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O Mal do Século

Renan Caíque
[2]
Renan Caíque

O Mal do Século

Círculo Soturnos
1ª Edição
Rio de Janeiro – RJ
Selo Editorial Soturnos
2018
Impresso no Brasil

[3]
Dados Internacionais de catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Caíque, Renan
O Mal do Século / Renan Caíque -- 1. Ed. --
Rio de Janeiro, RJ : Círculo Soturnos, 2018.

ISBN: 978-85-540962-1-2

1.Poesia Brasileira I.Título

17-06958 CDD-869.1

Índices para catálogo sistemático:


1. Poesia: Literatura Brasileira 869.1

Copyright© 2018 – Círculo Soturnos - Selo Editorial Soturnos

Todos os direitos reservados pelo SELO EDITORIAL SOTURNOS – Editora Círculo Soturnos.
LEI 9.610/98 e atualizações.
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios
empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravações ou quaisquer outros.
Todas as ilustrações utilizadas e/ou mencionadas nesta obra, são propriedades de seus respectivos
criadores.

Autor: Renan Caíque


Revisão Textual: Alexandre Souza
Revisão Ortográfica: Alexandre Souza e Renan Caíque
Capa: Derek Soares Castro
Ilustração Página 25: Lilene Leverdi
Diagramação: Gisele Nogueira
Revisão de Diagramação: Alexandre Souza
Supervisão Editorial: Alexandre Souza

ISBN: 978-85-540962-1-2

1ª Edição – Novembro de 2018 – Rio de Janeiro / RJ


Impresso no Brasil

[4]
Índice
Uma palavra do autor .................................................................................... 14
Prefácio ........................................................................................................... 17
Vermelho Amargo ........................................................................................... 26
Ama! ................................................................................................................. 27
Espelho de sonhos .......................................................................................... 28
A Morte e o Paradoxo do Amor .................................................................... 29
Lânguida Donzela ........................................................................................... 30
A Beleza............................................................................................................ 31
Dualidade ......................................................................................................... 32
Lembro-me de ti.............................................................................................. 33
Sonho de uma flauta ...................................................................................... 34
Triste Ironia ...................................................................................................... 35
Suspiros Poéticos ........................................................................................... 36
O silêncio entre nós ........................................................................................ 37
Em meu coração ............................................................................................. 38
Anjo ................................................................................................................... 39
Amor de Salvação ........................................................................................... 40
Para sempre livre? ......................................................................................... 41
O Fantasma da Ópera .................................................................................... 42
O Vampiro ........................................................................................................ 43
Musa da Noite ................................................................................................. 44
O Fantasma ..................................................................................................... 45
Desencanto ...................................................................................................... 46
Desalento ......................................................................................................... 47
Lira dos 20 anos ............................................................................................. 48
O Estrangeiro ................................................................................................... 49
Spleen ............................................................................................................... 50
Lira Solitária .................................................................................................... 51
Graziela ............................................................................................................ 52
Lamento de Inocência ................................................................................... 53
Lágrimas de amor .......................................................................................... 54
Doce Flor .......................................................................................................... 55
Manon Lescaut ................................................................................................ 56
Então, Adeus!... ............................................................................................... 57
Amar-te ............................................................................................................. 58

[5]
Inverno .............................................................................................................. 59
Mentiras ........................................................................................................... 60
Agnosticismo ................................................................................................... 61
Amor de Perdição ........................................................................................... 62
Beleza Morta ................................................................................................... 63
O Despertar ...................................................................................................... 64
Desejo-te .......................................................................................................... 65
Luxúria .............................................................................................................. 66
A Confissão de um Filho do Século ............................................................. 67
Melissa ............................................................................................................. 68
Melissa (II) ........................................................................................................ 69
Elegia ................................................................................................................ 70
Vale das Sombras ........................................................................................... 71
Onírica Alegria ................................................................................................. 72
Memórias ......................................................................................................... 73
Inocência .......................................................................................................... 74
Canção de Valhalla ......................................................................................... 75
A Morte de um Poeta ..................................................................................... 79
O Libriano e a Aquariana ............................................................................... 85
Liberdade ........................................................................................................ 89
Relógio Quebrado .......................................................................................... 91
Devaneio Epistolar ......................................................................................... 92
Memento Mori ................................................................................................ 93
O Último Suspiro da Donzela ....................................................................... 95
Uma Fábula Romântica ................................................................................ 98
Amor (?) ......................................................................................................... 101
Tristeza Byroniana ...................................................................................... 102
Lembra! ........................................................................................................ 104
Suspiros de Melancolia .............................................................................. 105
Lago de Lágrimas ....................................................................................... 110
Quem és tu?! ............................................................................................... 111
Os Teus Olhos .............................................................................................. 113
O Teu Mistério ............................................................................................. 115
Uma paixão efêmera .................................................................................. 117
O Último Poema de Amor ......................................................................... 119
Um Ensaio Sobre a Solidão ....................................................................... 121
O Mal do Século

[8]
Renan Caíque

Dedico esta simples obra à minha doce e amável mãe,


Rosângela Maria,
a quem devo tudo o que tenho e o que sou.

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O Mal do Século

[10]
Renan Caíque

“É bom para um artista


sempre lembrar de ver as
coisas de um novo e
estranho jeito.”
Tim Burton

[ 11 ]
O Mal do Século

Agradeço imensamente a todos que colaboraram direta ou


indiretamente para a publicação deste livro, alguns que
me incentivam e ajudam desde que comecei a escrever,
outros que apesar de conhecer há não muito tempo são
também muitíssimo importantes para mim, e não preciso
citar todos os nomes, creio que tais pessoas saibam que
me refiro a elas. Cada um foi e é essencial a seu modo.
Agradeço a todos que tenho orgulho em chamar de
amigos e de família, e agradecimentos especiais ao
professor José Carlos, que gentilmente escreveu o
prefácio, a Derek Castro que fez a capa, à minha querida
Sandy N. R. pelo apoio e carinho de sempre e pela
fotografia do autor que vos escreve, a Alan Procópio,
pelos ensinamentos que levarei para a vida toda, a Caio
Loesch, por me mostrar o que é ter um melhor amigo e à
minha amiga de outras vidas Melissa S. R. pelas nossas
conversas inspiradoras e a incomensurável estima
recíproca entre nós.

[12]
Renan Caíque

E este livro é apenas mais um mundo interior, é um


jardim sombrio, um vale desflorido buscando
florescer, e cada verso uma flor emurchecida...

[ 13 ]
O Mal do Século

Uma palavra do autor


No passado, se me perguntassem por que escrevo
poesia, eu não saberia a resposta ainda, pois escrevia
apenas com paixão. Hoje, creio que sei responder, afinal
escrevo com amor.

Não é questão de escrever "versinhos bonitinhos",


e sim de adentrar os labirintos de nossa alma, ir o mais
fundo que puder: encontrar os sentimentos mais obscuros
e expulsá-los de nós aos poucos, ao torná-los palavras
belas e harmoniosas que exalem enlevo e poesia, ou
ainda, encontrar os sentimentos mais elevados e tentar
exprimi-los ou, ao menos, refletir a sua essência
desvendada, visando em um mundo fatídico e parco de
emoções dispersar a Beleza, o Amor, a Sensibilidade, a
Esperança e tudo aquilo que mantém os nossos corações
vivos e florescentes. É como disse Percy Shelley, certa
vez, “a poesia transforma tudo em encanto”.

Escrever é libertar-se da escuridão que nos


circunda e perpetuar o sentimento de um momento ou
uma ideia que ecoa incessantemente em nossa mente,
ávida por sair. E a Poesia, este elixir da eternidade, é uma
das maiores expressões da Arte — se não a maior! — Não
é sem motivo que ela existe e é cultivada há tanto tempo
por espíritos sensíveis e ainda vive, mesmo que admirada
por uma minoria. E a Poesia é inata à humanidade, assim
como o é a Filosofia, a Música, a Pintura, o Teatro e as
demais Artes... não inerente ao seu desenvolvimento
material talvez, mas à sua evolução interior.

[14]
Renan Caíque

(...)
Caros leitores, este é o meu primeiro livro e,
provavelmente, o último, afinal, creio que nele já disse
tudo o que tinha a proferir. Tudo o mais que eu
escrevesse além seria vão, no entanto, posso estar
equivocado e algum dia talvez escreva outro; isto só o
tempo há de dizer.

O que será lido nesta simples obra são apenas


versos (puros devaneios) e algumas prosas de alguém
jovem, que se sentindo solitário e incompatível com o
mundo em que vive, procurou refúgio nos clássicos da
literatura, e começou a escrever influenciado por estes.
Somente alguém que escreve e que nem pode ser
considerado poeta.

O título faz referência à minha maior influência


artística: o período literário da Segunda Geração
Romântica, que ficou conhecida como "O Mal do Século" e
"Ultrarromantismo" e aos seus autores. Os
ultrarromânticos eram jovens poetas extremamente
sensíveis que se sentiam impotentes diante de uma
sociedade materialista que tornava irrealizáveis os seus
sonhos, e viam o homem de sua época como um ser
fragmentado, relegado a uma simples peça da
engrenagem social. Eles acreditavam que o espírito
humano busca sempre a perfeição, porém, o homem é
incapaz de atingi-la por ser uma criatura imperfeita; e a
constatação dessa impossibilidade produz insatisfação,
angústia e uma obsessiva atração pela morte, encarada
como saída definitiva para resolver tal insaciedade. Esses

[ 15 ]
O Mal do Século

poetas, geralmente, não conseguiam se adaptar a esta


sociedade que aos seus olhos não os compreendia, o que
os levava à solidão e à criação de seus próprios mundos
interiores.

E o leitor haverá de notar esta busca: uma busca


pelo amor. Este sentimento desmedido e julgado
inacessível por quem nunca amou ou nunca foi amado!
Mas o que mais nos pode salvar da cinzenta melancolia e
da imperecível solidão da alma? O amor é o que há de
mais nobre e encantador, e a mais vasta fonte de luz.
Pobres daqueles que nunca o sentiram, e apenas o
conhecem pelos livros de autores como John Keats. — ou
nem isto! — Às vezes o amor surge de modo tão
imprevisível quanto uma tempestade numa tarde quente
de verão. E todo aquele ideal de uma felicidade vindoura
se torna de repente realizado, mas não como em nossos
sonhos mais profundos; é mais belo, é mais poético, pois
tudo o que é sentido é muito mais forte do que o que é
imaginado.

E eis o meu diário íntimo com tudo o que senti e


imaginei para escrevê-lo: meu coração transladado nestas
folhas frias, porém sinceras. Naturalmente, este livro não
é uma obra-prima, mas é uma verdadeira exposição de
sentimentos e ideias de um coração inquieto, por vezes
retalhado e insatisfeito, cujo maior anseio já foi talvez a
sua compreensão. Peço, por favor, que ao findarem a
leitura, não chorem nem levem tão a sério, apenas
sintam.
Renan Caíque, Maio de 2018.

[16]
Renan Caíque

Prefácio
Uma obra de poesia como a que o leitor tem em
mãos é sempre um risco. A famosa referência de Platão
à poesia como influência das Musas, como devaneio,
como possessão, indica que o poeta é uma ameaça à
normalidade das coisas. Ele flerta com o perigoso
campo do sentimento que turva a lógica racional.
Renan Caíque não foge a essa empreitada. Frente ao
“risco à normalidade que em nós ressoa”, o autor
responde seguro: “sim, eu arrisco!”. E denuncia: “O
mundo tem ‘pessoas sérias’ demais”.

Se é perigosa a poesia, por que, então, a


escrevemos e a lemos? Parece-me que é na literatura
mesma que encontraremos razões. Uma delas que me
parece interessante está no conto Cara-de-Bronze de
Guimarães Rosa, publicado inicialmente em Corpo de
Baile e depois em No Urubuquaquá, no Pinhém, um
dos três volumes em que a obra original foi dividida.

O conto narra o retorno de Grivo – personagem


que já havia comparecido em Campo Geral, a história
de Miguilim – de uma curiosa viagem ao norte, feita a
mando de seu patrão Segismundo Saturnino Jéia Velho
Filho, apelidado Cara-de-Bronze. Original do
Maranhão, fugido para as Minas Gerais, Cara-de-
Bronze conquistou riqueza e poder de fazendeiro.

