Indices anota­ como tema, porém de modo restrito,
dos da Revista do Instituto do Ceará o que era natural, pois mesmo em
(1959) e da Revista do Instituto Ar­ centros mais avançados tais estudos
queológico, Histórico e· Geográfico não eram comuns. Entre nós, o cuida·
Pernambucano, (196 1 ). Também aí do com a história é recente: vista
poderiam figurar As fontes da histó­ agora como categoria científica, ela
ria do Brasil na Europa (1950) e Si­ dispõe de técnicas e métodos parti·
tuação do Arquivo Nacional (1959). culares, que lhe dão operacionalida­
5 . Edições de textos: ascendem a de e rigor. Com o surgimento dos cur­
dezenas de títulos. Os holandeses no sos de história e de outras ciências
Brasil (1942); Anais da Biblioteca Na· sociais na década de 30, o trabalho
cional (vols. 66 a 74, entre 1 948 e do historiador deixa de ser amadoris­
1963); Documentos históricos da Bi­ mo ou lazer para tornar-se profissão;
blioteca Nacional (vols. 7 1 a 1 1 0, en­ deixa de ser visto como arte ou de
tre 1 945 e 1955); Publicações do Ar­ fins patrióticos, catequéticos, ou de
quivo Nacional (vols. 43 a 50, . entre saudosismo do passado, para adqui­
1960 e 1 962); Cartas ao amigo au­ rir um enfoque o quanto possível cien­
sente, de José Maria da Silva Para­ tífico; com o aprimoramento das for­
nhos (1953); Correspondência de Ca­ mas de trabalho, com as chamadas
pistrano de Abreu (3 vols., 1954 a disciplinas auxiliares, bem como com
1956); O Parlamento e a evolução o instrumental interpretativo de ou­
nacional (7 vols., 1972); Atas do Con­ tras ciências, que usam a história e
selho de Estado. ( 1 3 vols., 1978). Po­ passam também a servi-Ia, no intuito
deriam ser arroladas também as edi­ de superar a narrativa pela explicação
ções criticas de Memorável viagem ou compreensão. consagrando-se a in­
marltima e terrestre ao Brasil, de John terdisciplinaridade das análises sociais,
Nieuhof (1942), e Capítulos de histó­ no entendimento da sociedade como
ria colonial, de Capistrano de Abreu totalidade, impõe-se novas temáticas
(4.' ed., 1954). Também os prefácios e um rigor antes não buscado. Com
a livros diversos, mais de 20. Ao todo, outra visão do documento e da arqui­
como edição de textos, cerca de cem vística, as formas reprográficas efi­
volumes. Acrescente-se terem todos cientes, o uso de instrumental tecno­
esses livros prefácios esclarecedores, lógico como o computador, ultrapas-
62 ESTUDOS HI STÓRICOS - 1 988/ 1
-

sa-se a fase artesanal da pesquisa e sistemática de bibliografia histórica


impõem-se os empreendimentos de brasileira começou a ser feita por
grupos, em nova visão da disciplina e José Honório Rodrigues".
seu estudo. Não se vá pensar que a J á rruto de renovação, no terceiro
história surge então, pois na Antigui­ período da historiografia nacional, a
dade se produziram obras superiores, contar de 1 931, a situação melhora.
em visões abrangentes. De esforços Em 1945 aparece O que se deve ler
isolados, antes a norma, passa·se a para conhecer o Brasil, de Nélson
atividades coletivas, no mundo e na Werneck Sodré, livro breve, depois
Brasil. reeditado várias vezes e bem-revisto,
Aqui, a produção historiográfica já mais que triplicado, como guia para
despertara atenções. Veja-se, por exem­ o estudioso. De 1949 é o importante
plo, o monumental Catálogo da expo­ Manual bibliográfico de estudos bra­
sição de história do Brasil, em três sileiros, de Rubens Borba de Morais
volumes, editado em 1881, que rela­ e William Berrien, com vários estu­
cionou 20.337 títulos: notadamente de dos notáveis de historiografia, assi­
história, compreendem também geo­ nados por nomes da altitude de Sér­
grafia, etnografi a, zoologia, botânica, gio Buarque de Holanda, Otávio Tar­
geologia. Simples levantamento, é útil, quínio de Sousa, Caio Prado Júnior,
mas não vai além do nível proposto, Gilberto Freire, Alice Canabrava e
sem crítica. Há algumas análises his­ José Honório Rodrigues.
toriográficas a serem lembradas. Pou­ � exatamente nesse ano de 1949
cas, é verdade, mas não se pode es­ que começa a produção de José Ho­
quecer um estudo refinado como o nório, com vistas à história como ciên­
de Oliveira Lima sobre Robert Sou­ cia e analisada em conjunto, com
they, em conferência de 1907; alguns Teoria da história do Brasil. Em edi­
ensaios críticos de Capistrano de ções posteriores, o livro seria amplia­
Abreu, ao longo de sua larga produ­ do e melhorado. embora mantendo-se
ção; sobre temas ou figuras, de vá­ as linhas gerais. Estudo pioneiro, pres­
rios autores, como a Bibliografia his­ tou serviços aos alunos dos cursos de
tórica do Primeiro Reinado à maiori­ história e interessados em geral, no
dade, de Alcides Bezerra, de 1936. tema. Do mesmo ano é Historiogra­
América Jacobina Lacombe, em fia e bibliografia do domínio holan­
capítulo sobre o assunto de sua Intro­ dês no Brasil, primeiro grande levan­
dução ao estudo de história do Bra­ tamento de um aspecto por um autor
sil, publicado em 1973, ao consignar entre nós. Reproduzia, no essencial,
a falta de trabalho sistemático e com­ mas com amplitude, o capítulo "Os
pleto sobre a historiografia brasileira, holandeses no Brasil", do Manual ci­
lembra que "uma primeira tentativa tado. Era o inicio de produção de
deve ser a que ocorre no relatório tipo pouco cultivado e necessário para
de M. de Araújo Porto Alegre apre­ o conhecimento e questionamento do
sentado ao Instituto H istórico e Geo­ processo histórico nacional.
gráfico Brasileiro em 1858", assina­ Teoria representava a formulação
lando ainda "um ensaio muito ligei­ de matérias fundamentais da historio­
ro na introdução de História do Bra­ grafia do país. Não era propriamente
sil de Jônatas Serrano, 193 1 ", para uma teoria, mas a problemática da his­
concluir, com justeza: "a publicação tória. Via-se a periodização, bem como
JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES E A HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA 63

