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A Terceira Regra da ‘Moral Proviséria’ no Discurso do Método Ulysses Pinheiro! Resumo A moral cartesiana apresenta uma ambigiiidade interna que nos permite interpreté-la ora como uma antecipacio de teses da « razao pritica » kantiana ce ora como a origem da releitura de teses estoicas empreendida pela filosofia moderna, e que encontraria em Espinosa um de seus maiores expoentes. A maioria dos comentadores da obra de Descartes ndo realcam com nitidez. essa oposicao, que exige uma opedo, 0 que gera muitos problemas de interpreta- ao. Este texto pretende eliminar alguns desses problemas. Abstract ‘The Cartesian ethies presents an internal ambiguity which authorizes us to interpret it either as an anticipation of Kantian « practical reason » theses or asthe origin of the readings of stoic theses undertaken by modern philosophy (particularly by Spinoza). Most of Descartes interpreters does not clearly emphasize this opposition, which demands an option and produces many problems of interpretation. This text intends to eliminate some ofthese problems. Logo no inicio das suas Meditagdes Metafisicas, Descartes declara que objetivo central do projeto de fundamentacao do conhecimento que ele se propés realizar é « estabelecer algo de firme e de constante nas ciéncias ». Esse sera um tema retomado com freqiiéncia pela filosofia cartesiana, como. Mestre em Filosofia pela UFR) 2 Mriitgses Metastca! A." 1X, 18, Sempre que possive,ulilizare’ a tradugdo portuguesa dlas obras de Descartes eta por J Guinsburge Bento Prado inir e edtada na colegio Os Pensadores» (Sie Paulo, ed. Abril, 197), Ax notas remetem sempre para a edigae-padrio de Adam e Tannery, da Seguinte forma” A, T, "da volume, n° da pagina, 8 Ulysses Pinheiro uum refrdo que associa incessantemente « verdade » a « estabilidade » ¢ « permanéncia ». A metafisica deve legitimar a nossa ctenga natural ¢ espon- tanea nas evidéncias racionais, provando que as idéias presentes na nossa mente representam adequadamente a realidade. Como é bem conhecido, Descartes traduz esse problema epistemolgico sobre a possibilidade da verdade para um discurso ontoligico, onde procura resolvé-lo, do seguinte modo : a prova da existéncia de um Deus veraz, autor das ideéias, serve como garantia de que as realidades mentais sao efetivamente simbolos de seus referentes, ou seja, da realidade formal das coisas que elas representam. Desse modo, as regras « internas » do nosso pensamento s4o fundamentadas, isto é,a sua indubitabilidade deixa de ser apenas um fito,¢ esta legitimada por argumentos racionais. Uma vez. demonstrado que ¢ contraditorio duvidar das idéias claras e distintas da razio, 0 sentimento de certeza gerado pela percepgio dessas idéias é também ele mesmo legitimo, nio mais sujeito a oscilagdes e suspeitas. Pareceria, & primeira vista, que no caso da moral cartesiana ocorre um processo paralclo : seria preciso elaborar, mesmo antes da fundamentagao do conhecimento verdadeiro, uma « moral proviséria »,° composta por proposi- ses apenas provaveis, pois as exigéncias priticas da vida impedem que as decisées sobre 0 nosso comportamento sejam « suspensas » ¢ adiadas por uma deliberagao meramente teérica; uma vez fundamentado 0 conhecimen- to, porém, seria possivel elaborar uma « moral definitiva » eestavel, regulada ppor leis racionais. Ainda segundo essa interpretacio, o projeto de Descartes de elaborar uma moral racional, esbocada principalmente a partir de 1645 nas cartas a princesa Elisabeth, & rainha Cristina, a Chanut e no Tratudo das Paixdes, s6 nao foi definitivamente realizado e exposto em um sistema devido A morte prematura do autor Pretendo mostrar, ao contritio, que 0 cardter incompleto ¢ « provisério » da moral cartesiana nao decorre de um mero acidente biogréfico, mas é antes uma conseqiiéncia necessaria do estabeleci- mento dos « limites da raz4o » por uma epistemologia da ética. Ha, no entanto, ambigitidades intenas as teses cartesianas sobre a moral que tomam plausivel e defensével a interpretacdo que pretendo rejeitar ‘Segundo essa interpretacao, a fundamentacao do conhecimento daria as teses &ticas um valor objetivo comparavel ao conferido as ciéncias mateméticas & da natureza; seria possivel, a partir desse fundamento, enunciar proposigGes referentes & vida pratica suscetiveis de provas racionais e de universalidade irrestrita. Essa interpretagio se bascia de fato em afirmagies explicitas do proprio Descartes — por exemplo, em sua primeira grande obra sistematica, as Regras para a Diregio da Espirito, encontramos a promessa de elaboracao cle ‘uma ética racional que determine de modo claro e distinto o que é um dever 3 Discurso do Método, 3° Parte 4 Cf}. Laporte, « La religion consiende dans ses mpports avec le moral », Cap. 3, Livro 3 le Te rationalise de Deseares, PAU, Panis, 15, A Terceira Regra da ‘Moral Proviséria’ moral ; aquele que procura a verdade deve ter como objetivo « desenvolver a luz natural de sua razo », de modo que, « em cada ocasido de sua vida, seu entendimento mostre & sua vontade a escolha que deve ser feita ».