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PUC – SP
SÃO PAULO
2016
Marcos Vinícius de Souza Verdugo
SÃO PAULO
2016
Banca Examinadora
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A Exu, Orunmilá, Xangô, Obaluaiê e Yemonjá
Pesquisa financiada sob a condição de bolsista CAPES
AGRADECIMENTOS
Ao professor Ênio José da Costa Brito, meu orientador, por acreditar no projeto e, sobretudo, por
me “iniciar” no ofício de pesquisador. Dos autores sugeridos, das conversas, das leituras, do cuidado, do
respeito, da amizade surge esta dissertação. Do mestre sempre ouvimos em silêncio a palavra que nos
transforma. Muito obrigado. Axé.
A Orunmilá que irrompe em uma linguagem que desafia os conhecimentos monolíticos. Enquanto
houver a palavra de Ifá, haverá o encontro entre o orun e o aiye. Muito obrigado. Axé.
A Gabriel pela paciência, pela ajuda e por estar presente. Muito obrigado. Axé.
Aos meus pais, Neuza e Claudemiro, pelos incentivos e ajudas durante todo o processo de pesquisa
e escrita dessa dissertação. Uma luta a mais que vencemos. Muito obrigado. Axé.
A Antônio pela amizade, conversas, fumaças e por, pacientemente, contribuir nos momentos de
crise de reflexão e de escrita. Muito obrigado. Axé.
Aos amigos do programa pela amizade e pelos risos que nos aliviam a tensão. Em especial, Sandra,
Marlene e Victor. Muito obrigado. Axé.
A Andreia Bisuli de Souza por sempre oferecer ajuda e soluções nas confusões burocráticas de todo
o processo. E, também, por se dispor para nossos cafezinhos esclarecedores. Muito obrigado. Axé.
Aos babalaôs que contribuíram com seus conhecimentos e possibilitaram, em grande parte, a
realização de toda a dissertação. Muito obrigado. Axé.
A minha irmã, Flávia, pelo incentivo constante e pelo companheirismo. A Vagner pelo incentivo e
conversas nos momentos fáceis e difíceis de todo o processo. A Vallentina por apenas existir (oxi!). Muito
obrigado. Axé.
A Crioulla pela amizade e conversas sobre o aiye e sobre o orun. A Yá Mukumby (in memoriam) por
ultrapassar a nossa realidade e por Xangô. Muito obrigado. Axé.
A CAPES e FUNDASP, pelo financiamento dado a pesquisa e conclusão dessa dissertação. Muito
obrigado. Axé.
Ire o!
A idade da sereia
O baticum de pé no chão
Chuá de cachoeira
Tantan e atabaque
A gargalhada do ganzá
O canto de trabalho
O escuro do negreiro
E um clarão enganador
Pela palavra, pelo som, pelo corpo e pelas experiências de mundo iorubás é que nos aproximamos
do imaginário conceitual de Ifá, determinando, ainda que em linhas gerais, os elementos que identificam a
particular epistemologia iorubá que é produzida e produtora da linguagem de todo o sistema.
The critique of the forms of production of knowledge enables us to understand other experiences of
humanity in relation to the concrete reality of the world. And, at the same time, points to the decolonization
of the language in which knowledge is produced. Attention is focused on what is said, on why it is said and,
above all, how it is said about the African imaginations. In this way, we’ve chosen to develop some
approaches to the imagination present in Yoruba language of Ifá system, discussing which elements
constitute both the apparatus of Ifá (material elements) as those of the Yoruba conceptual imaginary. In the
dynamics of approaches, it is the word that particularizes men and women, the sound that determines the
rhythm of life, the body that in its performance marks the dual Yoruba reality and, finally, the Yoruba world
itself that determines the language and the universe of meanings of the Ifá system.
The Ifá system is a set of Yoruba oral statements representing the totality of knowledge that was
developed over the material and spiritual history of that cultural group. It is consisted of 256 distinct
volumes we call odù and from them are established the dynamics of reflection and production of knowledge.
By the word, by the sound, by the body and by the Yoruba world experiences it is how we approach
the conceptual imaginary of Ifá, determining, however in general terms, the elements that identify the
particular Yoruba epistemology that it is produced and also the producer of the language of Ifá system.
INTRODUÇÃO
PARTE I
O SISTEMA DE IFÁ 41
O APARATO DO SISTEMA DE IFÁ 43
PARTE II 75
CAPÍTULO I
ÌJÀPÁ E A VENDEDORA DE 79
83
109
112
122
125
132
136
142
CAPÍTULO II
ARA 152
160
163
166
BABALAÔ 169
188
191
194
CAPÍTULO III
234
237
257
257
278
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
Gbengbelekú-adivinhou-onde-quis foi quem realizou um jogo de Ifá para Igún (abutre, urubu),
primogênito de Olodumare, no dia em que ele adoeceu e a preocupação de seu pai era curá-lo1. Igún é
aquele que faz da chuva uma fonte de riqueza. Olodumare fez pelo filho tudo o que pode, sem sucesso.
Cansado, abriu-lhe a porta do aiye (realidade do mundo “visível”) para que ele fosse morar lá.
Tótó Ìbarà foi quem realizou um jogo de Ifá para Orunmilá quando ele lamentava sua falta de sorte na vida.
Ele foi consultar seu babalaô para saber se teria dinheiro para ter um lar e criar seus filhos. Por essa razão foi
consultar Ifá. Seus babalaôs o aconselharam a fazer um ebó (oferenda, sacrifício) com cinco galinhas. Se fizesse ebó
durante cinco dias, no quinto dia toda a riqueza desejada chegaria às suas mãos. As galinhas deveriam ser
sacrificadas a seu Eledá2, uma a uma, diariamente, até completar cinco dias. As vísceras de cada galinha
sacrificada seriam retiradas, colocadas numa cabaça, cobertas com azeite de dendê e levadas a uma
encruzilhada. A carne da galinha poderia ser consumida por ele e sua família. A caminho da encruzilhada
onde seria entregue a oferenda, Orunmilá deveria ir cantando em alto e bom tom:
Esse ritual deveria ser repetido nos cinco dias. Orunmilá procedeu de acordo com a orientação e,
assim, começou a fazer o ebó. Sacrificava as galinhas e levava suas vísceras cobertas com azeite de dendê
para a encruzilhada. Lá chegando, depositava a oferenda no chão e pedia que a sorte chegasse para ele. Em
frente à encruzilhada onde Orunmilá entregava as oferendas havia um mato e era ali que vivia Igún, filho de
Olodumare. Assim que Orunmilá deixava o ebó e saía dali, Igún surgia do mato e comia a oferenda. Ele tinha
cinco doenças: na cabeça, nos braços, no peito, uma corcunda nas costas e aleijão nos pés.
No primeiro dia em que comeu a oferenda de Orunmilá, Igún ficou curado do problema que tinha na
cabeça e se surpreendeu. No dia seguinte, Orunmilá levou novamente seu ebó à encruzilhada, repetindo os
mesmos rituais, sem saber que alguém comia sua oferenda. Assim que Orunmilá saiu da encruzilhada, Igún
foi até lá e comeu de novo a oferenda, e seus dois braços, que antes não esticavam, ficaram normais. No
terceiro dia Orunmilá continuou o seu processo, levando nova oferenda à encruzilhada. Mal terminara de
1
do odù Ogbè-Ògúndá narrado pelo babalaô
2
Guardião ancestral.
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colocar o ebó, Igún foi lá e comeu, e seu peito, que era inchado, desinchou assim que acabou de comer. No
quarto dia Orunmilá levou seu ebó à encruzilhada, cantando:
Mal terminara de colocar o ebó na terra, Igún foi lá novamente e o comeu. Assim que acabou de
comer, a corcunda que havia em suas costas desapareceu. No quinto dia Orunmilá levou sua oferenda à
encruzilhada para completar os rituais. No caminho foi cantando o mesmo refrão dos dias anteriores. Mal
terminara de colocar o ebó na terra, Igún foi lá novamente e o comeu. Na manhã do sexto dia seus dois pés
aleijados haviam adquirido vitalidade e ele passou a andar sem dificuldade alguma, caminhando agora por
todo canto. E foi assim que Igún se curou de todas as suas moléstias.
Impressionado com esses fatos, Igún se levantou e foi ao orun (realidade do mundo “invisível”)
para se encontrar com Olodumare que logo percebeu que o filho estava sadio e lhe perguntou quem o
curara. Igún relatou todo o ocorrido a Olodumare. Disse-lhe que quem entregava as oferendas era Orunmilá
e acrescentou que este sempre realizava a oferenda entoando o refrão:
Olodumare disse a Igún que presentearia essa pessoa com riquezas. Pegou então quatro àdó3 (adô)
e os deu a Igún para que os levasse a Orunmilá, no aiye. Eram os adôs (prosperidade - riqueza,
dinheiro), (fertilidade), (longevidade) e (paciência). Igún disse a Olodumare que não
sabia chegar à casa de Orunmilá, mas o pai o orientou dizendo que, assim que chegasse no aiye,
perguntasse às pessoas e elas lhe indicariam o caminho. Antes de Igún sair do orun, Olodumare
recomendou que Orunmilá poderia escolher apenas um dos quatro adôs e que Igún deveria trazer de volta
os três restantes.
Igún voltou para o aiye carregando os quatro adôs e foi diretamente à casa de Orunmilá para
mostra-los a ele. Orunmilá surpreendeu-se muito. Perplexo, em dúvida quanto a melhor escolha a ser feita,
mandou chamar os filhos para lhes pedir conselho sobre qual dos quatro adôs deveria escolher. Os filhos o
aconselharam a escolher o adô da longevidade para que vivesse muito. Orunmilá chamou então suas
esposas a fim de ouvir o conselho delas, e as esposas o aconselharam a escolher o adô da fertilidade para
que pudessem ter muitos filhos. Orunmilá chamou seus irmãos a fim de lhes pedir conselho sobre qual dos
3
Àdo poder ser entendido como uma graça, uma virtude, um beneficio, um dom.
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quatro adôs deveria escolher e eles o aconselharam a escolher o adô da prosperidade, para que pudessem
ter muita riqueza e dinheiro.
Então Orunmilá mandou chamar seu melhor amigo. Esse melhor amigo era Exu. Quando Exu
chegou à sua casa, Orunmilá relatou o ocorrido e lhe pediu conselho quanto à escolha que deveria fazer.
Exu, habilidoso, fez as seguintes perguntas a Orunmilá:
Orunmilá respondeu: o da longevidade. Exu lhe disse para não escolher esse adô porque não há
uma única pessoa que tenha vencido a morte e lembrou que, por mais tempo que se viva, um dia se morre.
Exu, então, perguntou:
Orunmilá respondeu: o da fertilidade. Exu lhe disse para não escolher esse adô porque Orunmilá já
tivera muitos filhos. Perguntou-lhe de novo:
Orunmilá respondeu: o da prosperidade. Exu lhe disse para não escolher esse adô porque se ficasse
rico eliminaria a pobreza da família. E acrescentou que, se seus irmãos quisessem prosperar, deveriam ir
trabalhar.
Orunmilá perguntou então a Exu qual dos adôs deveria escolher. E Exu lhe disse para escolher o
adô da paciência, porque sua paciência era insuficiente para permitir que chegasse onde desejava. Caso
Orunmilá seguisse de fato esse conselho e escolhesse o adô da paciência, todos os adôs restantes seriam
seus. Orunmilá aceitou a orientação de Exu. Escolheu o adô da paciência e devolveu a Igún os três restantes.
Nem os filhos, nem as esposas, nem os irmãos de Orunmilá ficaram felizes com sua escolha.
Igún iniciou sua viagem de volta ao orun, levando consigo os três adôs restantes para devolvê-los a
Olodumare. Porém, mal andara um pouco com eles, o adô da riqueza lhe perguntou onde estava a
Paciência. Igún respondeu que ela ficara na casa de Orunmilá. Riqueza disse a Igún que voltaria para ficar
com Paciência porque só fica onde ela está. Igún lhe disse que era inaceitável e que Riqueza deveria retornar
com ele ao orun. Riqueza insistiu que só fica onde está Paciência e que, por isso, não tinha porque retornar
ao orun. Em pouco tempo, desapareceu da mão de Igún e foi se juntar à Paciência na casa de Orunmilá.
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Fertilidade também perguntou a Igún por Paciência. Igún lhe respondeu que ela estava na casa de
Orunmilá. Fertilidade lhe disse que só fica onde está Paciência. Assim, Fertilidade levantou-se e procurou
estar, em pouco tempo, junto com Paciência na casa de Orunmilá. Longevidade também perguntou a Igún
onde estava Paciência. Igún lhe respondeu que ela estava na casa de Orunmilá. Longevidade também foi se
juntar a Paciência.
Quando Igún chegou ao orun, Olodumare lhe perguntou onde estavam os três adôs restantes. Igún
lhe disse que retornara para contar a Olodumare que todos os adôs desejaram ficar junto com Paciência na
casa de Orunmilá. E que pretendia retornar ao aiye para busca-los e trazê-los de volta ao orun. Olodumare
lhe disse que ele não precisava buscar os três adôs, pois, de fato, todos pertencem a quem escolher
Paciência. Quem tiver Paciência terá Longevidade e Fertilidade. E também terá Prosperidade.
Assim, tudo transcorreu bem com Orunmilá e, com os adôs, ele se tornou o rei de Ketu. Teve filhos
e viveu bastante com esses adôs. Teve tanta riqueza que construiu casas pelo mundo. Feliz por suas
conquistas montou em seu cavalo e cantou:
Orunmilá, então, dançou e se alegrou. Louvou aos seus babalaôs e também a Exu, o seu amigo.