OS diversos gêneros da história, disci­ mais conhecido, pois os demais do gê­


plinas auxiliares, crítica, autenticidade nero deixam a desejar, e nenhum teve
e forjicação, atribuição, crítica de tex­ plano tão ambicioso.
tos e edição de documentos, sem _ pre De 1952 é A pesquisa hist6rica nO
com abundantes exemplos brasileiros Brasil, outro livro pioneiro, pois não
e nota sobre o assunto na perspectiva se escrevera igual como estudo siste­
global. O volume continha ainda ca­ mático. Particularmente significativa
pítulos sobre as questões da história é a segunda parte, com .. a evolução
e tarefas do historiador, desenvolvi­ da pesquisa pública e histórica brasi­
mento da idéia de história, filosofia e leira", envolvendo o estudo das várias
história, metodologia_ Nunca se escre­ missões no país e no estrangeiTo ao
vera aqui nada do gênero. Em edições longo dos séculos XIX e XX. Tem­
subseqüentes foi revisto e acrescenta­ se também o exame dos arquivos e
do. Se vale pelos levantamentos, indi­ bibliotecas, - não só os nacionais
cações bibliográficas, a parte propria­ como os dos grandes centros do mun­
mente teórica é menos consistente, do - e de seu papel na produção,
pois o autor não dispunha de emba­ sem antecedentes no gênero, e que
samento filosófico ou sociológico para não teve quem a continuasse, de mo­
mais rigor em suas considerações. Sig­ do que permanece em posição ímpar
nificou mOita, no entanto, não s6 quan­ até os dias atuais. Completa o volu­
do de seu aparecimento, como ainda me a proposta de um instituto nacio­
hoje. nal de pesquisa histórica, até hoje
Livros da mesma natureza foram não-implantado, cujo papel seria be­
tentados, mas não atingiram igual am­ néfico no desenvolvimento do estudo
plitude - caso de Introdução ao es­ histórico. O autor dedicou muitos ar­
tudo da hist6ria do Brasil, de América tigos e outras análises aos arquivos
JAcobina Lacombe, de 1973, valioso e ao acervo documental, refinando os
por indicações bibliográficas, levanta­ conceitos, ajustando melhor suas crí­
mento de problemas, mas sem a indis­ ticas e propostas à vista da própria
pensável análise ou fundamentação. experiência e de visitas a instituições
Outros tratam a matéria em nível me­ de centros avançados. Um livro com
ramente teórico, sem referência ao Bra­ esse título, escrito nos últimos anos
sil, como Iniciação aos estudos hist6- de sua vida, teria mais rigor e abran­
ricos, de Jean Glénisson, de 196 1 , de gência inrormativa, pelo apuramento
boa reconstituição no plano teórico e do conceito de arquivo e técnicas de
informativo; o capítulo dedicado ao organização e tratamento dos papéis,
país e à sua historiografia nos séculos seja como restauro ou reprodução, seja
XIX e XX, de Pedro Moacir Campos, como classificação, pela racionalidade
é noticioso e crítico, mas breve de­ desses trabalhos boje. De qualquer
mais, sem pretensão de abrangência. modo, com mais de 30 anos, continua
Os métodos da hist6ria, de Ciro Fla­ como O melhor conjunto de reflexões
marion Cardoso e Héctor Pérez Bri­ e informações a respeito desse aspecto
gnoU, traduzido do espanhol em básico.
1979, é rico e moderno, mas também José Honório pretendia fazer um
não coloca o Brasil em questão. As­ tríplico - teoria, pesquisa, historio­
sim, o texto de José Honório, já qua­ grafia. Iniciou essa terceira parte, edi­
se com quarenta anos, se não é per­ tando em 1979 H ist6ria da hist6ria do
Ceito, ainda presta serviços e devia ser Brasil, a historiografia colonial. O li-
64 ESTUDOS H I STÓRICOS - 1 988/1

vro constitui outro lance pioneiro, pois Grande. Este seria retomado no peque­
não se encontra nada equivalente. no volume O continente do Rio Gran·
Volume alentado, faz valioso levan­ de, de 1954, que, em linhas gerais, é
tamento, informa, classifica, critica. o escrito para a obra anterior, com
Deveria ter prosseguimento com ou­ poucos acréscimos. Vale como roteiro
tros volumes, quatro ou cinco, e, con­ para a área, de tantas peculiaridades
forme consta, o segundo terá edição no panorama geral do país. Os dois
em breve. Se o autor o deu como con­ títulos são interessantes e sugestivos,
cluído, não se sabe. Sabe-se que im­ mas demasiado esquemáticos. No Mé­
primiu dimensões excessivas a certos x.ico também apareceriam, em espa­
autores, de modo a desequilibrar o nhol, em 1957, Historiografia deI
Brasil, siglo XVI, e, em 1963, Siglo
conjunto. � pena ficasse incompleto,
XVlI. Não foram publicados aqui,
pois seria obra importante, pela qua­
mas estão incorporados, revistos, na
lificação específica do autor. No Bra­
Hist6ria da hist6ria do Brasil, histo­
sil tem-se escrito com certa constân­
riografia colonial.
cia sobre historiografia, mas nem sem­
pre com o preparo requerido. Alguns Se este item rala em historiografia,
volumes sobre o assunto pecam por como se vê pelo título, seria o caso
graves insuficiências, deixando o lei­ de arrolar alguns volumes classifica­
tor de mediana exigência em dúvida dos no terceiro grupo - Ensaios his­
toriográficos. Se se destacaram do
sobre os conhecimentos de quem es­
item anterior foi por serem constituí­
creve, diante do número de equívocos.
dos de reunião de artigos, ensaios,
distorções e mesmo indício de que au­
conferências. Falta·lhes unidade, como
tores e obras criticados não foram li­
é típico do gênero ensaio: caso de
dos, ou O foram com in desculpável
Hist6ria e historiadores do Brasil, de
ligeireza para quem se propõe a abor­
1965; Hist6ria e historiografia, de
dagem. Falta a muitos desses títulos
1970; Hist6ria, corpo do tempo, de
a simples leitura, situando a inicia­
1 976; Hist6ria combatente, de 1 983;
tiva no domínio da temeridade.
Hist6ria viva, de 1985; Tempo e so­
No item precedente - classifica­ ciedade, de 1 986. Alguns desses en­
ção da bibliografia -, citam-se nesse saios sobre autores ou textos consti­
primeiro grupo outros textos: Brasil, tuem peças excelentes de crítica: tal
período colonial, editado em 1953 é por exemplo, o caso de "Capistrano
como elemento para o Programa de de Abreu e a historiografia brasileira"
história da América, no México. Em (de Hist6ria e historiadores do Bra­
1 4 capÍlulos breves, apresenta a linha sil), "Varnhagen, mestre da história
de desenvolvimento de trezentos anos. geral do Brasil" (de Hist6ria e his­
Nos capítulos há o roteiro a ser se· toriografia) e "Varnhagen: o primeiro
guido: assuntos de realce, evidencian­ mestre da historiografia brasileira"
do como foram considerados até ago­ (de Hist6ria combatente): os dois tex­
ra e quais os aspectos à espera de tos são praticamente o mesmo, e cons­
completo esclarecimento. Análise, en­ tituem, talvez, o ponto mais alto da
fim, do já feito e do que há para ser crítica do autor. Na verdade, muito
Ceito. Como notas originais, lembrem· do que escreveu sobre a historiogra­
se os capítulos sobre o estado do Ma· fia patrícia é matéria a figurar entre
ranhão e sobre o continente do Rio suas melhores páginas.
JOSÉ HON6RlO RODRIGUES E A HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA 65

zoaveirnente conhecida como guerra


2. História de temas
do açúcar. O texto de 1937, ou 1940,
Se no item anlerior aparecem al­ lido quase 50 anos depois, não im­
guns dos títulos mais representativos, pressiona. A estréia não anunciava
note-se que valem pelo pioneirismo ainda o potencial do autor, a ser de­
nos estudos do gênero. Nenhum his­ senvolvido depois. A bibliografia so­
toriador, no entanto, pode afirmar-se bre o assunto já continha alguns
apenas por obras assim: os grandes títulos valiosos superiores. nacionais
nomes da historiografia são os de ou estrangeiros.
quem assina livros notáveis sobre al­ Bem mais importantes são outros
gum aspecto da trajetória nacional ou estudos de temas. Tal é o caso de
de um povo, na abordagem de temas, Brasil e Africa, outro horizonte, lan­
fases, instituições, protagonistas. José çado em 196 1 , importante não só na
Honório produziu alguns títulos, de bibliografia do autor, mas na biblio­
estudos sistemáticos, mas em menor grafia geral, pois não se fizera análise
número (se somados os do grupo an­ tão detida do relacionamento entre o
tecedente e do seguinte). país e aquele continente, que lhe for­

