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Teologia da glória em Spinoza e Leibniz

Ulysses Pinheiro
UFRJ/CNPq1
ulyssespinheiro@gmail.com

“De affectibus equidem multa dicit egregia”2.

Introdução
A onipresença do tradicional tema teológico da glória de Deus na obra de Leibniz
não poderia deixar de manifestar as tensões e os impasses que marcaram suas divergências
com Spinoza, dada a importância central que o mesmo tema apresenta na filosofia desse
último, especialmente na Ética. Que essa seja uma matéria particularmente sensível no que
diz respeito às modulações, por vezes sutis, através das quais Leibniz tentou marcar seu
afastamento do spinozismo fica claro quando se constata que, para além de uma discussão
puramente teológica, a especificação do significado da glória divina permite a ambos os
filósofos articular compreensões distintas – e, em grande medida, incompatíveis – da
potência humana de agir. Além disso, é preciso recordar que, como mostrou Georges
Friedmann, é principalmente em torno da teoria spinozana da ação e da paixão que
podemos situar as principais influências de Spinoza sobre Leibniz3, o que explica por que
é precisamente em torno desse tópico que esse último tentará demarcar de forma precisa as
fronteiras que separam seu pensamento daquele que é, simultaneamente, seu rival e seu
antecessor. Lembremos também, finalmente, que, dentre as “paixões da alma” listadas nos
diversos tratados do século XVII dedicados às paixões4, a paixão da glória figura com
destaque, de tal modo que os traços e vestígios que o spinozismo deixou no pensamento de

1
O presente texto foi escrito graças ao auxílio da Bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq.
2
Leibniz, carta a Placcius, 14 de fevereiro de 1678 (AA II, 1, p. 593), na qual comenta a então recém-
publicada obra póstuma de Spinoza.
3
Em particular, na caracterização das paixões pela presença, na mente passional, de ideias inadequadas,
obscuras e confusas e na caracterização das ações pela presença, na mente ativa, de ideias adequadas, claras
e distintas. Cf. Georges Friedmann, Leibniz et Spinoza. Paris: Éditions Gallimard, 1962, pp. 292-293. É sobre
essa herança spinozana que Leibniz escreve a Justel, também em fevereiro de 1678, logo após sua primeira
leitura da Ética, informando-lhe que há, nessa obra, “grande quantidade de belos pensamentos conformes aos
meus, como o sabem alguns de meus amigos que também o foram de Spinoza” ((AA II, 1, p. 592).
4
Descartes é um exemplo paradigmático desse estilo de tratado. Cf. Les passions de l’âme, Art. 204 (“De la
Gloire”), AT XI, 482.
2

Leibniz são particularmente visíveis nesse tópico. Como um corpo estranho introduzido
em um organismo filosófico distinto daquele em que originalmente foi formado, o conceito
spinozano de glória divina provocará reações no novo ambiente, mobilizando as defesas
do sistema leibniziano contra o contágio de doutrinas ímpias. Resta avaliar até que ponto
o órgão transplantado foi efetivamente absorvido pelo paciente (recordemos que Leibniz
compara o “spinozismo” a uma doença da qual foi curado a tempo5).
Justamente porque o tema da glória divina tem relações estreitas com o conceito de
ação humana – a mais imediata delas sendo a ação de prestar glória a Deus –, a investigação
subsequente deverá caracterizar o conceito de ação voluntária formulado por Leibniz, pelo
qual esse último recorrentemente tentou evitar o abismo spinozista que sua teoria sempre
margeou. Veremos, nesse percurso, que as soluções propostas por Leibniz para conciliar
liberdade e determinismo o comprometem com uma compreensão da potência como
máxima interiorização em si e, simultaneamente, como exteriorização de si no mundo
fenomênico, sendo o exercício virtuoso das ações externas as que propriamente
manifestam, no tempo e no espaço, a glória de Deus. Antes disso, porém, será preciso nos
deter brevemente diante da concepção spinozana de ação virtuosa, na medida mesmo em
que ela informará a teoria de Leibniz. Avistaremos então, nesse interregno, de que forma
o “necessitarismo” spinozano, ao eliminar do conceito de atividade humana a noção de “ser
em potência” aristotélico, mantida (embora de forma modificada) por Leibniz, adota uma
noção de potência que, embora implique a exteriorização de si no mundo, não o faz sem
uma diferença essencial com relação à compreensão leibniziana (a qual formula, veremos,
o que se tornou a “imagem tradicional de ação” na modernidade), a saber: há, nessa noção
spinozana de potência, uma (re)interiorização da exterioridade que se segue à
exteriorização da interioridade, promovida graças à compreensão da relação de imanência
que liga os homens à glória de Deus. Avançando em nosso caminho, porém, veremos que,
ainda que a teoria leibniziana esteja mais próxima da acima referida imagem tradicional da
ação humana, sua reinterpretação peculiar da concepção aristotélica do “ser em potência”

5
No início dos Novos ensaios sobre o entendimento humano, Leibniz/Teófilo expõe para Filaleto uma breve
autobiografia intelectual; a certo passo, ele afirma: “Vós sabeis que eu fui um pouco longe outrora e que eu
comecei a pender para o lado dos spinozistas [....] mas estas novas luzes me curaram dele”; logo a seguir,
referindo-se à leitura recente que fez de Locke, Teófilo retoma a mesma expressão que Leibniz utilizara para
caracterizar sua experiência da primeira leitura da Ética, em 1678: “eu li o livro desse célebre Inglês, do qual
acabais de falar. Eu o estimo muito, e encontrei aí belas coisas” (GP V, p. 65).
3

contém também elementos críticos a essa mesma imagem tradicional, especialmente ao


tematizar a presença do infinito no finito de modo distinto do que faz a tese spinozana da
imanência.
Em seu livro O reino e a glória, Giorgio Agamben distingue nitidamente as
posições de Leibniz e de Spinoza sobre o tema da glória de Deus: ambos, fazendo
igualmente parte da elaboração da teoria da glória no período barroco6 (a qual, ainda
segundo Agamben, implicaria uma certa “inoperosidade” interna que afasta o homem de
si mesmo no momento mesmo em que age), responderiam, no entanto, de maneira
inteiramente diferente a suas exigências. Assim, enquanto Leibniz pretenderia eliminar a
indeterminação essencial da inoperosidade através de uma certa modulação do conceito de
vontade, o qual opera a passagem da potência ao ato, Spinoza estaria instalado no interior
mesmo da teologia do kabod hebraico e da doxa cristã, mantendo a conexão sabática entre
glória e inoperosidade (ou, no vocabulário spinozano, glória e aquiescência7). Ao final de
nosso percurso, poderemos suspeitar, no entanto, que essa oposição entre Leibniz e Spinoza
é menos nítida do que quer Agamben.