A narrativa que apresentamos faz parte do conjunto de enunciados orais que compõem o imaginário
conceitual dos iorubás, grupo cultural do oeste africano, e, em outras palavras, representa ao mesmo tempo
umas das formas que a visão de mundo iorubá possui de se apresentar na linguagem e, a partir desses
enunciados, podemos compreender aspectos históricos e nos introduzirmos na forma de compreensão da
realidade concreta pelos iorubás. História, medicina, pensamento crítico e imaginário são alguns dos
conteúdos desses enunciados orais iorubás. Como, então, podemos compreender as dinâmicas de
produção de conhecimento que envolvem a própria produção desses enunciados orais em um discurso4
que, de um lado, não encerre em um locus de subalternidade/primitivismo tal conhecimento e, por outro,
nos termos de Glissant, pressuponha na língua do discurso a linguagem particular desse mesmo
4
O termo discurso é utilizado no sentido de ser, por meio da linguagem, uma exposição sobre um certo assunto, um conjunto de
ideias organizadas. Implica também em uma ética em sua produção que, no caso, é a própria ética da descolonialidade dos
saberes.
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conhecimento?5 De outro modo, como, tendo em vista a legitimação e realidade das múltiplas formas de
saber, produzir conhecimento sobre outros conhecimentos e que essa produção seja, epistemologicamente,
assumida como princípio para conhecer na posição radical de se reconhecer os múltiplos saberes como
reais possibilidades de conhecer e, portanto, como produtores de um mundo determinante e determinado
pelas experiências que também são produzidas no interior desses mesmos saberes?
É impossível falar a homens que dançam6. A discussão, que vem ganhando força no debate
epistemológico contemporâneo, sobre o fato de que a linguagem, espaço, tempo e história foram
colonizados através da colonização do conhecimento pode nos dar uma pausa antes de tomarmos
emprestado os conceitos fundantes do pensamento eurocêntrico, tais como tradição/modernidade,
primitivo/colonizado, magia/lógica etc., ou qualquer outra estrutura de valor binário que fundamente esses
conceitos7. E, por conseguinte, ao assumirmos que “a razão iluminista e o letramento, sob poderes na
disposição e administração do Estado Nação, deixaram marcas profundas na personalidade e epistemologia
do Ocidente” (ANTONACCI, 2014, p. 220) temos que a diferença essencializada na construção de um Outro
africano que, justificada na tautologia de ser humano um africano (especificamente, o negro africano),
conceitua a sua realidade e seus horizontes de sentidos, naturalizados pela colonização dos conhecimentos,
em uma linguagem racista que, sempre em movimentos violentos, silencia corpos, sensibilidades, palavras,
sons, identidades, saberes e, sobretudo, experiências de mundo que produzam outras formas de conhecer.
5
Edouard Glissant foi um escritor, poeta e ensaísta martinicano. Para uma discussão mais ampla sobre o processo de, contra a
colonização do conhecimento, assumirmos a linguagem do silenciado na produção de conhecimento dominada por uma
epistemologia ocidental que gera a exclusão dos outros saberes em nome de sua modernidade e projeto de civilização baseado no
continuo exercício da ideia do progresso da vida liberal, branca, masculina e cristã, conferir, principalmente, “Poétique de la
Relation” (GLISSANT, 1990), “Introduction à une Poétique du Divers” (GLISSANT, 1996), “Philosophie de la Relation”
(GLISSANT, 2009) e “L'imaginaire des Langues. Entretiens avec Lise Gauvin (1991-2009)” (GLISSANT, 2010).
6
Título de um dos artigos do livro Memórias Ancoradas em Corpos Negros (ANTONACCI, 2014). Outros artigos do livro que
dialogamos em nossa discussão ao longo da dissertação são: Artimanhas da História, Corpos Negros Desafiando Verdades e
Animistas/Fetichistas Dizem Eles.
7
A respeito das discussões sobre a conceituação e a crítica epistemológica à colonialidade dos conhecimentos conferir: “A
colonialidade do saber. Eurocentrismo e Ciências sociais: Perspectivas Latino-americanas” (LANDER, 2005), “Histórias locais.
Projetos globais. Colonialidade, Saberes Subalternos e Pensamento Limiar” (MIGNOLO, 2003) e “Epistemologias do Sul”
(SANTOS e MENEZES, 2014).
22
Para compreendermos as implicações políticas destas discussões, talvez devamos assinalar que,
para o pensamento iluminista, a humanidade se define pela posse de uma identidade genérica que é
universal em sua essência, e da qual derivam direitos e valores que podem ser partilhados por todos. Uma
natureza comum une todos os seres humanos. Ela é idêntica em cada um deles, porque a razão está em seu
centro. O exercício da razão leva não apenas à liberdade e à autonomia, mas também à habilidade de guiar a
vida individual de acordo com princípios morais e com a ideia do bem. Fora deste círculo, não há lugar para
uma política do universal (MBEMBE, 2001).
Achille Mbembe8, ao analisar e criticar as diferentes formas com as quais se tentou construir e
representar a identidade africana a partir, basicamente, de um discurso nativista9, por um lado, e outro
instrumentalista10, da África e de seu povo, o autor alerta para
os perigos advindos da busca irrefletida de uma alteridade africana sem o devido reconhecimento
das especificidades culturais, políticas e geográficas em África. Tanto o economicismo quanto a
metafísica da diferença são historicismos vistos como formas fadadas ao fracasso, tendo em vista
a pluralidade de signos e contextos com as quais se tentou construir a autodeterminação e a
autoafirmação africanas ao longo do século XX (MEBEMBE, 2010, p. 26, tradução nossa).
8
Joseph-Achille Mbembe é um filósofo e cientista político camaronês. Dentre suas obras destacamos: “De La Postcolonie, Essai
sur L'imagination Politique dans l'Afrique Contemporaine” (MBEMBE, 2000), “Sortir de la Grande Nuit – Essai sur l'Afrique
Décolonisée” (MBEMBE, 2010) e “Critique de la Raison Nègre” (MBEMBE, 2013).
9
No discurso nativista, assim como em algumas versões das narrativas marxistas e nacionalistas, uma quase equivalência é
estabelecida entre raça e geografia. A identidade cultural deriva da relação entre os dois termos, tornando-se a geografia o lugar
privilegiado no qual se supõe que as instituições e o poder da raça (negra) ganhem corpo. O pan-africanismo, em particular,
define o “nativo” e o “cidadão” a partir de sua identificação com o povo negro. Nesta mitologia, os negros tornam-se cidadãos
não porque são seres humanos dotados de direitos políticos, mas por causa, tanto de sua cor, como do privilégio de sua
autoctonia. As autenticidades territorial e racial confundem-se, e a África se torna a terra da gente negra. Já que a interpretação
racial está na base de uma ligação cívica restrita, tudo o que não seja negro está fora de lugar, e, portanto, não pode reivindicar
nenhuma forma de africanidade. Assim, os corpos espacial, racial e cívico são um só, cada um deles sendo testemunha de uma
origem comunal autóctone, a partir da qual todo aquele que nasceu nesta terra ou partilha da mesma cor e dos mesmos ancestrais
é um irmão ou uma irmã (MBEMBE, 2001).
10
O discurso instrumentalista está permeado pela tensão entre o voluntarismo e a vitimização. Ele tem quatro características
principais. Primeiro, uma falta de reflexividade e uma concepção instrumental do conhecimento e da ciência, no sentido de que
nenhuma delas é reconhecida como autônoma. Elas são úteis, na medida em que estiverem a serviço da luta partidária. A segunda
característica é uma visão mecânica e reificada da história. A causalidade é atribuída a entidades fictícias e totalmente invisíveis,
no entanto consideradas sempre determinantes, em última instância, da vida e do trabalho do sujeito. De acordo com esse ponto
de vista, a história da África pode ser reduzida a uma série de fenômenos de sujeição interconectada em uma continuidade
compacta. A terceira característica é um desejo de destruir a tradição e a crença de que a verdadeira identidade é conferida pela
divisão de trabalho que faz surgir as classes sociais, em que o proletariado (rural ou urbano) tem o papel de classe universal por
excelência. A suposição de que a classe operária é o único agenciamento prático que pode se engajar em uma atividade
emancipatória, resulta na negação das múltiplas bases do poder social. Finalmente, a quarta característica, baseada neste corpo
de pensamentos, repousa em uma relação essencialmente polêmica com o mundo. Esta polêmica relação baseia-se em um
conjunto de rituais retóricos: o primeiro ritual contradiz e refuta as definições ocidentais da África e dos africanos, apontando para
as falsidades e preconceitos que elas têm como pressupostos; o segundo, denuncia o que o Ocidente fez (e continua fazendo) à
África em nome destas definições; o terceiro, fornece as chamadas provas que, ao desqualificarem as representações ficcionais do
Ocidente sobre a África, e ao refutarem a afirmação de que este detém o monopólio da expressão do humano em geral,
supostamente abrem um espaço em que os africanos podem finalmente narrar suas próprias fábulas em uma linguagem e voz que
não podem ser imitadas, porque são verdadeiramente suas (MBEMBE, 2001).
23
Em outras palavras, ainda em Mbembe, seria possível encontramos, “entre os africanos, o mesmo
ser humano, apenas disfarçado sob diferentes formas e designações?” ou poderíamos considerar os corpos,
as línguas, o trabalho e a vida africanos como “produtos de uma atividade humana, como manifestações de
uma subjetividade – ou seja, de uma consciência tal como a nossa – de forma a permitir que os
consideremos, a cada um deles individualmente, como um alter ego (um outro eu)?” (MEBEMBE, 2010, p.
27, tradução nossa).
Filosoficamente11, para Mbembe, devemos dar prioridade àquilo que, na experiência africana de
mundo, escapa à determinação e à ideia de uma história que ainda está sendo feita, e que se pode apenas
seguir, ou repetir. Antropologicamente, à obsessão com a singularidade e a diferença, devemos opor a
temática da igualdade. Devemos, “para nos afastarmos do ressentimento e da lamentação sobre a perda de
um nome próprio”, abrir um espaço intelectual para repensarmos aquelas temporalidades que estão, sempre
simultaneamente, se ramificando em diversos futuros diferentes, e ao fazerem isso abrem caminho para a
possibilidade de múltiplas ancestralidades. Sociologicamente, deve ser dada atenção às práticas cotidianas
através das quais os africanos reconhecem o mundo e mantêm com ele uma familiaridade sem precedentes,
ao mesmo tempo em que eles inventam algo que pertence tanto a eles, quanto ao mundo em geral 12
(MBEMBE, 2001, p. 181).
Tentativas de definir a identidade africana de forma simples e clara têm ao longo do tempo
geralmente falhado. Outras tentativas parecem ter o mesmo fim, já que a crítica das “imaginações
africanas”13 sobre o eu e o mundo permanece cativa de uma concepção de tempo como espaço e de
identidade como geografia. Desta confusão resultou uma interdição massiva das noções gêmeas de
“universalismo” e de “cosmopolitismo”, e uma celebração da autoctonia, ou seja, de um eu entendido como
sendo tanto vítima como mutilado. Uma das implicações principais de tal compreensão de tempo e de
sujeito é que o pensamento africano passou a conceber a política ou através de um resgate de uma natureza
essencial, porém perdida (a libertação da essência) ou como um processo sacrificial.
11
Entendemos por filosofia, de maneira geral, como a fundamentação crítica dos conhecimentos e das práticas.
12
Há poucos anos, uma série de estudos tem mostrado como, acima das afirmações de africanidade, os africanos têm
constantemente negociado novas posições nos espaços entre as culturas e têm rompido os signos de identidade e de diferença.
Conferir, neste sentido, BARBER (1997); NUTTALL E MICHAEL (2000); HAYNES (2000). Para dois estudos de caso sobre os
complexos entrelaçamentos das chamadas tradições intelectuais globais com as “tradicionais”, conferir BHEKIZIZWE (2000) e
NEWELL (2000).
13
Termo emprestado de MBEMBE (2001).
24
Para sermos exatos, não há nenhuma identidade africana que possa ser designada por um único
termo, ou que possa ser nomeada por uma única palavra; ou que possa ser subsumida a uma única
categoria (MBEMBE, 2001, p. 220). A identidade africana não existe como substância. Ela é constituída, de
variantes formas, através de uma série de práticas, notavelmente as práticas do eu14. Tampouco as formas
desta identidade e seus idiomas são sempre idênticos. E tais formas e idiomas são móveis, reversíveis, e
instáveis. Isto posto, elas não podem ser reduzidas a uma ordem puramente biológica baseada no sangue,
na raça ou na geografia. Nem podem se reduzir à tradição, na medida em que o significado desta última está
constantemente mudando15. Mas aquela retórica, agora tão familiar e clichê, da não-substancialidade, da
instabilidade e da indeterminação é apenas mais uma forma inadequada de lidar com as imaginações
africanas sobre o eu e o mundo16. Desta feita,
não é mais suficiente afirmar que apenas um eu africano dotado de uma capacidade narrativa de
síntese, ou seja, capaz de gerar tantas histórias quantas forem possíveis a partir de quantas vozes
forem possíveis, pode afirmar a discrepância e a multiplicidade de normas e regras interligadas
características de nossa época. Talvez um passo além deste círculo seja reconceitualizar a própria
noção de tempo em sua relação com a memória e a subjetividade (MEBEMBE, 2010, p. 37).
Uma boca mais doce que sal 17. Em seu livro de memórias, Toyin Falola18 (2005), ao discutir as
características, que limitavam em um horizonte de sentido compreendido por distintas comunidades, da
ideia de identidade, e utilizando como exemplo os iorubás da cidade de Ibadan, argumenta que a
compressão destes últimos se dá pela complexidade de caráter conhecida pela palavra mesiogo. Segundo o
autor:
em nenhuma outra cidade da África, de fato, no mundo, possui esse nome ou pode alegar o seu
uso. Nenhuma outra cidade pode duplicá-lo. Um galho pode tentar; e tentar como se fosse
permanecer sobre as águas por quantos anos forem possíveis, ele nunca será um crocodilo.
Outras cidades, outras pessoas podem tentar se tornar como um habitante de Ibadan, mas eles
nunca serão um mesiogo (FALOLA, 2005, p. 42).
14
Ver BIAYA (2001); MALAQUAIS (2009).
15
Conferir HAMILTON (1998).
16
Ver SIMONE (2012); DIOUF (2000); MACGAFFEY E BAZENGUISSA-GANGA (2000).
17
A Mouth Sweether than Salt, título do livro de memórias de Toyin Falola (FALOLA, 2005).
18
Toyin Omoyeni Falola é um historiador e professor nigeriano. Atualmente é catedrático da Jacob and Frances Sanger Mossiker
Chair na Universidade do Texas em Austin.