Nessa categoria Inscreve-se o pri-


• •

necia o principal da mão-de-obra. O


meiro livro, Civilização holandesa 110 livro contém o exame das relações e
Brasil, feito com Joaquim Ribeiro. contribuições mútuas, bem como da
Com ele José Honório ganhou o prê­ política brasiJeiro-africana ao longo
mio de erudição da Academia Brasi­ dos séculos. E dos mais significativos
leira de Letras em 1 937, mas o vo­ do caráter revisionista do escritor, tão
lume só apareceu em 1 940. Esta é, reclamado por ele e às vezes visto em
pois, a data de sua estréia. Como re­ alguns poucos de seus colegas de ofí­
conhece o parceiro, coube a José Ho­ cio, cuja ação realça. Aponta-se aí,
nório a principal responsabilidade. E entre outras coisas antes não sabidas
ele não abandonaria o tema, dedican­ ou valorizadas, lia existência, nO
do cuidados especiais ao Nordeste, no­ século XV1lI, de uma comunidade
tadamente a este aspecto da tentativa brasileiro-afro-asiática, sem exclusão
de dominação holandesa, da qual se de Portugal, mas com reduzida parti­
tornou grande conhecedor, editando cipação portuguesa". O Brasil é afri­
alguns textos básicos da bibliografia canizado, pelas múltiplas relações com
nativa ou estrangeira, por vezes tra­ aquele continente, passando o proces­
duzindo-os ou anotando-os. Já se viu so de discriminador a uma forma de
no item anterior O levantamento His­ convivência. E digno de nota o des­
toriografia e bibliografia do domínio taque de ser esse caminho "mais bra·
holandês no Brasil, de 1 949. Em mui­ sileiro que português", pois é um
tos artigos o autor tratou do açúcar, malogro a miscigenação luso-africana:
sobretudo nas revistas Brasil Açuca­ "somos uma república mestiça, étnica
reiro e Digesto Econômico, e tais ar­ e culturalmente". E bom relembrar a
tigos devem constituir o anunciado observação de que esse malogro se
livro Capítulos de história do açúcar; deve ao fato de a colonização portu­
alguns se referem a textos holandeses guesa na Africa ter-se iniciado real­
ou à produção do gênero na época, mente no fim do século passado, quan­
quando era o bás.ico da economia da do já não havia escravidão. Do século
colônia: ele provocou a tentativa da XV1l ao X I X o Brasil teve "maio­
Companhia das fndias Ocidentais ra- res laços e maior contato com Angola,
66 ESTUDOS H ISTÓRICOS - J 988/ 1

Daomé e trechos da Costa da Mina e rais. José Honório inscreve-se entre os


da Guiné que o próprio Portugal". analistas da colonização portuguesa
Esse relacionamento é bem vivo aO em atitude rigorosa, sem endeusar a
longo do século XIX, embora dilicul­ metrópole, como faz a corrente lusó­
tado pelo imperialismo inglês, cujo fila, em posição extremada e frágil.
governo, aliado ao português, impediu Aparenta-se antes com seus críticos
se estabelecesse um consulado brasi­ mais enérgicos, na linha de um Ma­
leiro em Angola. Razões não sÓ polí­ noel Bonfim, por exemplo (curiosa­
ticas como econômicas levaram os dois mente não avocado por ele). Canden­
tradicionais aliados a afastar o Brasil te, às vezes, na contundência da
da Africa, conseguindo-o. linguagem, não deve ser visto como
Se no estudo das contribuições bra­ lusófobo, mas como quem busca a
sileiras e arricanas, em mútuas in­ verdade e a proclama, sem rancores
fluências, a obra não apresenta maio· ou gratuidades.
res originalidades - outros autores já Um de seus melhores textos, teve
abordaram a questão com amplitu­ repercussão e foi logo traduzido para
de -, no das relações modernas, no o inglês. Tal êxito é explicável, pois o
século passado e no atual, é trabalho livro foi escrito com atualidade na
pioneiro. Coloca importantes proble­ após-guerra, quando se deu a descolo­
mas de política diplomática, principal­ nização em grande escala. Apresenta
mente nas últimas décadas, quando, interesse não só para a bibliografia
com o fim da Segunda Guerra, em brasileira, mas para a bibliografia ge­
1945, ganha impulso a descoloniza­ rai, que tem aí uma peça básica para
ção. Portugal sustentou política brutal a compreensão desse processo - um
- e o Brasil o apóia nesse colonia­ dos mais significativos de meados do
li;mo responsável por guerras em século. Demais, o Brasil começa a dar
Angola e Moçambique, por exem­ os primeiros passos no sentido de li­
plo -, chegando mesmo a sacrificar bertar-se do vínculo com sua antiga
o melhor de sua juventude no serviço metrópole, nem sempre apoiando,
militar obrigatório e nas lutas nas como O fizera até então, a desastrada
colônias eufemisticamente chamadas aventura de Portugal na Africa, com
Províncias Ultramarinas - um dos a qual não poderia nunca ter sido so­
fatores responsáveis pelo agravamento lidário e o foi, indevidamente, sendo
da emigração maciça que tanto arrui­ dos poucos votos na ONU favoráveis
nou o país no passado e ainda agora, àquele colonialismo.
sempre denunciada com vigor pelos Obra significativa na bibliografia
cientistas sociais e politicos mais lú­ do autor, marca-lhe a posição de teó­
cidos, que viam aí o problema crucial rico e praticante de uma história viva>
da nacionalidade. cembatente. Muito ampliado na ter­
Texto polêmico, como era do gosto eeira edição, de 1 982, se ganhou em
e feitio do autor, tem elementos va­ minúcias, não ganhou no essencial,
liosos para se compreender a forma­ comprometendo-se de certo modo até
ção social e a política diplomática, na estrutura> às vezes parecendo espi­
também objeto de sua predileção. Se chado, com excesso de notícias de jor­
trata do Brasil e Mrica, poder-se-ia nais, de aspectos menos significativos,
dizer que o eixo é Portugal, visto sob pela insistência em esclarecer a polí­
uma luz crítica bastante severa, quase tica brasileira no relacionamento
apaixonada, mas exata nas linhas ge- com Portugal. A segwlda edição, de
J OSÉ HONÓRJO RODRIGUES E A H ISTORIOGRAFIA BRASILEIRA 67

1 964, é a melhor, parece-nos. � livro entre liberalismo e autoritarismo con­


corajoso, nacionalista, de boa estru­ duz à abdicação em 183 1 . Começa a
tura, com os capítulos " Relações Regência, a fase mais interessante do
coloniais 1 500/ 1 800", "Contribui­ caminho nacional, pelas lutas popula­
ção africana", "Mestiçagem e rela­ res explodindo no país, do Pará ao Rio
ções brasileiro-aíricanas", "Contribui­ Grande do Sul - Cabanada, Balaia­
ções brasileiras", " Relações modernas da, Sabinada, Farroupilha -, com
1 800-1 960". O próprio autor, no pre­ manifestações de cunho democrático
fácio de 1963 à segunda edição iden­ exaltado a assustar os conservadores.
tificou os pontos básicos da obra, en­ Passa-se então das facções ou agru­
tre os quais se deve destacar o amplo pamentos políticos aos partidos, com O
relacionamento brasileiro com a Áfri­ Liberal e o Conservador, em arreme·
ca dos séculos XVI eo XIX, mais in­ do do sistema inglês. Ao radicalismo
tenso que os de Portugal com seu de 1 83 1 - 1 834, segue-se a reação co­
império. Angola, por exemplo, foi nhecida como Regresso ou Regres-
mais ligada ao Brasil que à metrópole. Slsmo.