[ 17 ]
O Mal do Século

Triste e só, de idade avançada, foi acometido de


paralisia física – de acordo com Guimarães Rosa, uma
analogia à “paralisia da alma”. É nesse momento de
decadência física que o fazendeiro sente uma espécie
de fome de beleza e manda o vaqueiro Grivo à sua
terra natal para tudo ouvir, ver, apreciar e depois
retornar, traduzindo em palavras o que sua memória
registrou. Segundo Guimarães, Grivo foi à terra natal
de Cara-de-Bronze “buscar a poesia”.

O conto de Guimarães é, no conteúdo e na forma,


uma proposta de viagem. Para onde? Ao terreno da
beleza, aquele chão endurecido e ressecado pelo tempo
e pelas muitas preocupações que não existiam quando
éramos poetas-meninos, aquele tempo-estado da alma
em que o chão era pura fertilidade.

Os poemas de Renan Caíque que o leitor


encontrará adiante revelam essa inspiração. É uma
espécie de “tempestade numa tarde quente de verão”,
para usar suas palavras.

Mas equivocado seria pensar que o poeta é uma


figura passiva, a quem cabe receber a inspiração
poética pronta e transmiti-la ao leitor. Aqui nos salva o
velho Aristóteles, para quem a poesia é, além de
inspiração, um árduo e difícil trabalho do autor para
procurar a palavra certa, a forma mais bela de

[18]
Renan Caíque

expressar o que lhe cabe. Nesse quesito, o livro de


Renan Caíque nos mostra, desde as primeiras páginas,
uma janela por onde observamos um imenso
laboratório, no qual o autor preparou, com enorme
capricho, sua obra. Ela nos é oferecida em sua forma
acabada, mas deixa transparecer o caminho feito. Para
que o poeta transmita uma bela obra é necessário, além
da inspiração, um dedicado trabalho em duas direções:
primeiro, o domínio da escrita – que é primoroso neste
livro; segundo: ter frequentado a escola dos poetas.

Renan Caíque se revela um leitor contumaz. Isso


é particularmente notável em suas riquíssimas e
abundantes epígrafes. Seria alongado citar todas. A
título de exemplo, encontramos referências, em termos
geográficos, dos brasileiros Augusto dos Anjos,
Casimiro de Abreu e Álvares de Azevedo aos franceses
Alfred de Musset, George Sand e Alphonse de
Lamartine; do espanhol José Cadalso e dos
portugueses Castelo Branco e Fernando Pessoa ao
estadunidense Edgar Allan Poe. Cronologicamente, sua
influência vai da poetisa lírica grega Safo a poetas
músicos como Jim Morrison e David Bowie, passando
por William Shakespeare e pelos alemães do Sturm
und Drang Goethe e Schiller.

A marca predominante e confessa é a do


romantismo, especialmente o de segunda geração que

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O Mal do Século

encontra uma base referencial nos clássicos ingleses


Lord Byron, Percy Shelley, John Keats e John Clare. O
que se pode notar, por exemplo, no poema “Tristeza
byroniana”.

Evidentemente, não poderiam faltar os temas


caros ao romantismo como a solidão, a angústia, a
saudade, a melancolia e o tédio (o “spleen”). O tema da
morte atravessa toda a obra, explícita ou
implicitamente; literal ou metaforicamente. Só não
perde para o amor, que comparece a bem mais de uma
dezena de poemas. “Ama!”, convida-nos o autor, “e
em vez de só existires, viverás!”.

Estaria, então, o nosso autor, restrito ao oitocentos


ou ao novecentos? Seria esta obra algo extemporâneo,
de um romantismo que já não nos seria relevante, a
nós, do século XXI? Parece-me simplista ler o texto de
Renan Caíque desse modo. Sua obra primeira – ele
chega a afirmar a possibilidade de que seja a última,
algo que o leitor, como eu, desejará o contrário –
explora o vasto campo de leitura que predominou em
sua jovem, mas já intensa, trajetória de leitor e poeta.

No entanto, ao longo do texto, ficamos


convencidos de que seu vigor literário tem muito mais
a nos oferecer. A prosa presente no excelente “A morte
de um poeta: um conto melancólico”, em “Liberdade”,

[20]
Renan Caíque

e “Um ensaio sobre a solidão” comprova seu potencial


de contista, cronista e ensaísta. Revelam-se, no livro,
as condições do autor em explorar não apenas do
gênero lírico, mas também o épico e o dramático.

As temáticas presentes, quer nos poemas, quer na


apresentação ou no posfácio, não nos autorizam a
enquadrá-lo a um único estilo literário. Sirvam de
exemplo o diálogo direto com o leitor no poema
“Espelho de Sonhos” e fina ironia ao afirmar que “a
tristeza só é bela na Arte”.

A esperança, a denúncia e o olhar atento “num


mundo em pranto e com o amor em greve” – magistral
síntese poética de nossos tempos – demonstram um
autor ciente de seu contexto histórico em que “somos
meros escravos de um sistema corrupto e cruel”.
Tempo em que “subjugaram a nossa sociedade; e o
amor – em silêncio – tornou-se mudo”. E nos convida
a indagar: “como sorrir em um mundo dominado pela
angústia, o egoísmo e a injustiça? Como viver onde a
maioria já não vive?”.

Tais temáticas nos permitem aguardar novas


emoções em próximas obras desse jovem autor.
Explorará sua veia contista sob influência de Allan Poe
e outros para nos presentear com um escrito todo em
prosa? Seguirá ele uma via machadiana, transitando do

[ 21 ]
O Mal do Século

romantismo a um realismo contextualizado em nosso


século, dissecando o comportamento humano?

São caminhos plenamente possíveis, entre tantos.


Cabe-me, como privilegiado por ter lido esta obra em
primeira mão, desejar que seu autor não pare, que siga
sua saga poética, árdua e vigorosa, como Dom Quixote
de nossos tempos a lutar contra a incapacidade de
sonho e de utopia, tempos tão mesquinhos e carentes
de beleza.

Costumo aconselhar aos meus alunos no primeiro


dia de aula na Universidade que – os que ainda não o
fazem – passem a ter sempre uma obra literária em sua
bolsa e a leiam, mesmo que demore. Os indispensáveis
textos científicos não podem estar desacompanhados
de uma obra que eleve o espírito, que rejuvenesça a
alma, que desembace o olhar, que amacie as mãos, que
desobstrua os ouvidos.

Nesse sentido, o livro de Renan Caíque servirá


diretamente aos de sua geração. É o escrito de alguém
que “se sentindo incompatível com o mundo em que
vive, procurou refúgio nos clássicos da literatura”. Os
sonetos, os poemas em rima de três ou quatro páginas
destoam da linguagem contemporânea das redes
sociais e da informação rápida. Para alguns, talvez seja
o primeiro contato com um texto de modelo “clássico”.

[22]
Renan Caíque

Mas esse estranhamento é necessário, para que não nos


esqueçamos da riqueza e do poder da palavra e que a
poética é uma arte milenar.

Além de belo e inspirado, este livro se mostra um


“diário íntimo”, uma viagem aos “labirintos da alma”,
um itinerário do autor acompanhado de outros que lhe
aliviam a solidão – essa que a todos nos toca, mesmo
que estejamos em plena multidão.

Portanto, além de nos propiciar a experiência


estética, “O Mal do Século” é uma sutil provocação. É
como se seu autor dissesse: “E você, leitor? Com quem
anda? Com quem se inspira? De quais autores se
acompanha?”.

Por fim, parece-me possível dizer que o livro de


Renan Caíque é também uma proposta parecida com a
que Cara-de-Bronze faz a Grivo. É uma admoestação
serena e contundente a cada um de nós: “Vá, leitor! Vá
buscar a poesia”.

José Carlos Freire,


Professor – UFVJM.
Março de 2017.

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O Mal do Século

[24]
Por que morreste?
Renan Caíque

Por que as flores morrem?

[ 25 ]
O Mal do Século

Vermelho Amargo

O remorso é o veneno da vida.


Charlotte Brontë, “Jane Eyre”

Sofrendo pelo medo de sofrer,


Entre angústias e dúvidas eu vivo.
E tais aflições das quais sou cativo
Perfazem-me não mais querer viver.

Pelo simples temor de algo não ter,


Quanto remorso latente cultivo!
Quantas lembranças lúgubres revivo,
A cada dia, a cada hora em meu ser!

São tantos ecos em meu coração


E que jamais se vão da escuridão
Dos meus sonhos mais gélidos e amargos!

Pudesse a vida dar-me o esquecimento


De todas as verdades que lamento,
Tornando as dores líricos afagos...

[26]
Renan Caíque

Ama!

Viver é sofrer, sofrer é amar,


Amar é viver verdadeiramente.
Morrer sem numa vida amar o amar
Não é viver, é existir brevemente.

Se não amas, não sonhas; e sonhar


É não findar, é ser perenemente.
Não sonhar é não sentir, não chorar;
É se arrepender quiçá eternamente.

Ama o amor e escalda em suas chamas,


Ama e sê como aquilo que tu amas,
E em vez de só existires, viverás!

Doce é a morte se a vida consumamos,


E a consumamos quando nela amamos...
Ama, pois, e a sorrir tu morrerás!

[ 27 ]
O Mal do Século

Espelho de sonhos

Vão-se sonhos nas asas da Descrença,


Voltam sonhos nas asas da Esperança.
Augusto dos Anjos

Quando o mundo eu via por outra via,


Julgava que se sonhos na alma temos,
Sonhos são tão-somente o que teremos,
Ou seja: eternamente fantasia.

Entretanto, enganei-me em demasia,


Pois é sonhando e amando que vivemos;
Se morrem os sonhos também morremos,
E o irrealizável é o mundo que cria.

Somos seres que não sonham, não choram,


E onde o amor e a inocência não mais moram!
Tornamo-nos robôs vãos e passíveis...

Caríssimos amigos e leitores,


Matai os falsos seres interiores
E sonhai mesmo sonhos impossíveis!

[28]
Renan Caíque

A Morte e o Paradoxo do Amor

A minha alma é triste porque amo, e este amor


Lúgubre em excesso pelo qual eu lamento,
Como o vento, me traz o resplendor do alento
E torna meu silêncio belo e encantador.

Sim, pois embora trágico seja o amargor


Que brota deste lindo e feio sentimento,
Lembranças doces de um incorpóreo momento
Cessam, por um momento, a dor interior:

A música da morte já não é sombria


Quanto soara tanto para mim um dia
Em noites infindáveis de alegre ventura;

Agora ecoa sobre mim terna e suave,


E não há mais, na fria solidão, entrave
Para o último sussurro de minha loucura!

[ 29 ]
O Mal do Século

Lânguida Donzela

Ó solitário anjo adornado de encanto,


Que outrora estiveras nas mãos da ventura,
Por que choras tão bela, lânguida e pura,
Se a ti a tristura desfalece tanto?

Perdoa, amor, quem pranteia por teu pranto!


Mas viveras toda risos e ternura,
Ora jazes qual a Lua em noite escura,
Tristíssima e assaz pálida de quebranto!

Vem, donzela que meus sonhos embelece,


Por ti a minha alma deveras fenece
E semelha à silente rosa a murchar.

Morro por tua doce melancolia,


Morro de amor pela beleza sombria,
Morro por ti... por apenas um olhar!...

[30]
Renan Caíque

A Beleza

A beleza está na simplicidade:


Muito pouco há de mais encantador
Que a suave ternura de uma flor...
Dizei-me se o que digo é inverdade!

“Porém, qual é da flor a utilidade?


A beleza é repleta de esplendor
Que belamente adorna em derredor,
Mas ela é não mais que uma vaidade,

É tão-só um ornato de ilusão


Que só não embelece o coração
E em algum dia apaga-se o fulgor.”

Não, a beleza simples não é vaga


E com o passar do tempo se apaga:
Morre e inda vive em nosso interior!

[ 31 ]
O Mal do Século

Dualidade

Em meus lábios surge um triste sorriso


Que exala agonia e solidão apenas...
Dormem no silêncio de minha alma as cenas
Que outrora eram parte de um paraíso.

Às vezes lembranças belas e serenas


Tornam-se suspiros negros, e é preciso
Olvidá-las pra não verter sobre o riso
Do passado lágrimas de eternas penas.