25
Mesiogo é a combinação de duas palavras pronunciadas como uma, na verdade duas palavras que
deveriam ser separadas por um hífen para evitar confusões. Mesi é “responder”, mas é mais do que isso; é
ser rápido o suficiente para responder. Ser rápido não indica o conteúdo da resposta. Ogo significa “um
tolo”, alguém ignorante. Em combinação, Mesiogo comunica uma habilidade em responder rapidamente a
um tolo com ações e palavras que comunicarão ou esconderão as intenções. Pela junção das palavras, o
significado está escondido, as intenções são continuamente compostas.
Se a guerra e a valentia estão claras, mesiogo é sobre a ambiguidade das palavras, suas
capacidades para multiplicidade de funções e criação de muitos pontos de saída para um individuo. Mesigo
vê a personalidade humana como uma materialização de palavras e ações que se alternam como o tempo e
as estações. Mesiogo, “que é a personalidade de Ibadan, deve ser ambíguo o suficiente para superar as
exigências e a imprevisibilidade da ignorância e tolice, e sobreviver na rotina de interações com os tolos"
(FALOLA, 2005, p. 42).
Em outra passagem, Falola narra a história em que Jaboku fora injustamente condenado a prisão e
um pastor, parente do autor, tenta de todas as formas resolver a situação. Depois de inúmeras tentativas,
cansado e frustrado, o pastor é aconselhado por sua esposa a procurar Leku (uma das mães do autor que é
apresentada como um tipo particular de sacerdotisa). A esposa afirma que haveria a necessidade de tentar o
agbara orun já que o agbara aiye falhara. Agbara orun refere-se à realidade “invisível” de forças e agbara
aiye, no contexto da narrativa, ao poder dos chefes tradicionais, governos e advogados. Quando as
alternativas de uma realidade da existência se esgotam enquanto possibilidade de solução para os
problemas cotidianos, não há, de nenhuma forma, constrangimento ao se apelar para a outra realidade da
existência. De fato, o transito entre essas duas realidades é a própria dinâmica da linguagem que constitui
as possibilidades de experiências do mundo para os iorubás. Assim, ao sugerir Leku como possibilidade de
solução, mesmo em uma família de formação cristã em contexto iorubá, vemos como os saberes que
definem o eu particular transcendem as determinações religiosas, ou seja, ser iorubá (no sentido de mundo
particular iorubá) é compreender a realidade em sua dupla dimensão, independentemente, de ser sua
expressão religiosa tradicional ou cristã ou mulçumana.
Logo, retomando a discussão anterior, qualquer tentativa de compreensão do presente africano deve
passar por uma descolonização da linguagem em que se produz esse conhecimento para que não se
perpetue uma forma inadequada de lidar com as imaginações africanas sobre o eu e o mundo. Tanto o
caráter do mesiogo quanto as dinâmicas que envolvem as experiências de mundo de Leku só serão de fato
26
compreendidas quando a linguagem que os determina for assumida como produtora de conhecimento e, em
um sentido amplo e crítico, for assumida enquanto principio epistemológico que determina as experiências
de mundo de um tipo particular de eu. À vista disso, o mundo cuja linguagem propomos analisar na
presente dissertação é o mundo iorubá e, mais especificamente, o sistema de Ifá que confere àquele mundo
sua particularidade e sua própria episteme.
O sistema de Ifá consiste em 256 distintos “volumes” os quais são chamados de odù e cada odù é
subdividido em inúmeros “capítulos” que são chamados de . Enquanto o número de odù é conhecido, o
número de em cada odù é desconhecido, pois estes estão em constante crescimento. Há duas
categorias de odù, a primeira consiste nos Ojú Odù - os principais odù - e são ao todo dezesseis; a segunda
consiste nos duzentos e quarenta ou - odù menores (ABIMBOLA, 1997).
Ifá, dentro da cosmologia iorubá, não é propriamente um orixá19. É o porta-voz de Orunmilá20 e dos
outros orixás. Através de seus odù é possível, por analogia entre as narrativas, indicar soluções para
qualquer que seja a natureza dos problemas humanos. E entendendo que todos os seres humanos são
culturais, ou seja, possuem a capacidade para dar às coisas um sentido que está além de sua presença
material, isto é, a capacidade de atribuir significações e valores às coisas e aos homens, o sistema de Ifá,
não obstante sua função comunicativa, é uma forma de pensamento que define a ação, de modo sempre
reflexivo, que problematiza o modo de ser, agir e pensar dos homens e mulheres cujas experiências são
determinadas pelas práxis e dinâmicas que envolvem todo o sistema.
19
Discutiremos amplamente sobre a ideia de orixá no terceiro capítulo, porém, por ora, basta que compreendamos que eles são
os habitantes do orun, realidade “invisível” da realidade concreta do mundo iorubá.
20
Um dos orixás.
27
diversas realidades que compõem este mundo particular, sobretudo, a natureza que dela se distinguem,
agindo sobre ela ou através dela, modificando-a: rituais de trabalho, rituais religiosos, construção de
habitações, fabricação de utensílios e instrumentos, culinária, tecelagem, vestuário, formas de guerra e de
paz, dança, música, pintura, escultura, formas de autoridade, etc. (ABIMBOLA, 1968).
A motivação para estudarmos o sistema de Ifá se dá, principalmente, por duas razões. A primeira é a
urgência da crítica das formas de produção e de legitimação do conhecimento que são dominadas por uma
pretensa universalidade epistemológica ocidental, portanto, qualquer forma de conhecimento “estrangeira”
ao modo dominante é vista, como no caso iorubá, como um discurso meramente religioso e mítico, não
adquirindo, portanto, o status de uma legitima forma de pensamento. A segunda é a relação entre o sistema
de Ifá e a cultura brasileira através da formação das religiões afro-brasileiras pelos corpos negros
escravizados oriundos da região iorubá durante o processo de colonização portuguesa no Brasil; esta
influência cultural é determinante para a compreensão não somente dos aspectos gerais de todo um novo
conjunto de religiões que aqui se desenvolveram, mas, sobretudo, pela revelação da importância conceitual
que determinará em sua evolução aspectos tanto da religiosidade quanto das formas culturais nacionais.
complementados pelo aprender com aqueles que vivem e refletem a partir de legados coloniais e pós-
coloniais” (MIGNOLO, 2003).
Embora possamos encontrar uma bibliografia que já discuta o sistema de Ifá, há uma lacuna muito
grande no que diz respeito a uma abordagem do conjunto conceitual de Ifá em sua totalidade epistêmica. No
caso da academia brasileira, a situação ainda é mais complexa, pois os estudos das religiões afro-
brasileiras ainda são devedores de uma construção epistêmica europeia e, sobretudo, não se desvinculou
completamente de certos preconceitos e demarcações teóricas (primitivas, fetichistas, irracionais, mágicas,
pré-científicas etc.) que se desenvolveram ao longo da história desta disciplina nas universidades. Portanto,
esse trabalho visa contribuir, também, para uma ampliação nos estudos relativos à contribuição das
imaginações africanas que aqui chegaram e contribuíram profundamente em um certo tipo particular de
homens e mulheres brasileiros.
Os mais renomados pesquisadores de Ifá, tais como E.M. Lijadu, William Bascom, J.D. Clarke e
Raymond Prince realizaram um impressionante trabalho de documentação e caracterização dos enunciados
orais de Ifá. Entretanto, esses estudos apresentaram discussões etnológicas e análises estruturais de Ifá que
deram a impressão de que ele seria uma instituição caracteristicamente social apenas com significações
religiosas, etnográficas (antropológicas) e sociológicas. A falta de uma análise das dimensões filosóficas de
Ifá pode ser compreendida pelas “interpretações profissionais” destes pesquisadores do ponto de vista da
antropologia social e cultural. Assim, não é de se surpreender que o trabalho volumoso de William Bascom
nada mais é que “uma ênfase no método de divinação iorubá, na maneira como ele funciona e nos versos de
Ifá que são de importância fundamental para todo o sistema de divinação” (BASCOM, 1969). Pode-se ainda
acrescentar que os melhores trabalhos de Bascom sobre Ifá, assim como o trabalho de J.D. Clarke, são
variações de seu trabalho mais extenso. Eles são reflexos de uma interpretação sócio antropológica de Ifá.
E.M. Lijadu, um dos primeiros catequistas católicos na Nigéria, é também um dos autores mais
citados nos estudos sobre Ifá. Inspirado pelo cânone de sua fé, Lijadu diz que Ifá é uma religião cujo modo
de “adoração” deve ser de grande interesse para os cristãos e deveria ser “comparada à religião cristã
objetivando a conversão das pessoas que a praticavam” (LIJADU, 1923, p. 43). Raymond Prince, um dos
primeiros a pesquisarem sobre Ifá, compreende-o como um texto religioso, embora sua ênfase está “no
gerenciamento das doenças psiquiátricas dos médicos tradicionais iorubás” (PRINCE, 1964, p. 32).
Bolaji Idowu, um importante pesquisador na área de estudos das religiões africanas, também
discute Ifá na perspectiva da religião iorubá (IDOWU, 1962). Seu trabalho é uma tentativa de demonstração
29
da natureza monoteísta da religião iorubá, ideia influenciada pelo pressuposto colonialista de que o
monoteísmo é a forma mais acabada e sofisticada de uma religião. Em suma, tanto os trabalhos de Idowu
como os de Lijadu e de Prince são descritivos, interpretativos – utilizando para isso os pressupostos
dominantes, principalmente da antropologia ocidental – e, sobretudo, acríticos em relação a uma forma de
pensamento dita tradicional. Eles acentuam, como nos diz Oladipo, “a generalizada, porém, equivocada ideia
de que os africanos são religiosos em todas as coisas” (OLADIPO, 1988, p. 53).
Em outra chave, Wande Abimbola, um dos mais importantes pesquisadores africanos sobre Ifá, o
reconhece como depositário de toda a filosofia iorubá, ou melhor, como o sistema que organiza não só a
vida espiritual, mas também a vida social, política e conceitual dos iorubás, e, por este último, estabelece
que há um pensamento conceitual que opera por uma linguagem, ou seja, Ifá estabelece um procedimento
próprio para a articulação conceitual entre elementos que constituem sua estrutura de pensamento. Ifá seria,
enquanto sistema conceitual, uma descrição e uma explicação da “essência” ou “natureza própria” do ser,
referindo-se a esse ser e somente a ele. E, também, recusa a ideia de que é uma forma de participação ou de
relação de nosso espirito em outra realidade – como insistem até hoje a antropologia que se dedica ao
estudo dos pensamentos ditos tradicionais –, mas é o resultado de uma análise ou de uma síntese dos
dados da realidade (entendida dentro do que o próprio sistema define como tal) ou do próprio pensamento.
Esta seria a maior contribuição dos estudos de Abimbola, pois, a nosso ver, ao não reduzir a discussão
sobre Ifá ao estudo do pensamento mítico aponta para a possibilidade de diferentes formas de experiência
sensível do pensamento. No entanto, podemos dizer que falta aos trabalhos de Abimbola o que Olusegun
Oladipo chama de “conceituação sofisticada” no sentido de que ainda falta uma conceituação da linguagem
e sua crítica ao sistema de Ifá dando-lhe, assim, uma textura realmente filosófica (Oladipo, 1988).
Outros pesquisadores do campo da filosofia tentam, com seu vocabulário e aparato teórico
ocidentais, demonstrar que Ifá deve ser interpretado enquanto um texto filosófico. Por exemplo, Sophie
Oluwole, para demonstrar que algumas obras literárias africanas “qualificam” como espécimes da “stricto
filosofia”, explora dois odù de Ifá, e (OLUWOLE, 1996). Ela argumenta que a
possibilidade de se extrair uma “tese” e “um argumento” daqueles versos aponta para o fato de que Ifá é
filosófico no sentido real da palavra. Seu trabalho tem uma importância, pois nos parece ter sucesso no
discernimento entre etnologia e análise estrutural, e uma análise crítica do corpo de enunciados orais de Ifá.
No entanto, quando se considera a verdadeira dimensão de Ifá, os 16 odù principais acrescidos de todas as
outras variantes (240 odù menores), o trabalho de Oluwole nos parece não considerar a produção de
30
conhecimento iorubá como um todo, assim, sua análise não compreende uma interpretação da filosofia de
Ifá, porém se apresenta como um ensaio a partir de dois odù aleatórios.
Outro trabalho que podemos citar é o estudo de Olufemi Taiwo “Ifá: An Account of a Divination
System and Some Concluding Epistemological Questions” (TAIWO, 2004). Na superfície, podemos dizer
que o texto é uma decisiva reflexão sobre questões epistemológicas no sistema de Ifá. Uma leitura mais
atenta revelará que ele não conseguiu construir uma análise epistemológica para além do que Bascom, de
seu ponto de vista da antropologia social, fez em seu “The Sanctions of Ifá Divination” (BASCOM, 1941)
quase seis décadas atrás. Mesmo que o trabalho de Taiwo seja considerado um estudo epistemológico que
aponta “alguns caminhos de investigação e questões da filosofia de Ifá”, podemos argumentar que não é
exaustiva e se restringe ao processo de realização do jogo, obscurecendo, portanto, a criatividade e
imaginários presentes na construção de um tipo particular de conhecimento.
No Brasil, os estudos sobre o sistema de Ifá são bastante escassos e em sua maioria ultrapassados.
Essa condição poderia ser explicada por alguns fatores: (a) a presença de babalaôs (sacerdotes que estudam
e manipulam o jogo de Ifá) desapareceu com os últimos praticantes no início do século XX sendo apenas
retomada nos últimos anos ou pela iniciação de brasileiros na Nigéria ou pela presença de sacerdotes
nigerianos e/ou cubanos que imigraram para cá; (b) a importância histórica e social da supremacia do jogo
de búzios nos terreiros afro-brasileiros como forma oficial de comunicação entre os orixás; e, por fim, (c)
dada a oralidade de todo o sistema, há uma lacuna nos estudos linguísticos da língua iorubá dificultando,
nas universidades e/ou institutos com a temática dos estudos africanos e afro-brasileiros, a produção de
análises acadêmicas mais completas e sofisticadas. No entanto, nos estudos contemporâneos, os trabalhos
de babalaô e pesquisador Sikiru Salami que em sua tese de doutoramento discutiu sobre os valores sociais
presentes nos versos de Ifá, bem como outras publicações suas como “A Mitologia dos Orixás Africanos”
(1990) e “Cânticos dos Orixás na África” (1992), se destacam por apresentarem um importante estudo da
língua e seus sentidos na linguagem iorubá.