Com este volume, tem-se melhor co­ A fase, pois, é notável, e seu retra­
nhecimento de nossa gente, com boa to está na oratória do Parlamento. Os
explicação para a miscigenação, vista seis volumes de textos são precedidos
como processo natural, devida, nos as­ por um de abertura, bem construído
pectos mais positivos, antes ao brasi­ e comprovador da solidez de visão de
leiro que ao português, ao contrário José Honório: em alguns capítulos há
do proclamado em exames demasiado o exame do pensamento político, do
lusófilos do chamado "mundo que o vocabulário, da periodização, do tra­
português criou". balbo das quatro primeiras legislatu­
Outro título é O Parlamento e a ras, da maioridade, concluindo, com a
evolução nacional, de 1 972. Seu méri­ boa técnica, com o apêndice sobre
to é tratar da história parlamentar, tão historiografia e bibliografia parlamen­
cultivada em países como a Grã-Bre­ tares. � peça importante em tal biblio­
tanha e os Estados Unidos, e de mí­ gt afia, da qual é um dos marcos ou
nimo cul tivo en tre nós, como o é expoentes. O autor sempre teve em
também a história do Judiciário. Nos­ alta conta a história parlamentar,
sa histo�iografia política é, eminente­ como se vê já na Teoria. A obra deve­
mente, 8 do Poder Executivo, em visão ria ter continuidade, mas era ampla
acanhada do real processo político. demais e não foi possível realizá-la. O
José Honório fez estudo exaustivo do período de 1871 a 1 889 foi objeto
período de 1826 a 1 840, preparando também de seis volumes de discursos,
edição em seis volumes de textos da por Fábio Vieira Bruno, mas sem as
oratória parlamentar, pela qualidade introduções ind ispensáveis, que tanto
dos discursos ou pela importância da qualificam os editados por José Ho­
temática. Depois da experiência frus­ nório.
trada da Constituinte de 1823, dissol­ O autor voltaria ao tema no livro
vida pelo arbítrio imperial, o Legisla­ O Parlamento e a consolidação do Im­
tivo se instala em 1826. O período de pério, 1840-1861, editado em 1982,
1826 a 1840 é obviamente básico, pois com o qual ganhou o prêmio do COn­
aí se eduica a nação, alravés das leis, curso nacional de monograíias em
como o Código Criminal, o do Proces­ 1 98 1 , instituído dez anos antes pela
so, o Ato Adicional. O vivo debate Câmara dos Deputados e concedido
68 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1988/1

pela terceira vez. Trabalho de ampla de objetivos mais amplos. Entre estes,
pesquisa nas fontes originais, eviden­ destaque-se Tobias Monteiro, em His­
cia a contribuição do Congresso na !ória do Império, publicado em 1927.
Monarquia. José Honório não p.ubli­ A bibliografia muito lucraria se obras
cou a coletânea referente ao período, equivalentes já tivessem surgido so­
que desejava ampliar até 1 87 1 , mas bre as constituintes de 1 89 1 , 1 934 e
não O conseguiu por falta de tempo 1 946.
e amparo de um grupo de auxiliares O escrito mais pretensioso e bem
na tarefa : o texto foi escrito com vis­ realizado na categoria ora em exame
tas ao concurso, e o prazo era curto é Independência: revolução e contra­
demais. Tem-se nele boa visão da fase, revolução. Editado em 1976 em cinco.
notadamente do ângulo do Legislativo, volumes, perfazendo 1 .464 páginas, o
mas a exposição não é a ideal: res­ livro foi feito para comemorar os 1 50
sente-se da pressa com que foi .escrito, anos da independência, em 1972, data
. .
com mUltas cltaçoes e sem mUlta ana-
- .

tão mal-relembrada. Como é comum,


lise. Se tem boa estrutura, a redação fez-se quase só história comemorativa
deixa a desejar. Representa, contudo,
- melhor dizer badalativa -, sem
contribuição para aprofundar a histó­
maiores estudos, de modo que o tema
ria do Império, já bastante cultivada,
fundamental não teve aprofundamento
mas ainda com sérias deficiências. O
livro de 1982 supre algumas, sem sensível. A exceção é exatamente o
dúvida. largo trabalho de José Honório, que
nada tem de circunstancial. Trata
Ainda ligado ao interesse pelo Le­
da independência em seu todo, nos
gislativo é o livro A Assembléia Cons­
vários aspectos: evolução politica, ecO­
tituinte de 1823, editado em 1 974
nomia e sociedade, forças armadas, li­
para comemorar os 1 50 anos da vida
derança nacional e politica internacio­
parlamentar ( 1 823-1973). O texto é
nal. Todos os temas supõem apurada
útil e fruto de pesquisa aprofundada,
investigação nas fontes primárias, de
reconstituindo o trabalho da primeira
modo a ter-se o quadro completo. Com
Constituinte, convocada antes da in­
a obra, o autor comprova uma de suas
dependência, e de vida tão curta. Se
teses mais queridas e corretas: a da
a Constituinte não realizou a sua ta­
permanente vitória da contra-revolu­
refa teve um projeto e trabalhou com
ção no país. A independência poderia
decisão, embora às vezes de modo
e devia ter sido uma revolução, de
confuso. O autor a examina em todos
modo a fundar as bases nacionais em
os ângulos - organização, obra legis­
terreno popular e liberal, mas foi em­
lativa, o projeto, seus aspectos econô­
palmada pelos donos da situação que
mico-financeiros, sociais, a dissolução.
acabaram por conduzir o processo.
Criteriosamente, apresenta e comenta
a documentação e a bibliografia, enri­ orientando-o em' função de seus inte­
quecendo o volume com apêndice útil resses. E a nação foi fundada à sua
ao pesquisador. O assunto já desper­ maneira e semelhança, com a derrota
tara alguns autores, como Homem de e o afastamento dos que pensaram a
Melo, em 1863, Otávio Tarquínio de independência, lutaram e às vezes
Sousa, em sua estréia como historia­ morreram por ela. Como se deu, não
dor em 1 93 1 , com livros específicos, significou ruptura, mas continuidade
além de outros que lhe dedicaram es­ da ordem discriminatória e privilegia­
tudos menores ou capítulos em obras dora de grupos.
JOSÉ HONÓRIO ROORIGUES E A H ISTORIOGRAFIA BRASILEIRA 69

o livro de José Honório é a melhor não chega a convencer. O importante


contribuição à historiografia da época, a consignar. nesse volume como na
lucrando com novas dimensões. Passa primeiro. é o caráter revisionista, mar­
• figurar em lugar de destaque na bi­ ca do autor, nada apegado ao modelo
bliografia sobre o assunto, que tem oficial, repetido pela falta de sentido
entre seus marcos a História da inde­ crítico ou amadurecimento no comum
pendência do Brasil, de Varnhagen, dos dedicados ao ofício.
escrita em 1874 mas ,,6 publicada em Se o empreendimento devia ser
1 9 1 6 , Reconhecimento do Império e alentado, como foi escrito ao longo
O movimento da independência, de de anos, ressente-se de repetições (há
Oliveira Lima, de 1 90 1 e 1922, res­ uma frase de Pinto Peixoto citada tre­
pectivamente, e A elaboração da in­ ze vezes; um panfleto português é re­
dependência, de Tobias Monteiro, de ferido no mínimo cinco vezes), de
1927. O presente texto é outro mar­ plano nem sempre enxuto. Há até diá­
co, mais notável pela amplitude da logos e comentários longos de pouca
pesquisa, do plano e da reflexão cri­ substância, chegando mesmo, em cer­
tica. Investigação abrangente e ama­ tas passagens (raras, é claro), a uma
durecida, tinha tudo para ser uma história quase factual, narrativa à ma­
grande obra, dessas que marcam a neira antiga, como se dava na obra de
historiografia e um autor. A fragmen­ Tobias Monteiro. O autor assim pro­
tação do estudo em aspectos, contudo, cede por generosidade, para dar ao
não deixa de comprometer-lhe o ren­ leitor o máximo de informações, e não
dimento, dando às vezes a impressão por ser um representante da petite his­
de um conjunto de cinco monografias. toire ou histoire historisante, por ele
Se a parte relativa à evolução política justamente escalpelada na Teoria. De­
é feliz, com a revelação de documen­ mais, há aqui exemplos notáveis de
tos ignorados, panfletos raros escritos visão moderna e até avançada, no exa­
me do vocabulário, do pensamento,
aqui e alhures, anais, correspondência
como só fazem os historiadores de alto
e memórias, os demais, embora igual­
preparo.
mente trabalhados na pesquha, falham
um pouco na apresentação. O segun­ O estudo sobre a independência
do volume trata da economia e socie­ comprova que o autor não tinha forte
dade, com melhor resultado nesta que sentido de síntese. Tanto que pensou
naquela, às vezes árida, com a trans­ em escrever uma história do Brasil e
crição de númerOS e documentos sem não o fez. Como todo historiador labo­
a necessária análise. O terceiro volu­ rioso e lúcido, desejava traçar o pa­
me, sobre as forças armadas, é longo norama geral do país: teve oportuni­
por ver a independência como revo­ dade, pois tlma editora inglesa lhe
lução, guerra, e não compromisso fez a encomenda, motivo de alegria.
amigável. O autor tem aí a possibili­ Anunciou-a em alguns volumes -
dade de evidenciar sua tese de cará­ obras a serem publicadas - e não a
ter cruento do processo nacional. Che­ escreveu, desistindo da tarefa. Pena,
ga mesmo a algum excesso, querendo pois tinha conhecimentos, visão do
tenha sido tanto ou mais cruenta a conjunto, àgudeza crítica, mas não
luta aqui que na América inglesa ou teve o neceSS8no vigor para a m1C18-
• • • • • •

na espanhola, com suas batalhas sem tiva. E a nação continua sem uma sin­
conta, demoradas e com número ex­ tese moderna, presa ainda aos padrões
cessivo de mortos - em análise que fixados por Varnhagen em 1 854-1 857.
70 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1988/1