Meu coração pálido chora na treva


Por não deslembrar o Amor que me leva
Para o mais profundo inferno interior.

Eis a dualidade atroz da existência:


O encanto sublime que traz decadência,
E a paz decadente que faz o Amor.

[32]
Renan Caíque

Lembro-me de ti

Acordei ao som da chuva saudosa,


O vento soprou e eu pensei em ti
E nas lágrimas que tu, suspirosa,
Plangeste quando eu tácito parti.

Meu terso amor, minha escarlate rosa,


Sinto só nostalgias por aqui!
Quero secar-te a fronte lacrimosa
E ouvir-te dizer: "Lembro-me de ti!"

Estás longe, mas não estás sozinha,


Meu coração de ti junto caminha
E assim sempre será o meu desejo...

Lembra! Antes de partir dei-te um aviso:


Eu viveria pelo teu sorriso
E morreria por teu doce beijo!

[ 33 ]
O Mal do Século

Sonho de uma flauta


A morte era vida e a vida era morte...
Hermann Hesse

Que leve os meus sonhos a brisa leve


Para um canto seguro onde haja encanto,
Onde não há de entrar o triste canto
E nem a fria neve a entrar se atreve...

Ah! se é que nesta vida que é breve


Pode-se resguardá-los sob o manto
Da doce paz e do acalanto santo
Num mundo em pranto e com o amor em greve...

Sim, é esta a verdade que me invade


A melancólica alma em soledade:
Não, não quero vê-los morrer tristonhos!

Não quero que se vão mui solitários


No vão dos falsos sentimentos vários,
Pois não há vida — nem nada — sem sonhos!

[34]
Renan Caíque

Triste Ironia
Nas longas agonias, que ela oculta
Nos sorrisos forçados da tristeza...
Carmen Freire

Um eu te amo dito sem amar


É um sorriso audaz sem alegria,
É uma noite clara como o dia,
É dormir sem mais nunca despertar!

No fim, é não ter sonhos a sonhar,


Sentir a luz do sol mórbida e fria,
Viver sem vida e sem qualquer magia
Que nos permita pelos céus voar!

É fácil confundir... sim, é plausível,


Um coração gelado e outro sensível,
Pela linha tênue entre o sublime e o ínfimo...

O Belo pode aparentar horrível,


E o Feio deslumbrador e aprazível;
Só é real aquilo de mais íntimo!

[ 35 ]
O Mal do Século

Suspiros Poéticos

Sorrio e pranteio pelo teu sorriso,


O mais belo que eu já pude contemplar.
Dizer que és um anjo do paraíso
Seria eufemismo para te explicar:

Tu és mais! Mas não há como eu ser preciso


Ou não me tornar indeciso em te amar
E te descrever, por seres qual Narciso,
Pois te apaixonaste por teu próprio olhar.

Os teus olhos são os versos mais bonitos


E doces, jamais podendo ser escritos
De tão perfeitos... qualquer que seja a lira!

E se invejo o vento por tocar-te inteira,


É por me encantares tu de tal maneira
Que ao lembrar-me de ti minha alma suspira!

[36]
Renan Caíque

O silêncio entre nós

Há uma doce luz no silêncio,


e a dor é de origem divina.
Cecília Meireles

Eu te contemplei em poucos momentos,


E estes foram tão fugazes, tão frios,
Sumiram como lágrimas que a fio
Foram soltas no vazio dos ventos;

E cada segundo desses eu lamento


Por ter deixado um silêncio sombrio
Que entre nossas almas é como um rio
Que separa a alegria do tormento,

Pois só agora, olhando-te, eu vejo


Que aproximar-me é o que mais desejo;
Pergunto-me se fui perceber tarde,

Mas quem sabe também nunca foi cedo?!


Só sei que fartei-me de sentir medo
E o Amor em meu triste espírito arde!

[ 37 ]
O Mal do Século

Em meu coração

Não fales muito. Uma palavra basta


Murmurada, em segredo, ao pé do ouvido.
Nada, nada de voz, - nem um suspiro,
Nem um arfar mais forte.
Junqueira Freire

Enterneço-me apenas em recordar-te!


Eu que pensara — em um triste padecer, —
Nunca mais sentir o coração bater...
Mas, felizmente, só até encontrar-te!

Longe de ti, meu espírito se parte...


Perto, no entanto, sinto-me renascer.
Tu és o arquétipo de meu viver,
E a mais sacra e angelical obra de arte!

Porém, de que vale um amor que não fala?!


Próximo a ti tal sentimento se cala,
Como se nem fosses nada para mim...

Mas, na verdade, em minha vida, és tudo!


E se contigo por fora eu fico mudo,
Ressoam por dentro palavras sem fim.

[38]
Renan Caíque

Anjo
Dize-me, ó anjo perfeito,
Que guardas dentro do peito
Meu coração,
Por que tu és a ventura
Que há tanto tempo procura
Minh'ama em vão?
Aureliano Lessa

Eu amo teus olhos — chorando ou rindo, —


Amo teus lábios rúbeos e pequenos,
Amo-te mesmo quando estás mentindo;
Ah, são deveras doces teus venenos,

E teu sorrir, que ínclito! que lindo!


Até os teus chorares, que serenos!
A tua face é de esplendor infindo,
Teu corpo são sonhos de amor replenos;

Tudo em ti é solene e encantador,


Não há mais feérica obra de arte,
Que tu, o meu eterno anjo de amor!

Quero eu continuamente amar-te,


Entre risos ou lágrimas de dor,
E de amores morrer, após beijar-te!...

[ 39 ]
O Mal do Século

Amor de Salvação
Pensei no que seria de mim
se nunca mais te visse.
E o mundo ficou vazio de repente...
Alexandre Dumas Filho.
“A Dama da Camélias”

Contemplo-te, belíssima, em meus sonhos,


Pálida, a reluzir na noite escura,
Lânguida tal como uma rosa pura,
Adormecendo os meus prantos tristonhos;

Sem ti meus dias são tristes, medonhos;


Desejo teu Amor, tua ternura,
Dantes que eu durma numa sepultura,
Farto de viver dias enfadonhos.

Teu encanto inefável me deslumbra


Na bela e melancólica penumbra
Da noite terna, eterna em solidão!

Musa gótica dos sonhares meus,


Flor regada por lágrimas de Deus,
Pra sempre será teu, meu coração!

[40]
Renan Caíque

Para sempre livre?

Não era amor talvez— nem ódio— nada


Do que em palavras pode transmitir-se.
Lord Byron. “Lara”

Eu ando completamente sozinho,


E tudo o que consigo contemplar
É um escuro e infindável caminho,
Estrada que leva a nenhum lugar...

Enquanto pela escuridão caminho


Ouço o vento gélido sussurrar:
A brisa no silêncio tumular
Plange a tristeza pela qual definho...

Um anjo caído veio até mim


E matou o amor em meu coração,
Amor que me diziam não ter fim...

Disse-me o anjo: "Não chores em vão,


Não há porque tu sofreres assim,
Estás livre do amor, esta ilusão."

[ 41 ]
O Mal do Século

O Fantasma da Ópera1

Nas profundezas duma ópera sombria


Morava um ser medonho, porém talentoso,
Que enlevava com seu almo canto harmonioso,
Em suas notas doces de melancolia;

Olhos doirados, face obscura e doentia,


Ele vagava no anoitecer silencioso,
Languidamente, envolto em manto tenebroso,
Disseminando sua pérfida magia.

O malfadado só sonhava ser amado,


Afinal, nem seu pai nem sua mãe o amara,
E o seu coração triste tornou-se gelado!

Meu caro Erik, se o mundo não fosse tão vão,


Tu terias amor e uma alegria rara...
Mas preferem as máscaras ao coração!

1
Soneto inspirado no romance "O Fantasma da Ópera", do
escritor francês Gaston Leroux (1868-1927).

[42]
Renan Caíque

O Vampiro

Aqui é escuro e solitário sempre...


Maria Lucretia Davidson

Aquele que outrora foi execrado


A viver só, nas trevas solitárias,
A olvidar o amor e as belezas várias,
E a nutrir-se de sangue despojado;

Aquele sem porvir e sem passado,


Que vaga pelas campas funerárias,
Procura a morte em noites mortuárias
E infinita é sua dor qual seu fado;

Aquele já afeito à solidão,


À tristeza e à lúgubre negridão,
Eis o mais tétrico ser: o vampiro!

E sou tal como ele em minha dor:


Sou da Morte um fiel expectador
E, por ela, tristemente, suspiro!

[ 43 ]
O Mal do Século

Musa da Noite

Ó Lua triste, lúrida e sombria,


Amo-te! mas no inverno amo-te mais!
És mais nobre nas noites invernais,
Ó doce musa da melancolia!

Contemplo-te da necrópole fria,


Sobre os pretos jazigos sepulcrais,
Entre o ecoar dos silenciosos ais,
Na obscura solidão do fim do dia!

Em minha depressiva e velha lira,


Canto-te por que minha alma suspira;
Tu és, para mim, o estro mais sublime!

E nesta indubitável amargura,


Teu fulgor evanescente é a cura
Para a amarga loucura que me oprime!

[44]
Renan Caíque

O Fantasma
Perder noites e noites numa esperança!
Alentá-la no peito como uma flor que murcha
de frio, alentá-la, revivê-la cada dia para vê-la
desfolhada sobre meu rosto!
Álvares de Azevedo; “Noite na Taverna”

Pálido espectro invade-me o sonhar,


E sopra em meu soturno coração
Um vento frígido, mas de paixão...
Quanto pesar a uma ilusão amar!

E mesmo após o triste despertar,


Em delírios, na negra escuridão,
Vejo o etéreo vulto e ouço uma canção
De seus lábios rúbeos a lastimar...

"Quem és, que me tornas fausto e tristonho?


Vulto de mulher, vai-te dos meus sonhos!"
Eu digo ao vertiginoso fantasma.

Ele responde: "Eu sou a Esperança!


Tu me amas, pois me vês! Mas não me alcanças!
Por isto ver-me te aflige e te pasma!"

[ 45 ]
O Mal do Século

Desencanto

Dia após dia, o amor se torna cinza (...)


Roger Waters; “On of my turns”

Outrora sonhei um mundo inefável


De flores, risos cândidos e amores,
Onde fossem efêmeras as dores
E a alegria pra sempre perdurável...

E que eu ainda o sonhe é inegável,


Embora nele já não haja cores
E ora estejam murchas todas as flores
Num vale de escuridão infindável.

Por que é tão difícil de sonhar


Um lugar de harmonia e bem estar,
Onde o coração valha mais que tudo?

É evidente: o egoísmo e a vaidade


Subjugaram toda a nossa Verdade;
E o Amor — em silêncio — tornou-se mudo!

[46]
Renan Caíque

Desalento

Minh'alma é triste como a flor que morre...


Casimiro de Abreu

Desde que nasci, persegue-me a escureza,


E cada vez mais lacrimoso é meu canto;
Em nada mais vejo ou percebo beleza:
O mundo é vazio, obscuro e sem encanto?!

Os anos perecem sem a gentileza


De um simples sorriso... apenas dor e pranto...
Ai! E de que rir? Da morta Natureza?!
Tudo é triste! E triste é tudo o que canto!

O meu coração chora para partir


E inunda-me de lágrimas a alma triste!
Por que, ó Ventura, antes de eu nascer, partiste?!

Ah, se porventura a Morte então me ouvir,


Não esperdiceis pranto em mi'a sepultura!
Esquecei tal vida imersa em amargura!...

[ 47 ]
O Mal do Século

Lira dos 20 anos2

E na misantropa alma a dor perdura...


Vinte anos que padeço de tal dor!
Sonhando a mor doçura de um amor
Para enfim clarear-me a noite escura.

E jamais findará esta tristura...


Pois se algo julgava encantador
Ora vejo que nada tem valor:
É-me nesta hora a morte uma ventura!

Maldita a dor ao coração inata!


Pudesse eu partir nesta triste data
E ultimar o infortúnio que me enlaça;

Se não há porquê esse Sonho triste,


Apenas clamo, por tudo o que existe:
Ó doce Morte, vem logo e me abraça!