Os estudos sobre Ifá podem gerar inúmeras possibilidades de leitura desde uma rica fonte de
enunciados orais que revelam a história social e cultural dos iorubás, passando por analises dos aspectos
da palavra (oralidade), até discussões que envolvam a produção de conhecimento iorubá no que
chamaremos de “imaginário conceitual” 21. Optamos nessa dissertação por apresentar uma introdução ao
sistema de Ifá através de suas características práticas e, principalmente, dos elementos gerais que, como
21
Discutimos esse termo mais adiante.
31
veremos, determinam um tipo particular de linguagem que expressa um mundo igualmente particular. As
características práticas são aquelas que constituem, de maneira geral, o que chamamos de jogo de Ifá: as
características dos “versos” de Ifá, a ontologia dos babalaôs (sacerdotes de Ifá), as regras de leitura etc. Os
elementos gerais são aqueles que produzem a particularidade do mundo iorubá, sua imaginação africana: a
palavra, o corpo e a cosmovisão iorubás.
Surgem, por conseguinte, três questões fundamentais a partir da reflexão que fizemos em Mbembe:
(a) qual a natureza da linguagem e suas implicações na experiência de mundo iorubá assumindo seu locus
de produção de conhecimento que é a tradição oral?; (b) como se operam as dinâmicas de temporalidade,
de espaço e de movimentos na performance do corpo iorubá que também é um locus de produção de
conhecimento?; e, por fim, (c) quais os elementos que determinam os sentidos, as pedagogias, as
produções, as reflexões, as transformações e as performances da experiência de mundo iorubá?
Linguagem. Por linguagem entendemos um sistema pelo qual um homem ou uma mulher comunica
ideias e sentimentos e, sobretudo, pelo qual a experiência da totalidade-mundo se realiza. Assim, quando
falamos em linguagem de Ifá nos referimos ao conjunto comunicativo das ideias, sentimentos e experiências
de mundo, seja através da palavra, do som ou do corpo. E, para os iorubás, é na própria linguagem que
ocorre a produção de conhecimento.
22
Um dos expoentes do grupo Modernidad/Colonialidad e Professor de Literatura e Línguas Românicas e de Antropologia
Cultural na Universidade de Duke.
33
que dialogam com o assunto de cada capítulo bem como elas representam, ainda que de forma escrita, a
maneira como todos os assuntos discutidos nessa dissertação de fato aparecem nas dinâmicas cotidianas
iorubás. Em seguida, iniciamos a discussão do elemento da imaginação iorubá que é tratado de cada
capítulo e de que maneira ele se realiza na linguagem do sistema de Ifá. Ao longo da dissertação
apresentaremos as características gerais de cada um dos dezesseis principais odù, Ojú Odù, de Ifá de modo
a produzir um panorama da práxis de produção de saber por Ifá. À vista disso, em cada capítulo os odù são
apresentados a partir do possível diálogo com o assunto discutido. É importante salientar que não se trata
do tema do odù, mas um recorte entre os temas de cada um. No final de cada capítulo apresentamos uma
breve discussão sobre o orixá Exu, no primeiro, e duas leituras de Ifá, no segundo e terceiro
respectivamente.
No primeiro capítulo discutimos a ideia da palavra e como, por ela, é formado, segundo Hampâté
Bâ, um tipo particular de homens e mulheres. A partir disso, apresentamos alguns enunciados da tradição
oral iorubá, principalmente, os que são os “versos” que compõem cada odù. Dentro da discussão
em torno da palavra, o som surge como elemento fundamental já que é parte constituinte das dinâmicas
comunicativas da oralidade. Terminamos o capítulo apresentando o orixá Exu pelas suas dinâmicas gerais e
suas dinâmicas específicas com o sistema de Ifá. No segundo capítulo discutimos a ideia de corpo para,
então, apresentarmos o corpo do babalaô, ou seja, como o babalaô, sacerdote de Ifá, estabelece sua
ontologia através da constituição de si mesmo, iniciação, e da sua participação na realidade do Orun através
do orixá Orunmilá. Terminamos o capítulo com a primeira leitura de um jogo de Ifá. No terceiro capítulo
discutimos a cosmogonia, o mundo e a experiência de mundo iorubás. Terminamos o capítulo com a
segunda leitura de um jogo de Ifá.
A pesquisa, em resposta a toda a discussão que apresentamos no início dessa introdução, assume
um compromisso ético e político como já sugerimos anteriormente. Ético já que na crítica às formas de
produção de conhecimento, mantidas pela colonialidade de poder e racismo epistemológico, a crítica à
colonialidade da vontade se faz necessária. Pela ética ocidental, de maneira geral, a vontade é esse poder
deliberativo e decisório do agente moral. E, para que exerça esse poder, a vontade deve ser livre, isto é não
pode estar submetida à vontade de um outro nem pode estar submetida aos instintos (ou impulsos naturais
cegos) e às paixões (sentimentos e emoções incontroláveis que dominam o agente), mas, ao contrário, deve
ter poder sobre eles e elas, dominando-os e controlando-os (CHAUI, 2011). Neste sentido nos surgiu a
pergunta do porque escrever sobre uma outra forma de conhecimento. À resposta foi exigido ir além da
34
justificativa cultural para chegarmos ao fato primordial: o compromisso ético de assumir na língua de escrita
da dissertação, dentro dos limites que são possíveis para o autor, a linguagem de quem se fala, em outras
palavras, procurar dar conta do imaginário conceitual (imaginação iorubá) e escreve-lo sem que o encerre
na destituição de sua vontade: o seu conhecimento não é fruto nem de instintos nem de paixões e,
fundamentalmente, por sua particular palavra na experiência de mundo, sua ética não se dá pelo binômio
consciência e responsabilidade.
Político já que lidamos sempre com discussões que envolvem poder e regimes de dominação.
Assim, é sempre dentro de uma negociação em contexto de violência que buscamos produzir um texto que
não determinasse o que é Ifá, mas, a partir de aproximações, propormos uma possível leitura do sistema de
Ifá. Desta maneira, a escrita se explica até o limite que possibilita a compreensão dos elementos envolvidos
nas dinâmicas da linguagem que discutimos. Para aqueles que são mais familiarizados com universo das
religiões africanas e/ou afro-brasileiras e, sobretudo, aqueles que também fazem desse conhecimento o
realizar de suas experiências de mundo poderão fazer uma leitura mais ampla sobre o imaginário iorubá
presente no sistema de Ifá.
A última consideração que faremos está relacionada com a pesquisa e a produção das traduções
dos textos em iorubá. A partir da perspectiva de hoje, a pesquisa tem seu inicio no ano de 2009 quando da
primeira viagem a Nigéria pelo autor. Os estudos da língua iorubá e as viagens realizadas contribuíram para
a elaboração de todas as traduções presentes na dissertação bem como para uma melhor compreensão da
complexa produção de conhecimento que se dá pelos homens que dançam.
A compreensão do idioma e a inserção no universo iorubás foram determinantes para o caráter final
do texto e suas preocupações fundamentais. Por ser uma língua tonal, o iorubá apresenta desafios na
compreensão para nossos ouvidos latinos já que não estamos acostumados com as variações tonais que
são fundamentais no idioma. Outro aspecto é a própria noção de semântica e gramática, que nos parece tão
natural, é completamente transformada em uma economia de sentidos em constante transformação. Uma
palavra só possui sentido em seu contexto de enunciação.
A tradução seguiu, para os fins propostos nesta dissertação, uma linha interpretativa e contextual,
ou seja, damos preferência a uma versão narrativa e não a real estrutura poética do enunciado oral. Tal
posicionamento não implica em confusão dos sentidos de cada frase, mas perdem o seu valor enquanto
transmissores de axé. As escrita das palavras em iorubá segue as normas estabelecidas pelo Departamento
de Linguística da Universidade de Ibadan, Nigéria. As palavras que possuem uma versão escrita em
35
português são apresentadas a primeira vez em escrita iorubá e no restante do texto a versão em português.
Aquelas palavras que não possuem sua versão em português foram mantidas em escrita iorubá em todo o
texto. Citamos três exemplos da produção dos textos em português:
(A)
Ele bate que ele cai que alguém que ele estúpido no chão
(B)
(C)
Ter ele que dizer que Xangô vigia minha casa até (chegada) minha
Ele diz que Xangô toma conta de minha casa até eu chegar
(D)
Apresentamos, portanto, a primeira palavra do diálogo proposto nessa introdução. Quem falou
primeiro foi o Exu acadêmico. E, agora, é a palavra do Exu entre-lugares23 que finalizará a introdução a
dissertação.
Sou um corpo, por assim dizer, consequente de corpos em diáspora. Não sou um corpo no qual
diretamente memórias negras estão ancoradas, mas sim um corpo que se colocou no entre-lugar, se
iniciando em uma nova natureza. Enrique Dussel faz a seguinte diferenciação: o cosmo seria a totalidade da
realidade do universo, das mais remotas galáxias aos menores microrganismos encontrados na terra, e
natureza é a forma com que cada grupo de homo sapiens se relaciona com o cosmo. Como há várias
maneiras de se estabelecer essa relação, há várias naturezas, nenhuma sendo, portanto, válida
universalmente em sua totalidade.
O meu corpo é um corpo em fronteira: de um lado toda a natureza que fundamentou a minha
educação formal, as formas de produzir e legitimar os conhecimentos e saberes, o modo de usar a palavra, a
música, de ver o mundo, a filosofia da ética, da moral, da política, as formas de minha sensibilidade; por
outro, uma natureza que transforma o meu corpo em outra palavra, outro som. E, fundamentalmente, em
outro corpo que é constituído e habitado por Xangô, Oabaluaiê, Yemonjá, Exu e Ifá. E esses já são saberes
suficientes para que eu possa viver em harmonia e equilíbrio.
Essa dissertação é fruto tanto de uma pesquisa acadêmica quanto do resultado dos conhecimentos
adquiridos por esse novo corpo que se constrói no encontro entre esses dois mundos. Os limites do que
apresento são os limites que o meu local dentro das dinâmicas de Ifá me permite dizer e, sobretudo, me
permite conhecer. A palavra que particulariza, o som que fala e o corpo que dança são os elementos que
23
Esse conceito conforme Nubia Jacques Hanciau (2005) se insere no conjunto de conceitos indicadores de zonas de
descentramento, que vêm testemunhar as heterogeneidade e deslocar a única referência atribuída à cultura europeia, no momento
da debilitação dos esquemas cristalizados de unidade, pureza e autenticidade, tais como: "lugar intervalar (E. Glissant), tercer
espacio (A. Moreiras), espaço intersticial (H. K. Bhabha), the thirdspeca (Revista Chora), in-between (Walter Mignolo e S.
Gruzinski), caminho do meio (Z. Bernd), zona de contato (M. L. Pratt) ou de fronteira (Ana Pizarro e S. Pesavento)” (HANCIAU,
2005, p. 217). Em O local da Cultura, Homi Bhabha indaga de que maneira é possível refletir sobre o problema da identidade num
espaço-tempo contemporâneo cuja marca é a não-fixidez, o constante movimento, certa fluidez do que antes era considerado
estático, tomado como porto seguro. Trata-se de uma proposição que tenderá a se tornar ainda mais complexa no contexto pós-
colonial de comunidades em que, “apesar de histórias comuns de privação e discriminação, o intercâmbio de valores,
significados e prioridades pode nem sempre ser colaborativo e dialógico, podendo ser profundamente antagônico, conflituoso e
até incomensurável” (BHABHA, 1998, p. 20). O autor indiano reputa “teoricamente inovador e politicamente crucial” a
necessidade de se ultrapassar as “narrativas de subjetividades originárias e iniciais”, buscando-se “focalizar aqueles momentos
ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais”. Para Bhabha (1998, p. 20), “é na emergência dos
interstícios – a sobreposição de domínios da diferença – que as experiências intersubjetivas e coletivas de nação (nationness), o
interesse comunitário ou o valor cultural são negociados”. O conceito de entre-lugar, proposto pelo autor, é compreendido nesta
dissertação como ponto intersticial.
37
desafiam a razão ocidental a imaginar outros mundos possíveis. Imaginar e vive-los é, portanto, um desafio
sempre político já que a realidade de colonialidade das relações entre saberes nos impossibilita a dizer
apenas que essa dissertação teve sua origem no próprio Ifá. Assim, das motivações silenciadas irrompem
homens e mulheres que ao disponibilizarem seus corpos à experiência do mundo, dançam seus orixás na
roda da vida que lhes dão sentido e, fundamentalmente, a liberdade para também silenciarem as palavras
que tentam fixar os movimentos e sons que escapam aos reducionismos teóricos.
Eu – filho de Xangô, Obaluaiê e Yemonjá, sacerdote de Exu e de Ifá – sou a palavra, o som e o
corpo que se propõem a introduzir, em forma de dissertação, o sistema de Ifá.
38
39
PARTE I
40
41
O SISTEMA DE IFÁ
De acordo com a tradição oral iorubá, há indícios de contribuição Nupe26 para os primeiros
rudimentos do sistema de Ifá, mas a extensão dessa contribuição é incerta (AKINTOYE, 2010). Analisando
as tradições registradas no século XIX por Samuel Johnson, viveu em Ifé nos tempos pré-Oduduwa um
homem nupe chamado Setilu ou Agboniregun (este último é provavelmente o nome que os habitantes de Ifé
lhe deram). Agboniregun, praticando o sistema de Ifá, viveu em alguns lugares na parte oriental das terras
iorubás (incluindo Ado em Ekiti e Owo) antes de se estabelecer em Ifé com uma influencia considerável
devido aos jogos de Ifá que realizava e por iniciar muitas pessoas a Ifá (JOHNSON, 1921).