As tentativas feitas, neste sentido, coordenou a edição das Alas do fa­


como 2S de Pedro Calmon e Hélio moso Conselho, de carreira acidenta­
Viana, são convencionais, insuficien· da, publicando-as. Tem-se aí material
teso A série dirigida por Sérgio Buar­ decisivo para bem apreender a vida
que de Holanda e Boris Fausto, His­ do Império. Já fora usado por alguns
tória geral da civilização brasileira, autores, mas ninguém explorara o veio
peca por excessiva atomização: traba­ tão rico de modo sistemático. As Alas
lho de grupo, como convém e já deu ocupam 1 3 volumes, alguns alentados,
resultados magníficos, aqui se perdeu com prefácios de diversos autores,
pelo número alto de autores e falta convidados pelo coordenador. Ele rez
de coordenação. a síntese segura, com pormenores e
II curioso lembrar que os três his­ rigor, em um volume que pode ser
toriadores mais laboriosos e indicados visto como introdução ou conclusão
para a tarefa a desejaram e anuncia­ do empreendimento. Deu-lhe título
ram, mas não a escreveram: casos de sugestivo: Quinlo poder? Além do
Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Executivo, Moderador, Legislativo e
Holanda e José Honório, cada um por Judiciário? O certo é que esse mate­
seus motivos. Caio escreveu um volu­ rial está entre as melhores fontes para
me sobre a Colônia em 1942 - ain­ O conhecimento da Monarquia. O li­
da o principal texto sobre a fase, não­ vro de José Honório é mínucioso e
superado -, a ser seguido por dois
atém-se com severidade ao tema, sem
outros, não tentados pelo fato de o
extrapolações ou digressões . Nesse
autor deixar-se atrair pela filosofia e
particular, aproxima-se do volume so­
pela economia, não se concentrando
bre a Constituinte de 1823, já comen­
na história; Sérgio por certa disper­
tado. Obra útil, sem dúvida, com um
são característica de seu temperamen­
papel na bibliografia da época e do
to - a série que coordenou seria o
autor, que não pôde aí expandir-se,
preparo, finda a qual tentaria a sín­
por ser livro integrado em um empre­
tese, com um volume índividual -
também não o fez; José Honório pelas endimento maior e bem-definido.
múltiplas atividades e talvez por certa
falta de sentido de sínlese, observável 3 . Ensaloa hlstorlogr"lcos
em obra como a dedicada à indepen­
dência. E o Brasil continua à espera José Honório escreveu muitos arti­
da H islória do Brasil, que precisa e gos em jornais e revistas, fez prefá­
já pode ser feita, pela multiplicidade cios e conferências. Vários deles são
de estudos, monografias e amadureci­ ensaios de certo vulto, nos quais de­
mento da trajetória, pela pesquisa e senvolve seus temas preferidos. A in­
reflexão de historiadores e outros cien­ sistência no gênero não é por acaso,
tistas sociais. O certo e lamentável é mas decorre da característica, já apon­
que eles não a fizeram, e não se vê tada, de certa dificuldade na síntese.
hoje nenhum nome capaz' de levar a Quem é escritor e se compraz na ta­
bom termo a tarefa - desafio para refa, escolhe então o ensaio, não 56
pela relativa brevidade, como pelo
o historiador e desejo de todos eles,
próprio tratamento dado à matéria.
mas difícil e até agora evitado ou Sabe-se de eminentes cientistas sociais
frustrado. - filósofos, por exemplo - profun­
Lembre-se ainda Conselho de Es­ dos em seu universo, e que nunca ela·
ladO: quinlo poder?, de 1978. O autor boraram um sistema, dispersando-se
JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES E A HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA 71

em dezenas de escritos, às vezes da ceriam em ChIlros livros de reunião de


mais alta qualidade: tinham pensa­ escritos esparsos.
mento próprio, mas não o organiza­ O primeiro titulo importante de en­
vam à maneira dos poderosos autores saios é Aspirações nacionais, editado
de síntese_ Dados com êxito às gran­ em 1963. De certo modo, é o melhor
des construções, foram os criadores da que escreveu nessa categoria, depois
ciência social do século passado, como do que será comentado a seguir. O
Comte, Marx, Speocer_ Não há, na livro é composto de duas conferên­
observação, relativamente aos ensaís­ cias na Escola Superior de Guerra, em
tas, nenhum juízo valorativo: quem 1957 e 1964, evidentemente muito
mais deu altitude ao ensaio foi Mon­ trabalhadas, alteradas, acrescentadas.
taigne, no século XV!, no qual bebe­ Não se declarava essa condição no
ram os filósofos do século segumte, volume de 1963, pelo caráter reser­
como Descartes e Pascal. Em nossa vado de tais conferências - vivia-se
tempo, um dos maiores pensadores so­ um clima de tramas subversivas, de
ciais foi Ortega y Gasset, que não es­ direita e esquerda, como se sabe -,
creveu nenhllm tratado, e sim uma mas tal é possível na quarta, por
série de extraordinários ensaios: era exemplo, de 1970. Escreveu-as "de
um espectador, como está no t!tulo de forma sugestiva e não exaustiva",
sua obra mais ampla e das maIs fascI­
nantes. como é comum no gênero. Faz-se, aí,
a análise das aspirações nacionais em
Na historiografia brasileira de hoje, uma "interpretação histórico-política".
um dos nomes de mais expressão é Há uma introdução sobre "a psicolo­
Sérgio Buarque de Holanda, cujo li­ gia política e os brasileiros", na qual
vro mais ecoante é um ensaio impres­ se coloca o problema de características
sionista - Raízes do Brasil. Já seu nacionais em base moderna, à luz da
conterrâneo e contemporâneo Caio melhor ciência social de nosso tempo,
Prado Júnior escreveu um poderoso marcado pela antropologia e pela psi­
livro sistemático - Formação do cologia, principalmente. J:. outro con­
Brasil contemporâneo. Não historia­
ceito de caráter nacional que se firma,
dores no sentido estrito também pro­ não O baseado na psicologia de povos,
duziram grandes livros sistemáticos à maneira do século passado, na su­
- casos de Raimundo Faoro, com Os posição de traços fixos. A idéia de
donos do poder, ou Celso Furtado, psicologia de um povo, uma nação .
com Formação econômica do Brasil. ou lima cultura, com traços permanen­
José Honório dedicou-se com inten­ tes, é desfeita. Atenta-se agora não
sidade e êxito ao gênero ensaio, na para o estável, mas para o transitó­
qual prod�ziu alguns de seus textos rio. O autor compreendeu bem o pro­
mais expressivos. Reuniu-os em livros, blema ao escrever que "o caráter é
dos quais se fala um pouco neste item. socialmente condicionado" ou o ca­
O primeiro é Notícia de vária his­ ráter social e nacional está entrosado
tória, de 1 95 1 , coletânea de artigos e na História, e esta, como disciplina
conferências sobre temas relevantes da mudança, ajuda a compreender não
universais e alguns temas brasileiros, s6 o permanente ou constante, como
com vários estudos sobre autores ou também as variações. J:. bom que
obras de historiografia nacional - um historiador aborde a matéria, an­
matéria de sua eleição. Não foi re­ tes tratada só por sociólogos ou
editado, mas certos capítulos reapare- antropólogos, às vezes de equivocado
72 ESTUDOS I-IISTÓRICOS - 1988/1