Spinoza e a (re)interiorização da exterioridade


A elucidação da teologia da glória de Spinoza nos ocupará primeiramente: trata-se
de mostrar como a glória corresponde à “definição genética”8 da beatitude. De fato, a glória
é um dos afetos mais importantes no contexto da investigação do “amor intelectual de
Deus” conduzida por Spinoza na Parte V da Ética; o Escólio da Proposição 36 exprime a
conclusão desse exame:
Nós compreendemos claramente daí em que consiste nossa salvação, ou
beatitude, ou Liberdade, a saber, em um Amor constante e eterno por Deus

6
Giorgio Agamben, Il regno e la gloria. Por uma genealogia teologica dell’economia e del governo. Homo
sacer, II, 2. Vicenza: Neri Pozza Editore, 2007. Seria possível talvez entender a participação de Leibniz e de
Spinoza na história da teologia no século XVII como uma reação ao luteranismo paulino através do
“evangelho da glória” de João – ou seja, através da valorização deste mundo visível como matriz de
inteligibilidade da salvação. Nesse sentido, o determinismo spinozano e leibniziano situa-se nas antípodas da
predeterminação da graça defendida por Lutero, na medida em que essa última rejeita a salvação pelas obras,
em nome da salvação pela fé. O que permite que essas duas formas de determinismo antiluterano se distingam
é, veremos adiante, justamente a compreensão distinta que cada um deles tem da glória de Deus. Para a
aproximação da filosofia de Leibniz ao estilo barroco, ver Gilles Deleuze, Le pli. Leibniz et le barroque.
Paris: Les Éditions de Minuit, 1988.
7
Deve-se notar a vizinhança entre a noção de contentamento consigo mesmo [acquiescentia in se ipso] e o
quietismo místico, veemente criticado por Leibniz (cf. Discurso de metafísica, § 4 (AA IV, 4, p. 1535)).
8
Entendendo essa expressão a partir de sua elucidação no Tratado da emenda do intelecto (G IV, 78).
4

[constanti, & æterno erga Deum Amore], ou seja [sive], no Amor de Deus pelos
homens [Amore Dei erga homines]. E é esse Amor ou beatitude que se chama
Glória nos livros sagrados [in Sacris codicibus], e não sem razão9.

A dialética que começa na Proposição 19 da mesma Parte V (“Quem ama a Deus não pode
se esforçar para que Deus o ame em retorno”) termina aqui pela sua aparente negação, com
a identificação entre o amor dos homens por Deus e o amor de Deus pelos homens. Ora, a
exigência de reciprocidade no interior da relação entre o homem e Deus introduz, no
sistema spinozano, não apenas a manifesta contradição assinalada acima, mas também o
perigo do antropocentrismo, arduamente combatido no Apêndice da Parte I da Ética. A
Proposição 19 criticou a busca da reciprocidade baseada na impessoalidade de Deus;
reintroduzir a primeira propriedade parece implicar a reintrodução da outra. De fato, só um
Deus pessoal parece poder retribuir o amor que lhe dirigem os homens. Muitos
comentadores perceberam essa ameaça, o que os conduziu a propor interpretações diversas
para conjurá-las. Assim, contra a afirmação de Spinoza presente no Escólio da Proposição
36, segundo a qual não há verdadeiramente diferença entre contentamento consigo mesmo
e glória, Alexandre Matheron pondera que, infelizmente, o próprio Spinoza já se
encarregara anteriormente de afirmar tal diferença: como a glória é uma modalização do
amor-próprio, o estado de alma que lhe corresponde é aquele no qual nos comprazemos
com a alegria de outrem, o que é obviamente distinto da relação interna de contentamento
consigo mesmo10. Para eliminar essa dificuldade, Matheron propõe uma interpretação da
exigência de reciprocidade impessoal a partir da identificação afetiva entre duas mentes
finitas: X considerado como amado e Y considerado como amante. Tendo um só e mesmo
objeto (o objeto composto XY), na medida em que se compreendem mutuamente pela
mediação da ideia de Deus, elas se tornam uma só e mesma alma, de tal maneira que a
relação exterior entre elas se internaliza11. Sendo assim, o perigo do antropocentrismo é

9
Doravante, as passagens da Ética serão referidas por abreviações, seguindo o modelo do seguinte exemplo:
E5p36 (Ética, Parte 5, Proposição 36, Escólio); E1d1 (Ética, Parte 1, Definição 1). Para as outras obras de
Spinoza, damos a referência à edição de Carl Gebhardt (Spinoza Opera, 4 volumes. Heildelberg: Carl
Winters, 1925), sob a forma G, número do volume em numerais romanos e número da página em numerais
arábicos.
10
Alexandre Matheron, Individu et communauté chez Spinoza. Paris: Las Éditions de Minuit, 1988, p. 597.
11
Matheron reenvia o leitor à Carta 17 a Pieter Balling (G IV, 77), na qual Spinoza escreve que o amor de
um pai por seu filho pode fazer que os dois sejam um só e mesmo ente, devido à “participação” do primeiro
5