Algumas tradições mais antigas, entretanto, apontam que a prática do sistema de Ifá fora introduzida
no mundo por um ato benevolente do próprio orixá da sabedoria, Ifá (Orunmilá), e que, em sua forma mais
rudimentar, era comum entre os iorubás, os nupe, os edo27 e os ibariba28 (AKINTOYE, 2010). A provável
24
Para uma discussão mais ampla sobre o processo de crescimento da população, formação das comunidades e elaboração do
grupo cultural iorubás, conferir Ade Obayemi: “The Yoruba and Edo-speaking Peoples” (OBAYEMI, 1985), Oladipo Olugbadehan:
“Owo, A Frontier Yoruba Kingdom” (OLUGBADEHAN, 2006), I. Olomola: “Ife Before Oduduwa” (OLOMOLA, 1992), N. A. Fadipe:
“The Sociology of the Yorubas” (FADIPE, 1970) e, por fim, S. Adebanji Akintoye: “The History of the Yoruba People” (AKINTOYE,
2010).
25
Os termos “visível” e “invisível” são usados como referências para um olhar tipicamente ocidental, pois nas dinâmicas da
experiência de mundo dos iorubás ambas as realidades constituintes de seu mundo são “visíveis” na palavra, no corpo e no som
os quais determinam a forma de ser iorubá.
26
Os Nupe, tradicionalmente chamados de “tapa” pelos vizinhos iorubás, são um grupo cultural que habita a região centro-norte
da Nigéria, e é o grupo dominante no estado do Níger e uma minoria importante no estado de Kwara ambos na Nigéria.
27
Grupo cultural nigeriano.
28
Idem.
42
conclusão que chegamos a partir das tradições e dos enunciados orais é a de que o sistema de Ifá se
desenvolveu lentamente desde tempos remotos em contextos culturais iorubás, nupe, edo e ibariba. No
entanto, foram os iorubás que, pela dinâmica criatividade, elevou o sistema de Ifá e o enriqueceu com
complexos enunciados orais, até que o conjunto do sistema se tornasse um sofisticado termo da
espiritualidade, sociedade e culturas iorubás. É, igualmente, uma forma de saber (ou uma forma de
produção de conhecimento) que pela palavra, pelo som e pelo corpo, determina e é determinada em uma
experiência de mundo cuja compreensão da realidade concreta não possui dissociação entre o espiritual e o
material. E, por isso, a tradição viva, entendida nos termos de Hampaté Bâ, que para nós é a tradição viva
iorubá, cria por essa forma de saber e, fundamentalmente, na palavra que encerra o testemunho daquilo que
eles são, um tipo de homem e mulher particulares (BÂ, 2011).
Em sua forma final, o Odù Ifá, nome que se dá ao conjunto de enunciados orais de Ifá, tornou-se o
mais extenso enunciado oral iorubá, um enorme conjunto de conhecimentos em continuo crescimento que
inclui assuntos históricos e espirituais, preceitos, instruções para a vida cotidiana e uma “profunda filosofia
iorubá” (AKINTOYE, 2010, p. 33). Ele se desenvolveu, provavelmente, ao longo de inúmeras gerações de
“elevados conhecimentos e se tornou o elemento constituinte de uma elite selecionada conhecida como
babalawo (babalaô), pai do segredo, que é o sacerdote de Ifá” (AKINTOYE, 2010, p. 33).
O sistema de Ifá, tal como o conhecemos hoje, consiste em 256 distintos “volumes” os quais são
chamados odù e cada odù é subdividido em inúmeros “capítulos” que são chamados de . Enquanto o
número de odù é conhecido, o número de em cada odù é desconhecido, pois estes estão em constante
crescimento. Há duas categorias de odù, a primeira consiste nos - os principais odù - e são ao
todo dezesseis; a segunda consiste nos duzentos e quarenta ou - odù menores
(ABIMBOLA, 1997). Ao longo da dissertação apresentamos as principais características dos Ojú Odù e suas
respectivas as inscrições gráficas.
Nesta primeira parte da dissertação, apresentamos algumas considerações iniciais a respeito do
sistema de Ifá que serão fundamentais para nos introduzir às dinâmicas da linguagem de produção de
conhecimento por Ifá. À vista disso, tais considerações são: (a) sobre aparato de Ifá; (b) sobre as dinâmicas
que envolvem o processo de realização de um jogo de Ifá e; (c) sobre a ideia de odù no imaginário
conceitual iorubá, sobretudo, na formação de suas inscrições gráficas e no seu lugar e papel dentro da
experiência de mundo iorubá.
43
29
No cotidiano, os iorubás sabem naturalmente reconhecer entre as nozes da palma aquelas que são exclusivamente para Ifá.
Segundo alguns iorubás que preparam o óleo de palma se apenas uma noz de Ifá for colocada junto com outras nozes de palma e
usarmos essa mistura para preparar o óleo, a mistura ficará espumante e não produzirá um bom óleo.
44
(ABIMBOLA, 1977). Se ele fizer, por exemplo, uma marca ( I ), quatro vezes na direita e quatro vezes na
esquerda, a marca é aquela do odù Èjí Ogbè, cuja incrição gráfica é formada como se segue:
I I
I I
I I
I I
Se ele fizer duas marcas quatro vezes à direita e quatro vezes à esquerda, a inscrição gráfica é a do
odù que será como se segue:
II II
II II
II II
II II
Há um total de duzentos e cinquenta e seis (256) padrões (inscrições gráficas) do tipo descrito
acima no sistema de Ifá. Cada padrão é conhecido como odù de Ifá. Cada odù contem, em média, seiscentos
(600) (“versos/poemas” de Ifá). O sacerdote de Ifá aprende o maior número possível de poemas de
cada um dos 256 odù e recita-os para os seus clientes da maneira descrita em detalhes mais adiante.
Figura 4 - Iyanifá, sacerdotisa de Ifá, fazendo as inscrições de um odù por ikin, Lagos, 2012 (arquivo pessoal)
Figura 5 - Marcas feitas por um babalaô segundo o padrão " I " e " II ", Lagos, 2012 (arquivo pessoal)
46
(corrente de Ifá)
Outro instrumento importante para o sistema de Ifá é conhecido como (a corrente de Ifá).
Essa corrente, que tem duas terminações abertas na base é feita tanto de metal quanto de barbante de
algodão. Quatro meias nozes da fruta são presas em cada metade da corrente (lados direito e
esquerdo). Cada uma destas meias nozes (que lembram um obí) tem um lado externo liso e um lado interno
rugoso. Se a corrente é feita de metal, as meias nozes também são feitas de metal de tal forma que pareçam
as meia nozes do fruto do .
O babalaô pega a corrente pelo meio da sua parte superior e a joga na direção oposta ao seu corpo,
quando a corrente cai no chão, cada uma das meias nozes em cada lado vai mostrar seu lado interno ou
externo para cima. Há 256 possibilidades desta forma de apresentação cada vez que o sacerdote joga a sua
corrente. Cada uma destas possibilidades de apresentação é conhecida como odù ou “capítulo” na coleção
de enunciados orais de Ifá. Os odù têm nomes que são exatamente os mesmos que os nomes atribuídos aos
padrões marcados no pó de Ifá quando se usa os ikin. Por exemplo, quando todas as oito nozes apresentam
suas superfícies internas para cima, este padrão é conhecido como odù Èji Ogbè. E quando todas elas
apresentam sua superfície externa, a assinatura é a do odù . O babalaô mantém a corrente
divinatória dentro de uma bolsa de couro ou pano conhecida como Àpò Ifá que ele carrega a tiracolo em um
de seus ombros e toma parte de seu aparato sempre que ele sai de casa. É devido ao hábito de usar esta
bolsa no ombro que o sacerdote de Ifá é conhecido como Akápò (carregador da bolsa de Ifá).
A corrente de Ifá é usada mais frequentemente que as nozes de palma para propósitos de
realizações de jogos de Ifá. O babalaô usa a corrente no seu dia-a-dia para a maioria das leituras envolvendo
os numerosos clientes e reserva as nozes para ocasiões mais importantes. É devido a importância das nozes
como o mais antigo símbolo de Ifá que elas não podem ser carregadas para cima e para baixo para todas as
ocasiões de leitura. Além disso, a corrente é mais fácil de manusear, de forma que o sacerdote pode obter a
marca de um odú mais facilmente fazendo uso dela.
(pó de Ifá)
Quando o babalaô usa as nozes de palma, como foi explicado acima, ele imprime as marcas
(inscrições gráficas) simples (“ I “) e duplas (“ II “) obtidas em cada manipulação no pó de Ifá chamado de
. Esse pó esbranquiçado ou amarelado é obtido da árvore ìrosún ou da planta akee, bambu e ìrókò
secos transformados em pó por cupins. O pó é colocado no (a bandeija talhada em madeira) e o
sacerdote imprime marcas nele à medida que manipula as nozes de palma (ikin). O é considerado
pelos sacerdotes de Ifá como um símbolo fundamental e de grande valor medicinal. Partículas deste pó são
borrifadas nos sacrifícios para assegurar a aceitação pelos orixás. Ao cliente, algumas vezes, é pedido que
engula ou para esfregá-lo na cabeça para forjar um laço de união entre ele e os orixás de forma
que ele possa ficar satisfeito que os orixás o estão auxiliando na resolução dos seus problemas.
Enquanto está realizando um jogo, o sacerdote de Ifá bate repetidas vezes no Opón Ifá com o
para chamar a presença de Ifá na leitura. Os praticantes ou subordinados de importantes sacerdotes de Ifá
carregam o na frente dos seus superiores quando eles saem para realizar alguma importante
cerimônia. O é esculpido em marfim ou madeira em tamanho pequeno ou grande. Em alguns
uma figura humana ou a cabeça de um ser humano é esculpida. A sua parte superior é esculpida numa
forma cónica, longa e afilada. A parte de baixo tem um formato de boca alargada e suporta o instrumento
quando colocado em pé. O sacerdote de Ifá segura o pela parte alargada enquanto bate com a parte
longa superior contra o Opón Ifá durante a leitura.
(tábua de Ifá)
Conforme mencionamos acima, o sacerdote de Ifá imprime as inscrições gráficas em uma bandeja
de madeira quando ele usa as nozes de palma (ikin) para realizar um jogo. As tábuas de Ifá são esculpidas
em diversos tamanhos e formas. As margens da tábua são dominadas por um padrão intrincado de diversos
objetos tais como pássaros, répteis, tartarugas e animais selvagens. O meio da parte superior é reservado
para a imagem de (Exu). Desta posição a imagem de Exu olha para o sacerdote de Ifá como se ele
estivesse dirigindo ou assistindo a leitura. O interior da tábua pode ser tanto redondo quanto quadrado.
Outra louça importante é àwo Ifá, que também é chamada de na qual são guardados os
ikin. Essa tigela geralmente possui uma tampa esculpida e é dividida em quatro compartimentos nos quais é
guardado o aparato de Ifá. No entanto, outros objetos como búzios e nozes de cola também são guardados
dentro dela bem como a corrente de Ifá. Os quatro compartimentos fazem referencia aos quatro cantos da
terra (norte, sul, leste e oeste). Os ikin são guardados no centro dessa tigela simbolizando a posição central
que Ifá possui dentro da cosmovisão iorubá.
Toda a louça de Ifá possui uma rica e complexa simbologia e, ao mesmo tempo, uma estética
impressionante que chamou a atenção nos trabalhos de Frobenius (1921) quando analisa vinte variantes das
tigelas/tábuas de Ifá e nos de Bascom (1969) ao sugerir que talvez essa seja a mais versatil forma de
esculpir entre os escultores iorubás.
Figura 18 - . Fonte: Museu de Antroplogia SOAS (Londres) Figura 19 - . Fonte: Museu de Antropologia SOAS (Londres)
53
ÒSÙN
Esse cajado é feito de metal, geralmente ferro. É usado apenas por babalaôs muito importantes já
que é o símbolo de um orixá associado ao culto de Ifá. Ele não pode cair de nenhum de seus lados e, por
isso, é conservado em posição ereta em um dos cantos da casa onde não seja muito frequentado. Há um
ditado que diz: “ ” (Òsùn é sempre encontrado em posição ereta).
ÌLÙ IFÁ
Em qualquer encontro de babalaôs haverá sempre a presença dos instrumentos musicais
associados ao culto de Ifá (ìlù Ifá). Os (“versos”) de Ifá podem ser acompanhados por quaisquer dos
tambores iorubás convencionais, por exemplo, dùndùn (tambor de fala). No entanto, há alguns tambores
que estão intimamente associados a Ifá. Eles são: agogo, àràn e àgbá. Agogo e àrán são os mais importantes
na produção musical de Ifá. O agogo é tocado com varetas e, geralmente, há muitos dele sendo tocados para
produzirem um ritmo especial caracteristico de Ifá. O àràn é tocado com as mãos ou varetas confecionadas
especialmente para isso e, também, possui uma melodia caracteristica da musicalidade de Ifá.
Figura 25 - Da esquerda para direita: àràn, àràn, àgbá e àràn. Lagos, 2012 (arquivo pessoal)
55
Os babalaôs atendem a diversos clientes todos os dias. Esses clientes têm diferentes tipos de
problemas estendendo-se desde um conselho sobre se ele/ela deve ou não fazer uma viagem até assuntos
de vida e de morte envolvendo uma pessoa doente em favor da qual um parente consulta Ifá. Alguns clientes
consultam Ifá em momentos críticos de suas vidas envolvendo matrimônio, divórcio, mudanças de profissão
ou de residência. Quando o cliente entra na casa do sacerdote de Ifá, ele o saúda e expressa o desejo de
"falar com o orixá". O sacerdote de Ifá, então, pega sua corrente divinatória e a joga na esteira ou numa
bandeja de ráfia em frente ao cliente. O cliente sussurra seu problema numa moeda ou num búzio e o coloca
junto aos instrumentos do sacerdote. Como alternativa o cliente pode pegar a corrente divinatória ou o ibò e
soprar num deles diretamente. Em ambos os casos são os desejos do orí do cliente que foram comunicados
a Ifá que irá, então, dar a resposta apropriada através do primeiro odù que o sacerdote de Ifá irá revelar ao
arremessar a corrente divinatória.