2
Soneto escrito em 28 de setembro de 2013, em ocasião do meu
aniversário de 20 anos.

[48]
Renan Caíque

O Estrangeiro

Quisera apenas descobrir quem sou


E se há algum sentido nesta vida!
Pois já me pesa na alma entristecida
A dúvida que em mim sempre ecoou:

Se existe um Deus, por que aqui me botou?


Não vejo razão para tal medida,
Nem sou grato se foi de fato a lida
De uma divindade o que me criou...

Observando como está o nosso mundo,


Posso apenas sentir pesar profundo,
E lastimar minha vã existência!

Decerto a vida fora bela um dia,


Mas era quando eu não a conhecia,
E ignorava que a dor é sua essência!

[ 49 ]
O Mal do Século

Spleen

E por que viver se o coração é morto?


Se eu hoje dormisse sobre essa ideia,
se eu pudesse adormecer no ócio
e no tédio, seria isso ainda viver?
Álvares de Azevedo, “Macário”

Adeus, meus sonhos! Adeus, meu amor!


Pra fenecer minh’alma triste chora,
Ora apagou-se-me o fulgor doutrora,
Cobre-me a face, angelical palor.

Adeus, maldito spleen! Adeus, langor!


Uma sombria e fria dor me aflora,
Sem nostalgias, partirei agora,
Entristecido como murcha flor.

Quando jazer entre sepulcros, quedo,


Sentir-me-ei outra vez deveras ledo,
Morrerá a dor atra que a mim domina...

Quando pro inferno me levar Satã,


Não lacrimeis por minha vida vã,
Olvidai esta desgraçada sina!

[50]
Renan Caíque

Lira Solitária

Entre os versos mais tristes que eu rabisco


— Quando a solidão em minha alma ecoa —
Passeia a poesia calma e à toa,
Constituindo um simples asterisco;

Mas se tê-la tão íntima é um risco


À normalidade que em nós ressoa,
Análoga aos padrões de uma pessoa
Que sente sem sentir... sim, eu arrisco!

Afinal se esta lira grita e plange,


Não, não é pelo coração que a tange
Sentir-se intimidado em ser vulgar;

As lágrimas ao léu em que me inundo,


Exprimem apenas o desejo profundo
De encontrar alguém que possa me amar.

[ 51 ]
O Mal do Século

Graziela3

Em Sorrento jaz uma sepultura


De uma jovem e cândida donzela...
Que trágico! Depressa partiu ela,
Quando a vida ainda era doce e pura!

Dezesseis anos tinha Graziela...


E nunca nesta idade de doçura
Se refletira tal graça e candura
Quanto no esplendoroso rosto dela

Mas por que voltar à triste lembrança


De um tempo em que houve alegria e esperança,
Mas que se tornou um profundo corte?

Certamente não para que choremos,


E sim que do amor nós nos recordemos,
E meditemos sobre a dor da morte!

3
Soneto baseado no romance “Graziela” do escritor francês
Alphonse de Lamartine (1790-1869).

[52]
Renan Caíque

Lamento de Inocência

Por várias noites eu vaguei sem rumo


Naquele lar de sombras e tormenta,
Afligido por uma dor violenta
E uma funesta obsessão que assumo,

E se vós quereis um fiel resumo:


No castelo mais escuro e onde não venta,
Uma criatura sanguinolenta
Morava — e há muitos séculos presumo! —

Eu fui em busca deste ser gelado,


Com o meu coração dilacerado
Atrás de uma paz por mim esquecida,

Devido a este monstro vil e horrendo,


Que sequer hesitando ou tremendo
Matou a minha amada, a minha vida!

[ 53 ]
O Mal do Século

Lágrimas de amor
E vias através de meus
olhos as lágrimas de dois.
Elizabeth Barrett Browning

E quando triste para mim sorriste,


A morte gélida beijou-te alma...
Célere como o amor a dor ensalma
Esvaneceu o teu penoso chiste.

No rosto meu, surgia um pranto em riste,


Espelhando um amor que não se encalma,
Eram dois choros numa lágrima alma:
Choros da minha e de tua alma triste.

Ai de mim por ainda ver teus olhos!


E neles os meus íntimos refolhos,
Onde secretos lagos de dor correm!...

Ó flor mirrada em solidão n’outrora,


O coração meu tu levaste embora!...
Por que morreste? Por que as flores morrem?

[54]
Renan Caíque

Doce Flor

Quem hesitaria, tendo um coração para amar


e, nele, coragem para declarar o amor?
SHAKESPEARE, “Macbeth” - Ato II, Cena III

Deixa-me, pois, amar-te, doce flor,


E afagar tuas pétalas graciosas,
Sentir-te terna como lindas rosas,
E suave, languescendo-me o palor...

Clamo, ó senhora, por teu resplendor,


Deveras clamo nas noites chorosas,
Por teu olhar, por tuas mãos formosas,
Pelo nosso suposto belo amor...

Amável musa, cândida princesa,


Tua presença aquenta-me a tristeza,
E alumia minha vaga solidão...

Sempre fui triste... sempre fui sozinho...


Mas se me amas e tens por mim carinho,
Enfim, sinto feliz o coração!

[ 55 ]
O Mal do Século

Manon Lescaut4
Em cada nuvem, em cada árvore,
na escuridão da noite, refletida de
dia em cada objeto, por toda a parte
eu vejo a tua imagem!
Emily Brontë, “O Morro dos Ventos Uivantes”

Oh! Lívida donzela, amo-te tanto!


Esmaece junto ao tétrico chorar
A aflição que jaz em meu olhar,
Ao contemplar teu intérmino encanto!

Dissipaste-me o gélido quebranto,


Que por muito habitara como lar
Um peito que jamais pudera amar,
Vivendo afogado em viúvo pranto!

Sonho contigo, e que tenho tua vênia


Para beijar-te a bela face branca,
E sentir o amor que as dores arranca;

Sinto que és a flor duma velha nênia,


Que me surgiste na alva solidão,
Pra de amor preencher-me o coração!
4
Soneto inspirado no romance ”Manon Lescaut” do escritor
francês Abade Prévost (1697-1763).

[56]
Renan Caíque

Então, Adeus!...

Guarda estes versos que escrevi chorando,


Como um alívio à minha soledade (...)
Machado de Assis

Guarda, querida, estes versos de amor,


Os últimos que para ti versejo,
Guarda-os, amor, e beija-os, por favor,
Pra que ao menos eles sintam teu beijo;

E me perdoa se te causei plangor,


Magoar-te jamais foi meu desejo,
Afinal me libertaste da dor!
Foste, eu creio, um anjo benfazejo...

E se um dia nos vermos porventura,


Não te terei olvidado, donzela!
Lembrar-me-ei de tua amável ternura!

E se um dia olhares pela janela,


Sente o vento gélido que murmura!
E um beijo sentirás na face bela!...

[ 57 ]
O Mal do Século

Amar-te

Quisera dizer-te tão-somente,


Sem abster-te da alegria, ou não,
Que a alegria de ter-te inda sente
O meu tão plangente coração;

Também falar-te maviosamente


Que em vão beijar-te é amar-te em vão,
E rente sonhar-te eternamente
É somente amar-te em solidão.

Mas não coubera a mim que a amargura


Da lembrança dura que perdura
Se tornasse essa agrura triste!

Não, eu não pensara que o passado


Tornar-se-ia um fado nodoado
E o amor o porquê que tu partiste!

[58]
Renan Caíque

Inverno

Quando chega o inverno


e o canto cessa; quando a
escuridão enfim desaba (...)
J.R.R. Tolkien

Estação da lugência e da morte:


Quando os sonhos virgíneos fenecem
E as lembranças alegres se esvaecem,
Sem que dentro de nós algo importe...

Quando o vento corrói frio e forte,


Os âmagos — que tristes adoecem —
E entre as flores fanadas perecem,
Sem que um último beijo os conforte!

Quando não há nenhum acalento,


Só a lástima do desalento,
Na interminável solitude!

Quando a luz da manhã nos assombra


E o desejo é viver pelas sombras,
A chorar... e a chorar amiúde...

[ 59 ]
O Mal do Século

Mentiras
Nunca são verdadeiras as coisas
Em que sentimos certeza absoluta.
Oscar Wilde; “O retrato de Dorian Gray”.

Crer apenas por crer e não pensar,


Não é deveras crer, é se prender
A um mundo de farsa e desprazer,
Em que jaz a verdade a se ocultar...

Talvez seja a fé na noite um luar,


Chama muda que nos muda o viver,
Mas tal vela que vela nosso ser,
Despida de razão pode cegar...

Se tu não questionas o que crês,


Não se julgues, dormindo, um dos insones,
Tua crença não é vera e não vês!

Algo sem convicção jamais abones!


Não importa se tu crês ou descrês,
O que importa é que tudo questiones!...

[60]
Renan Caíque

Agnosticismo

Uma catedral gótica e sombria


Foi onde lancei meu último adeus
Ao Deus que preenchia os sonhos meus,
Mas que hoje não é mais que alegoria.

Eu era surdo, cego, e em tudo cria!


Quase morri na crença vã de um deus,
E tanto rezei pelos logros Seus,
Com os olhos cerrados que eu vivia.

Mas ora enxergo o Nada que há latente,


Vendo apenas um mundo decadente,
De embustes e pessoas iludidas;

Eu creio unicamente no descrer,


E assim serei durante o meu viver
Nesta e, ironicamente, em outra vida.

[ 61 ]
O Mal do Século

Amor de Perdição
Amei tanta coisa...
Hoje nada existe.
Fernando Pessoa

Perder-te não quis; só quis o amor ter-te,


Na amara solidão em que eu te amara,
Mas se aprazer-te não é qual pensara,
Acaso te perder pode aprazer-te!?

Pois se a ti eu amara e tentei crer-te,


Era embalde como a flor que findara!
Só de entrever-te já eu me encantara,
E ora ver-te faz querer esquecer-te...

Morro deste amor... e lágrimas bebo!


Eis a sina dum lúgubre mancebo
Que amou demais: tal é o seu grave crime!

Nunca é cedo para uma partida,


E já me cedo à Morte em despedida!
Enfim, hei de sair de onde perdi-me...

[62]
Renan Caíque

Beleza Morta

Morreste num tombar de noite afeito,


No silêncio de um inverno tardio,
O coração de lágrimas vazio,
E lindas flores de amor sobre o peito!

À sombra duma cruz jaz o teu leito,


Sob o luar níveo, porém sombrio!
Se eu pudesse beijar-te o rosto frio,
Sentiria talvez o fel desfeito...

Como Cândido5 eu vago contristado,


À procura de ti, musa sagrada!
Porém não tive semelhante fado...

Desde a noite amaríssima e gelada,


Não há moça alguma que eu tenha amado,
Pois sem ti tudo se resume em nada.

5
Cândido é um personagem do livro "Cândido ou O Otimismo",
de Voltaire.

[ 63 ]
O Mal do Século

O Despertar

Entressonhei-te à sombra d'uma cruz:


Choravas sangue em uma sepultura,
De vestes negras, voz lânguida e obscura,
E sobre a face pálida um capuz.

Carpias sob da lua a triste luz,


E ecoava na noite a desventura
De ti, dama das puras a mais pura,
Reluzindo o encanto que seduz.

Oh! quase morri neste devaneio,


Ao soluçar por ti um almo anseio,
Num suspiro de amor e vã tristeza!

Despertei deste sonho que eu errara,


E lembrei quando tudo se findara,
Que morreste e morreu toda beleza!

[64]
Renan Caíque

Desejo-te
O Amor sacode meu coração
como o vento sobre a montanha
Inquietando os carvalhos.
Safo

Desejo-te, querida, tanto e tanto!


Perto de ti quisera estar agora;
Desvelar-te o amor que em minha alma mora
E que translado neste simples canto.

Sentir o teu mui grácil acalanto


Neste coração que por ti já chora,
E ouvir-te suspirar na triste aurora
Dos meus sonhares mádidos de pranto.

O meu desejo por ti é eterno,


Como eterno é o contar das estrelas
E tépido qual as chamas do Inferno.

Ah! e as lágrimas... já não posso contê-las!


São inclementes como o triste inverno!
Só contigo hei de não mais plangê-las...

[ 65 ]
O Mal do Século

Luxúria

Nas nuvens do amor, cheios de desejos,


Entrelaçam-se dois sedentos seres;
Para amar-te e ter-te esqueço os meus pejos
E caio em teus sedutores poderes.