anulado graças à recondução do tema da glória ao nível das relações interpessoais, ainda
que mediadas pela ideia de Deus.
De uma certa maneira, a interpretação que Pierre-François Moreau propõe para essa
passagem situa-se nas antípodas da de Matheron12: ele permanece mais fiel ao texto de
Spinoza, reduzindo a glória à aquiescência ou contentamento consigo mesmo, sem nenhum
acréscimo especulativo. Podemos nos esquivar tanto da aparente contradição entre E5p19
e E5p36 quanto do perigo do antropomorfismo, segundo Moreau, graças à compreensão
do que foi recusado ao se recusar a reciprocidade expressa por E5p19, a saber, “o esforço
e a exigência; essas figuras da distância estão ausentes da reciprocidade do terceiro
gênero”13. A partir de uma “experiência opaca” da presença da eternidade na finitude e do
amor intelectual no amor pelos objetos finitos, nos diz Moreau, é preciso distinguir o amor
erga Deum (E5p19) e o amor das coisas finitas, por um lado, e o amor intellectualis Dei
(E5p36), por outro. Esse último é o único que permite uma completa redução da
reciprocidade externa entre as coisas finitas à identidade entre o ser finito e o ser infinito
– mas ele só consegue fazê-lo na medida em que, desde o começo, uma tal identidade
estava desde sempre pressuposta. Lendo o Corolário da Proposição 36 como o enunciado
que deve ser explicado no Escólio, Moreau pode tomá-lo literalmente como expressão
dessa identidade primitiva: “o amor de Deus pelos homens [amor Dei erga homines] e o
Amor intelectual da mente por Deus [Mentis erga Deum Amor intellectualis] é uma só e
mesma coisa [unum, & idem sit]”14.
Seria preciso examinar outros comentários de E5p36, especificamente em torno do
tema da glória, de modo a fazer um recenseamento completo do papel que ele desempenha
na Parte V da Ética15, mas os dois exemplos examinados acima são suficientes para

na “essência ideal” do segundo (Matheron, op. cit., p. 599). A relação entre Fílon e Sofia nos Diálogos de
Amor de Leão Hebreu (Leon Abravanel), livro que fazia parte da biblioteca de Spinoza em uma tradução
para o espanhol – bem como da de vários outros leitores do século XVII – pode, em certo sentido, ser
interpretada à luz da hipótese especulativa de Matheron.
12
Cf. Pierre-François Moreau, “Métaphysique de la gloire”. In: Revue philosophique de la France et de
l’étranger. No 1 – Janvier-Mars 1994. Paris: PUF, pp. 55-64.
13
Moreau, op. cit., p. 61; grifo meu. De fato, E5p19 diz: “Quem ama a Deus não pode esforçar-se para que
Deus também o ame”.
14
E5p36c. Sobre essa identidade, ver a fórmula de E2p7 para exprimir a identidade da ordem das ideias e
da ordem das coisas.
15
Destacamos dois dos mais importantes: Pierre Macherey, Introduction à l’Éthique de Spinoza. La
cinquième partie. Les voies de la libération. Paris: PUF, 1994 e Hasana Sharp, “From Interpersonal
6

estabelecer os limites entre os quais variam as interpretações disponíveis: quer tomemos a


“glória racional” como pura relação a si mesmo e, portanto, como sendo virtualmente
idêntica ao contentamento consigo mesmo (Moreau), quer a tomemos como relação com
outros modos finitos (Matheron), é a partir de uma escolha entre esses dois polos
supostamente incompatíveis da interioridade e da exterioridade que se pode distribuir os
comentários dessa passagem difícil do texto de Spinoza16. Em outras palavras, a maior
parte das interpretações divide os dados do problema da glória em dois modelos
mutuamente exclusivos: ou bem haveria, na participação dos homens na glória de Deus,
uma relação interior de contentamento consigo mesmo, que coincidiria com a relação
(“interna”, imanente) entre o finito e o infinito, ou bem haveria relações exteriores de
reconhecimento interpessoal entre modos finitos. O que não parece ser concebível é a ideia
de um Deus impessoal que estabeleceria, entretanto, uma relação de reconhecimento com
os homens17. E, no entanto, é exatamente isso o que Spinoza parece sugerir em E5p36. Isso
parece implicar que haveria uma relação que é, ao mesmo tempo, interna e externa. Nossa
hipótese é, ao contrário da maioria dos comentadores, que a relação entre os modos finitos
e a substância infinita, sendo, simultaneamente, uma relação de imanência e uma relação
entre essências absolutamente incomensuráveis, pode fornecer um sentido preciso para o
fenômeno aparentemente contraditório de uma relação a si que é também uma relação com
uma alteridade absoluta. Isso nos permitiria, além disso, dar um sentido ao aparente
oxímoro de uma relação de reconhecimento impessoal.
A ligação entre “contentamento consigo mesmo” e “glória”, principal tema do
Escólio de E5p36, tem sua primeira formulação no Escólio de E4p52. Nessa última, lemos
que o contentamento consigo mesmo é “o que podemos esperar de mais elevado” em nossa
vida, na medida em que ela elimina as ilusões finalistas, instalando-nos em um
contentamento pleno com nossa existência tal qual ela é. Lemos aí também que, se o
aumento do contentamento de si é “alimentado e fortificado” [fovetur, & corroboratur]

