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É chegada a hora. Vou falar da minha família. E que família...
Parece que a união de sr. Jorge e dona Angelina (meus pais) acon- teceu para gerar músicos. Talvez seus DNAs sejam peculiarmente espiralados em claves musicais. Primeiro chegou Jorge, carinhosamente chamado de Cito, quando minha mãe tinha apenas dezesseis anos e, apesar de ter nascido com três lesões cerebrais e epilepsia, contradisse a todos quando, com desenvoltura, aprendeu sozinho as artes do pandeiro e desafiou qualquer metrônomo eletrônico na destreza do tempo e na precisão do ritmo, em sua vida de músico caseiramente amador. Depois vieram Sérgio e Odair, hoje conhecidos como Duo Assad, ou The Assad Brothers, que, ainda muito meninos, começaram a tocar violão e mal sabiam que se transformariam num dos mais sensacionais duos de violões que já pisou na face da Terra. Eles não imaginavam, mas sr. Jorge desconfiava. Em 2015 completaram 50 anos de carreira! Ou seja, durante meio século sentaram-se lado a lado para fazer e sonhar música juntos. Quantas horas para aprender um repertório que foi seguido por praticamente todos os duos do mundo posteriores a eles? É como se uma magia os tivesse enfeiti- çado, envoltos pelos ensinamentos musicais e amorosos dos pais. Certo dia durante uma roda de choro, Jorge, bandolinista amador, se desentendeu com o amigo seresteiro Waldemar. Nessa época minha família morava em Ribeirão Preto, no interior paulista. Ao retornar para casa, nosso pai se deparou com Sérgio segurando um violão, pendurado na barra da saia da mãe, pedindo que ela cantasse aquela música da qual ele aprendera os acordes. “Você quer mesmo aprender a tocar isso?” Diante da resposta afirmativa, sentou o menino no sofá. No mesmo instante Odair, que desejava tudo que o irmão mais velho tivesse, emendou: “Eu também quero!” E assim iniciou a incrível, contagiante e próspera história desses dois talentosos irmãos. Não levou nem um ano para que o repertório de chorinhos do pai já corresse livremente pelas pontas dos dedos infantis e eles virassem coqueluche na pequena cidade. Pouco tempo depois descobriram que uma competição de violão aconteceria na capital paulista. Sem pestanejar, Jorge os colocou no carro e seguiram viagem. Não demorou muito para descobrirem que, por estarem na mesma faixa etária, concorreriam entre eles. Para que isso não acontecesse, o pai inscreveu-os em categorias diferentes. Resultado: Odair levou para casa o prêmio de melhor violonista erudito e Sérgio, o de melhor violonista popular. Estas seriam as primeiras conquistas de muitas. Jorge ficou inspirado e quase enlouqueceu quando soube que uma ex-aluna do papa do violão clássico, Andrés Segóvia, estava morando no Rio de Janeiro. Eles tinham que ser seus alunos! Monina Távora, já de cabelos grisalhos, disse, antes de vê-los tocar: “Se seus filhos não forem bons, nenhuma fortuna fará com que sejam meus alunos, mas, ao contrário, se forem, nossas aulas começarão o quanto antes”. E assim em menos de um mês estávamos todos, inclusive eu com meus dois anos de vida, morando em Brás de Pina, no Rio de Janeiro, enquanto o fenômeno Assad incandescia duas vezes por semana em Botafogo. E como incendiaram! Em 1979 foram representar o Brasil pela primeira vez em uma competição internacional. Voaram para hastear bandeira verde e amarela numa das mais importantes competições da época, o Concurso Internacional de Violão de Bratislava. Saíram de lá com o primeiro lugar em mãos e foram catapultados para todas as dire- ções, iniciando um belo processo de reconhecimento mundial. Se você perguntar a um violonista clássico de qualquer cantinho do planeta se ele os conhece, você ouvirá uma resposta positiva e reverenciosa. Brinco ao dizer que meus irmãos fizeram pelo violão brasileiro o que Pelé fez pelo futebol. Ambos foram precursores e responsáveis por colocar nosso país no topo do globo. Os irmãos Assad, além de serem virtuoses, compositores, arranja- dores e intérpretes excepcionais, quando sentam e começam a tocar cedem lugar aos anjos que nos comovem profundamente. Nunca somos os mesmos depois de ouvi-los. Nessa época, como disse, eu já existia. Sou a caçula da família, conhecida também como “a rapa do tacho”. Quando nasci, minha mãe achou que estivesse entrando no climatério, e descobriu que sua menopausa tinha outro nome: Badi. Não foi à toa que me cuidou com tantas manhas, por ter, enfim, realizado o sonho de segurar uma menina no colo. Antes mesmo de eu também enveredar pelos inspirados DNAs, Sérgio se casou e anunciou a chegada da filha Clarice, que nasceu quando eu tinha onze anos. Ela foi minha primeira sobrinha, mas a sinto como irmã, pois temos praticamente a mesma diferença de idade que tenho em relação a Odair. Depois chegaram mais sobri- nhos: Carolina, Rodrigo, Gustavo, Júlia e Camille. Com o tempo, fomos descobrindo que todos trouxeram a música no sangue. Uns mais, outros menos. Rodrigo, dono de um suingue arretado, acabou se formando em cinema (e dirigiu meu DVD badi assad - 2010), e Carolina, de voz abençoada preferiu a permacultura. Já Clarice... Com apenas quatro anos já compunha. Quando fez nove, Sérgio a levou para conhecer Hermeto Pascoal, que ingenuamente disse que um determinado acorde da menina poderia ser diferente. Debru- çou-se sobre ela e mostrou. No dia seguinte, a pequena sentou-se ao piano e repetiu o mesmo acorde de antes dizendo ao pai que preferia do seu jeito. Ela já sabia o que queria. Levou a sério os estudos musicais e acabou mudando-se para os Estados Unidos, onde vive até hoje. E não parou no piano ou na música instrumental brasileira. Ela descobriu também o jazz, a música clás- sica, a contemporânea e sua voz. E faz com seu talento o que quer. Digo, em nossos shows em família, que ao crescer quero ser como ela! Clarice não para. No começo, a pedido do pai, compôs para duo de violões, depois, solicitada por outros violonistas, compôs para quar- tetos, e hoje atende orquestras inteiras. Diariamente ela é contra- tada para algo diferente. É dela Scattered, o primeiro concerto para Scat Singing e Orquestra do mundo! Em 2014 foi encomendada uma fantasia sobre o Hino Nacional Brasileiro pela OSESP, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo: Terra Brasilis. Sua peça vestiu nosso hino com outras cores e viajou pelo mundo. Quando Clarice entra no palco sozinha, no entanto, com sua voz e piano, é o suficiente. Suas invenções invertem, investigam, subdi- videm. Nos fazem acreditar no impossível. Tudo se torna tão natu- ralmente simples... Ela não se cansa, de verdade: “Clarice, vamos sair para ver o sol!”, “Espera aí, tia, deixa eu terminar essa parte aqui!”. Quem passa por ela não acredita que aquela moleca seja isso tudo. Mas é. Tiro o chapéu. Avoé, minha família! Sempre fui, sou e serei grata a tudo que aprendi na vida com vocês. Desde aquele primeiro acorde, passando pelas dinâmicas musicais e de alma, até compartilhar este amor profundo que nos une em vida.