entendimento histórico. Trata�se, pois, compreensão do autor, espécie de bre­


de estudo com perspectiva científica e viário do seu pensamento. A segunda
avançada, não como os do passado, parte tem dois capítulos: "O voto do
com base nos determinismos geográ­ analfabeto e a tradição política brasi­
fico ou étnico, empobrecedores da vi­ leira" e "Eleitores e elegíveis: evolu­
são. Trata depois das características ção dos direitos políticos no Brasil".
nacionais, em análise segurs, funda­ A terceira trata da .. Política nacional:
da no conhecimento real da trajetória, uma política subdesenvolvida". Há
só possível por quem domine a his­ harmonia entre as partes, apesar de
tória. escritas em épocas diversas - com­
O mesmo se dá com as aspirações, provando a maturidade da reflexão.
destacando a independência e sobera­ S combativo, com abordagens origi­
nia, integridade territorial, ocupação nais e por vezes audaciosas. Trata-se
efetiva, unidade nacional, equilíbrio de uma das melhores análises da polí­
nacional e regionalismos, comunica­ tica patrícia, da denúncia de seus er­
ções e unidade nacional, integração ros e práticas distorcidas, em bene­
psicossocial, miscigenação e tolerân­ fício de minoria que afasta de to�o o
cia racial, aculturação e nacionaliza­ povo, no conservadorismo rançoso e
ção dos imigrantes, classes e justiça entravador de qualquer mudança. In­
social, regime representativo - pode­ siste na idéia da história cruenta, na
res divididos e harmônicos, oligarquia análise mais fundamentada que pro­
e democracia, centralização e fe­ duziu. Escreve dois ensaios essenciais
deração, desenvolvimento econômico para o entendimento da prática elei­
e bem-estar, educação, saúde. A ter­ toral, com o exame do voto do anal­
ceira parte cogita da "dialética do per­ fabeto e de eleitores e elegíveis. Sem
manente e do atual". Embora coleta dúvida, é o principal título de José
de estudos de épocas diversas, eles se Honório no gênero, pela temática e
complementam, evidenciando a coe­ altitude de tratamento. Este e o ante­
rência do autor, de um analista parti­ rior são os mais consistentes na ca­
cipante. vivo e sempre com enfoques tegoria aqui examinada: os outros
originais. Recomenda-se especialmente cogitam de muitos e diversificados as­
a quarta edição, bastante rica e já de­ suntos, às vezes de modo sumário,
finitiva. sem a unidade que estes apresentam
e lhe, dão organicidade, podendo qua·
Segue-se, em 1965, Conciliação e
reforma no Brasil, um desafio histó'
se ser vistos como livros de execução
rico·político, que complementa bem o
bem planejada, e não coletâneas de es­
anterior. Os capítulos foram redigi­ critos.
dos, aliás, com o intuito de aparece­ Do mesmo ano de 1 965 é História
rem em nova edição daquele livro, e historiadores do Brasil. Retoma-se
mas, pelas proporções, ganharam au­ aqui uma constante de seus interesses
tonomia de novo título. Como aquele, - o cuidado com a historiografia (de
tem harmonia e coerência nas três certo modo, podia ser incluído no
partes. A primeira é das melhores pá­ item 3). Tem duas partes: historio­
ginas da historiografia nativa, em grafia brasileira ("A historiografia
seus dois capítulos: " A política de brasileira e o atual processo histórico"
conciliação: história cruenta e in­ e "Capistrano de Abreu e a historio­
cruenta" e uTeses e antíteses da grafia brasileira") e historiadores bra­
história do Brasil" - básico para sileiros, com 1 1 ensaios sobre obras
J OSÉ HONÓRIO RODRIGUES E A H ISTORIOGRAFIA BRASILEIRA 73

e autores. Entre eles, assinale-se Mais títulos: História, corpo do


"Afonso Taunay e o revisionismo his­ tempo, de 1976, História combaten­
tórico", te, de 1983, História viva, de 1985 e
De 1 966 é Vida e hist6ria, título Tempo e sociedade, de 1986. São da
bem definidor de linha de trabalho. mesma natureza dos anteriores. com
I!: mais uma coletânea de artigos, con­ estudos de historiadores e obras, temas
ferências, prefácios. Vida e hist6ria é nacionais e gerais. Revelam operosi­
uma conferência, com os itens: histó­ dade, esforço contínuo de crítica e di­
ria e presente, história e ação, histó­ vulgação. Se não trazem uma nota
ria morta e história combatente, his­ nova à obra do próprio autor, contri­
tória combatente e história neutra, o buem para encorpá-la, enriquecê-la.
revisionjsmo. Como se nota pelos sim­ Como ensaios ainda, lembrem-se
ples enunciados, reafirma posições an­ mais dois títulos: Filosofia e história,
teriores. Há ainda eSludos sobre o de 1 98 1 , e Interesse nacional e políti­
povo carioca e a cidade do Rio de ca externa, mais antigo, de 1966. Fi­
Janeiro - seu povo e sua cidade -, losofia e história é coletânea de es­
sobre José Bonifácio, Capistrano de tudos, alguns de alta sofisticação.
Abreu, Raimundo José da Cunha Ma­ Parece-nos o menos feliz do autor,
tos, historiadores estrangeiros sobre o pois os textos são pouco objetivos e
Brasil e estudos sobre historiografia às vezes até confusos, como o primei­
universal. Por alguns capítulos, pode­ ro - "História real e oficial" (dá aí
ria ser enquadrado no primeiro grupo à expressão história oficial sentido
da classificação aqui seguida (como se diverso do que emprega abundante­
disse do anterior e se poderá dizer dos mente em outros escritos), "A luta me­
seguintes). todológica e ideológica na historiogra­
História e historiografia é de 1970.
fia contemporânea" e "O historismo
Divide-se em três partes: estudos bra­ e o humanismo". nos quais se exami­
sileiros - com páginas sobre dom nam temas como iluminismo e impo­
Henrique e a abertura da fronteira tência histórica, Marx como idealista
mundial, visitantes do Brasil no sé­ germânico, Habermas, Work.heime.r,
culo XVI l , Antônio Vieira como dou­ Marcuse, a teoria crítica, 8 escola de
trinador do imperialismo português, Frankfurt. Não pecam pela clareza, a
a concessão de terras no Brasil, a re­ exposição é insegura ou caótica, dan­
beldia negra e a abolição, Antônio da do a impressão de falta de domínio. O
Silva Prado, evolução comercial no fato não deve causar estranheza, pois
Brasil. Na segunda parte, historiogra­ os capítulos eminentemente teóricos
fia brasileira: Varnhagen, Rodolfo de livros anteriores (Teoria da histó­
Garcia e Afonso Taunay, Capistrano riu do Brasil, por exemplo) eram os
de Abreu e a Afemanha, Serafim Lei­ menos firmes, não demonstrando no
te, além de outros já constantes de li­ autor sólido domínio de filosofia. � seu
vros referidos - - como Notícia de título menos valioso.
vária hist6ria e História e historiado­ Já Interesse nacional e política ex­
res do Brasil. Na terceira parte, HHis­ terna retoma o caminho seguido em
tória e teoria", aborda temas gerais outros ensaios, pelos quais se afirma­
como capitalismo e protestantismo, ex­ ra e é o seu verdadeiro campo. Nele
pansão capitalista versus ideologia ca­ sente-se bem, em matéria de sua elei­
nônica em Portugal, a usura, a histo­ ção, pois foi professor de história di­
riografia estrangeira. plomática e chegou a escrever uma