Recognition to Impersonal Glory”, in: Spinoza and the Politics of Renaturalization. Chicago & London: The
University of Chicago Press, 2011, pp. 139-148.
16
O que nos remete a uma antiga tradição teológica; sobre a incompatibilidade entre “glória” e
“contentamento interior” formulada não pela teologia, mas pela filosofia, cf. Descartes, Les passions de
l’âme, Art. 204.
17
Sharp dá uma formulação exemplar da pretensa natureza inconcebível de tal ideia: “O amor intelectual de
Deus não se segue de uma correspondência mutuamente satisfatória de representações entre dois seres
estruturalmente idênticos; ela não é uma relação de reconhecimento” (Sharp, op. cit., p. 147).
7

pelos elogios, então “é a glória, sobretudo [maxime], que nos conduz”. Daí se compreende
que, a beatitude sendo um maximum de contentamento consigo mesmo, a glória é o
operador conceitual que nos permite expor a gênese da beatitude, isto é, do amor
intelectual, sua essência produtiva (“actuosa”)18 – ela é, em suma, o elemento central de
sua “definição genética”.
Como se pode construir a definição do amor intelectual de Deus – isto é, da
beatitude e da salvação – a partir da glória? Sabemos que, para Spinoza, o contentamento
consigo mesmo é definido como “uma alegria que nasce do fato de que um homem
contempla a si mesmo, bem como sua potência de agir”19; por outro lado, como vimos, a
glória é, ela também, uma alegria – mas uma alegria de um tipo distinto daquele envolvido
no contentamento consigo mesmo; ela é uma alegria que “alimenta e fortifica” o
autocontentamento, na medida em que a contemplação de si mesmo é deslocada para o
ponto de vista de um outro ente, o qual “imaginamos” (ou, no caso da Parte V, “intuímos”)
louvar “uma de nossas ações”. É precisamente essa “duplicação” da contemplação de si, a
qual passa de uma pura interioridade à exterioridade envolvida no louvor, que explica o
amor intelectual de Deus: diferentemente do puro contentamento consigo mesmo, o amor
intelectual de Deus pelos homens exprime a causa última da alegria ativa característica da
beatitude. A relação consigo mesmo se transforma, nesse momento, em uma relação de
exterioridade a si mesmo, a qual, em um movimento complexo, se interioriza novamente,
na medida em que o amor de Deus pelos homens deve ser representado intuitivamente
pelos próprios homens, objetos desse amor, desde que concebidos como modificações
imanentes de Deus, a fim de se tornar a fonte permanente de alegria. Há, pois, uma dupla
relação reflexiva na elaboração da salvação: uma contemplação “interna” de si mesmo,
reduplicada na interiorização da contemplação “externa” de si por Deus.
Mas é correto afirmar que a glória promove uma exteriorização da relação a si? Em
qual sentido isso pode ser correto, dado que Deus e os modos finitos não são seres
realmente distintos, mas antes um só e mesmo ser? Para eliminar esse problema, deve-se
simplesmente lembrar de que a relação de imanência mantém a diferença entre a essência

18
E2p3e.
19
E4 Def. des Aff. XXV.
8

de Deus e a essência dos modos20. A distância que separa a essência absolutamente infinita
de Deus e a essência dos seres finitos é precisamente o que impede que a “má
exterioridade” da imaginação produza os mecanismos de identificação alienantes com o
desejo do outro. É nesse sentido que se deve compreender a exterioridade verdadeira
envolvida na glória intelectual.
Para descrever esse fenômeno sem cair na armadilha do antropomorfismo, é
necessário compreender o sentido preciso desse “louvor divino” ou “jubilação universal”,
empregando uma expressão de Pierre Macherey21. O núcleo da descrição de uma tal “glória
impessoal” é a equivalência entre a essência atual de uma coisa e o valor que ela exprime:
algo é “bom” pelo simples fato de que existe, e não o contrário – eis aqui mais um índice
da separação radical entre spinozismo e leibnizianismo –; uma coisa é julgada ser “melhor”
do que outra se a primeira é representada como existindo necessariamente, enquanto a
segunda é representada como existindo de forma apenas contingente (outra separação entre
Spinoza e Leibniz, na medida em que o último supõe que a escolha entre alternativas
contingentes define o conceito mesmo de bondade).
Quer a equivalência entre a essência atual de uma coisa e o valor que ela exprime
tenha relação com os seres finitos22, quer ela se relacione a Deus23, nos dois casos é o
conhecimento da necessidade do ser que explica o valor que se lhe atribui, e não o inverso.
Ora, a glória é precisamente o ultrapassamento do caráter “solipsista” do contentamento
consigo mesmo em direção à objetividade do valor do ser necessário enquanto tal – isto é,
ela é o afeto envolvido na compreensão singular (intuitiva) de nossa imanência no ser
necessário de Deus. A conjunção entre ser e valor, anunciada na Definição 6 da Parte II
nos seguintes termos: “Por realidade e perfeição entendo o mesmo”, é finalmente explicada
apenas na Proposição 11 da Parte IV, onde se estabelece uma proporção entre modalidades
aléticas e afetivas através da demonstração de que um afeto para com uma coisa que
imaginamos como necessária “é mais intenso (sendo iguais as outras condições) do que

20
Cf. E1p17s (“se à essência de Deus pertencem intelecto e vontade, deve-se certamente entender por um e
pelo outro atributo uma coisa inteiramente distinta do que aquilo que os homens, habitualmente, entendem
vulgarmente por isso [....] e não poderiam ter outra conveniência entre eles que de nome”).
21
Macherey, op. cit., p. 166.
22
Cf. E3p9e: “não nos esforçamos, queremos, apetecemos, nem desejamos nada porque o julgamos bom; ao
contrário, julgamos que algo é bom porque nos esforçamos por ele, o queremos, apetecemos e desejamos”.
23
E1p34: “...a potência de Deus, pela qual ele próprio e todas as coisas são e agem, é sua própria essência”.
9

para com uma coisa possível ou contingente, ou seja, não necessária”. Na verdade, essa
explicação só será completada na Parte V da Ética, quando a Definição 6 da Parte II for
utilizada na demonstração de que Deus se ama a si mesmo por um amor intelectual infinito,
a saber: porque “Deus é absolutamente infinito (pela Definição 6 da Parte 1), isto é (pela
Definição 6 da Parte 2), a natureza de Deus frui de uma perfeição infinita” (E5p35). Nas
gradações de intensidade dos afetos relativamente às modalidades aléticas, expostas entre
E4p9 e E4p13, o mais baixo grau de intensidade corresponde às coisas concebidas como
futuras contingentes; a indiferença face ao valor de uma coisa ou de um evento é, pois,
ligada à sua representação como contingente. Em outras palavras, o contingente, sendo
aquilo que pode acontecer ou não acontecer, (quase24) se reduz a um fato “neutro”; ao
contrário, o que não pode não acontecer tem, por isso mesmo, valor. Nesse sentido, poder-
se-á compreender o que significa afirmar que um Deus impessoal nos louva – e louva
igualmente todos os outros seres singulares: a compreensão25 do ser necessário de Deus
não se distingue da fruição do valor em si desse ser.