O babalaô pega o após entoar algumas palavras de saudação a Ifá. Ele apressa Ifá para que
dê a resposta apropriada ao cliente sem demora. O sacerdote de Ifá profere o ibà 30 (permissão das
autoridades) ao Ilè31 (a terra), a Olódúmaré (Olodumare) e aos seus mestres na arte de Ifá. Ele atira a corrente
em frente dele mesmo e rapidamente lê e pronuncia o nome do odù cuja inscrição gráfica ele viu. A resposta
ao problema do cliente será encontrada somente neste odù (ABIMBOLA, 1997).
O sacerdote de Ifá começa a cantar os do odù que ele viu enquanto o cliente assiste e ouve. O
sacerdote canta tantos ele conhecer daquele odù até que ele cante um com uma história similar ao
problema do consulente. Neste estágio o consulente o detém e pede explicações sobre aquele em
particular que tem uma história de um problema semelhante ao dele. O sacerdote interpreta aquele e
menciona o ebó que o cliente deve fazer. Às vezes durante o processo de leitura o cliente vai reconhecer
certos problemas similares aos problemas de certos membros de sua família. Ele pode também reconhecer
um que se relaciona a outro problema pessoal dele diferente do problema original que o levou a
consultar Ifá. Pode também acontecer que o cliente não saiba qual escolher dentre aqueles cantados
pelo sacerdote. Em todos estes casos, o ibò será usado para esclarecer e elucidar a real mensagem de Ifá.
30
Ibà constitui a primeira parte de um encantamento do sacerdote de Ifá. Ele saúda as autoridades do aiye tais como os mais
velhos e as ajés.
31
Os iorubás consideram Ilè (terra) como um dos orixás que é cultuado pela sociedade secreta Ògbóni.
56
Se, entretanto, o cliente achar que nenhum dos cantados pelo sacerdote estão relacionados
com o seu problema, o sacerdote vai continuar cantando mais e mais até que um deles satisfaça o
cliente. Mas, se o sacerdote esgotar seu estoque de , ele pedirá educadamente ao cliente para voltar no
dia seguinte ou outro dia marcado para continuarem a leitura. Enquanto isso, o sacerdote irá aprender mais
do odù original em questão e quando seu cliente voltar, se voltar, ele irá cantar os novos poemas na
esperança de que desta vez o cliente se satisfaça (EMANUEL, 2000).
Na sociedade tradicional iorubá, os sacerdotes de Ifá estão livres deste embaraço já que praticam o
jogo de Ifá em grupos consistindo de dois ou mais sacerdotes. Quando os sacerdotes praticam Ifá desta
forma, é fácil satisfazer seus clientes, já que um sacerdote substitui o outro quando seu colega já esgotou
seu estoque de ou simplesmente não lembra mais nenhum naquela ocasião em paticular.
Quando o cliente está totalmente satisfeito, tanto com o que ele escolheu como o mais
relacionado como o seu problema quanto com a interpretação feita pelo babalaô, ele deverá fazer o ebó
(oferenda, sacrifício) estipulado. Se o material requerido para o sacrifício não puder ser encontrado nas
vizinhanças do local de leitura ou se o cliente não tem dinheiro para comprar o material naquele momento, o
ebó pode ser protelado até o momento em que o cliente esteja com o material em mãos. Em certos casos o
cliente pode deixar uma quantia de dinheiro suficiente para comprar o material com o sacerdote. Se o cliente
for uma pessoa pobre, ele poderá oferecer só uma parte do material. Um ponto importante é que não
importando a situação o ebó deve ser realizado. O sistema de Ifá condena veementemente o indivíduo que
evita o sacrifício prescrito para ele. O sacrifício é, portanto, fundamental para a dinâmica de leitura de Ifá. O
sacrifício mantém o elo de ligação entre o cliente, o babalaô, os orixás e os ancestrais, juntos num sistema
de profunda comunicação.
ODÙ
Como mencionamos acima, existem 256 “categorias” de “versos” na coleção de enunciados orais
de Ifá. Cada uma destas categorias é chamada de odù. Cada odù como será visto adiante tem sua própria
inscrição gráfica (marca) e caráter. O trabalho do sacerdote de Ifá é reconhecer a marca de cada um dos odù
57
e a interpretação de suas características. Os odù são considerados orixás que foram enviados por
Olodumare para substituir Orunmilá no aiye após o regresso deste para o orun (ABIMBOLA, 1977).
De acordo com os enunciados orais de Ifá, os , Orunmilá, antes de sua partida definitiva para o
orun (realidade espiritual), prometeu aos seus filhos e seguidores que ele enviaria a eles alguns orixás que
realizariam algumas das funções que ele mesmo realizava quando de seu tempo no aiye (realidade material).
Esses orixás se chamariam odù e viriam do orun. Quando Orunmilá finalmente retornou ao orun, seus filhos
e seguidores começaram a fazer os preparativos para a chegada dos odù. Para os dezesseis principais odù,
os Ojú Odù, prepararam dezesseis tronos. Um dos tronos foi muito bem descorado e colocado em um lugar
aberto; os outros quinze foram organizados ao redor daquele formando um círculo.
Segundo Abimbola, quando os dezesseis Ojú Odù começaram a chegar do orun, Òfún Méjì,
também conhecido como , era o líder. A hierarquia dos odù no orun é como se segue
(ABIMBOLA, 1997, p. 26):
Quando os odù chegaram à fronteira entre o Orun e o aiye, no entanto, eles inverteram a ordem. O
primeiro odù seria o último e o último, o primeiro. Imediatamente Èjì Ogbè atravessou a fronteira e foi
saudado pelas pessoas quando de sua chegada no aiye (EMANUEL, 2000). Elas o colocaram no trono
central preparado para o líder dos odù. Desta maneira, a nova ordem foi:
A ordem de senioridade dos Ojú Odù, os dezesseis principais odù, permanece a mesma até os dias
de hoje. Èjì Ogbè é considerado o odù mais velho, mas todas as vezes que um babalaô faz uma leitura com
Òfún Méjì, ele o saúda como um rei dizendo héèpà (eu te saúdo).
58
Como mencionado anteriormente, os dezesseis principais odù (Ojú Odù) são mais importantes que
os odù menores ( . Os dezesseis principais odù contem os mais importantes de Ifá e se
considera uma obrigação de cada babalaô saber a maior quantidade de possíveis desses odù. Os
também são considerados orixás. Como o próprio nome deles implica, eles são considerados
filhos ( ) dos dezesseis principais odù. Eles também são conhecidos como Àmúlù Odù (odù de padrão
misto) já que cada um deles recebe o nome de dois dos principais odù. Por exemplo, o primeiro e mais
importante é chamado de Este nome é a combinação dos nomes de dois odù,
Ogbè, o primeiro odù, e o segundo odù. Os duzentos e quarenta odù menores são organizados em
doze grupos. Cada grupo é conhecido como Àpólà (seção). Os doze grupos recebem os nomes de doze dos
principais odù. Eles são organizados na seguinte forma (ABIMBOLA, 1997, p. 28):
Cada àpólà consiste em certo número de odù. A primeira seção possui trinta odù enquanto a
segunda seção possui vinte e oito. O número de odù em cada seção decresce em um padrão irregular,
dando um total de duzentos e quarenta odù.
Cada odù possui, em média, seiscentos (poemas) que o identificam e lhe dão um caráter
distinto32. É parte do treinamento do babalaô estar apto a distinguir entre os aqueles que pertencem a
cada um dos odù sem cometer erros ou misturá-los. Os nomes dos duzentos e cinquenta e seis odù são
baseados em dezesseis nomes genéricos dos quais os nomes dos odù são derivados. Cada um destes
dezesseis nomes básicos corresponde a um dos dezesseis padrões possíveis de leitura em um dos braços
da corrente divinatória ou um dos lados das marcas feitas no pó de Ifá. Já que ambos, o pó de Ifá e a
corrente, são lidos da direita para a esquerda o padrão do lado direito é considerado básico e é nele que os
dezesseis nomes genéricos estão baseados. A seguir temos os dezesseis padrões básicos das inscrições
32
Estamos usando uma média que a grande maioria dos babalaôs julga necessária para a formação de um sacerdote. No entanto,
esse número pode ser bem maior para os sacerdotes mais velhos já que durante sua vida no exercício de Ifá lhes conferiu as
trocas necessárias com outros sacerdotes que ampliam os conhecimentos sobre cada odù.
59
gráficas colocadas em ordem cronológica e hierárquica. Essas inscrições são sempre feitas à direita do
babalaô:
Os duzentos e cinquenta e seis odù de derivam dos dezesseis padrões genéricos. Eles estão
organizados em dois grupos, como já discutimos. O primeiro grupo é o Ojú Odù (principal ou maior), são
ao todo dezesseis e são baseados na duplicação de cada um dos dezesseis padrões genéricos. Portanto, a
palavra èjì ou méjì (dois) acompanha cada um dos seus nomes como prefixo ou sufixo. Assim, teremos Èji
Ogbè (dois padrões de Ogbè) que é uma duplicação do padrão ( I ) acima. Em outras palavras, quando
60
vemos o mesmo padrão genérico na esquerda e na direita, a inscrição gráfica é de um Ojú Odú para o qual o
nome Èjì + X ou X + Méjì será escrito, sendo X um dos padrões genéricos. Vejamos dois exemplos:
(A) Èjí-Ogbè é formado pelo padrão básico Ogbé que é sempre inscrito à direita do babalaô:
I
I
I
I
(B) é formado pelo padrão básico que é sempre inscrito à direita do babalaô:
II
II
II
II
Essa regra de formação dos odù é a mesma para a composição de todos os dezesseis principais
odù. Todos os outros principais odù recebem méjì depois do padrão duplicado. A lista completa dos nomes
dos 16 principais odù e suas respectivas inscrições gráficas, em ordem de antiguidade, é a seguinte
(ABIMBOLA, 1977, p. 15):
(12)
(9) (10) (11)
I I II II II II II II
I I I I I I II II
I I I I II II I I
II II I I II II II II
apareça mais que uma vez do lado direito, nós chegaremos a duzentos e quarenta odù menores. Vejamos
dois exemplos:
(A) Se colocarmos à direita o padrão básico Ogbè:
I
I
I
I
Teremos um chamado :
I II
I II
I II
I II
II II
I I
I I
II I
Como no caso dos dezesseis odù principais, há uma ordem de senioridade entre os odù juniores. E
como já vimos, os estão agrupados em doze àpólà. Apresentamos, como exemplo, os nomes dos
trinta do primeiro àpólà, o Àpólà Ogbè (ABIMBOLA, 1977, p. 17):
Cada um dos 256 odù tem uma característica específica associada a ele. Por exemplo, Èjì Ogbè, o
primeiro e mais importante odù, significa boa sorte, enquanto que , o décimo quarto odù,
significa morte. O décimo terceiro odù, , por outro lado, conta a história do Islã e a introdução
daquela religião em contexto iorubá. A maioria dos em cada odù contém histórias relacionadas ao
caráter ou tema do odù a que pertence. Logo, existem 256 características principais na coleção de
enunciados orais de Ifá. No entanto, há alguns em cada odù que não se relacionam com o tema
principal do odù concernente. Assim, em Èjì Ogbè nem todos os vão conter o tema de "boa sorte" e em
Ótúrá Méji nem todos os falarão sobre o Islã.
Podemos dizer que o odù ajuda a dar sentido e esclarecimento aos milhares de (256 x 600, em
média) do sistema de Ifá. Sem o odù seria difícil categorizar os importantes temas encontrados nesses
numerosos poemas. Além disso, ao associarmos cada odù a um orixá particular, a coleção de enunciados
64
orais fica mais próxima das dinâmicas sociais e espirituais dos iorubás. Neste sentido, o sistema de Ifá dá a
palavra aos orixás iorubás.
Apresentamos nesse primeiro item as características gerais do sistema de Ifá a partir de seus
elementos materiais: os enunciados orais (odù) e todo o aparato do jogo de Ifá. Essas características são
fundamentais para a compreensão dos elementos da segunda parte já que elas estão envolvidas na práxis de
Ifá. Seguimos, agora, com um (“verso”, “poema”) de Ifá que nos narra a origem do jogo de Ifá pelas
nozes de palma, em outras palavras, é a versão do próprio Ifá sobre sua origem.
65
A narrativa começa em um tempo em (Ifé) quando Orunmilá não tinha nenhuma criança e seus
inimigos gritavam que o pai nunca terá uma criança na cidade de Ifé. No entanto, seus inimigos estavam
errados, pois Orunmilá teria oito filhos. Todos os oito filhos se tornam importantes reis em inúmeras
regiões das terras iorubás. O primogênito foi coroado como Alárá, rei de Ìjerò, e o caçula, rei de
Durante uma importante ocasião quando Orunmilá estava celebrando um ritual, ele convidou para
uma visita a todos os seus filhos que já eram muito importantes em suas cidades. Todos estavam presentes
e demonstraram obediência ao seu pai através das palavras: (“que os rituais tenham
axé e sejam aceitos”). Porém, , o caçula, se recusou a saudar seu pai. E mais, ele estava com o
mesmo tipo de vestimenta que Orunmilá o que simboliza sua rejeição à autoridade e superioridade de seu
pai. Enquanto todos os outros sete filhos se curvaram, um por um, diante de seu pai, ele se recusou e
permaneceu ereto. Seu pai lhe pediu que dissesse “que os sacrifícios tenham axé e sejam aceitos” como
seus irmãos, mas ele se recusou e disse:
E, como se diz,
Ninguém que possui uma cabeça coroada se curva para outra pessoa
O resultado dessas palavras, denotando a total rejeição da autoridade de Orunmilá sobre seus
próprios filhos, foi que Orunmilá ficou furioso e derrubou o òsùn que carregava. Essa ação
simboliza o embargo à autoridade de Òsùn, como vimos, é usado apenas por um babalaô da alta
hierarquia como um símbolo de sua autoridade e superioridade. O embargo feito a desta forma,
representou o recuo da autoridade a qual Orunmilá dera aos seus filhos como importantes sacerdotes.