74 ESTUDOS H ISTÓRICOS - 1 988/1

História diplomática do Brasil, não­ gestões .ao Arquivo Nacional, quando


publicada até hoje. Trata com desen­ o dirigiu, ou para servirem aos cur­
voltura :emas como fundamentos da sos aí organizados, ante a falta de bi­
política externa brasileira, uma polí­ bliografia disponível para os alunos.
tica exterior própria e independente, Além desses, publicou outros, em ge­
relações Brasil-Estados Unidos, Brasil ral traduções, por esclarecedores da
e Extremo-Oriente, o presente e o fu­ matéria. Promoveu tais edições para
turo das relações africano-brasileiras, elevar o nível do trabalho nesses ór­
fortuna e desfortuna da política exter­ gaos e defender o acervo documental
na independente. Revela-se aí mais do país, comprometido pela desorga­
uma vez o erudito, co.mo o historiador nização e falta de assistência. Produ­
comprometido com o destino nacio­ ziu algumas dezenas, quase sempre
nal, apontando-lhe caminhos e denun­ escrevendo-lhes o prefácio. Citá-los se­
ciando-lhe os erros ou distorções. No ria fazer relações, não comportadas
volume de 1966 está o verdadeiro his­
aqui pela natureza deste ensaio e pe­
toriador, afirmado em tantos livros,
los limites de espaço. Lembre-se ape­
não no título de 1981 Filosofia e his-
tória. .
nas o vulto: 40 títulos, sendo 1 1 na
série Publicações Históricas, 27 na
Publicações Técnicas e dois na Instru·
4 . Obras de referência mentos de Trabalho.

Em decorrência de cargos públicos Mais numerosas ainda são as edi­


ou como historiador, José Honório ções de textos originais da Biblioteca
produziu várias obras de referência. Nacional, do Ministério das Relações
De certo modo, Teoria em grande par­ Exteriores, do Arquivo Nacional, do
te poderia ser inscrita nesta epígrafe, Parlamento do Império e do Conselho
pois tem indicações preciosas de bi­ de Estado. Organizou-as criteriosa­
bliografia e estado de problemas, que mente, precedendo-as de estudos es­
a tornam de consulta básica ainda clarecedores, às vezes longos e até ver­
agora, apesar de não-revista no parti­ dadeiros livros. Do gênero são os nove
cular nas edições subseqüentes. Tam­ volumes dos Anais da Biblioteca Na­
bém de referência é Historiador e bi­ cional, os 40 dos Documentos Histó­
bliografill do domínio holandês no Bra­ ricos, todos com boas explicações.
sil,já tratado no item I . Mais tipi­ Lembrem-se , por exemplo, os referen­
camente da espécie são o Catálogo da tes à revolução pernambucana de
Coleção Visconde do Rio Branco e 1 8 1 7 , em número de nove, que põem
os índices anotados, como o da Re­ à disposição dos leitores, impressos,
vista do Instituto Histórico do Ceará, os papéis do importante movimento.
de 1959, e da Revista do Instituto Ar­ Scus prefácios são corretos e guiam o
queológico, Histórico e Geográfico pesquisador. Relacionar essas cole­
Pernambucano, de 1 96 1 . ções exigiria muito espaço. As vezes
o estudo do autor foi tão minucioso
5 . Edições de textos
que se transformou em livro. Caso de
O Parlamento e a evolução nacional,
Quanto às e�ções de textos, foram provocado pela edição de discursos de
de duas ordens: os folhetos ou livros 1826 a 1840, promoção do Senado
sobre arquivística, elaborados por au­ Federal, em 1972, ou da edição das
toridades convidadas para visitas e su- Atas do Conselho de Estado, também

I OSÉ HONÓRIO ROORIGUES E A H ISTORIOGRAFIA BRASILEIRA 75

pelo Senado, em 1978, origem de O as teses e anttteses, mas o espaço 030


, -

Conselho de Estado: quinto poder?, o permite e parece melhor realçar o


referidos no item 2. essencial, em alguns conceitos básicos.
Como editor consciente, destaquem.
se ainda as Cartas ao amigo ausente, I . Conservadorismo.A política bra­
de José Maria da Silva Paranhos, de sileira é eminentemente conservadora.
1 953 - bom estudo para a história Nada muda. Se assim era compreen­
da década de 50 do século XIX, com sível no tempo da Colônia - não só
excelente introdução, ou a Correspon· por causa do agente português, mas
dência de Capistrano de Abreu, de pela natureza de todo colonialismo, de
1953 a 1956, em três volumes, tam· qualquer origem, pois o mal não é
bém com excelente prefácio. a nacionalidade do colonizador, mas
a colonização em si mesma (no caso
José Honório pesquisou muilo e apenas agravado pela decadência em
forneceu aos estudiosos bom material que mergulhara a metrópole desde o
para seu trabalho, com essas inicia· fim do século XVI, depois do pionei­
tivas que lhe recomendam ainda o rísmo da aventura expansionista) -,
nome. Seguiu o exemplo de Varnha· pela rotina, espoliação e mediocrida­
gen e Capistrano - suas admiraçães de do administrador, já não é descul­
permanentes -, investigadores e edi· pável no país independente. A cons­
tores de documentos, dando a públi· tante entre nós é a resistência a toda
co subsídios valiosos, além de escre· mudança. Como se sabe, e o autor
ver as suas obras. De nenhum dos acentua até a exaltação, a independên·
contemporâneos se pode dizer outro cia foi oportunidade gorada: podia
tanto. ser uma revolução, mas venceu a cOO·
tra-revolução, como se deu em todas
as outras tentativas de alterar a ordem
111 . IDEAR 10 E LEGADO DE UM HISTO­ estabelecida. Também outras oportu­
RIADOR
nidades se perderam: a abdicação, em
Apesar de ampla e diversificada, a 183 1 ; a maioridade, em 1840; a Re­
obra de José Honório pode ser ex· pública, em 1889; o movimento de
pressa com o enunciado de algumas 1930; a queda do Estado Novo, em
idéias que a sintetizam. Assim é pela 1945; a renúncia de um presidente e
sua coerência, na exposição até reite· a posse tumultuada do vice, em 1 96 1 ,
rativa de modos de ver o problema culminando no golpe militar de 1964
da história em geral e principalmente - momento máximo de retrocesso; a
da brasileira, objeto constante de seus anunciada Nova República, em 1985,
estudos. O próprio autor facilitou a quando uma tragédia pessoal do pre­
tarefa, em um dos textos mais impor· sidente que significara a resistência dá
tantes que produziu, espécie de bre· origem a um governo apagado e em
viário de pensamento bem-elaborado total consonância com a situação an­
e amadurecido: "Teses e antíteses da tes combatida, na mais dolorosa frus­
história do Brasil", constante de Con· tração popular.
ciliação e reforma, de 1 965. Há aí, em
68 proposições, quase a súmula de 2 . Conciliação. Decorre do traço
obra fundada em ampla pesquisa, re­ anterior. Compõem-se os interesses
flexão e sentido criativo, às vezes ge­ dos grupos dominantes, sempre em
rador de polêmicas. Seria fácil repetir detrimento das aspirações do povo,
76 ESTUDOS H I STÓRICOS - 1988/1