Leibniz e as “fulgurações contínuas da Divindade”26


Passemos à elucidação das tensões presentes na teologia da glória de Leibniz. Trata-
se agora de mostrar como a análise infinita pretende, ao mesmo tempo, i- explicar, através
do conceito de determinação da vontade, a contingência do mundo e das ações humanas
manifestadas fenomenicamente em seu interior, o que é também a manifestação mundana
da glória de Deus e ii- explicar a necessidade do mundo e das ações humanas através da
crescente indeterminação de todos os valores envolvidos no exercício da vontade, na
medida em que esses são conduzidos pelo movimento infinito de aproximação da perfeição
de todas as coisas em direção à glória de Deus. Esses dois vetores opostos não são nunca
reunificados em uma direção única no pensamento leibniziano, mas, por isso mesmo, a
irresolução de tal conflito mostra as dificuldades de Leibniz para se distanciar do
spinozismo que tanto o influenciou – malgré lui.

24
Nenhuma ideia pode ser, a rigor, “neutra” do ponto de vista afetivo/volitivo. Cf. E2p49.
25
Poder-se-ia derivar daí uma explicação de por que, para Spinoza, só os seres racionais podem ser salvos:
é preciso representar intelectualmente a necessidade da existência de Deus e a imanência dos seres singulares
em Deus para que o afeto da glória seja produzido. Mas seria igualmente preciso investigar em que medida
seres irracionais podem fruir da perfeição de Deus por meio da imaginação.
26
Essa fórmula encontra-se, como se sabe, no § 47 da Monadologia.
10

O conceito leibniziano de “mundo fenomênico”, compreendido como expressão


necessária da interioridade monádica, afasta-se da crença usual segundo a qual, no
universo, os objetos ligam-se uns aos outros através de relações causais. Ao invés disso, o
que Leibniz nos oferece à vista é um universo cujo princípio de unidade é, por assim dizer,
semântico e hermenêutico, propriedades essas que são particularmente relevantes para a
compreensão do tema da glória divina e de suas consequências para a teoria leibniziana da
ação. Através dessa “concepção semântica do mundo”, Leibniz promove uma inversão
notável no cerne mesmo da expressão do “ponto de vista” monádico: remetendo todos os
signos à interioridade do “eu”, que sintetiza a multiplicidade na unidade de uma perspectiva
singular, a interpretação27 que cada mônada faz do mundo “externo” a partir da ligação de
suas várias afecções não visa apenas, no entanto, ao esforço de transformação que
corresponderia a uma espécie de “trabalho sobre si” ou de conversão28, mas equivale, antes,
a um devir interno em que o que está “fora” aparece como limite – ou seja, propriamente,
como definição – do “eu”. É assim que, nos Novos ensaios, o cogito cartesiano tem sua
formulação alterada de “penso, logo existo” para “eu tenho diferentes pensamentos”29. Essa
dimensão hermenêutico-existencial, segundo a qual a máxima interioridade coincide com
a máxima exterioridade, não deve, no entanto, ser confundida com um mero apagamento
de si no mundo ou em Deus, à maneira do quietismo místico; ao contrário, é preciso levar
a sério os dois lados da identidade proposta entre interno e externo, de tal modo que a
atividade interpretativa do sujeito, que tem por princípio explicativo a unidade interna do
“eu”, se exprima necessariamente como ação individual no mundo. Participar da glória de
Deus não significa nada além do que preferir o bem comum ao seu interesse particular –
mas a “renúncia de si”, nesse caso, não tem nada a ver com a contemplação quietista, e
sim, ao contrário, com o engajamento em ações no mundo30.
O aspecto hermenêutico da concepção leibniziana de mundo permite-lhe
estabelecer o sentido preciso das relações entre “microcosmo” interior e expressão

27
Como se sabe, as mônadas, segundo Leibniz, são as causas de suas percepções, o que reintroduz o
vocabulário causal no registro da interioridade monádica. No entanto, como não há relações causais entre as
mônadas, todas as operações das mônadas no mundo são redutíveis a atos de interpretação do mundo.
28
Essa “transformação de si” puramente interiorizada é o que qualifica propriamente o luteranismo.
29
Novos ensaios, Livro IV, cap. 2 (G V, 348).
30
Cf. Carta a Morell de 29 de setembro de 1698 (GRUA, p. 137) e Carta a Hansch de 25 de julho de 1707
(DUTENS, II, pp. 222-225).
11