A reação de Orunmilá à tola ação de , no entanto, não parou por aí. A desobediência filial de
levou ao retorno final de Orunmilá ao orun onde ele se estabeleceu nos pés de uma antiga palmeira
que se ramificada por lá e aqui, e tinha dezesseis cabeças que parecem cabanas. Consequentemente, houve
fome, pestes, caos e confusão no aiye. Isso não é surpresa já que Orunmilá é o orixá que representa o
principio da ordem, sabedoria, autoridade, fertilidade e continuidade para o jovem aiye33. A sua partida do
aiye levou, assim, ao colapso da ordem e da continuidade. A chuva imediatamente parou de cair. O ciclo da
fertilidade tanto nas plantas quanto nos animais foi interrompido, ameaçando a humanidade e o meio
ambiente com a total extinção.
Os habitantes do aiye, enfrentando catástrofes e extinções, clamaram pelo retorno de Orunmilá. Eles
chamaram seus filhos para implorar que ele retornasse ao aiye para que a paz, a ordem e a continuidade
fossem restauradas. Quando os filhos Orunmilá chegaram ao orun, eles imploraram ao seu pai para que
retornasse. Eles entoaram seus nomes de celebração e insistiram que ele voltasse com eles para sua casa.
No entanto, Orunmilá se recusou veemente a voltar com eles e disse:
Se precisarem de dinheiro
33
A narrativa está ambienta temporalmente no principio da vida no aiye segundo os enunciados orais iorubás. Veremos com mais
detalhes a cosmogonia iorubá no terceiro capítulo.
67
Se desejassem esposas
Assim, Orunmilá recupera a sua autoridade com as dezesseis nozes de palma chamadas de ikin.
Quando ele estava no aiye, Orunmilá era a ligação direta entre o orun e o aiye. Como o seu retorno final para
o orun, mais um intermediário foi adicionado no processo de comunicação entre o aiye e o orun. Homens e
mulheres que quisessem se comunicar com o orun deveriam, então, faze-lo, primeiramente, através das
dezesseis nozes de palma. Com isso, o sistema de Ifá, baseado em um elaborado aparato e em um
complexo conjunto de enunciados orais, nasce. Apresentamos, agora, a versão completa do cuja fonte
do texto em iorubá foi o livro The Sixteen Great Poems of Ifá de Wande Abimbola (ABIMBOLA, 1975 , p. 50-
67).
34
Árvore de apá. Árvore tanto das florestas quanto da savana.
35
Árvore orúrù. Árvore comum nas terras iorubás. Suas flores são de um vermelho brilhante.
36
As linhas 3 e 4 são de um tempo em que não se usava a tábua de Ifá e as marcas eram feitas no próprio chão. Essas marcas
são, hoje em dia, realizadas no pó chamado de
37
Muitos “versos” de Ifá fazem referencia à “fina palmeira do topo da montanha” a qual possui dezesseis grandes cabeças em cuja
base Orunmilá se estabeleceu.
38
Uma questão deve ser respondida: quem realizou o jogo de Ifá para Orunmilá? A resposta que é dada em outros enunciados é
que quando Orunmilá estava no aiye, ele teve vários discípulos incluindo seus oito filhos aos quais ele apresentou os segredos de
Ifá. É, desta maneira, convincente que o jogo referido acima foi realizado por um de seus discípulos. Inúmeros outros
(“versos”) fazem menção aos nomes desses sacerdotes de Ifá discípulos de Orunmilá os quais, às vezes, são chamados de “os
sacerdotes residentes da casa de Orunmilá” (“
68
Quando escutei,
Foi
Foi
Foi
Foi
Foi
Foi
39
Um nome pessoal cujo significado é: “foi depois de eu ter crianças que me gabei em ter
relações pessoais”. Tal nome é dado ao primeiro filho ou filha de uma pessoa possui muitas relações e celebra o fato que agora
que começou a ter crianças, ele ou ela não poderá ter mais associados próximos.
40
Alárá. Um importante título entre os sacerdotes de Ifá. É também o título do rei de Ìlárá e Arámoko em Èkìtì.
41
Nome pessoal cujo significado é: “para se ter uma criança deve-se fazer um exame detalhado e deliberado
(entre aqueles que concerne aos assuntos familiares)”.
42
Ajerò. Outro título importante entre os sacerdotes de Ifá. Também é o título oficial do rei de Ìjerò, um dos mais famosos
governantes locais de Èkìtì.
43
Um nome pessoal cujo significado é: “foi depois de ter crianças que o
meu corpo começou a embranquecer”.
44
Título do rei de Oyé, cidade iorubá.
45
Um nome pessoal cujo significado é: “foi depois de eu ter crianças que eu comecei a
cortar lenha incessantemente”. Esse nome se refere à tradição que ainda encontramos em diversas áreas rurais iorubás onde a
principal fonte de energia para se produzir fogo durante a estação de frio é a lenha.
46
Título obscuro.
47
Um nome pessoal cujo significado é: “foi depois de eu ter crianças
que eu comecei a cortar lenhas para vender no mercado de
48
título do rei de Ìtagi, uma pequena cidade em Èkìtì.
69
Foi
Foi
No dia do festival,
49
Um nome pessoal cujo significa é: “foi depois de eu ter crianças
que eu comecei a coletar folhas de índigo (corante natural) para vender no mercado de
50
Título do governante supremo de Ìjèlù.
51
um nome pessoal cujo significado é: “foi depois de eu ter crianças que
minha vida ficou agradável”.
52
Título importante entre os sacerdotes de Ifá.
53
Um nome pessoal cujo significado é: “foi depois de ter crianças que as
pessoas começaram a me respeitar por elas”.
54
Título do rei de Òwò, um dos principais governantes tradicionais.
55
Vestimentas de Tradicional roupa iorubá feita de ráfia.
56
Cajado que é carregado por importantes babalaôs.
57
Esta frase é usada por qualquer um que se encontra com um babalaô durante um jogo de Ifá bem como é usada como
cumprimento entre babalaôs.
70
E ficou parado.
Mas ele disse que não poderia dizer “que os sacrifícios tenham
axé e sejam aceitos”.
E como dizem
As galinhas as recolhem59.
E bodes as comeram.
58
Pequenos rios eram vestimentas de folhas. Essa é uma forma metafórica de dizer: quando pequenos rios secam, folhas das
árvores ao longo de suas margens cobrem os seus cursos.
59
As galinhas as recolhem. As galinhas recolhem as gotas pensando que são grãos.
72
A eles foi pedido que realizassem ebó com dois ratos que se
movem rápido,
Eles diziam:
Filho de
Filho de
Onsà64 na cidade de ‘
na cidade de
na cidade de
na cidade de
na cidade de
60
Os búzios foram usados como dinheiro pelos iorubás desde sua introdução pelos portugueses no oeste africano. Uma pessoa
que vai até um sacerdote de Ifá para a realização de um jogo deve levar consigo alguns búzios (hoje em dia são moedas) para o s
quais ele comunica os seus desejos e, então, os coloca junto do aparato de Ifá. Com esse gesto, o orí individual da pessoa se
comunica com Orunmilá o qual falará através de todo o aparato de Ifá, sua forma de linguagem.
61
Um tipo de vaca.
62
Nome obscuro. Uma das antigas formas de saudar Orunmilá.
63
Èwí é o título do rei de Ad, importante cidade da região de Èkìtì. É um título de louvor a Orunmilá.
64
Onsà é um titulo importante da cidade de Oyó. É um título de louvor a Orunmilá.
65
Título da cidade de . É usado como título de louvor a Orunmilá.
66
Título da obscura área de Eléré. É usado como título de louvor a Orunmilá.
67
Título importante de . É usado como título de louvor a Orunmilá.
73
descendente da presa
descendente da presa
68
Nome pessoal que significa: ele que vela pela honra.
69
É o lugar onde Orunmilá se estabeleceu quando chegou com os outros orixás no aiye.
70
A madeira que resta depois a floresta da savana é queimada. Ela é recolhida e vendida no mercado para produzir fogo. Òòrun
produz fogo rapidamente.
74
E cujo apelido é
Chamem de pai.
Vimos nesta primeira parte da dissertação os elementos que envolvem a prática do sistema de Ifá.
Primeiramente, discutimos as estruturas dos enunciados orais de Ifá; em seguida, o aparato do jogo de Ifá.
Por fim, apresentamos que narra como as dezesseis nozes de Ifá se tornaram o principal meio de
comunicação entre a humanidade e o orun, o que apenas ocorre através de Orunmilá. Seguimos para a
segunda parte onde discutiremos o imaginário conceitual de Ifá.
71
Um título de louvor a Orunmilá que significa Èlà da cidade de Ìsòdè. Èlà também é usado como apelido para Orunmilá.
72
Refere-se ao orun. Olókun é o orixá dos mares.
75
PARTE II
76
77
CAPÍTULO I
“Pour les "hommes de connaissance", la logique s'appuyait sur une autre vision du monde,
où l'homme était relié d'une façon subtile et vivante à tout ce qui l'environnait. Pour eux, la
configuration des choses à certains moments clés de l'existence revêtait une signification
précise qu'ils savaient déchiffrer. "Sois à l'écoute, disait-on dans la vieille Afrique, tout parle,
tout est parole, tout cherche à nous communiquer une connaissance. ”
― Amadou Hampâté Bâ, L’enfant Peul Amkoullel
78
79
ÌJÀPÁ E A VENDEDORA DE
Ìjàpá (cágado) morava em uma aldeia onde tinha uma mulher que era famosa pelo seu comércio de
, amendoim torrado. De todos os lugares da cidadezinha, poderíamos sentir o aroma gostoso de
|pà que a mulher torrava dia e noite. Acontece que uma das comidas favoritas do Ìjàpá era o amendoim. Ele
vivia sonhando com a possibilidade de comer o quanto pudesse do preparado por aquela mulher.
Assim, ele pensou em um plano. Primeiro, ele chamou seu amigo e compadre ewújú, o rato selvagem, para
cavar um túnel ligando sua casa até a casa da mulher do amendoim.
Feito isso, Ìjàpá fabricou com suas próprias mãos um tambor bem afinado. Depois de tudo pronto,
entrou pelo túnel ruma à tenda da . Chegando ao local, Ìjàpá começou a cantar, primeiro em
surdina, depois cada vez com maior ousadia, acompanhando o canto com o ritmo do tambor:
Quando a mulher do amendoim ouviu essa bela cantiga, não conseguiu resistir ao apelo do tambor
que Ìjàpá tocava e começou a mexer o corpo. Aos poucos, levantou-se e deu alguns passos de dança ao
80
encanto da cantiga tão linda que vinha do cantor invisível. Ela pensou que certamente quem assim cantava
era um admirador seu e aquela era a maneira dele declarar o seu amor para ela.
Do seu esconderijo, Ìjàpá espiava o resultado de seu plano. A mulher dançava cada vez mais
freneticamente e se distanciava aos poucos da tenda. Quando ela já estava bem distante da tenda, Ìjàpá saiu
do túnel, recolheu todos os amendoins, voltou para o túnel e sumiu. A mulher dançou até não poder mais.
Ao perceber que a cantiga não era mais tocada, ela parou, voltou para a tenda e descobriu que não tinha
mais nenhum amendoim para vender. Procurou em todas as partes, mas ninguém sabia dizer o que tinha
acontecido durante a sua ausência. Ela jurou ficar mais atenta da próxima vez.
Alguns dias depois, Ìjàpá sentiu vontade de comer amendoim mais uma vez e decidiu voltar à tenda
da mulher. Desta vez, ele acrescentou mais um tambor e a cantiga ficou mais empolgante ainda. Ao começar
a ouvir a cantiga, a mulher não consegui resistir e caiu mais uma vez na roda. Dançou, dançou e dançou.
Assim, mais uma vez, foi vitima do saqueador de amendoim.
Depois de acontecer mais algumas vezes, a mulher decidiu procurar um babalaô para ajudá-la
contra o saqueador de amendoim. Depois de explicar tudo para Ifá, o babalaô prescreveu um ebó que
deveria ser despachado para se livrar do ladrão de amendoim. O elemento principal do ebó foi um
(estátua de madeira) que o babalaô mandou talhar. Logo após o ebó, o babalaô pegou o e o cobriu
inteiramente com goma. Depois, ele mesmo foi até a tenda da mulher instalar o e pediu para que ela
preparasse o amendoim como costumava fazer.
Quando o vento matinal levou até o nariz do esperto Ìjàpá o cheiro do amendoim torrado, o nosso
amigo juntou seus tambores e saiu para mais uma visita à mulher do amendoim. A música foi muito mais
empolgante que das outras vezes e a mulher começou a dançar como sempre fizera. Ìjàpá, então, ao
perceber que a mulher estava distante, saiu do túnel para receber o pagamento pelo seu trabalho. Para sua
surpresa, viu que ainda havia alguém sentado calmamente na tenda, vigiando a mercadoria. Ìjàpá não podia
acreditar que essa pessoa pudesse ser insensível a tal ponto que desprezasse a sua bela cantiga. Ele
aumentou o ritmo dos tambores e até incluiu algumas ameaças na letra:
Ìjàpá percebeu que não adiantava sua insistência e ameaças, portanto, decidiu atacar o
pensando que era algum filho da mulher. Para sua surpresa, quando deu um empurrão na estátua, suas
mãos ficaram presas e ele se desesperou, pois poderiam descobrir a verdadeira identidade do ladrão de
amendoim. Decidiu, então, voltar para o túnel, porém ele ficou preso na entrada já que os dois não
passariam por ali. Quando a mulher retornou para a sua casa, encontrou Ìjàpá e o levou para ser julgado
pelo rei. (Todos os dias são para o ladrão, mas basta um dia
para o proprietário!).
O rei decidiu que o próprio Ìjàpá escolheria a forma como ele morreria. Ele disse ao rei para que o
abandonasse sozinho e sem comida na floresta. Todos os presentes concordaram e assim foi. Ao chegar à
floresta, Ìjàpá rapidamente fez amizade com outros animais pequenos da floresta e os ensinou um pouco de
sua malícia para que também pudessem infernizar a vida dos humanos. Foi a partir desse dia que pequenos
animais como ratos selvagens, macacos e serpentes também entraram na lista de animais que prejudicam o
homem, sobretudo, quando ele vai para a floresta (OMIDIRE, 2006, p. 115-124).