Na volúpia de teus cálidos beijos,


Deliro ardentemente de prazeres,
Sentindo na boca os quentes arquejos
E ouvindo os suspirosos ais gemeres!

Minha língua nos teus seios macios


Aquecem inda mais meus lábios frios
E levam-me a um paraíso infernal!

Quero sentir a tua doce fúria,


Deliciando-me nesta luxúria,
Que é a sublime raiz de todo o mal!

[66]
Renan Caíque

A Confissão de um Filho do Século

Amei-te, amor, enquanto tive ensejo,


E se sobejo foi o meu amor
É porque tivera eu sempre o desejo
De teu beijo frio e arrebatador.

E nunca sei se por dor ou por pejo,


Jamais eu aprendera como expor
O amor pelo qual sofro e lacrimejo,
Num leito malfazejo de amargor.

Ó linda senhorita, doce ardor,


Tuas lágrimas são languidescentes,
Teus anseios perpétuos e latentes...

Ó enevoado e frio anjo de Amor


Os meus prantos por ti são eternais,
Almejo por ti sempre mais e mais...

[ 67 ]
O Mal do Século

Melissa

À noite, quando tuas cartas leio,


É como se ouvisse uma voz divina,
Que me afaga a alma em eviterno anseio,
Findando em meu coração a neblina.

E a solidão, outrora um triste enleio,


Preenche-se de algo que me fascina,
Algo que não sei se é um devaneio,
Mas que à minha escuridão ilumina.

Sim, qual se aqui estivesses, Melissa!


E eu pudesse tocar-te a face bela,
Vendo de perto o olhar de luz mortiça:

Teu olhar distante de Cinderela,


Que cada um dos meus pesares vela,
E tão doce e profundo me enfeitiça!

[68]
Renan Caíque

Melissa (II)

Vi-te em sonhos, Melissa, e tu choravas...


Circundava-me uma noite eterna,
Mas de ti emanava uma luzerna
E assim, embora triste, me alumiavas!

Esta luz – teu Amor que suspiravas! –


Ora me encanta e alegra, ora me inferna,
Pois é tão-só um sonho que te eterna
Em minh'alma – onde já quase expiravas! –

Pelas lágrimas tuas compreendi


Que a minha dor era a mesma de ti:
Poder apenas ver-te e jamais tocar-te!...

E ora cismo: o quão atra é a existência


Sob o infindo amargor de tua ausência,
Ao não me consolar nem mesmo a Arte!

[ 69 ]
O Mal do Século

Elegia

Mais um, e este será o último;


Nunca um doce beijo foi tão mortal.
SHAKESPEARE; Otelo, Ato V, Cena II

À sombra do escuríssimo cipreste,


Próximo destas árvores chorosas,
Descerram-se lembranças dolorosas
Do derradeiro beijo que me deste.

Recordo-me de teu olhar celeste,


A então contemplar as lôbregas rosas,
Que estavam congeladas... mas brilhosas,
Pelo Inverno, — que de dor tudo veste. —

A face deplorando amargo pranto,


Sobre um gótico túmulo, falaste:
"Vê como de tais flores morre o encanto!

O Inverno da vida também — que amaste —


Faz das almas cessar o breve canto!"
E beijando-me, "adeus!" tu suspiraste...

[70]
Renan Caíque

Vale das Sombras

Quisera sonhar de novo,


E nesse instante morrer!
Maria Browne

À meia-noite, em silêncio eternal,


Fitei, na Treva, um venusto jardim;
Corri, sôfrego, para vê-lo, e enfim,
Aproximei-me de um velho rosal.

Era o jardim um vale outonal,


Lá as flores estavam em seu fim,
Parecendo chorar tão-só por mim,
Murchas e com perfume sepulcral.

Então, senti uma melancolia,


E afoguei-me em devaneios tristonhos,
Sem entender aquilo que sentia.

Logo vi, em segundos enfadonhos:


Meu coração era o vale que eu via
E as flores meus doces e antigos sonhos!

[ 71 ]
O Mal do Século

Onírica Alegria

Indagam-me: "Por que tu és tristonho?


Por que versas só da vida a tristeza,
Enquanto no mundo há tanta beleza?"
E, tristemente, a responder me ponho:

"A vida não é mais que um negro sonho,


Onde reina a amaríssima frieza,
Morreram-se o amor e a delicadeza;
Não há motivos pra viver risonho."

"Amigo," — eles retrucam — há maldade,


Mas também existe felicidade;
Não é só aflição e melancolia."

E eu respondo: "Se alguém não sente a paz,


Este mundo jaz triste e não me apraz;
Se nele tem mal, não tem alegria."

[72]
Renan Caíque

Memórias

Sei que tentaste não me deixar só,


Só neste mundo — e outro mundo não há! —
Almejei tanto que ficasses cá,
Rezando aos deuses que tivessem dó...

Ah, mas — ai de mim! — agora és pó!


E em desatino o meu coração está...
Mas sabes: nosso Amor não morrerá!
Há entre nossas solidões um nó...

Os sussurros e as lágrimas de ti,


Eu escuto, litúrgicos, aqui,
Fazendo perdurar-me até o fim...

E as lembranças acalentam a dor,


Mantendo teu sorriso encantador,
Para todo o sempre próximo de mim!...

[ 73 ]
O Mal do Século

Inocência

Saudades de saudades que não tenho...


Florbela Espanca

Se choro, é pela flórida lembrança


De um tempo de sutil melancolia;
Sim, triste eu era! Eu, porém, vivia!
Afinal cultivava inda esperança...

Que saudades de quando era criança,


E cria num Deus bom que tudo via;
Pelas manhãs primaveris corria,
Alheio ao Tempo — que ora já me cansa! —

É dúlcida e aprazível a Inocência:


Não enxerga do mundo a decadência,
Nem vê o quão sem nexo é a vida!

E dos meus pensamentos nunca larga


De todas as lembranças a mais amarga:
A de pra sempre tê-la esvaecida!

[74]
Renan Caíque

Canção de Valhalla
Já vem escuridão e trevas, e devemos cavalgar
Para Valhalla, para o salão sagrado.
Edda Poética, "Hyndluljóð"

Cantaremos na noite a canção de Odin,


Neste evento bélico das nossas vidas:
Feridas profundas em almas perdidas,
Eternos banquetes, batalhas sem fim!

Avante guerreiros! morramos assim:


Fúria destemida e cabeças erguidas,
Pois as mais sublimes honras e bebidas
Nos aguardam no mais divino festim!

Guiados pelas Valquírias na frieza


Do norte mais gélido que o vate fala:
Asgard, onde em nada mais há tal beleza!

Passaremos pelas magníficas salas


Exaltados por nossas velhas proezas
Até irmos à gloriosa Valhalla!

[ 75 ]
O Mal do Século

[76]
Renan Caíque

Pranteio ao sentir saudade


Da tão pura mocidade,
De quando estavas comigo,
E andávamos no fúnereo
E venusto cemitério
Que agora tens como abrigo...
[ 77 ]
O Mal do Século

[78]
Renan Caíque

A Morte de um Poeta:
Um conto melancólico

E foram encontrados um cadáver, um livro de Edgar Allan Poe


e uma velha corda. E isto é tudo.

[ 79 ]
O Mal do Século

Era fim do século XIX, numa gélida e nevoenta noite de


outono, quando Vincent Burton, um jovem e pobre escritor norte-
americano recebeu uma inesperada carta dizendo que ele herdaria
30 mil libras e um castelo de um tio inglês cuja existência até
aquele momento lhe fora insuspeitada. Apesar do lado funesto do
acontecimento, o seu coração preencheu-se de júbilo, afinal não
tinha com quem contar, pois era órfão, filho único e não sabia de
nenhum parente. Também não tinha amigos; a solidão era a sua
única companheira; Vincent era escritor e ganhava pouquíssimo
para escrever para alguns jornais, e assim vivia; pelos seus poemas
e contos não ganhava quase nada e apenas os escrevia por prazer.
Preparou-se para partir logo na manhã seguinte, afinal a viagem
seria deveras longa; tudo o que levou foram os seus escritos e os
livros que mais apreciava, entre eles o seu livro de cabeceira
Frankenstein, além de algumas obras de Sheridan Le Fanu, José
Cadalso... e claro, o inebriante Edgar Allan Poe, sua maior
inspiração. Após tanto tempo de viagens e paradas em estalagens,
Vincent enfim chegou ao seu destino: Londres. Repetidas vezes
tivera a vontade insaciada de visitar a Inglaterra, e agora estava
chegando lá para morar.

Lamento, leitor, mas não posso dizer que o castelo


herdado do tio, era risonho e barulhento, como as casas nos
romances de Jane Austen. Na verdade era sombrio, gelado e
silencioso, pois era velho e os seus muros eram de tonalidade gris,
tinha poucos empregados e ficava um pouco afastado das casas
que ficavam mais perto, e numa parte alta, onde os ventos mais
frios batiam ao anoitecer, e de costume gatos negros furtivamente
passeavam com seus miados melancólicos pela obscuridade.

Cansado da longa viagem, Vincent pôs-se a descansar,


porém, ao som de uma chuva torrencial, teve vários pesadelos e
acordou quando ainda estava escuro, ao som de um corvo, e não

[80]
Renan Caíque

conseguiu mais dormir. Levantou-se e tentou escrever algo. Ficou


assim por horas... e no outro dia acordou em sua cadeira em frente
à folha em branco. Ao despertar, um arrepio mais aterrador que o
nunca mais perpassou em sua pele pálida.

Nos dias seguintes a chuva continuava caindo, mas


Vincent teve noites mais plácidas... até que começaram as visitas
de vizinhos e sobretudo de amigos e conhecidos de seu falecido
tio. Recebeu vários convites de eventos na sociedade; no início
recusava todos, mas aos poucos foi cedendo, afinal queria mostrar
ao mundo a sua arte, embora temesse em demasia a rejeição pelo
que ele mais estimava em sua existência: os seus versos, que eram
o reflexo de seus sentimentos mais profundos.

Não demorou muito para que todos simpatizassem com


ele, afinal era um jovem intelectual, de bela aparência, agora
também rico... além de ser talentoso! TALENTOSO! Era a
primeira vez que ele recebia tal elogio, e a sua reação foi
inesperada, afinal ninguém se atreve nem é capaz de descobrir que
segredos e mistérios guardam o coração humano. Bem, eis o que
aconteceu:

Certa vez convidado para a casa de Lord Clairmont, velho


amigo de seu tio, conversava com este sobre literatura:
— Bem, meu caro, mas Byron nem foi tão grande assim.
Seus versos eram repletos de imperfeições, e quando não tinha por
intuito simplesmente escandalizar, visava à ridicularização néscia.
A maior parte de sua fama deve-se apenas à sua vida desregrada e
repugnante e não ao seu talento, pois isto muito lhe faltava.
Idolatrava Pope, mas jamais chegou aos seus pés; tinha como livro
de cabeceira o Vathek de William Beckford, mas jamais escreveu
algo que lhe comparasse tanto em efeito quanto em encanto —
dizia o Lord Clairmont.

[ 81 ]
O Mal do Século

Vincent, como bom byroniano, já pensava em seu íntimo “Argh!


um conservador!”, e então revidou:
— Senhor, permite-me discordar de ti. Byron é, e suponho
que não deixará ser tão cedo, o maior gênio já nascido em terras
britânicas, no que tange à Literatura. Os versos de Byron por vezes
continham sim desleixos, porém que em nada diminuíam o valor
de suas obras. Sua vida foi apenas um complemento do que
escreveu, e não é à toa que recebeu elogios de gênios como
Goethe e Poe.

Começou a falar o Lord Clairmont, novamente:


— Aaah, que seja, pensa o que quiseres agora, mas tu ainda
és jovem, e imagino que quando fores mais velho e experiente
como eu, abandonarás essa opinião... Entretanto, eu gostaria de
falar contigo de um novo gênio literário que conheci
recentemente.

— Quem é? Que eu saiba Poe foi o último gênio literário


que existiu... — assim disse Vincent.

— Ora, Poe é apenas mais um louco sem talento... Refiro-


me a ti, Sr. Burton. Andei lendo alguns poemas teus publicados no
Examiner, e percebi logo que és muito talentoso. E conheço
pessoas que estariam dispostas a financiar os lançamentos dos seus
livros e, modéstia à parte, sou amigo de muitos críticos e editores.
Sim, meu caro, tens um grande futuro, és muito talentoso. — ele
terminou de dizer isto, enquanto piscava para o confuso poeta.