fenomênica exteriorizada. Por um lado, a importância atribuída ao processo de


interiorização – de observação de si, poderíamos dizer – aproxima a filosofia de Leibniz
da experiência de místicos como Santa Teresa d’Ávila: quando essa última propõe que a
alma imagine que existem apenas Deus e ela mesma no mundo, como escreve Leibniz a
Morell, tal pensamento “dá lugar a uma reflexão que merece atenção mesmo em filosofia”,
acrescentando: “fiz bom uso dela em uma de minhas hipóteses”31. A “hipótese”, exposta
no § 14 do Discurso de metafísica, é, significativamente, não a do solipsismo, mas, ao
contrário, a da absoluta independência ontológica de cada substância criada em relação a
todas as demais substâncias criadas – hipótese essa que está na base de sua teoria da
expressão, ou seja, da relação ideal de todas as substâncias entre si (o oposto do solipsismo,
pois). A imagem relatada por Santa Teresa nos dá a ocasião de refletir sobre a absoluta
espontaneidade das substâncias individuais, permitindo-nos concluir que tudo o que lhe
acontece é um efeito de sua atividade interna – ou seja, que nada, exceto Deus, entretém
com ela relações causais. Todas as suas ações e paixões são decorrentes de sua essência
(uma outra forma de exprimir essa mesma ideia é dizer que todas as modificações de uma
substância são suas ações: o que chamamos de “paixões” são apenas ações cujo princípio
explicativo não pode ser dado inteiramente pelo agente em questão). Por outro lado, porque
essa atividade interna é caracterizada como a ação de organizar o múltiplo de afecções
segundo o princípio hermenêutico dado por sua essência singular e porque o mundo
fenomênico se reduz ao conjunto das afecções da totalidade infinita das mônadas, tal
atividade interna implica a exteriorização de ações no mundo espaço-temporal32. Ora, tais
ações externas, descritas de um ponto de vista metafisicamente rigoroso, não são nada além
do que assimilações e rejeições parciais de pontos de vista diferentes. (Para Leibniz, como
se sabe, podemos descrever “fenomenologicamente” as ações no mundo como se fossem
interações reais (causais) entre substâncias – esse é, de fato, o vocabulário adotado pelas
ciências empíricas, tal como a física. De um ponto de vista metafísico, porém, é necessário
traduzir o vocabulário fenomenológico-causal pelo vocabulário semântico-expressivo. Da

31
Carta a Andreas Morell (GRUA, p. 103); apud O elogio a S. Teresa é replicado na famosa passagem do §
32 do Discurso de metafísica (AA VI, 4, p. 1581).
32
Ainda que tal implicação seja necessária, ela não significa que o idealismo leibniziano não tenha como
discriminar entre afecções que indicam objetos do mundo e afecções puramente subjetivas.
12

mesma forma, é possível reduzir o aspecto corporal das ações externas à compreensão
metafísica dos corpos como “fenômenos bem fundados”).
Uma imersão na interioridade que conduz, de maneira paradoxal, ao máximo de
exterioridade é mais uma das inversões que marcam a filosofia leibniziana. Com essa
inversão em particular, é possível apontar, ao mesmo tempo, para uma experiência interna
de si que se desdobra especularmente ao infinito e para a relação imediata que tal
experiência estabelece com a exterioridade absoluta (o amor a Deus e aos outros homens
– ou seja, a glória de Deus). Ora, tanto a interioridade quanto a exterioridade, na medida
mesmo em que envolvem infinitos elementos, podem ser mobilizadas para explicar a
contingência do mundo e das ações humanas e, simultaneamente, sua necessidade. A
infinitude é, pois, o motor que movimenta as duas linhas de força com vetores opostos que
tencionam a filosofia de Leibniz até o limite da consistência lógica.
Comecemos a caracterização dessa duplicidade constitutiva pela relação que
Leibniz estabelece entre infinitude e contingência. Em um texto sem título e sem data33,
ele afirma que todas as proposições nas quais intervêm a existência e o tempo, o “aqui e
agora”, implicam a “série total das coisas”, donde se segue que elas não admitem
demonstração, visto que a série é infinita. Essas proposições existenciais, que são
verdadeiras apenas durante um certo tempo – os exemplos de Leibniz nesse texto são “Eu
vivo agora”, “O sol brilha” –, se opõem às proposições essenciais, que são necessárias e
demonstráveis em um número finito de passos. São bem conhecidas as dificuldades do
projeto “compatibilista” de Leibniz, pois ele parece fazer de um critério epistêmico, válido
apenas para os seres finitos (a indemonstrabilidade das séries infinitas, que se desdobram
em uma infinitude virtual de elementos cujo término nunca é conhecido) a marca para se
estabelecer uma propriedade metafísica do mundo, a saber, sua contingência. Nosso
interesse, neste ponto, é menos defender que Leibniz elabora uma solução satisfatória para
o problema da contingência em um contexto determinista do que assinalar a articulação
entre contingência e infinitude no seu sistema filosófico. A contingência é, nessa

33
C 16-24, republicado, com tradução para o francês por Michel Fichant, em Recherches générales sur
l’analyse des notions et des vérités. 24 thèses métaphysiques et autres textes logiques et métaphysiques.
Organizado por Jean-Baptiste Rauzy. Paris: Presses Universitaires de France, 1998, pp. 339-349. Nessa
edição, Rauzy estima que o texto deve ter sido escrito por volta de 1689 (p. 325); Fichant sugere o seguinte
título para o texto “Vérités nécessaires et vérités contingentes”.
13

articulação, como vimos, caracterizada como uma propriedade lógica ligada à


indemonstrabilidade, e essa última é, por sua vez, remetida à infinidade das mônadas, entes
simples cujo conjunto constitui o “mundo” (Monadologia, § 3) e associada à
inesgotabilidade das percepções das substâncias. As infinitas mônadas34, com suas infinitas
modificações internas, exprimem-se umas nas outras segundo as perspectivas particulares
a partir das quais representam o mundo no qual se encontram (Monadologia, § 62) – na
verdade, ao visar o mundo, elas o constituem enquanto fenômeno espaço-temporal, pois o
que se chama de “mundo fenomênico” não é nada além do que a interseção das infinitas
perspectivas que as mônadas têm sobre ele35. É justamente graças a essa conexão
necessária entre o mundo tal como ele é “em si” e o mundo “fenomênico” que podemos
entender por que é possível, na explicação da contingência pela infinitude, passar do
critério “epistêmico” para o critério “metafísico”. Afinal, se uma das propriedades
essenciais do que o mundo é é a propriedade de ser conhecido ou percebido através de uma
infinitude de percepções, então o fato de que o mundo nos aparece como contingente (não
podendo, por princípio –graças à infinitude de percepções –, ser reduzido a uma série
dedutiva finita, isto é, a conexões necessárias) é equivalente ao mundo ser contingente. Ou,
dito de outra forma (e com um vocabulário cartesiano): tanto a “realidade objetiva” das
percepções monádicas quanto sua “realidade formal” – ou seja, tanto o que é conhecido
quanto o ato de conhecer – envolvem a percepção (nos dois sentidos da palavra, como
conteúdo percebido e como ato de percepção) da contingência. Isso é evidente no que diz
respeito à “realidade objetiva”, mas também se aplica à “realidade formal”: se uma mônada
não é nada além do que a atividade de síntese de um múltiplo de percepções, então ela é
um princípio de ação, mais do que um suporte inerte de propriedades; logo, seus atos de
percepção constituem o que o mundo é “em si”. Logo, se o mundo é contingente, então é