° Jaem 1646, em plena elaboragao de suas reflexdes éticas mais maduras, Descartes fala da sua teoria moral como de uma obra jé realizada e fundamentada racionalmente, ou seja, capaz de gerar conhecimentos certos e proposicbes verdadeiras : «a fisica », diz ele, « muito me serviu para estabelecer funda- _mentos certos na moral »* ‘A comparagao das trés regras da « moral provis6ria », propostas no Discurso do Método, com a sua reformulagao nas trés novas regras do que seria uma « moral definitiva », expostas na carta & princesa Elisabeth de 4 de agosto de 1645, talvez nos ajude a compreender as ambigitidades desse percurso que parece partir do conhecimento provavel e chegar a elaboracao Ge leis racionais sobre nossas ages e comportamentos. Em um esbogo bastante breve e incompleto, as tré regras morais do Discurso da Método poderiam ser expostas da seguinte forma : a primeira nos aconselha a obedecer aos costumes do nosso pais, seguindo as opiniées moderadas «comumente acolhidas em pratica pelos mais sensatos »;a segunda maxima que Descartes se propde era a de ser 0 mais firme possivel em suas ages, de modo que, uma vez tomada uma decisio, ela deveria ser seguida como se fosse muito segura e certa, mesmo que mais tarde parecesse ser baseada em ‘opinides apenas duvidosas; finalmente, a terceira maxima era a de procurar sempre « antes vencer a mim préprio do que a fortuna, ¢ de antes modificar ‘0s meus desejos do que a ordem do mundo » — ou seja, apés « termos feito ‘omelhor possivel » em nossas agbes, 0 que nos falta conseguir deve ser visto como « absolutamente impossivel », pelo menos para nés.” As maximas propostas na carta a Elisabeth parecem transcrever essas mesmas regras provisérias do Discurso do Método para um contexto no qual a razao jé esta fundamentada : a primeira regra, nos diz Descartes, « 6 que cada um procure sempre se servir, o melhor que Ihe for possivel, de seu espirito para conhecer © que se deve fazer e 0 que no se deve fazer em todas as ocorréncias da vida »; a segunda, « que ele tenha uma firme e constante resolucio de executar tudo 0 que a razao lhe aconselharé, sem que suas paixdes ou seus apetites o desviem dela m;finalmente, a terceira regra pede que consideremos que, se « fazemos sempre 0 que nos dita a nossa razio », entéo « nao comitimos nada do que estava em nosso poder ».* A mudanca mais notavel nessa reformulagio das regras da « moral provisoria » é a importéncia concedida & razao : enguanto que a primeira regra da « moral proviséria » Propunha como base para nossas decisdes as opinides mais moderadas Regea I — A. X, 361 (Carta Chast de 15 de junho de 1646 Discurso do Método —A.T., VI, 23 Cartza Elisabet de 4 de agosto de 1685 10 Ulysses Pinheiro comumente encontradas em nosso meio social, onovo enunciado da primeira maxima quase repete o trecho das Regras citado acima, no qual Descartes anunciava seu projeto de uma moral racional. A razio parece ser agora vista ‘como capaz de elaborar conhecimentos verdadeiros sobre os deveres morais, de modo a determinar uma vontade « firme e constante » e a evitar as paixdes, apetites e os falsos desejos de coisas impossiveis. O percurso do programa esbocado nas Regras até a « moral definitiva » teria sido percorrido ‘com éxito : a conquista de um conhecimento seguro da existéncia de Deus (dado pela metafisica), dos fatos do mundo (através da fisica) e da natureza ‘humana (através da psicofisiologia) do homem exposta no Tratado das Paixdes) nos daria um fundamento suficiente para a elaboracao de leis morais e até mesmo de « técnicas » (mecénica, medicina) visando a sua realizacao na natureza Além dessas diferengas entre uma « moral proviséria » e uma outra « moral definitiva » podemos identificar também, no interior dessa tiltima, um aparente conflito entre duas teses opostas, ou pelo menos distintas. Esse conflito gera novas ambigilidades e da margem as duas interpretacdes divergentes da moral cartesiana que mencionamos desde o inicio do texto. por um lado, a segunda maxima identifica a « beatitude » ou felicidade? com a consciéncia da submisséo da vontade as determinagées da razio, que por sua vez enunciaria principios préticos universalmente vélidos; por outro lado, a terceira maxima propde que a beatitude consiste na adequagio dos nossos desejos & realidade, sem que isso implique a elaboracio de leis praticas racionais : a razdo seria apenas um instrumento para realizarmos nossos desejos (para fazermos « 0 melhor possivel », ou seja, para escolhermos os _meios certos para alcancarmos os fins propostos pelos desejos), e a sabedoria consistiria no conhecimento claro daquilo que é possivel e razoavel desejar. Aqui novamente, como veremos, é a primeira interpretacio, cija validade eu pretendia rejeitar, que parece a principio se impor como a mais correta. Se isso for verdade, a segunda maxima deve ser lida como a regra mais importante da « versio definitiva » da moral cartesiana : seria a partir dela que deveriamos compreender a terceira maxima, e a interpretag3o baseada nna primazia dessa tiltima teria de ser recusada. De fato, com a mudanga ja assinalada da primeira maxima do discurso do Método, 0 individuo racional substitui as opinides « dos mais sensatos » como a instancia de formulagao do conhecimento moral; nesse novo contexto, a beatitude aparentemente passaria a ser definida como a mera consciéncia da virtude, ou seja, como ‘uma pura « boa vontade » capaz-de se submeter as leis da razao (« é afirmeza dessa resolugéo que eu creio deve ser tomada como a virtude »).!” 