Neste momento, Vincent ficou paralisado! Surgiu um


sorriso quase imperceptível em seus lábios, mas em um segundo o
sorriso morreu. Suas pernas tremiam, seu coração batia acelerado,
o suor escorria pela sua face alva, lágrimas desciam dos seus olhos.

[82]
Renan Caíque

Era a alegria mais triste que ele sentira em sua vida! E sem dizer
nada, ele saiu correndo, o que deixou o Lord Clairmont perplexo...
Vincent recusou o coche e partiu a pé.

Era noite. A desoras, entre a neblina fantasmagórica e a


frieza do outono, enquanto caminhava solitário, mergulhado em
introspecção, ele contemplava com os olhos do coração as
sombras que passeavam dentro dele. Estava um silêncio sepulcral
e ele refletia, sentindo negra mágoa, no quão a vida se tornara vaga
e sem sentido tão de repente. Repetia mentalmente um verso de
Coleridge: “Quem encontraria Tristeza mais triste?”. Ao chegar em
seu castelo, subiu as escadas e trancou-se em seu quarto, e
começou a chorar lágrimas que eram suspiros de sua alma. Deitou-
se no chão gelado, e decaído e desconsolado adormeceu.

No outro dia, acordou ao sussurrar do vento lúgubre; já era


manhã. Vestiu-se. E ele nunca se vestira antes tão majestosamente.
Pegou uma faca e, literalmente escreveu uma carta com o seu
sangue. Queimou todos os seus escritos, e leu um trecho de um
livro que estava em suas mãos, que dizia “O homem não se rende aos
anjos nem à morte totalmente, a não ser pela fraqueza de sua vontade débil” 6,
e logo após, enforcou-se.

Bem, leitor, certa vez disse um crítico literário, do qual não


me recordo o nome, que Edgar Allan Poe, em oposição a outros
escritores de terror, nas suas histórias, não colocava pessoas
comuns em situações diferentes e sim pessoas diferentes em
situações comuns. Poe era uma dessas pessoas diferentes e o nosso
Vincent também. Eis a sua derradeira carta escrita com sangue:

6
O fragmento é do filósofo inglês Joseph Glanvill (1636-1680) e foi
citado por Edgar Allan Poe em seu conto Ligeia, de 1838.

[ 83 ]
O Mal do Século

“Quisera eu sim ter sido reconhecido por meu talento —


se é que já tive algum. — No entanto, não foi o que ocorreu! Meu
nome, meu dinheiro e meus bens é que mereciam os aplausos e
elogios que a partir de hoje provavelmente eu receberia. Não sou
digno de ser reconhecido se Poe em vida não o foi, e ainda mais
de maneira tão ignóbil! Por isto, agora, despeço-me da glória que
não tive, pois glórias obtidas por futilidades são desprovidas de
valor, e deste mundo, que é não mais que o imenso palco de uma
tragédia shakespeariana de atos infinitos! Se existe um Deus, Ele
não nos fez imortais por algum motivo... Mas e se Ele não existe?
Neste caso, a morte pode ser só o fim de uma existência sem
sentido, emanada do acaso... Mas não é triste a morte em qualquer
hipótese, triste é a separação... e o pensar na possibilidade de que
jamais haja um reencontro. Sim, a morte é um mistério! Mas o
mistério é algo inefável, meus caros, apesar de às vezes soar
deveras assustador. E o que seria da vida sem a beleza apoteótica
do mistério? As lágrimas me cegam enquanto escrevo, e não sei
por que... talvez por pensar na simples possibilidade de a teoria
nietzschiana do Eterno Retorno, ser verdadeira. A vida que
vivemos, vivendo eternamente: os mesmos erros e acertos, as
mesmas alegrias e tristezas, tudo igual, repetindo sempre... um
ciclo sem fim! Mas desejo profundamente que isto que não seja
possível.

Enfim, adeus!
Vincent Burton”

E foram encontrados um cadáver, um livro de Edgar Allan


Poe e uma velha corda. E isto é tudo.

[84]
Renan Caíque

O Libriano e a Aquariana
Ao meu “primeiro grande Amor”

Esta não é uma história de amor.


É uma história sobre um encontro de almas perdidas
que após séculos se reencontraram.

[ 85 ]
O Mal do Século

Ele amava a noite, ela também. Ele amava o frio, ela


também. Ela amava roupas pretas, ele também. Ela era estranha,
ele também. Os dois eram jovens que afeiçoados à solidão
passaram a maior parte de suas vidas ocultando os seus
sentimentos, chorando em seus quartos, onde ninguém poderia
ouvir ou ver aquelas lágrimas que refletiam corações já
transbordando de tanto reprimirem o que havia em seus interiores.
Neste tempo, ainda não se conheciam, caso contrário talvez teriam
sido bons amigos e viveriam em uma solidão a dois. Talvez.

Eles se conheceram somente anos depois, quando eram


pessoas relativamente diferentes de outrora: haviam feito
amizades, tido relacionamentos e experiências que os tornaram
mais sociáveis. Porém, as suas essências continuavam introvertidas
e à procura de algo que não sabiam.

E mesmo se conhecendo, demoraram para perceber que


sentiam algo pelo outro e para expressar isso: era uma felicidade
tímida por terem encontrado alguém com quem se identificassem
tanto e sentissem uma conexão que nunca haviam sentido antes. O
que era esta sensação? Amor? Paixão? Eles não sabiam, era um
mistério a ser decifrado.

Mas talvez fosse apenas saudade... Saudade entre duas


almas antigas que eram apegadas e em algum momento, há muito
tempo, acabaram por se separar, e só agora se reencontravam. E a
noite em que descobriram isso – ou algo parecido – foi a mais
marcante que ambos sentiram desde muito tempo.

No céu não havia estrelas nem a lua, apenas uma escuridão


vazia. Soprava ventos frios e as notas ternas de uma chuva branda
dissipavam melancolicamente o silêncio que jazia nas sombras da

[86]
Renan Caíque

noite. O jovem esperava ansiosamente no horário marcado de se


encontrarem, temendo que ela não aparecesse.

Para sua surpresa, ela apareceu. Trazia um sorriso doce


resplandecido em sua face, que aparentava ter chorado há pouco
tempo. Suas mãos eram pálidas e geladas, mas o coração quente.
Seu rosto era triste, mas belo e delicado como o rapaz imaginava
serem os anjos. Sua voz soava como a mais bela canção dos
Deuses e os seus olhos castanho-escuro espelhavam uma moça
cheia de sonhos e de esperanças, mas também de medos. Os dois
se abraçaram calorosamente, o jovem tocando os cabelos
cacheados dela, que mais pareciam rios negros e continham um
perfume hipnotizador.

Eles conversaram por horas, compartilhando as suas


desventuras, rindo das ironias da vida, pensando no futuro, se
aquecendo e dançando em uma rua escura e solitária como duas
pessoas que em um momento de êxtase não ficaram com receio de
parecer loucos. Foi neste momento que aconteceu o primeiro
beijo. Mas não foi apenas um beijo! Foi doce, mas ao mesmo
tempo intenso; durou apenas alguns segundos, mas pareceu ter se
passado horas, e os dois jovens pensaram ficar a noite inteira
naquele beijo e até desejaram morar nele; havia algo de encantador
e especial que eles não entendiam, até quando o beijo terminou e
de repente perceberam:

Eles não eram duas almas perdidas, era apenas uma! Há


muitos séculos, quando os Deuses criaram o mundo, criaram
infinitas almas, porém algumas poucas saíram diferentes, e os
Deuses nunca entenderam por que: elas carregavam tantos
sentimentos dentro de si que excediam o que Eles haviam
planejado. Para consertar o erro, resolveram transformar essas
almas em duas cada, e fazer com que em suas várias vidas na Terra

[ 87 ]
O Mal do Século

não lembrassem deste detalhe a não ser que se beijassem, que seria
algo altamente improvável em um mundo imensurável.

Mas a existência é irônica e repleta de mistérios. E eis que


os dois jovens eram uma dessas pobres almas que foram divididas.
Agora tudo fazia sentido para eles. Eles eram apenas um.

[88]
Renan Caíque

Liberdade
Sei que não sei nada... e que nada sou. Descobri, em
momentos de crise existencial, enquanto derramava lágrimas na
solidão de minha alma. Sei também, que posso ser o que quiser.
Descobri quando amei pela primeira vez e senti o júbilo e a
esperança exalarem de todo o meu ser para a imensidão.

O ser humano constantemente tem esta dualidade de ser


inconstante; pode ser pessimista hoje e perceber a vida como um
afã longo e enfadonho, e pode ser otimista amanhã e viver em um
aprazível mar de rosas que tende a melhorar para todo o sempre.

Mas... o que somos afinal? O inseto de Kafka ou o super-


homem de Nietzsche? Em minha concepção, somos apenas
humanos, mas podemos ser muito mais ou muito menos, e o que
define o que seremos além ou aquém, somos nós mesmos, apenas
nós... sim, temos liberdade para tal!

Ah, a liberdade! Sartre dizia que "estamos condenados à


liberdade": inicialmente, não somos nada, apenas existimos e a
cada momento construímos as nossas vidas modelando a nossa
essência; não a sociedade, não a natureza e nenhum Deus, apenas
nós.

E, querendo ou não, somos livres para fazer o que


quisermos, e isto de certo modo é angustiante, porque devemos
lidar com as consequências das escolhas que fazemos e a anulação
das que somos indiferentes, e eis uma grande responsabilidade,
pois o que surge daquilo que escolhemos ou deixamos de escolher
geralmente não afeta só a nós, mas ao que nos circunda.

[ 89 ]
O Mal do Século

Quando tentamos fugir de tal responsabilidade e não


aceitamos como nossas as escolhas que geraram as consequências
(por exemplo culpando uma divindade), Sartre dá o nome de "Má
fé", porém mesmo que não queiramos aceitar, continuamos sendo
livres e este é um caminho inescapável para sempre, enquanto há
vida e não retornemos ao Nada.

Em suma, é simplesmente como escreveu Alan Moore em


V de Vingança, que a vida é um jogo, onde recebemos máscaras e
fantasias e um esboço da história, depois somos simplesmente
largados para improvisar neste cabaré vicioso. Ora, improvisemos,
então, como bem quisermos... sim, pode não parecer, mas somos
livres!

[90]
Renan Caíque

Relógio quebrado
A Saudade sempre é um sentimento lúgubre, pois nos faz
recordar de algo bom que de algum modo marcou a nossa alma. E
o que torna a lembrança triste é o fato de ela ser apenas lembrança!
É o que faz as coisas pararem no Tempo, já dizia Quintana. Uma
ilusão que ecoa nos nossos corações com a desesperança de
tornar-se real, afinal ela jamais voltará, não importa o que façamos,
sintamos, pensemos, desejemos... não se pode voltar ao passado,
como se volta a página de um romance. Eis uma das tragédias
inevitáveis da vida: conviver com reminiscências mortas, que tais
como pálidos fantasmas assombram a nossa memória.

Porém, há muitos corações que encontram na solidão da


Saudade um certo conforto (apesar de triste), por ela lhes conceder
um ínfimo fragmento do momento de nostalgia, e o calor do
alento transfigura-se em suas faces. Alguns não suportam a
Saudade, o que os faz por longas horas mortas jogarem um pouco
dela fora, através de copiosas lágrimas. E há outros que a encaram
friamente, para mostrarem que são fortes; e estes na verdade são
os mais frágeis. O mundo tem "pessoas sérias" demais; o que o
mundo precisa é precisamente do contrário: pessoas que sintam
mais e demonstrem tais sentimentos e, sobretudo, que amem mais.
Entregar-se a sentimentos não é ser frágil, e sim, ser natural, pois
está na natureza humana sentir. Uma vida sem sentimentos torna-
se uma existência gélida e vazia.