34
Para simplificar a presente exposição, o exprimirei em termos da última filosofia de Leibniz, seu “sistema
das mônadas”, embora a conjunção entre contingência e infinitude anteceda essa fase de seu pensamento.
35
Porque uma mônada não é apenas o sujeito de inerência inerte de propriedades, mas exprime antes um
princípio de ação (Monadologia, §§ 11, 15), e porque esse princípio ou força ativa conecta entre si percepções
e apenas percepções, deve-se concluir que não pode haver mônadas que não unifiquem um múltiplo dado.
A mônada é esse princípio metafísico de unificação. Ora, se ela não habitasse um mundo fenomênico que
fosse a interseção das percepções de todas as outras mônadas que compõem com ela o mesmo mundo, ela
teria de ser tomada como existindo de forma desconectada de todas as demais, ou seja, como constituindo,
sozinha, um mundo possível à parte.
14

possível que a vontade – de Deus, das mônadas racionais – determine suas próprias ações
livremente, sem ser coagida por nada.
Vejamos agora como a infinitude do mundo e das afecções monádicas é mobilizada
para explicar a necessidade do mundo e das ações humanas. No que diz respeito à
interioridade monádica, podemos aproximá-la de um texto escrito no início de sua carreira
intelectual, em torno de 1676, no qual Leibniz descreve a experiência quase mística a ela
associada:
Parece-me que quando eu penso em mim mesmo pensando e já sei, entre os
próprios pensamentos, o que penso de meus pensamentos, e um pouco adiante
me maravilho com essa triplificação da reflexão, então eu me volto para mim
mesmo com espanto e não sei como admirar essa admiração [....] quem quer
que deseje uma experiência dessas coisas deve começar a pensar em si mesmo
e em seu pensamento em algum momento no meio da noite, talvez quando não
tiver sono, e pensar na percepção das percepções e se maravilhar com essa sua
condição, de tal modo que ele chega gradualmente cada vez mais e mais a se
voltar para dentro de si mesmo ou a se elevar a si mesmo... 36.

Já no que diz respeito à exterioridade, é possível afirmar que, assim como a infinitude
envolvida nas “máquinas da natureza” (os organismos) é a explicação leibniziana para o
conceito de vida, na medida em que ela fornece uma definição clara e distinta do que
significa a “indestrutibilidade” natural dos seres vivos a partir de uma sua qualidade
intrínseca, a saber, o fato de as máquinas da natureza terem “um número de órgãos
verdadeiramente infinito”, e serem “tão bem munidas e à prova de todos os acidentes, que
não é possível destruí-las”, de tal modo que uma máquina natural “permanece ainda
máquina em suas menores partes”37, também no caso da glória de Deus, é a infinitude
monádica que permite a Leibniz radicalizar sua teologia da glória na mesma direção da do
spinozismo, sem que, para tanto, tenha de adotar o necessitarismo de Spinoza. Tanto quanto

36
Philosophical Papers and Letters: A Selection. Editado e traduzido por Leroy E. Loemker. Synthese
Historical Library 2, D. Reidel/Springer, 1976. p. 161. O erro dos “falsos místicos” quietistas é ignorar a
relação imediata que a contemplação de si entretém com a ação externa no mundo. O tema da duplicação da
experiência (“admiração da admiração”, “percepção das percepções”) é recorrente em Agamben e em outros
autores que tratam da teologia política (por ex., Jacques Derrida, em sua crítica a Carl Schmitt, fala de um
ponto de vista do “marrano do marrano” (cf. Jacques Derrida, Séminaire. La bête et le souverain. Tome I
(2001-2002). Paris: Galilée, 2008)). Tanto Agamben quanto Derrida ecoam para Friedrich Schlegel e sua
“ironia da ironia” (cf. Friedrich Schlegel, “Uber die Unverständlichkeit”. Schriften zur kritischen
Philosophie. 1795-1805. Hamburgo: Ed. A. Arndt, J. Zovko, 2007, pp 337-354).
37
Cf. Leibniz, Système nouveau de la nature et de la communication des substances aussi bien que de l'union
de l'âme avec le corps (G IV, 482) e seu comentário por Fichant em “Leibniz e as máquinas da natureza”. In:
Revista Dois Pontos, vol. 2, n. 1, outubro de 2005, pp. 27-28.
15

Spinoza, a “teologia da glória” de Leibniz o leva a considerar como necessária a


exteriorização da relação interna entre o homem e Deus (essa interioridade é, como se sabe,
compreendida pela tradição luterana como condição necessária e suficiente da graça).
Também como Spinoza, o determinismo é ligado à inserção do finito no infinito. Mas,
contrariamente a Spinoza, o infinito leibniziano é a forma de introduzir a contingência no
interior de uma série que converge infinitamente para a necessidade, sem nunca a alcançar.
É a isso que vem responder o conceito de virtual. Opondo-se a Aristóteles – ou, mais
precisamente, a alguns aristotélicos –, Leibniz busca, a partir de certo momento de seu
percurso metafísico, estabelecer o campo da virtualidade como um meio termo entre o puro
ato e a potência entendida como simples “receptividade”. Assim, no texto intitulado Da
natureza do corpo e da força motriz38, ele afirma que
to dunamikos, isto é, a potência, é dupla no corpo, Passiva e Ativa. […] Não se
deve conceber a força ativa [....] como a simples potência comumente definida
nas escolas, isto é, como receptividade da ação, mas como envolvendo um
esforço ou uma tendência à ação [....] essa potência envolve um ato, e não se
reduz à faculdade nua...