0 proprio contentamento ou beatitude passaria a ser secundério, pois o « 0 mero 9 Apalavra «felcidage » égeralmontedestinada por Descartes aos bens que nos advérn pela sorte e pelo destino, 10 Carta Elisabeth de 4 de agosto de 1685 A Terceira Regra da ‘Moral Proviséria’ n contentamento de nosso dever poderia nos obrigar a fazer boas ages ». A terceira maxima, por sua vez, deveria ser interpretada como um comentario sobre a segunda : ela chamaria a atencio para a tese de que as ages morais devem ser julgadas a partir de sua intengao, e nao a partir do que ocorre de fato no mundo. A interpretacao que estivemos examinando até este momento nao deixa, entretanto, de apresentar alguns problemas, que podemos expor agora. Ha na verdade uma critica bastante comum feita freqiientemente contra essa interpretacéo da moral cartesiana, ” mas, apesar de apontar para a solucao correta, essa critica apenas expée uma tese sem explicé-la suficientemente, de modo que um defensor da tese criticada ndo poderia deixar de se sentir frustrado, se tal fosse realmente o argumento de Descartes. De fato, a critica usual se limita geralmente a breves comentarios sobre textos de Descartes como este [..J ainda que no tenhamos uma ciéncia infinita para conhecermos perfei- tamente todos os bens dos quais ocorre que devamos fazer a escolha nos diversos encontros da vida, devemos, me parece, nos contentarmos em ter lum conhecimento mediocre das coisas mais necessérias, © comentério usual se desenvolveria aproximadamente assim : essa « ciéncia infinita » seria privilégio da mente divina « porque s6 Deus conhece perfeitamente todas as coisas »;" ora, como a nossa mente ¢ finita e 36 pode conhecer um ntimero limitado de coisas, nao haveria possibilidade de elaborarmos uma ética racional composta por proposigdes universalmente vvalidas. Essa « critica » é,no entanto, duplamente insatisfatoria, Em primeiro lugar, porque contradiz outras teses da filosofia cartesiana : ela deveria se aplicar também, caso fosse legitima, ao conhecimento tedrico da razao; de fato, Descartes nos adverte'® de que temos apenas um conhecimento completo dos objetos que se apresentam a nossa consciéncia, e de que um conhecimento total deles — isto é, um conhecimento da totalidade dos (talvez infinitos) predicados que compéem sua « esséncia » — esté reservado a um intelecto 11, Carta a Elisabeth de 18 de agosto de 1645 12 Esta wcitca usual »comporta em realidade muitas nuances, ¢talvez nBo possamos atribuit ‘com justca a exposigio ue faremos a seguir a nenhum dos autores aos quis remetemos; lapesar dessa ressalva, & possvel encontrar defesas de posighes aproximadas em : H. Goaldner,« Descartes eta vie morale» in: Reowe de métaphysgue ef morale Libraie Armand Colin, Paris, 1937, pp. 165-167; F. Alquié,» A Doatrina da Liberdade, a Teoria das Paixdes, ' Moral, Humantismo Carteiano », Cap. 5 de A Filesoia de Descartes, Eitri Presenca, Lisboa, 1986, ed, pp. 119-139; M. Beyssade, x Le ibee abit et le moment de Iéection| Cap. 4 de La Palosophie prone de Descares, Flammarion, Paris, 1973, pp. 177-214, € cexpecialmente pp. 210.213, 13. Ganiaa Elisabet ede outubro de 1645, citada por Beyssade op cil ‘por Laporte, opt, p. 461. C) wil de 19 de nowembro de 1645 Respostas as fas, Object — AT TXT, 1 210,n'8; por Alguié, 1G. Certaa Else de 15 de setembro de 164, R Ulysses Pinheiro infinito, No entanto, apesar de nés nao podermos nunca saber se enumera- ‘mos todas as propriedades de uma coisa, podemos certamente saber que dispomos de propriedades suficientes para afirmarmos que conhecemos essa coisa. Em segundo lugar, a critica usual também nos da argumentos pouco convincentes no que se refere & discussio sobre os fundamentos da moral a acreditarmos na sua formulacéo, Descartes estaria recusando a possibilida- de de uma ética racional porque nés ndo podemos conhecer a totalidade dos objetos e dos seus infinitos nexos causais, ou ainda porque néo podemos saber nada sobre as causas finais das coisas, " j4 que tudo isso seria tema exclusivo de uma « ciéncia divina ». Ora, nenhum defensor da possibilidade da elaboracéo de uma ética racional jamais fez sua defesa baseado em qualquer um desses postulados, e, portanto, uma «critica »feita a partir deles seria ineficaz. Afinal, ndo se explica com essa critica por que um conhecimen- to limitado, porém « claro e distinto », dos diversos « encontros da vida » seria insuficiente para formalizarmos algumas maximas referentes as nossas agdes e comportamentos, nem por que uma teoria moral deveria incluir em. sio conhecimento da « totalidade dos objetos », endo apenas dos objetos que nos cercam, ou ainda o conhecimento da finalidade tiltima das coisas, dos « fins impenetraveis de Deus », e nao apenas das finalidades que 16s Ihes damos. Na verdade, uma nova leitura do texto citado acima para ilustrar a «critica usual » nos fornecerd elementos para uma critica mais convincen- te a interpretaggo da moral cartesiana que pretendo rejeitar. E preciso entender principaimente por que a moral requer uma « ciéncia infinita ». Descartes afirma no Prefacio aos Principios da Filosofia que a moral, ou pelo menos « a mais elevada e mais perfeita moral » é 0 « iiltimo