[ 91 ]
O Mal do Século

Devaneio epistolar
Eu
Cismo só,
Tristemente,
Só o silêncio ouço,
Vago pelo vago inverno
Que jaz eterno dentro de ti
Como Hamlet, cego em frenesi,
Porém sem despir-se de sua razão.
O que pode ser esta breve existência
Sem o leve sorriso teu, ao menos um?!
Não me perguntes porque suspiro, imploro!
Já afeito à negra cruz de espinhos que é viver,
Por vezes, eu tento parecer-me alegre sem o ser;
Sem tua presença eu não posso. Só se aqui estivesses,
Eu iria a qualquer lugar e enfrentaria quaisquer martírios,
Mesmo se chorassem os deuses, por esse venenoso e doce amor.
Lembrar-me de teu rir angelical e ironicamente diabólico
Me faz viver novamente e me aniquila impiedosamente!
Destrói em mim a tranquila amargura dos velórios
E me traz um jardim de sofrimentos incorpóreos.
Esse silencioso pandemônio me consome...
Só tua visão sob o véu da madrugada,
E o teu nome ao gemer dos ventos,
Retalha o meu vazio existencial.
Mas, perdoa se o que escrevo
É romanesco em demasia,
Do que sinto faço poesia
E não minto! É a única
Certeza que guardo...
Eis meu desfecho!
Soluço morrendo
E escrevendo
Este trecho:
Amo-te.

[92]
Renan Caíque

Memento Mori

A Morte nos faz anjos e nos


dá asas onde ficavam os ombros
suaves como as garras do corvo.
Jim Morrison, "Uma Oração Americana"

Oh, não há hora no mundo em que


não abra um túmulo e não faça
correr mares de lágrimas.
F. René de Chateaubriand, “Atala”

Sinos duma velha igreja solitária


Vibram em notas lentas, chorosas,
Que ecoam preludiando
O findar das rosas...

Era noite mais negra que de costume.


Sussurravam macabra canção
Os corvos que voejavam
Pela escuridão.

Confusos, evocando, soturnamente


A dama dos escuros cabelos
Que vagava pelos túmulos,
Sorrindo ao revê-los.

[ 93 ]
O Mal do Século

II

Ela sorria, mas de melancolia...


Os seus olhos pretos eram cândidos
E diziam mais que mil
Poemas românticos.

Em seu rosto o brilho da lua gelada


Dissipava as ilusões humanas;
Pouco a pouco emergiam
As verdades profanas...

Suas madeixas eram mares sombrios


Que pela meia-noite corriam,
Trazendo as pungidas almas
Dos que então partiam...

III

...Distante, um jovem que adoecera,


Delirava, em condição febril;
Foi quando, misteriosa,
A moça surgiu.

O rapaz afogado em dor, observava,


Assustado, a mística mulher;
Porém, sem ousar dizer
Palavra sequer.

"Não temas minha face pálida e triste",


disse ela. "Hoje é teu dia de sorte.
Se queres saber quem sou:
Prazer; sou a Morte!"

[94]
Renan Caíque

O Último Suspiro da Donzela

Ai! que mais esperava neste mundo


No acordar da ilusão,
Sentindo a horrível aridez da vida
Gelar-lhe o coração!?
Cardoso de Meneses

I
Vagueava a donzela noite a dentro,
Em suas brancas vestes,
A pele pálida e os cabelos negros,
Negros como ciprestes;

II
Triste! — ela lamentava ter nascido:
Chorava amargo pranto!
Prostrada sonhara viver de amores,
Em quimérico encanto;

III
Ah! mas a vida amostrou-lhe do mundo
A ingente escuridão!
E os seus cândidos sonhos de inocência
Desvelaram-se em vão!

IV
Ela vagava... acaso em busca de algo...
E talvez da verdade...
E o que é mais verdadeiro que a morte,
— replena liberdade — ?

[ 95 ]
O Mal do Século

V
Ao aproximar-se de um abismo,
Cismava tristemente:
"Ó Vida, o que és, além deste nada
Sombrio e decadente?

VI
Não sei... mas não mais desejo viver,
Pois a alma já não vive;
Foram todos tristíssimos e ao léu
Os momentos que eu tive."

VII
Ela cismava como o Manfred de Byron,
Em profunda tristeza;
Porém trêmula jazia sua alma,
Absorta em incerteza...

VIII
O livro de sua breve existência
Na mente folheava,
Percebendo logo que cada folha
Ainda em branco estava...

IX
Queria morrer, mas temia a morte...
Até que escorregou:
Quando caía, um lâmure suspiro
De sua alma ecoou...

[96]
Renan Caíque

X
Não sei o que ocorreu à pobre moça
Após a sua morte,
Nem se lhe choraram a não vivida
Triste vida sem norte,

XI
Mas gosto de pensar que ela encontrou,
Enfim, a paz sonhada
E os seus lacrimosos sonhos de amor
A tornaram amada...

[ 97 ]
O Mal do Século

Uma Fábula Romântica

Oh! Amor! É perfeita a tua arte mística,


Fortaleces os fracos, e enfraqueces os fortes!
Lord Byron, “Don Juan; Canto I, CVI”

I
Pressinto em meu porvir apenas trevas,
São sombras o meu fado.
Mas, ó amada, inda viso fulgores,
Quando estás ao meu lado.

Se vivo é por ti, pela poesia


E pelo elísio vinho.
Amemos neste velho cemitério,
Ó meu pálido anjinho!

Tocas o teu lôbrego violino


Sob o luar celeste,
Em meio aos túmulos frios dos mortos,
Em mortuárias vestes.

Os mortos ouvem, ouvem e se enlevam!


Além da canção tua
Ouve-se apenas fúnebre silêncio
Sob o olhar da Lua.

Aquietas a tua triste música


E versos meus eu leio:
Soluças! Não sei se é dolência ou júbilo

[98]
Renan Caíque

O que jaz em teu seio!

Porém, logo sorris bebendo vinho;


Beijo-te e também bebo.
E no anoitecer tétrico sorriem
A donzela e o mancebo...

II
Amemos! Sim, amemos toda a noite!
Mas por que em tal longevo cemitério?
Ora, fitemos cada sepultura,

Cada flor, cada nome, cada foto!


Faz-nos memorar como fugaz passa
A vida e sua efêmera ventura!

Talvez — quem sabe — façam-nos saudade


Mesmo as lágrimas tantas de tristeza
Que tornaram um dia nossa alma escura!

Afinal, que tragédia é lembrar-se


Do passado: dos bons ou maus momentos...
Amemos, pois, enquanto a vida dura!

III
Transcendente é estar com quem se ama
E observar estrelas!
Queimar-se no amor e suas chamas,
Sem jamais temê-las!

Sorrir ante as sepulcrais estátuas

[ 99 ]
O Mal do Século

Em febris delírios!
Ver o quão pode a morte ser fátua...
Como para os lírios!...

Suspirar de languidez e amor,


Meigo e taciturno!
Sentir das flores murchas o odor
Ao ventar noturno!

Que amável solidão a dois


É contigo estar,
"Olhando para o antes e o depois
Sem mesmo piscar."

Pudesse, querida, assim a vida


Para sempre ser:
Ter-te em meus braços adormecida,
Contigo morrer!

[100]
Renan Caíque

Amor (?)

Em meus versos
Há um amor doce,
Porém amargo e triste.
Mas que mesmo em solidão
Ainda existe...

Em meus versos
Há um amor,
Que é tecido
De sonhos,
Que me mata
E me faz viver...

Viver mesmo na morte.

Um amor solitário
Que jamais começou,
E que jamais terá fim.
Um amor que se foi
Mas que ainda está em mim...

[ 101 ]
O Mal do Século

Tristeza Byroniana

Ai! Não nutro esperanças, nem tenho saúde,


Nem paz interior nem placidez ao meu redor...
Percy Bysshe Shelley

Em breve hei de finalmente morrer...


Mas não é por ti, não é!
Se morro é por angústia de viver,
E por em nada ter fé!

Não consigo escrever mais nada... nada


Além destes pobres versos!
Perdoa-me a alma errante e contristada
De sonhos em pranto imersos.

Este padecimento atroz persiste...


Destarte minha alma chora.
Ó céus, que culpa tenho se sou triste,
Como Byron foi outrora?!

Falas-me de Amor e da Natureza?


Não, não me encanta mais nada!
Não vejo luz, apenas escureza,
Nesta solidão que enfada...

[102]
Renan Caíque

Sou malfadado como um vampiro,


Em minha imortal tristeza;
Nem o teu Amor finda o meu suspiro
Pela Morte e Sua beleza.

Sim, se eu pudesse, em vida inda amar-te-ia


A cada tempo que escorre,
Mas há muito jaz sepulta a alegria,
E o meu Amor também morre...

E se morre o Amor, dize-me: o que resta?


Oh! nada além de um vazio...
Tudo se esvai na escuridão funesta,
Como lágrimas num rio!

[ 103 ]
O Mal do Século

Lembra!
Porventura, te deslembraste, Amor,
Das trevas em quietude,
Da lua triste a chorar,
Da palidez do luar,
Do frio desolador?!

Será que não te lembras, ó querida,


Daquelas cálidas lágrimas
Plangidas na noite fria
Por minh'alma em alegria,
Só de ter-te em minha vida?!

Oh! acaso é possível te olvidares


Das jubilosas lembranças,
Das lembranças suspirosas
E das solitárias rosas
Secas de desesperança?!

Relembra, tácita donzela, lembra,


Dos sorrisos e dos prantos
Que inundaram em outrora
Nossas almas com a aurora
De lamentações e encantos!

[104]
Renan Caíque

Suspiros de Melancolia

I – Devaneio
Minha pobre alma, que ilusão a tua!
Alphonsus de Guimaraens

Tudo vive para voltar a


morrer de maneira triste.
F. Schiller, “Os bandoleiros”, Ato IV, Cena II

Ora desperto tristonho...


Que sonho tive! Que sonho!...
Sonhei que tu me sorrias
Numa noite fria e escura,
Sorrias deveras pura
Por entre campas sombrias...

Juntos em um cemitério,
Teu olhar brando e cimério
Me enlevava o coração;
Tua insondável beleza,
Ornada em sutil tristeza
Alumbrava a escuridão.

[ 105 ]
O Mal do Século

Oh! dona do meu amor,


Eras a mais linda flor
Daquele negro jardim,
Tinhas o brilho da Lua
No palor da pele tua
E dentro um amor sem fim;

O meu coração gelado,


Era, aos poucos, aquentado
Por teus suspirosos beijos,
Beijos ardentes de amor...
Ah! e com morrente langor
Fazias os teus gracejos!

Cada vez que te beijava,


Minha face se descorava;
A cada sorriso teu,
Chorava lágrimas frias
E relembrava agonias
Que se iam do peito meu...

Mas sempre que te tocava,


Tua sombra se afastava;
Isso até que percebi
Que fora apenas um sonho
Pra tornar-me mais tristonho,
Pois jamais terei a ti!...

[106]
Renan Caíque

II - Saudade

Vivíamos só de amor,
Nada era escuro ou sem cor,
As flores tinham perfume,
Na natura havia encanto,
Era em vão o ardente pranto...
Até sombrear-se o lume!...

Antes de partir fizeste


Juras de amor e disseste:
“Não é nada triste a morte,
Não chores minha partida,
Chora a vida não vivida,
Esta é a mais triste sorte."

Tentei crer em tais palavras


Que suavemente falavas,
Mas cobriu-me a palidez
Veemente, mas sombria
Da cruel melancolia
E a alegria se desfez.

Quando tu enfim te esvaíste,


Não houve noite mais triste!

[ 107 ]
O Mal do Século

Tornei-me errante e sozinho...


Tal fel me exauriu! Só eu sei
Quantas lágrimas chorei,
Afogado em spleen e vinho...

Ah, a vida já é tão curta


E a dor tempo inda me furta...
Porém, já não mais importa!
Que eu beba o último hausto
E logo, pereça infausto,
Pois minha alma já está morta!...

III - Desventura
Cintilam no céu estrelas da morte,
Volvo os olhos lôbregos para a Lua,
Percebo-a prantear a triste sorte
De minha dor tão Sua...

Ó Lua, resplende em meu coração


Como nas noites de outrora fizeste!
Passemos nossa última solidão
Com teu brilho celeste!...

[108]
Renan Caíque

Não lamentes o vago padecer


No entristecer de tal negro destino
Nem chores meu derradeiro planger
Qual um triste violino!...

Choremos as flores mortas das trevas,


Bebamos vinho entre gélidas cruzes...
Pois eu morro, ó Lua, enquanto te elevas
E no escuro reluzes...

