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Amor, por favor, não me acorde.

As sombras são grandes, já tomaram conta das cidades


com seus temporais. Neste quarto, contudo, sinto que estou mais seguro com você. Poderia
dizer o mesmo para diversas outras, mas só depois de sentir sua falta e não conseguir me
livrar do doloroso sentimento, eu sei que é real. Mesmo assim, ainda posso sentir elas vindo,
e batendo a porta, e por causa disso, temos que sair pela janela. Eu vejo os quintais e o pátio
atrás do muro, com grades metálicas de uma quadra atrás de um bonito campanário. O
pináculo com um para raio é sombreado pelo sol não presente, sumido atrás das grandes
nuvens que tomam o céu por inteiro, como uma só. A claridade dos postes no asfalto
molhado, e com algumas poças, fazem nosso caminho de escapada. Nós pisamos no chão
frio, damos as mãos, e olhamos para um lado da rua que leva à luzes da cidade, e é assim
que prosseguimos correndo.
Eu pensava que em algum lugar por ali havia um ponto onde pudéssemos ficar, mas
agora observando com calma, acho que tal local não existe. Me sinto meio culpado por ter
corrido tanto, e parecer ter me movido tão pouco, para chegar em canto algum. Eu consigo
sentir mansos sinais de chuvisco, e da bruma rala e escura que permeia as ruas urbanas. O
azul-marinho da noite indo embora, e principalmente, seu contorno diferenciado de luz em
meio ao degrado. Você esteve sempre comigo nessa caminhada, e agora seus olhos parecem
mais reais do que nunca, suas feições se aproximando aos poucos das minhas, enquanto fixo
meu olhar em suas belas íris, e o desfoque acontece. Tento abraçá-la, e sentir novamente seu
cheiro e presença, e fazer de tudo para permanecer ao seu lado, ou ao menos guardar o
máximo de memórias de você, mas acho que seria muito tarde. As sombras chegaram, e elas
me levaram, não a um antro de obscuridade, mas ao fadigante raiar do dia. Eu tinha acabado
de acordar, e ainda estava em minha cama.

Levo minhas mãos ao rosto e fecho os olhos, não pelo irritar da claridade. Eu olho ao
meu lado, e não vejo nenhuma face confortante. Lembro quem sou, como estou, onde estou,
e principalmente, me esforço para não deixar escapar nenhuma memória do sono. Ficar na
cama até as Seis da tarde, para depois notar que estou morto, parecia tentador, mas hoje não.
Eu me esforço e fico sentado no leito, olhando os arredores silenciosos do quarto cuja única
janela deixava entrar uma claridade em marrs green da manhã. Eu coloco meus pés
descalços no chão gelado, e fico de pé. Vou até a vidraça e olho lá fora. Os céus continuam o
mesmo, alimentados pela fumaça das fábricas próximas, que une os vapores às alturas
cinzentas. Não há contraste entre elas e os prédios, exceto por finas delineações que se
perdem no nublado. O vento continua frio como a noite, e eu olho para a rua que leva às
luzes da cidade, imaginando que se eu saísse agora e fosse para o mesmo ponto que vi antes
de ser tragado de volta, esperanças ainda estariam lá para encontrar o que foi perdido. Mas
minha vontade é fraca, e eu permaneço. Em outros dias, devo descer para o andar de baixo,
e seguir para rua, e simplesmente ir. Vou a lugares vazios, e passo por outros enquanto isso,
sem ter a chance de atracar naqueles que são perfumados com a essência que desperta
alguma lembrança das tardes de dias antigos e chuvosos. Contudo, concluo que isso é ruim
para mim. Não se pode sair, eles dizem, é perigoso agora. Apesar de que, mesmo se eu
tivesse saído, como fiz inúmeras vezes quando fui procurar o que perdi, voltaria sem
resultados.

Me lembro que vivo só. E que todo dia cansativo de confusão e decadência eu escuto
uma melodia reconfortante, da qual eu abuso até enjoar, mas nunca enjoo. Se eu fosse sair,
ela continuava tocando. Eu, agora, ando pela casa sem afazeres, e ela continua tocando.
Coloco o volume em seu máximo. Posso ouvir de todos os cantos da casa, não importando o
andar. Ouço em meu banho frio, ou enquanto como na cozinha, e também quando eu olho e
questiono a risível aparência própria quando passo por um espelho.
Ou quando penso em suicídio ao olhar velhas fotos dela, que não mais está por aqui.
Nunca morou comigo, e provavelmente nunca sentiu todo o meu amor, exceto por pequenas
declarações que se apagaram no tempo, e mesmo assim, ela se refletiu em mim como uma
preciosa maravilha. Munida de frases e gestos do passado, por cinco curtos meses, onde eu
me lembro que podia sorrir ao seu lado, sem um esforço voluntário. As fotos são de um
pouco antes que ela sumiu, e muito antes de saber que as sombras se transportaram dos
sonhos e saudades, vieram para a realidade, e levaram sua vida. E todas as suas lembranças
físicas que restaram se tornaram adornos funerários, desde cheiros, ao tom da roupa que
mais usava, a até mesmo os contornos simples que faziam sua absoluta beldade, que consigo
ver em canto ou outro. Mas a riqueza de saber que ela existiu em minha vida é reservada
apenas em meus pensamentos.
Eu dou passos quietos, e retorno à minha cama. Fecho os olhos e sorrio como ela pedia
que eu sorrisse, para que os sonhos diurnos tomem conta da minha realidade.

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