grau da sabedoria », pois ela pressupde um conhecimento completo das outras cigncias : ela é um dos ramos, ou melhor, o fruto da « arvore da ciéncia », cujo tronco principal é a fisica ¢ a raiz, a metafisica. Isso nao significa somente que a moral é mais complexa do que as outras ciéncias, ou seja, que ela depende do conhecimento de uma quantidade maior de objetos (por ex,, ela dependeria da mecénica, para « dominar a natureza », e da medicina, para « prolongar a vida » do homem e controlar as suas paixdes), mas sim que ela difere qualitativamente dos demais tipos de saber. Enquanto que as proposigdes da fisica e da matemética representam a realidade, a teoria moral teria de apresentar o modo como nég devemos agit — ora, uma teoria desse tipo suporia o conhecimento do « Bem supremo », de algo absolutamente incondicionado para além de toda a realidade, Essa é a razao pela qual as demais ciéncias podem se contentar com um conhecimento apenas completa de seu objeto, enquanto que a moral 16. Sobre a exclusdo das « causa finais » da ciéncia cartesian of « Quarta Meditagio » —~ A, 1X, 17 Preficio aos Principio da Filosofia — A. T, IX 14 A Terceira Regra da “Moral Proviséria’ 13 pressupde um conhecimento fotal : nao se trata tanto do conhecimento extensivo de cada um dos infinitos objetos particulares do mundo, mas sim de sua finalidade iltima e incondicionada, de algo que justamente uultrapassa toda a representacao de wna realidade particular. Ora, as idéias presentes na nossa mente finita tém sentido apenas porque sdo idéias de coisas ou realidades determinadas; logo, uma teoria moral é, nesse sentido, impossivel para n6s, pois ela requer uma « ciéncia infinita ». '° Em outras palavras : a « verdade » é definida como a adequagao do nosso pensamen- toa realidade, mas nasa é representado quando pensamos em uma causa final absolutamente incondicionada que transcende o dominio dos objetos, nenhuma « realidade » se apresenta a nossa consciéncia, Podemos certamente, no entanto, ter consciéncia de nossas vontades, desejos e paixdes — justamente quando temos consciéncia do objeto desejado, temido, odiado, etc.” Ora, se a vontade é um poder infinito de afirmar e de negar, a tal ponto que, considerando-a « formal e precisa- mente nela mesma», ela no é maior em Deus do que em nés, por que no fundamentar nesse livre-arbitrio absoluto a « ciéncia dos fins » a partir da qual poder-se-ia elaborar leis morais ? Na resposta a essa questao, poderemos, pela primeira vez, comegar a apresentar a interpretacio correta da teoria moral de Descartes. © mundo independe da nossa vontade — esse seré o tema central da ética cartesiana. Do ponto de vista de Deus, nos diz Descartes, compreender, querere criar s80 uma mesma coisa, de modo que, nesse caso, oconhecimento de um objeto inclui em si a determinagio de sua finalidade — mesmo as verdades matematicas dependem do arbitrio divino, e de maneira alguma io impostas a seu intelecto como necessidades.” Isso significa que Deus € ‘um « legislador » da natureza; o intelecto humano, ao contrério, € passivo € sua vontade nao influi na ordem necessaria das coisas. Em outras palavras as idéias, que representam a esséncia das coisas, nos apresentam realidades que néo dependem da nossa vontade. f certo que pelo nosso livre-arbitrio podemos alterar o curso de alguns acontecimentos,” mas, de um modo geral, somente os mossos pensamentos estio inteiramente em nosso poder : a liberdade do homem serve menos para mudar © mundo do que para mudar seus préprios desejos. Como ja vimos, para a teoria cartesiana a instncia de 18. Ver sobre isso as Cartas a Mericnne de 1630, especialmente a de 15 de abril: nds nao ppoemos compreender a grandeza de Deus, ainda que nes a concebamos ». w & "AT, Ix, 29 2 no mamento em que eu quero, que eu temo, {gue ev afirmo ou que eu nego entdo concebo efetivamente una coisa com osujeito da acto ‘eeu esprite, mas stescento também alguma outra coisa por esta aca0 a deta que tenho sdaquela coisa» 20s Quarta Meditacao » — A.T, 1X, 45-45: «€ principalmente ela que me faz conhecer que fs trago a imagem e a semelhanga de Deus » 21 Cf Cartas a Mersenne de L630 22 Cf Tratadn das Panes, 11, Att 145-147 — AT, XI, 437-481 4 Ulysses Pinheiro elaboracio ética € 0 individuo; nesse contexto, isso nao implica apenas a adocao de uma teoria na qual os agentes morais nao sio Vistos essencialmente como membros de uma sociedade relacionando-se intersubjetivamente — mais do que isso, implica também, dada a natureza do intelecto humano, a recusa da possibilidade dos individuos elaborarem leis morais universalmen- te validas, ou seja, regras formais que servissem como critérios para julgar ‘maximas particulares e para determinar desse modo a vontade. Assim como a razao teérica é passiva, quer dizer, é definida como a faculdade de perceber objetos dados, também a « razao pratica » nao pode ser entendida como « legisladora », nem mesmo no caso de um possivel mundo « supra-fisico » instaurado pelos agentes livres como um campo moral das ages humanas. Arazao humana nao « produz » objetos ou leis, mas apenas os percebe. (AO final, como veremos, a moral cartesiana identificard a beatitude a contempla- ‘so, e nao a acées determinadas por leis racionais). Os objetos ow leis nao podem ser a « expressao » da liberdade, pois, ao contrario, a vontade livre dos homens depende desses objetos e leis para poder ser exercida como um ato consciente — em suma, nos diria Descartes, néo podemos conceber uma «pura» vontade anterior (mesmo que apenas logicamente anterior) a objetos dados, ¢ nem um interesse racional que néo pressuponha um interesse passional mais primitivo, determinado, portanto, por objetos particulares dados de antemao. Descartes admite certamente a autonomia da vontade humana : uma vez dados objetos a nossa consciéncia, eles geralmente Provocam afeccdes ou paixdes (associados aos sentimentos de prazer ou de dor); nao podemos sempre evitar sentir essas paixdes, mas podemos deter- minar livremente 0 modo como nos comportamos diante delas, Hé, nesse sentido, um « Eu » transcendente a realidade, aos objetos que esto no mundo, mas cada individuo ¢ capaz.de elaborar apenas méximas subjetiva- mente validas, dependentes do modo como ele recebe e senite os objetos particulares com os quais entra aleatoriamente em contato. Assim como a diivida metafisica nos levou a um « solipsismo metodol6gico », no qual até mesmo a existéncia do mundo era colocada em questao, também no caso das regras préticas somos levados pela filosofia cartesiana a uma espécie de «solipsismo moral » Se essa interpretacao estiver correta, dai se segue que é a terceira maxima, endo a segunda, que define realmente a beatitude e que deve ser o ponto central da moral cartesiana. A terceira regra da moral, como ja vimos, tem 0 seguinte enunciado no Discurso do Método Procurar sempre antes vencer a mim prprio do que & fortuna, ¢ [J antes modificar os meus desejos do que a ordem do mundo, de sorte que, depois de termos feito o melhor possivel no tocante as coisas que nos sio exteriores, tudo em que deixamos de nos sair bem é, em relagio a nds, absolutamente impossivel A Terceira Regra da ‘Moral Proviséria’ 15 Jé na carta a Elisabeth de 4 de agosto de 1645, onde Descartes suposta- mente expée sua « moral definitiva », ele acrescenta se nés fazemos sempre tudo 0 que nos dita a nossa raz, no teremos nunca rnenhum motivo de nos arrependermes, ainda que os acontecimentos nos facam ver, mais tarde, que nds nos enganamos, pois nao foi por nossa culpa, Ao livrarmos essas duas verses da terceira regra das deformagies introduzidas pela interpretacao equivocada da moral cartesiana, percebemios que a moral tem por objetivo conquistar a felicidade; se controlarmos nossos desejos, evitaremos os remorsos e os arrependimentos e nao lamentaremos © nosso destino : tudo © que acontece deve ser visto como necessario, de modo que o que nos falta no é mais sentido como algo que nos era devido. Se 0 contentamento é definido como « a plenitude e a realizagéo » dos « desejos regulados segundo a razao », dai se segue que a felicidade nao depende do « mundo externo » : como nos diz Descartes, um calice pequeno pode estar to cheio quanto um grande, ainda que contenha menos gua. Como se pode perceber, a0 contrario do que afirma J. Laporte, a moral cartesiana deve ser entendida como uma releitura de teses estéicas, princi- palmente das teses de Séneca, ‘Ainda a partir da interpretagio correta da terceira regra, podemos concluir que a moral cartesiana é, em um certo sentido, sempre proviséria. Em primeiro lugar, porque a razdo é vista como um instrumento dependente dos fins estabelecidos pela multiplicidade de desejos, paixdes e « encontros da vida » ‘em confronto com os fins que o proprio individuo racional julga possiveis de serem alcancados seguindo certas técnicas — isto 6, moral ndo lida com fins absolutamente incondicionados, mas antes com circunstaricias imprevisiveis, diante das quais fazemos o « melhor possivel ». Em segundo lugar — e esse € 0 ponto central —, a moral cartesiana é sempre « proviséria » porque, a0 refletir racionalmente sobre os limites da « razdo prética », a consciéncia esses limites gera ela mesma consideragées ¢ posturas éticas a partir da compreensio do carater « provis6rio » e frdgil da natureza humana frente & « ordem do mundo » e a « esta vasta idéia da extensdo do universo ».* Poderiamos dizer que, para Descartes, ndo é possivel elaborar uma « moral racional », mas é possivel um pensamento racional sobre a moral (assim como ha pensamentos claros e distintos sobre o que & obscuro e confuso — por exemplo, sobre as sensagbes). A impossibilidade de uma moral definitiva baseada em leis formais da razdo nao impedira, portanto, um discurso racional sobre a moral — esse discurso é a moral possivel para nés. Ou seja, © fracasso em tentar estabelecer regras racionais universalmente vélidas para 2S Cartaa Elsah de 4 de agosto de 1645, 24 Carta a Elisabeth de 15 de setembro de 16S, 25 CF Priel da Filosofia, 1, Art. 18-147 — AT. Xi 437-48 16 Ulysses Pinkeiro ‘nossas ages nos permitiu, paradoxalmente, descobrir o verdadero significado das reflexdes morais, pois a partir dai pudemos compreender os limites impostes pela situacao ontolégica do homem, colocado « entre 0 ser € 0 nada » : a moral passa a ser definida corretamente como uma reflexao sobre a nossa finitude e imperfeicio, e dai principalmente como uma « meditagio sobre a morte ».