Já sinto a Morte fria e taciturna


Fitando-me a lânguida palidez.
Ceifa-me a alma, altiva visão noturna!
Leva-me de uma vez!

[ 109 ]
O Mal do Século

Lago de Lágrimas
Pranto sem fim que dos meus olhos corre...
Auta de Souza

Diversas são as lembranças


Em meu triste peito,
De amores e de esperanças
Há muito desfeitos.

Tanta é a fatal tristeza


Que em mim extenua
A adormecida Beleza
Já pálida e nua.

Mais, a cada novo dia,


A vida parece
Um vale sem alegria,
Onde o Amor perece;

Obscuro vale de lágrimas


Amargas sem fim,
E no qual nada mais vale
Algo para mim.

[110]
Renan Caíque

Quem és tu?!
As longas noites escuras, quando a lua
esconde a face e as estrelas têm medo,
não são tão negras como o teu cabelo,
nem o atro silêncio que mora na floresta
se lhe pode comparar.
Oscar Wilde. “Salomé”, Cena III

Quem és tu que docemente me encantas


Com teu poético olhar?
E com uma tão suave voz cantas
Fazendo-me suspirar?

Quem és tu, ó formidável mulher


Do sorriso mais perfeito?
Teu rir alegre brilha onde estiver
— E todo fel é desfeito. —

Quem és tu, dama dos negros cabelos,


Que dançam voando ao vento?
Simplesmente o doce prazer de vê-los
Causa-me júbilo e alento.

E basta a tua aprazível presença


Para eu me sentir melhor
Uma palavra só faz diferença:
Torna a tristeza menor.

[ 111 ]
O Mal do Século

Tu só podes ser um anjo que veio


Trazer luz à escuridão...
Sim, diz-me, ó Divino Devaneio,
Tuas asas onde estão?

[112]
Renan Caíque

Os Teus Olhos
Há um amor tão triste
Profundamente em teus olhos...
David Bowie, “As the world falls down”

Refletem um sentir disforme,


Encantado pelo mistério!
Neles uma tentação dorme
Sob um resplendor terno e etéreo...

Tão belos, doces! Tanto exprimem!


Ah sim, por deuses foram feitos!
Digo convicto: até me oprimem
Os olhos teus de tão perfeitos.

Saem chamas de tais pupilas,


Recônditas pelas trevas densas;
Lembro-me de como é senti-las:
Hermético mais que tu pensas.

Olhos sublimes! E que falam!


Sonho com eles e a doçura
Do amor e do encanto que exalam
Introspectivos em loucura!

[ 113 ]
O Mal do Século

Viver sem olhar teu olhar


Imagino o quão vão seria...
Nada mais pode despertar
Os vestígios de minha alegria:

Sem ti, sentiria (em) silêncio.

[114]
Renan Caíque

O Teu Mistério
Foi por ti que pensei que a vida inteira
Não valia uma lágrima sequer...
Álvares de Azevedo

Sonhei contigo... há muito tempo,


Há várias vidas na verdade.
E clamei em vão por teu olhar!
Lágrimas e sonhos se misturaram...

Porém, eis que te reencontro


E ainda não ouço a tua voz,
Mas consigo sentir a tua alma
E me conecto por teus olhos.

Teu mistério é teu encanto...


Um dos vários que a tornam única.
E é teu enigma que preenche
O que há de vazio no mundo.

Na sombra da sombra que separa


O meu coração triste do teu,
Vive um pálido devaneio de amor
Que se esvai nos ecos do silêncio...

[ 115 ]
O Mal do Século

Voltei a respirar e a entender o viver


Quando contemplei tua existência,
E me fascinei com as tuas belezas:
A que é falsa e a verdadeira.

Não peço mais nada da vida,


Além de apenas um sorriso teu,
Que emane sincero de teu espírito,
E me faça sorrir também.

[116]
Renan Caíque

Uma paixão efêmera


Posso ver na vermelhidão
Das chamas dos teus cabelos
Que me chamam com paixão
Para ternamente tocá-los e vê-los...

Apreciando a tua face linda


Que divinamente me fascina
Como se uma luz infinda
E inexplicável te tornara divina.

E dos teus olhos o que falar?


Carregam a meiguice e a doçura
Dos sonhos mais belos que se pode sonhar
E da mais pura e harmônica pintura,

Tal qual se nem a Natureza e a Arte


Que aos maiores poetas inspirara
Pudessem algum dia imitar-te
O teu desenho e tua forma rara!

Não digo nada de tua companhia...


Pois como poderia explicar
Esta doce e encantadora magia
Que faz qualquer um se apaixonar?

[ 117 ]
O Mal do Século

Digo apenas que meu coração sorri


E é aquecida a minha alma fria
Quando estou perto de ti,
Pois além de mulher, tu és poesia.

[118]
Renan Caíque

O Último Poema de Amor


Não há dúvidas de que neste mundo
nada é tão indispensável quanto o amor.
Goethe, "Os sofrimentos do jovem Werther"

Eram apenas mentira


Os versos que eu escrevera!
Jamais amor eu sentira
Ou de uma paixão vivera!
Só agora de fato sei
Que existe o que tanto sonhei...

Eu conheci uma flor,


A rosa mais perfumosa,
E descobri o Amor.
Mas ante tão bela rosa,
Que causa inveja ao luar
Quem não poderia amar?

Há alguém frio o bastante


Pra não sentir teu encanto
E perdurar inconstante?
Há quem não vertesse pranto
Após ver a perfeição,
De ti, divina criação?

Oh, se fui triste um dia


E em tudo via amargura
Era porque eu não sabia
Que a vida é fria e obscura

[ 119 ]
O Mal do Século

Para aqueles que não amam


E pelo amor jamais clamam.

Sim, mas agora eu sei


Que amar é a mais bela arte!
Tudo o que outrora chorei
Findou ao passar a amar-te.
Enfim, sinto-me feliz
Pois és quem eu sempre quis.

[120]
Renan Caíque

Um Ensaio Sobre a Solidão


Certa noite, eu caminhava sozinho, e então me veio um
pensamento: "Ah, seria ótimo se ela estivesse aqui, ao meu lado;
conversaríamos sobre tantas coisas, algumas sérias e outras
nem tanto; filosofaríamos acerca de questões essenciais da
existência humana, mas também riríamos de bobagens e coisas
sem sentido." Naquele momento, eu me senti solitário e triste,
pois ela não apareceu; e confirmei uma concepção que há
tempos eu mudava e que sempre atormentava a minha mente:
a solidão, em alguns momentos, pode ser boa e salutar, quando
ela é parcial; no entanto, quase sempre, é incomparavelmente
pior do que estar com alguém que se ama, sobretudo quando é
plena e contínua. Não faz sentido viver só. A sabedoria pode
abraçar a alma daqueles que compreendem e aproveitam o
silêncio da solidão, mas quem consegue isto talvez não possa
ser humano. Digo isto, porque passei grande parte de minha
vida isolado de todos. E foi um tempo difícil de minha vida,
pois eu me sufocava nas palavras que não eram ditas, afinal
não havia ninguém para contar o que sentia e o que pensava, e
ainda assim considerava a solidão o melhor caminho. Isto
ocasionava muitos outros sentimentos ruins como remorso,
medo, tédio, ódio, desprezo pelas pessoas e pelo mundo...
Sempre tive um gosto pelo noturno, pelo sombrio, sempre
preferi os livros e filmes mais dramáticos e trágicos, as músicas
e poemas mais tristes, os escritores mais melancólicos e
“estranhos” com os quais me identifico, as pessoas mais
misteriosas, personagens mais sofredores, lugares escuros e
silenciosos, o clima frio, sempre enxerguei na morte um
descanso e na vida um completo enigma que nunca consegui

[ 121 ]
O Mal do Século

decifrar. Às vezes, intensificada minha persona nefelibata, eu


pensava que não era deste mundo; sentia-me tão estranho e
deslocado em meio às pessoas, inclusive às que gosto, pelas
minhas preferências e meu jeito “excêntricos”. E ainda uma
vontade de me isolar de tudo e de todos, é o que vez ou outra
surge em minha mente, quando a vida parece não ter lógica. E
quando isso se manifesta mais profundamente dói, dói tanto...
que nada pode me fazer me sentir melhor. Escrever ajuda um
pouco, mas nada de significativo... Mas sei que me afastar das
pessoas não é o caminho, apesar de em determinados
momentos o desejar. A crença nas relações humanas que passei
a adquirir nos últimos tempos me trouxe muitos momentos
belos e inesquecíveis. Por outro lado, também adquiri muitas
tristezas, talvez por minhas falhas tentativas de socialização.
Quase todas as pessoas de que gosto acabam se afastando de
mim em algum momento, o que me faz pensar se a culpa é
minha ou deles. Qualquer das hipóteses me deixa triste, porque
é sempre doloroso ver pessoas que amamos distanciando-se,
qualquer que seja o motivo. Mas mesmo se "o inferno é os
outros" como disse Sartre, não vale a pena viver na completa
solidão; precisamos das outras pessoas por mais desagradável
que em algumas situações possa parecer.

Não nego que surgiu algo bom do longo momento


infeliz que passei em minha adolescência deserta de
sentimentos correspondidos: a minha imensurável paixão pela
literatura. Meus únicos amigos eram os finados poetas com os
quais eu me identificava e tentava versejar parecido. Sim, eu
mergulhava nos versos sentimentais de Álvares de Azevedo e
nas novelas de Alfred de Musset e George Sand, chorando com

[122]
Renan Caíque

eles, e também tentando escrever o que reprimia em minha


alma. A maior parte dos poemas deste livro, foi feita nesse
tempo, por isso, o tom melancólico.

Eu escrevia sobre o Amor, mas na verdade não sabia o


que era de fato tal sentimento, e nem se realmente existia,
apenas repetia o que lia nos livros empoeirados e para musas
imaginárias; a única coisa que era real era a Tristeza. Só há
pouco tempo, descobri que existe sim o Amor, que não há nada
mais sublime e admirável e que as lágrimas de uma vida sem
tal sentimento são infinitas como as estrelas; porém, ainda
assim, não digo que é aquele sentimento eterno e incondicional
dos contos de fadas; pode ser eterno sim, mas pode ser também
que dure apenas um dia, um minuto, um segundo, o que
importa é que enquanto dura é mágico e ímpar. "A falta de
sentido da vida obriga o homem a criar o seu próprio
significado" disse Stanley Kubrick certa vez, e as sensações e
experiências são o alicerce de uma vida em que conseguimos
criar um para nós. E o Amor, mais que tudo, nos inclina a
encontrar esse significado, esse sentido que exala através do
sentir. E é ele, o tão idealizado, irresistível e misterioso Amor o
melhor caminho para uma vida melhor, o que alguns chamam
de “felicidade”. A Tristeza é bela apenas na Arte. E o mais
irônico de tudo (pode até parecer clichê, mas tenho como
verdade), é que este sentimento que nos faz sentir melhor mora
dentro de nós — demorei muito para perceber isto —, basta
querê-lo e encontrá-lo; desde que não fiquemos ocupados
demais em nosso egocentrismo, esquecendo-nos de tudo e de
todos; não que a “felicidade” seja aquele supremo mar de rosas,
penso que sejam simplesmente momentos que nos façam sentir

[ 123 ]
O Mal do Século

especiais e saudosos. Para encontrar algo que está dentro de


nós, não adianta nos isolarmos, assim como não é através de
best sellers de autoajuda ou doutrinas prepotentes e
dogmáticas, só com um real contato com outrem, alcançaremos
o autoconhecimento, embora talvez pareça um pouco
paradoxal. E não falo de relações supérfluas com amigos
descartáveis e sim a capacidade de viver, sentir cada momento
com as pessoas que amamos, ensinar e aprender com tudo e
todos; esta não é uma visão romântica da vida nem realista, é
simplesmente a minha visão própria, o meu mundo; foi o que
aprendi das experiências (in)felizes pelas quais passei, e é
realmente no que acredito: apenas o Amor entre as pessoas
salva, pois o Mal do Século é não mais que o Desamor.

[124]
Renan Caíque

[ 125 ]
O Mal do Século

“O resto é silêncio...”
(Hamlet)

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Renan Caíque

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O Mal do Século

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