eternamente afastado da cúpula, não mônicos. H á certas afinidades entre


convocado para o diálogo, mantido só suas idéias e as de Manoel Bonfim
entre os grandes. É outra constante ou Alberto Torres, mas sempre com
da política: atribuída sobretudo aos mais elaboração e refinamento, pela
mineiros, na verdade é nacional. As­ formação, personalidade rigorosa e
sim foi praticada por lideranças per­ época mais avançada em que viveu,
nambucanas e baianas, fluminenses e de instrumental analítico superior aO
outras. Os conservadores têm cons­ daqueles autores da primeira metade
ciência mais viva de seus interesses do século. Seu nacionalismo levou-o
e se organizam de modo mais eficien­ ao inconformismo ante a situação ge�
te, como se viu ao longo do Império, ral, traduzido no tom apaixonado de
da República Velha, da Segunda e muitos escritos, polêmicos, contesta�
agora apelidada Nova. A atual Cons­ dores.
tituinte ilustra ainda o fato, embora,
pela primeira vez, se apresentem tam­ 5 . Populismo. Apontou-se esse tra­
bém, com relativa organização, gru­ ço, mas ele não tem a força que por
pos populares a pressionarem o ple­
vezes lbe atribuem. Se teve certas po­
nário. Em breve se verá se com algum
sições próximas, de compreensão e de­
resultado.
fesa de Vargas, Kubitschek e Goulart,
3. Divórcio entre a política e a so­ nunca chegou a defender o populismo
ciedade. O autor insiste, com justeza. como se fez então, e sobretudo como
na falta de representatividade dos go­ se ensaia hoje com o chamado neo­
vernos, que não exprimem a socieda­ -popul ismo, de políticos que não pas­
de. Esta foi sempre mais avançada, sam . Je manipuladores das massas,
teve noção do interesse nacional, en­ quando na verdade fazem o jogo dos
quanto aquela exprimia só o dos gru­ grupos dominantes, do capital nativo
pos dominantes, retrógrados, egoístas, ou estrangeiro. O historiador teve en­
sem abertura para a mudança. A so· tendimento do fenômeno, não deve ser
ciedade, não O governo, é responsá­ visto como populísta nesse sentido dis­
vel pelas conquistas, ontem e hoje, cutível. Se seu amor e identificação
dilatando o território, povoando-o, ga­ ao povo não o levou a formar em tal
rantindo a unidade nacional. corrente, menos ainda o levariam ago�
raJ ao neo�populismo, como seu nacio­
4 . Nacionalismo. O autor inscre­ nalismo não o levou à ingenuidade do
ve-se na linha nacionalista, com lu­ patriotismo de quartel ou de escotei­
cidez. Sempre denunciou a subserviên­ ros, de "educação moral e cívica".
cia ante o estrangeiro: denunciou a
lusofilia, sem ser lusófobo, em atitu­ 6 . História cruenta. t; uma das na­
de crítica ante o colonizador ontem, tas mais reiterativas da vasta obra. A
ou ante o português hoje. Seu nacio­ idéia não é origínal, pois a recebeu
nalismo nunca teve as conotações in­ de Capistrano, autor de sua máxima
gênuas do de um Antônio Torres, Ál­ admiração. Confessou muitas vezes
varo Bomílcar, Jackson de Figueiredo. essa dívida, escreveu superiormente so­
Soube ver o imperialismo inglês e de­ bre o historiador (curiosamente, não
pois o norte-americano, apontando o falava de Manoel Bonfim, com quem
dominador na posse do capital a ser­ tinha muita afinidade, nunca, entre­
viço de minorias locais, simples agen­ tanto, reconhecida e menos ainda pre­
tes da alta finança de centros hege- clamada). O autor insiste em denun-
JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES E A H ISTORIOGRAFIA BRASILEIRA 77

ciar a história incruenta, na tese cons­ no exercício da interdisciplinaridade.


tante da historiografia nativa, sem Contribuiu, mais que ninguém, para
base: se o fez até à exacerbação, che­ questionar a produção dos historiado­
gando mesmo a excessos ou equívo­ res, examinando-Ihes os textos e colo­
cos, como no estudo da independên­ cações. de modo a ser visto, senão
cia brasileira comparada com a das como o criador, como quem mais con­
outras nações americanas ou do pre­ tribuiu para esse ramo fundamental
conceito racial, foi como atitude de do conhecimento histórico.
combate ao oficialismo das interpre­
tações da maioria dos textos de his­ 9 . Documentação e arquivo. Pelo
tória, insistentes em cordialidade fan­ domínio de bibliotecas, museus e ar­
tasiosa. A necessidade de afirmação quivos do país e dos maiores centros
do contestador explica os exageros de de estudo - notadamente dos Esta­
argumentos. A tese do caráter cruento dos Unidos e da Grã-Bretanha -,
da vida brasileira tem base, menos cemo também pelo exercício de car­
em lutas que na sobrevivência da mio gos no serviço público, teve uma vi­
séria, da espoliação, responsável por são superior da matéria, com expe­
número incomparavelmente superior riência desconhecida por outros. Al­
de vítimas ao de qualquer luta ar­ guns a tiveram também, no trato de
mada. papéis, mas não tinham a mesma cul­
tura especializada ou o seu sentido
7. Revisionismo da hist6ria do criativo, de modo que forma no pri­
Brasil. José Honório sempre procla­ meiro plano para melhorar a situação
mou a perniciosidade do modelo de das fontes para o pesquisador. Inovou
exposição do processo nacional: era instituições, pregou a necessidade de
insuficiente, tendo em conta apenas o assistência. Se teve multos êxitos, não
lado oficial, a visão do dominante, na­ foi ouvido como devia. Caso o fosse,
turalmente minoria, enquanto a tota­ a situação do país, no setor, seria bem
lidade da nação vive em condições
melhor.
adversas. Propôs várias teses contes·
tadoras e contribuiu para esclarecê­ 1 0 . Hist6ria combatente.Pelo tem­
las ou até fixá-Ias de vez. Demais, peramento e pela formação, bem co­
na batalha pela reforma da escrita mo pelo tempo e meio em que viveu,
dos historiadores e do ensino de his­ recusou a idéia tradicional de um
tória DOS vários níveis - notadamen­ trabalho meramente erudito, distante
te no superior, dos cursos das facuJ­ das questões, como simples especta­
dades de filosofia > contribuiu para dor, preso ao passado e a seu estu­
elevar os institutos de ensino, sacudir do. Para ele, cônscio da dinâmica do
as instituições consagradas. Brasil em fase vivíssima, quando o
ritmo de mudança se acelerava, o pre­
8 . Metodologia e historiografia. Ba­ sente se sobrepunha a tudo mais. Se
talhou sem cessar pelo preparo meto­ estudou outros períodos, não foi pa­
dológico do historiador brasileiro, de­ ra projetar a problemática de hoje,
masiado preso à narrativa, ao factua!. em procedimento anacrônico, mas pa­
Entendeu a história no quadro das ra entender a realidade. Entender e
ciências sociais, relacionando-se intei­ contribuir para sua transformação.
ramente com elas, beneficiando-se de Daí a atitude empenhada, viva, com­
suas conquistas e enriquecendo a vi­ batente, expressa até nos títulos de
são e o método de trabalho de todas, alguns livros.
78 ESTUDOS H ISTÓRICOS - 1 988/1

No esboço de um ideário de José quanto escreveu. Se a história da his­


Honório, talvez se pudesse dizer se­ toriografia teve nele o mais constante
rem esses os pontos mais destacáveis. cultor, José Honório passa agora a
Tais idéias foram o eixo de sua obra: ser um capítulo significativo dessa
em torno delas escreveu os vários vo­ obra a ser ainda muitas vezes escri­
lumes de metodologia, historiografia, ta. Por diversas sejam as perspecti­
os ensaios, os estudos orgânicos, como vas do futuro autor - claro, haverá
Independência, os fragmentários co­ outros enfoques -, decerto seu tra­
mo História e vida, além das dezenas balho será sempre ponto de partida.
de introduções aos volumes de tex­ Vai ser revisto, contestado, assim
tos que editou, ao longo de vida ope­ como ele reviu e contestou, como fa­
rosa e concentrada apenas no cultivo zem os autores de vivo sentido crí­
da história. tico. Não poderá, no entanto, ser
O legado aos contemporâneos e às ignorado, pois é referência obrigató­
gerações de estudantes que virão é ria na produção de meados do século
uma obra abridora de rumos, não-con­ no país que tão intensamente amou,
e cuja trajetória procurou apreender,
vencional nem conformista, lição de
e em cujo estudo muito influiu.
pesquisa e elaboração. Com ela con­
sagrou um nome na história da his­
toriografia brasileira, para a qual con­ Francisco Iglésias é livre-docentc em
tribuiu positivamente. Quem tiver, à história pela Universidade Federal de
Minas Gerais e professor nesta universi­
maneira dele, o gosto pela reconsti­ dade. Autor de numerosos artigos, livros,
tuição da trajetória historiográfica pa­ introduções, dos quab destacamos História
trícia, deverá dedicar-se à análise de e ideologia. São Paulo, Perspectiva. 1 9 7 1 .

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