* © dominio da verdade, para nés, se restringe a repre- sentagao adequada das coisas que estiio no mundo — mas o mundo inde- pende da nossa vontade, de modo que ao desistirmos de determinar acionalmente 0 que é 0 « Bem », podemos instaurar o verdadeiro dominio da moral : devemos entéo nos acostumar a crer « que nada hé que esteja inteiramente em nosso poder, exceto os nossos pensamentos »27 Sendo assim, é a segunda regra da moral cartesiana que deve ser subme- ‘ida e interpretada a partir da terceira, Dada essa primazia da terceira maxima, percebemos que, ao contrério do que parecia & primeira vista, ndo 14 grandes diferengas entre uma suposta « moral proviséria » e uma outra « definitiva » : uma vez fundamentada a razao pela prova da existéncia de Deus, 0 foco das elaboragdes morais deixa de ser as « opinides dos mais sensatos » para ser 0 prOprio individuo racional (e essa é a conquista da reformulagao da primeira regra); como vimos, porém, é através da conscién- cia dos limites do que pode ser pensado racionalmente, € nao através da produgdo de possiveis « leis racionais », que esse individuo elabora reflexées éticas. Neste ponto, ¢ interessante observar que, na carta a Elisabeth na qual estaria supostamente fundamentando uma moral racional, Descartes nao fala de « regras de uma moral definitiva », mas sim de trés t6picos « relacionados as regras de moral » do Discurso do Método destinados a que cada um fique «contente consigo mesmo », « sem nada esperar » do mundo extemno.”* A 26 Segundo expressio de J. Laporte, op. cit, p. 45, Sobre o homem como melo caminho entre Deus e 0 nada, of « Quarta Meditacio » — A.T, IX, 43, Para o exame de uma solugto bastante semelhante, que parte de uma teoria da representagio realistae chega ao silencio do inexprimivel » na étca como senulo a pripriasolucto pera os « problemas da vida ™, of Wittgenstein, Tractatus Logico-Phlosopheus, especialmente 652 ° = Nos sentimos que ‘mesmo quando fdas as possicts quests Gentifcastenham sido respondidas, os problemas {a vida permanecerio completamente intocados. Certamente nao resta entao nenhumna questo, isso mesmo ¢ a resposta ». Cf th. 6521 Notehols (67-1916). Ver BA. Worthington, Selfconsciousmess und Selfcference — An Interpretation of Witigenstein's ‘Tractaus, Averbury, 1988, p. 32: « .. a vida no presente’ removerd nossa tendencia & levantar quesides metafisias,e este abandono da metafsicae 4 conseqiente restrigho da linguagem a reportar os fates do mundo consttui ele mesmo a soso = 27 Discurso do Método, Parte —A.T, VI, 25 28 Caria Fisalvth de 4 le agosto de 1685. Assim também todos os textos que citamos em favor dda tese de uma « moral defintiva » s20 completados por esealvas que a contrariam — por ‘exemplo, na Caria a Elisabeth de 18 de agosto de 1685, na qual a conguista da felicidad [parece ser considerada um objetivo secundario da moral (« @ mero conecimento do nosso ‘ever poderia nos obrigar a fazer boas acdes »), Descartes logo em seguida nega que simples conscitncia do dever seja suficiente para determinar nossa vontade * @ coatentamento, que € o prazer que acompanhs a consciéncia da virtade, € 0 verdadeino rével de nossas gies, A Terceira Regra da ‘Moral Proviséria’ rT segunda regra da moral, por sua vez, deve ser compreendida como uma espécie de indicagao de como realizar 0 que foi estabelecido pela terceira regra. Essa iltima regta, como vimos, critica a opinido da qual fomos insensivelmente perstadidos —a de que 0 mundo foi feito para nds e todas as coisas nos sao devidas — e nos mostra que apenas controlamos os nessos pensamentos; « mas confesso », diz Descartes, « que é preciso um longo exercicio ¢ uma meditagao amitide reiterada para nos acostumarmos a olhar por este Angulo todas as coisas ».” E neste ponto que & preciso contarmos com uma vontade firme e constante :a realizacio da virtude é justamente es « firmeza da resolugdo » que vence as paixdes € apetites —e mesmo que ma tarde percebamos que escolhemos 0 caminho errado, nao nos lamentaremos continuaremos felizes, pois saberemos que fizemos o melhor que estava a nosso alcance, Dizer que a beatitude ¢ a conscigncia da virtude nao significa evidentemente, nesse contexto, retomar a idéia de uma « lei moral ». O contentamento advém da nossa relagdo correta com as paixdes, de modo que a virtude nao esté ligada a um imperativo moral, e sim a uma sabedoria aplicada a casos particulares. Fssa sabedoria nos ensina que os contentamen- tos que dependem e 05 que nao dependem do corpo tém algo em comum : todos dependem do espirito, pois é esse tiltimo que sente em si as paixSes. Essa dependéncia permite que a virtude se manifeste : seremos virtuosos se tivermos « uma vontade firme e constante de executar tudo 0 que 1158 julgarmos ser o melhor ». (Aqui novamente reencontramos 0 tema da estabilidade e da permanéncia, tao caros & metafisica cartesiana; no contexto da moral, ele ¢ usado para distinguir a verdadeira felicidade das alegrias « passageiras e mediocres », « acompanhadas do riso » e fontes inevitaveis de irresolugdes € de arrependimentos). Portanto, a segunda regra é 0 instrumento que nos permite aplicar a sabedoria conquistada na terceita regra da moral ‘Nao deixa de haver no interior dessa terceira regra, no entanto, uma certa tensfo, resultante da oposigio de duas tendéncias contrérias sempre presen- tes na moral cartesiana. Em uma tese jé