As séries infinitas são, assim, ao mesmo tempo, o que garante a contingência e a


necessidade – ou melhor, porque explica a contingência, explica também a aproximação
tendencial da necessidade metafísica na sucessão de determinações entre seus elementos.
A infinitude monádica representa essa tendência infinita em direção à necessidade do ser,
sem, no entanto, nunca a realizar plenamente. É por isso que, no § 9 do Discurso de
metafísica, ele pode afirmar que “o universo é de alguma forma multiplicado tantas vezes
quantas há substâncias, e a glória de Deus é reduplicada também pelo quanto de
representações diferentes de sua obra”39.

Conclusão
No contexto da peculiar teologia leibniziana da glória, podemos entender por que o
“spinozista” Gilles Deleuze dedicou seu último trabalho em história da filosofia a Leibniz,
na medida mesmo em que a ontologia deleuziana é muito mais próxima da teoria

38
De la nature des corps et de la force motrice (1702). Traduction de Catherine Frémont, in: Leibniz, Système
nouveau de la nature et de la communication des substances. Paris: GF-Flammarion, 1994, pp. 175-177.
39
A mesma ideia é formulada na Monadologia, §§ 56-57, e em uma carta a Jacquelot de 9 de fevereiro de
1704 (nessa última, Leibniz assimila a “perfeição das criaturas” a “uma reduplicação de mundos nesses
espelhos inumeráveis da substância, pelos quais o universo é variado ao infinito” (G III, 465)).
16

leibniziana dos virtuais do que do “necessitarismo” estrito de Spinoza. Podemos entender


também por que o discurso sobre a glória em Agamben o aproxima muito mais do
“luterano” Martin Heidegger40 do que das posições políticas traçadas a partir de O anti-
Édipo. A conexão entre glória e obras caracteriza o antiluteranismo de Leibniz como uma
alternativa tanto à concepção tradicional da ação quanto à cesura agambeniana, no que
poderíamos denominar uma estratégia de reduplicação que o aproxima infinitamente de
Spinoza, sem nunca sucumbir a seu abismo. Leibniz não se limita, portanto, ao contrário
do que sugere por vezes Agamben, a reafirmar a imagem tradicional da ação humana, se
entendermos essa última a partir da operação de uma vontade livre que determina o curso
das ações no mundo, eliminando, assim, o indeterminismo latente introduzido pela análise
infinita. Há, de fato, como vimos, no interior de sua filosofia, uma tensão constitutiva que
opõe (1)- a eliminação da indiferenciação da potência através da capacidade de determinar,
pela vontade, a contingência contida essencialmente em cada ação humana à (2)- presença
de uma forma mitigada de “spinozismo”, segundo a qual a participação das criaturas na
glória de Deus manifesta-se em uma inclinação que “mimetiza” a necessidade e, portanto,
na qual a hierarquia objetiva de valores que é condição da determinação racional da
vontade, se não propriamente abandonada, é levada tendencialmente à sua própria
supressão e indistinção. A tese (1) não oferece maiores dificuldades de compreensão para
os leitores acostumados a frequentar os textos de Leibniz; já a tese (2) precisou ser
elucidada acima. O que ela afirma é, como vimos, que, em seu projeto de “compatibilizar”
contingência e necessidade, Leibniz introduz a infinitude (da subordinação monádica e,
portanto, da matéria orgânica – para não falar da divisão ao infinito do contínuo espacial)
como o elemento conceitual que o permite, ao mesmo tempo, explicar a contingência
presente em um mundo inteiramente determinado e, evitando o “necessitarismo”
spinozano, introduzir o tema da suspensão messiânica do tempo, ao adiar indefinidamente
ou tornar indistinta a aplicação de hierarquias de valores. A tensão entre (1) e (2) manifesta-

40
Talvez fosse mais correto caracterizar a relação de Heidegger com o cristianismo menos pelos eventuais
aspectos luteranos de seu pensamento do que pela sua proximidade com certos traços da mística medieval.
Para efeito da presente discussão, no entanto, sua aproximação com o luteranismo pode funcionar como uma
estratégia demarcatória suficientemente clara, na medida em que o que está em jogo é a oposição entre a
salvação pela fé ou pelas obras. Para uma aproximação mais exata dessa circunscrição, pode-se consultar o
texto de Jeffrey Andrew Barash, “Saint-Paul, Spinoza et l’absence de l’éthico-politique chez Heidegger. In:
Spinoza: puissance et ontologie. Paris: Éditions Kimé, 1994, pp. 183-196.”
17

se claramente em diversos momentos de sua obra, como, por exemplo, nas afirmações
aparentemente excludentes (a)- de que, porque o bem moral não é criado por Deus (ao
contrário do que supunha a tese teológica da livre criação das verdades eternas por Deus
formulada por Descartes), as ações divinas e as das criaturas estão igualmente submetidas
a um mesmo padrão de valores hierarquicamente dados e (b)- de que a glória de Deus se
destina a todas as criaturas, organizadas em um processo de contínuo aperfeiçoamento em
direção à “salvação universal”41. No caso de (2) e de (b), Leibniz afirma que, ao espelhar
infinitamente a glória de Deus, as criaturas podem fazer parte dela através de um tipo de
duplicação de si mesmo na presença de um “tempo messiânico” – para usar a expressão de
Agamben –, que não é tampouco de todo distinto do que também está presente no
spinozismo.

41
Sobre a tentação de Leibniz em direção à herética tese cabalística da “salvação universal”, ver o conjunto
de textos editados, traduzidos e anotados por Michel Fichant em De l’Horizon de la Doctrine humaine.
Ἀποκατάστασις πάντων (La Restitution universelle), seguidos de seu ensaio intitulado “Plus Ultra”
(LEIBNIZ, 1991). Ver também o § 15 dos Princípios da natureza e da graça, no qual se enuncia a tese anti-
luterana de que “a própria natureza conduz à graça”.

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