classica, Laberthonniére® propunha que essas duas tendéncias correspondem a duas fases da filosofia cartesiana enquanto 0 jovem Descartes veria no ideal técnico de « dominacio da natureza » o meio de alcangar a felicidade, o Descartes maduto teria consta- tado 0 fracasso de suas esperancas iniciais, diante da determinagéo dos limites estreitos da ciéncia humana, e adotado uma posigao mais proxima do estoicismo, Uma boa parte dos comentadores mais recentes da filosofia de Descartes recusam essa tese, mostrando, nos textos, que o ideal de uma « técnica da felicidade » e o ideal estéico sempre conviveram harmoniosa- 28. Discurso do Método — A.T., VI 26 0 Carta tisabeth de 18 de agosto de 1645 — grifo meu. BI. Carta Elisabeth de 6 de outubro de 1645, 32 Etudes sur Deserts, 1, Fd. Vein, Pai, 18 Ulysses Pineiro mente na sua obra." Na verdade, porém, a tese de Laberthonniére em parte correta : hd realmente na moral cartesiana uma oposigao entre duas tendén- cias contrarias; essa oposicao, porém, nao se da entre duas fases de sua obra, ¢ sim ao longo de seus textos, e até mesmo no interior de sua principal maxima. Por um lado, a razo ¢ vista como um instrumento que nos indica « 0 melhor possivel » em nossas ages, de modo a esclarecer 0 nosso livre-arbitrio e a nos permitir tentar mudar o mundo segundo nossa vontade. Por outro lado, essa mesma razio nos revela que 0 mundo independe de nossa vontade, que 0 sucesso de nossas agées livres é muito limitado e que a sabedoria consiste em mudar nossos desejos ao invés de tentar mudar 0 mundo, Essa oposigéo entre uma razo técnica e uma razao pratica nao revela ‘uma contradicao na teoria cartesiana — ao contrério, é através dela que se constitui propriamente o dominio das reflexdes éticas e se determina 0 que € 0 bem (quando aprendemos a limitar nossos desejos), pois ela « nos faz conhecer a condigao de nossa natureza »,* ou seja, permite uma clara consciéncia da situacdo ontolégica do homem no mundo. Finalmente, é preciso notar que o predominio da terceira regra néio nos impede de falar de algo como « deveres > e « erros » morais na filosofia cartesiana. Hé erro quando baseamos nossas decisdes na imaginagao, pois ela nos apresenta freqiientemente bens maiores do que eles sao de fato. Isso nao significa que devamos simplesmente eliminar os prazeres relacionados a0 corpo, pois, ao contrario, nos diz Descartes, as paixdes sto todas boas, e responsdveis pelos melhores momentos de nossa vida. No entanto, porque esses prazeres estdo ligados ao corpo, eles sao justamente apenas « momen- tos », sao passageiros e mudam constantemente, apresentando bens aparen- temente grandes que logo se revelam ilusérios. Se aprendemos a dominar as paixées, mesmo aquelas que nos causam tristezas serdo consideradas boas, Porque nos daréo oportunidade de exercermos nosso dominio sobre nés mesmos. Além disso, aprendemos também com esse dominio quais s40 os verdadeiros bens, os mais sélidos e duraveis, a saber : aqueles ligados & contemplacao intelectual do mundo tal como ele é. Através desses tltimos, realizamos aquilo que nos é mais essencial, a nossa natureza intelectual — enquanto que os prazeres ligados aos sentidos e as « comodidades do corpo » ‘« tocam apenas a superficie da alma », talvez mais agradaveis, mas menos sélidos. Também 6 possivel falar de deveres : 0 homem que aprendeu a dominar suas paixdes sabe que nada Ihe pertence a nao ser a livre disposicio 33 Cf. Alquie, ota 3, p. 579 do volume IT de Descartes — Ocworesphiosophiques, Ed. Garnier, Paris, 1973, e Laporte, op. it, p. 421, nota 4, Em favor da tese de Laberthonniore, of Cal @ CCharut de 15 de junto de 1646: Descartes constata que nao pote desenvalver sma medina satisfatoria a partir da sua fisiea, de modo que, aoinwvés «de encontrar os meios de conservat vida, encontrei um outro, bem mats fil e mais seguro, que é 0 de nao temer a morte 4 Carta Elisaeth de 4 de agosto de 1645. 5 Cf. Tata das Paves, Art. 207 €212— A. T. XI, 483 48; Cuias a Elisabeth de6 de outubro fede 1° de setembro de 1645. A Terceira Regra da ‘Moral Proviséria’ 19 de suas vontades, e que é pelas suas intengdes que ele deve ser julgado. Isso © leva a virtude da generosidade : ao invés de condenar, ele tende a ser benevolente com os outros homens — « os mais generosos tém 0 costume de ser os mais humildes ».™ Tanto os erros quanto os deveres nao decorrem, como jé vimos, de leis morais estabelecidas racionalmente; no entanto, seria um equivoco relacio- né-los apenas a regras de prudéncia ou entdo identificar a procura do que é «0 melhor » com o « mais titil ». Ao invés de falarmos de « erros » € « deveres », seria talvez mais correto falarmos de caracteristicas decorrentes da situacdo ontolégica do homem no mundo. A « reflexdo que fazemos sobre a fragilidade da nossa natureza »,”” sobre a nossa finitude e sobre « o tempo que vivemos » em comparagio & eternidade™ nos conduz a um certo estado enos dispée « naturalmente » a ages virtuosas. Essa reflexo ética, longe de se confundir com uma psico-fisiologia das paixdes, na verdade a fundamenta e nos constitui como agentes morais. Poder-se-ia, no entanto, imaginar uma nova objec3o contra a nossa interpretagao da moral cartesiana. Segundo essa objecao, nao seria razodvel recusar a possibilidade de se elaborarem leis morais devido & propria natureza das investigacdes filoséficas sobre nossas acées e deveres. Se a filosofia moral € definida como uma discussao racional sobre nossas ages, entio ela deveria necessariamente apresentar os fundamentos das méximas que regulam essas ages, isto é, ela deveria elaborar principios formais — que seriam por isso universais — capazes de justificar a adogao de maximas particulares, No caso das trés maximas da moral de Descartes, também elas deveriam ser legitimadas racionalmente, e, portanto, seria contraditério propor que a sua interpretacao correta se baseie na recusa de « leis praticas » universalmente validas. Essa critica, porém, pode ser refutada. De fato, se ela fosse vélida, deveriamos também aceitar conclusdes estranhas, como por exemplo : admitir que tampouco seria possivel elaborar racionalmente uma dtivida cética sobre a raz40 — ora, se nés distinguirmos dois dominios da razio, a saber, se distinguirmos aquilo que usamos na formulagio da duivida (por exemplo, sobre a capacidade da razdo representar adequadamente a esséncia das coisas que est4o no mundo), entdo essa distingao tornaré a duvida cética inteiramente plausivel (embora ela possa ser eventualmente recusada por outros motives). Voltando as trés maximas da teoria moral de Descartes, é preciso fazer uma distingao semelhante : nao se trata ai de fundamentar racionalmente quais so as relagdes entre maximas particu- lares e prineipios universais que as legitimariam, mas antes de esclarecer as relacbes entre as maximas e certas consideragées epistemolégicas sobre 36 Tratado das Pixies, Art, 153155 — AT, XI, M5447 13 em ide. 138 Carta Elisabeth de 15 de setembro de 1645. 20 Ulysses Pinheiro © proprio estatuto cognitive das proposigdes éticas. As maximas seriam entao fruto dessas consideragdes sobre os limites da « razao pratica », ou seja, terfamos de lidar, em um primeiro nivel, com proposigées éticas nao-universalizaveis em termos de « leis » e « deveres », geradas a partir de um segundo nivel, composto por um metadiscurso racional sobre esas proposicdes éticas. No entanto, ao estabelecerem para a moral um dominio de valores radicalmente subjetivos, as restrigBes que a « epistemologia da ética » impoe as méximas da moral nao impedem que essas iiltimas enunciem caracteristicas gerais decorrentes desse subjetivismo radical — assim como um cético pode enunciar conclusées gerais sobre, por exemplo, as « representacdes subjetivas » a partir dos paradoxos propostos. Em. suma, é justamente ao refletirmos sobre a impossibilidade de se elabora- rem leis morais universalmente vilidas que, paradoxalmente, « justifica- mos » as maximas da moral cartesiana — no através da elaboragio de novos principios racionais, mas sim através da consciéncia de que a auséncia de resposta é, nesse dominio, a propria solugao do problema. Ainda que se insistisse em associar essa « justificagdo » a novos « princi ios universais », esses Ultimos teriam agora um sentido bem peculiar nao estarfamos mais lidando com a legitimacao de maximas particulares através de critérios universais, mas sim com a descrigéo de maximas que exprimiriam caracteristicas gerais comuns a todos aqueles que refletem corretamente sobre os limites da nossa razao. « Bu tenho o costume de recusar escrever meus pensamentos relativos & moral », diz Descartes em uma carta a Chanut.” Ele da duas razées para esse seu comportamento : a primeira parece ser uma regra de prudéncia —a moral é a melhor matéria para os caluniadores, e suas obras cientificas filos6ficas jé haviam despertado polémicas suficientes para alerta-lo para esse perigo; a segunda razio é mais interessante : cabe apenas aos soberanos, diz ele, regular os costumes dos outros, Nesse momento Descartes esta evidentemente se referindo & conclusio de suas investiga- ses sobre o estatuto das proposigdes éticas, segundo as quais a filosofia nao pode nunca pretender estabelecer « leis morais »; 0 homem esta essencialmente limitado por suas circunstancias sociais e afetivas, de modo que ele nao pode ver o horizonte dltimo do Bem supremo, A tarefa da filosofia, portanto, nao deve ser a de fundamentar leis de uma moral universal, mas deve se limitar a uma « descrigdo » de nossa situagio no mundo e a um esclarecimento dos conceitos centrais da moral, deixando a0 livre-arbitrio de cada individuo a determinagao do que é « 0 melhor 38. 20 de novembro de 1647 A Terceira Regra da ‘Moral Provisoria a possivel », Devido a sua situagao ontolégica, o homem, colocado entre o Ser ¢ 0 nada, aspira necessariamente a principios transcendentes, se dirige a0 ser para superar o nada (0 que, na filosofia moral de Descartes, se exprime como a esperanga de uma revelagao mistica). As exigéncias da vida prética, porém, n4o nos permitem aguardar a conquista improvavel desses principios, e exigem decisoes, mesmo que sejam « provisérias ». Na auséncia de fundamentos s6lidos e seguros para a conduta de nossa vida, devemos aprender a dominar nosso inevitavel desejo de alcancar principios transcendentes, a adiar para um futuro improvavel 0 conheci- mento do Bem supremo, e nos acostumarmos a ver em uma « moral proviséria » a sinica alternativa compativel com a finitude da condigto humana.

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