****************
PALAVRAS INICIAIS
Neste primeiro capítulo apresentamos a nossa primeira aproximação ao sistema de Ifá. Discutimos
de que forma a palavra é geradora de um tipo particular de homem e de mulher. E, como consequência, ela
também determina a forma como as experiências de mundo dos iorubás são produzidas no interior das
dinâmicas sociais e espirituais da totalidade-mundo. A tradição oral iorubá seria, portanto, uma das formas
de se estar no mundo, revelando na linguagem as características que particularizam o iorubá.
Os enunciados orais de Ifá fazem parte dessa constituição do ser iorubá, principalmente, por
ampliarem o que, convencionalmente, dentro do imaginário conceitual ocidental, está associado ao
letramente, ou seja, a comunicação pela palavra não é apenas uma estratégia da oralidade, mas uma forma
específica de produzir uma linguagem particular que possui mecanismos que dão base para a produção de
82
conhecimento entre os iorubás. Os “versos” de Ifá são, à vista disso, a base para a produção de
conhecimento dentro da imaginação iorubá presente em Ifá.
Finalizamos o capítulo com a apresentação de Exu e suas possíveis relações com Ifá, no sentido
dele representar, ao mesmo tempo, o guardião da palavra, o orixá da comunicação e a voz de todos os entes
que habitam o orun. Portanto, não há leitura de Ifá sem a presença de Exu.
83
“Comme le dira beaucoup plus tard mon maître Tierno Bokar: L'écriture est une chose et le savoir en est une
autre. L'écriture est la photographie du savoir lui-même. Le savoir est une lumière qui est en l'homme. Il est
l'héritage de tout ce que les ancêtres ont pu connaître et qu'ils nous ont transmis en germe, tout comme le
baobab est contenu en puissance dans sa graine."
73
Palavra.
74
Usamos o termo grupo cultural para designar qualquer grupo de pessoas que se auto constituem enquanto participantes de
uma mesma história cultural e, sobretudo para a nossa análise, participantes de uma mesma experiência de mundo e/ou de um
mesmo imaginário conceitual que determina esse mesmo mundo. Neste sentido, quando denominamos o grupo cultural ocidental
não nos limitamos exclusivamente ao que o próprio nome sugere, uma localização geográfica, mas sim ao conjunto de grupos
culturais (Europa, Estados Unidos, Austrália, Japão, elites africanas e latino americanas etc.) que são autores e praticantes de um
imaginário conceitual que tem, em linhas gerais e não exaustivas, a razão, o método científico e a escrita como elementos
fundamentais para a produção de conhecimento, para a determinação da forma da experiência de mundo e, epistemologicamente,
determinante de um mundo particular que se pretende, pela constante e múltipla violência da práxis da colonialidade, ser
universal, e a única e legítima forma de saber.
84
parte integrante das metáforas racistas da episteme ocidental, ou melhor, pertence ao popular, ao universo
do cotidiano, de modo que não apresenta complexidade, é uma comunicação primitiva etc 75.
O oral tem sido estudado, grosso modo, em duas linhas gerais: o oral e história (história oral)77, e o
oral e as implicações linguísticas, culturais, sociais e econômicas, oralidade. Concentramos nossa análise
na segunda linha apresentada. Não obstante, faremos, metodologicamente, uma distinção entre oralidade e
palavra a fim de demarcarmos a compreensão da palavra não apenas como um sistema de comunicação,
mas também como elemento fundamental da constituição do imaginário conceitual iorubá, bem como para
singularizar a ideia de palavra (e, consequentemente, a oralidade) para o mundo iorubá. Oralidade, assim,
entendemos como uma categoria de análise que comporta toda manifestação linguística produzida por sons
e que encontra, nas relações entre os entes de um determinado grupo, os seus símbolos e significados, ou
75
A respeito do racismo epistemológico, conferir GROSFOGEL (2003, 2007, 2008a, 2008b, 2008c, 2009) e MALDONATO-
TORRES (2008a, 2008b).
76
Em nosso texto quando falamos da problemática do letramento nos referimos exclusivamente na função da escrita dentro da
história do conhecimento e cultura ocidentais. Não desconsideramos, entretanto, a presença da escrita no que chamamos de
grupos culturais orientais que possuem uma distinta e ainda pouco estuda relação entre saberes e escrita. A escrita oriental
sempre partiu de pequenas representações caligráficas que indicam alguma tentativa de comunicação, isto é, uma transmissão de
ideia. No geral, essa é a principal função da escrita. Para uma discussão introdutória sobre o assunto conferir SAMPSON (1996).
77
Os objetivos dessa dissertação não compreendem a discussão do oral e a história embora tal discussão dialogue diretamente
com as questões que serão apresentadas ao longo do texto. E concientes de sua importância para a compreensão dos grupos
culturais orais, no caso, os grupos culturais africanos e, especificamente, os iorubás, tanto na disciplina de história quanto para
as outras disciplinas do que chamamos humanidades (devemos incluir também trabalhos mais recentes que discutem as
ontologias matemáticas dos grupos não-ocidentais), sugerimos, para uma discussão mais ampla sobre história oral, as seguintes
obras: ALBERTI (1990), BURKE (2000), FERREIRA & AMADO (1998), JOUTARD (1998), PORTELLI (1996, 1997, 2004 e 2010) e
THOMPSON (1992). Para analises sobre o oral, história e culturas negro-africanas consultar: ANTONACCI (2013 e 2014),
AFOLAYAN (2005), FALOLA (1993), JEWSIEWICKI & NEWBURRY (1986), KI-ZERBO (2011), NEALE (1985), RANGER (1976),
TEMU & SWAI (1981), VANSINA (2011) e os números 15 (Ética e História Oral), 22 (História e Oralidade) e 26 (Interpretando
Práticas de Leitura) da Revista Projeto História (PUC/SP).
85
seja, ela é as possibilidades de comunicação entre os entes humanos pela utilização fonética das palavras.
Em outras palavras, ela é tudo que não é ou não está escrito. Palavra, por sua vez, entendemos
não apenas como um meio de comunicação diária, mas também como um meio de preservação
da sabedoria dos ancestrais, venerada no que poderíamos chamar elocuções-chave, isto é, a
tradição oral. A tradição pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente
de uma geração para outra. Quase em toda parte, a palavra tem um poder misterioso, pois
palavras criam coisas. Isso, pelo menos, é o que prevalece na maioria das civilizações africanas
(VANSINA, 2011, p. 139 - 140).
A palavra seria, desta maneira, “uma atitude diante da realidade e não a ausência de uma
habilidade” (VANSINA, 2011, p. 140). E, por fim, analisamos a palavra enquanto possuidora de “um caráter
sagrado vinculado à sua origem divina e às forças ocultas nela depositada” (BÂ, 2011, p. 169). Desta feita,
apresentamos, primeiramente, uma discussão sobre os estudos sobre a oralidade e o problema da palavra
na construção do discurso sobre o letramento, objetivando dimensionar, ainda que não exaustivamente, o
estado da arte das tentativas de compreensão dos universos orais no qual observamos as dificuldades
teóricas e metodológicas no estudo dos universos orais. Com isso, ao apontar os limites dessas análises,
argumentamos algumas aproximações conceituais dos múltiplos sentidos da palavra nos universos orais
negro-africanos, analisando, à vista disso, algumas ideias do que Hampaté Bâ chama de tradição oral e suas
relações com a constituição da experiência do mundo e como agente transmissor do conhecimento.
De modo geral, os estudos acadêmicos que buscaram estudar culturas orais e escritas surgiram,
sistematicamente, no início dos anos 1960. Havelock localiza, entre 1962 e 1963, quatro publicações
fundamentais que contribuíram para tal sistematização e, como consequência cientifica, para constituição
desse novo campo de pesquisas. Esses trabalhos, versando sobre temas diferentes e originários de países
diversos, tinham em comum o fato de colocarem a oralidade em destaque: em 1962, foram publicados “The
Gutenberg Galaxy”, de McLuhan, no Canadá, e “La pensée sauvage”, de LéviStrauss, na França; em 1963,
Jack Goody e Ian Watt publicaram o artigo “The consequences of literacy” na Inglaterra, e Eric Havelock
publicou “Preface to Plato” nos Estados Unidos. Naquele momento, as próprias transformações por que
86
passavam os meios de comunicação contribuíram para que a oralidade e a escrita fossem reconsideradas
objeto de estudo de destaque (HAVELOCK, 1995).
Na mesma direção, W. J. Ong situa nas décadas de 1960 e 1970 esse movimento acadêmico de
análise das relações entre culturas orais e escritas (ONG, 1998). Os trabalhos realizados nesse período, em
diversas áreas de conhecimento, como a Antropologia, a Sociologia e a Psicologia, enfatizaram o caráter
oral da linguagem e as profundas implicações, em todos os níveis, da introdução da escrita em culturas
tradicionais. Muitas dessas pesquisas debruçaram-se, por meio de trabalhos de campo, sobre sociedades
orais, buscando vestígios daquilo que se convencionou denominar oralidade primária: “melodias, cantos,
epopeias, danças, exibições e músicas, ainda preservados oralmente e transmitidos de geração a geração
entre as sociedades tribais” (HAVELOCK, 1995, p. 34). De maneira semelhante, Cook-Gumperz e Gumperz
(1981) situam as origens das pesquisas sobre os efeitos culturais do letramento nos estudos de folcloristas
e pesquisadores da área de literatura que investigaram os processos pelos quais os grandes épicos eram
transmitidos nas sociedades não letradas, como é o caso dos trabalhos de Lord (1960) e Havelock (1963).
Na avaliação de Ong (1998), podemos considerar a emergência desses estudos com preocupações
semelhantes em um mesmo período histórico como um movimento de redescoberta da oralidade,
decorrente do estabelecimento, por Saussure, do primado oral da linguagem. Do mesmo modo, trabalhos de
antropólogos estruturalistas realizados anteriormente haviam analisado a tradição oral em sociedades sem
escrita. Para Ong (1998), a “novidade” dos estudos mais recentes estava na preocupação dos pesquisadores
em contrastar, realizando oposições, a oralidade e a escrita, em diversos níveis.
Havelock cita diversos outros trabalhos que antecederam na década de 60 e que, de algum modo,
haviam se dedicado ao contraste entre oralidade e escrita como, Ramus: method and decay of dialogue, de
Walter Ong, publicado em 1958. Estudos dessa ordem provocaram também um novo interesse pela palavra
escrita e seu principal suporte contemporâneo: o texto impresso e, em particular, o livro. Nessa direção,
destacamos algumas obras que centraram suas análises nas consequências da palavra escrita e impressa
em sociedades e épocas determinadas, como é o caso de L’apparition du livre, de Henri-Jean Martin e
Lucien Febvre, publicado em 1958, e The printing press as an agent of change: communication and cultural
transformation in early modern Europe, de Elizabeth Eisenstein, publicado em 1979. Os efeitos da
introdução da escrita e da imprensa em sociedades não letradas têm sido, pois, uma das principais questões
que norteiam esse novo campo de estudos.
87
Segundo Havelock, o desenvolvimento crescente, a partir dos anos 60, de pesquisas no campo de
estudos que investigam as relações entre o oral e o escrito, coloca, na atualidade (o texto foi escrito em
1987), os conceitos de oralidade e de oralismo em uma situação diferente da que ocupavam anteriormente,
ganhando maior importância acadêmica. Esses conceitos contribuem para a caracterização de sociedades
que, dispensando o uso da escrita, têm-se valido da linguagem oral em seus processos de comunicação. As
expressões têm sido utilizadas também para identificar certo tipo de consciência, supostamente criada pela
oralidade (HAVELOCK, 1995).
No entanto, podemos dizer que as relações entre oralidade e escrita são muito mais complexas do
que alguns estudos supõem já que as grandes dicotomias estabelecidas entre oral e escrito foram incapazes
de explicar as intrincadas relações existentes entre as diferentes formas de linguagem, como também entre
as características e os modos de pensamento para diferentes grupos culturais. Ao estabelecer a capacidade
de abstração como prerrogativa para o conhecer, muitos autores afirmaram que somente os letrados
possuem essa capacidade; negando, assim, a possibilidade de outras prerrogativas válidas para o conhecer
além de uma ideológica imposição da abstração como caminho universal para o conhecimento. E mais,
assumiram que a introdução da escrita e, mais tarde, da imprensa, constituíram marcos divisores na história
da humanidade; ou, ainda, que as culturas podem ser divididas em “orais” e “escritas”, sem que seja
considerada a coexistência do oral e do escrito na mesma época e no mesmo lugar.
Para Graff (1987), por exemplo, é certo que a penetração da escrita em culturas nativas orais tende a
causar profundas transformações sociais, religiosas, ideológicas, políticas, econômicas e culturais. O autor
critica, no entanto, as grandes divisões tradicionalmente apontadas entre culturas orais e letradas em
pesquisas realizadas nesse campo de estudos. Critica ainda a tendência normalmente observada de
considerar a cultura da escrita sempre como positiva, muitas vezes diretamente associada às necessidades
vitais de pessoas e sociedades “modernas” e “desenvolvidas”. Para o autor, na verdade, é muito difícil, ou
quase impossível, conceituar “cultura escrita”, a não ser que a definição seja considerada historicamente e,
desse modo, contextualizada no tempo e no espaço. O autor argumenta que, se a história da cultura da
escrita traz contradições interiores, suas consequências também serão contraditórias e não obedecem, como
muitos estudos parecem crer, a uma linearidade evolutiva que resultaria no “progresso” de todos os povos.
O autor demonstra, por exemplo, que a cultura escrita tem diferentes significados, que variam em razão de
seus modos de aquisição, papéis e usos, para membros de diferentes continentes, regiões, estados ou
mesmo grupos. Nesse sentido, aponta para a necessidade de se realizarem pesquisas mais cuidadosas,
88
tomando como sujeitos indivíduos, grupos, seus sistemas socioculturais e os impactos que trazem os
modos de comunicação introduzidos naquele contexto específico.
Desse modo, Graff (1987) busca desmistificar a ideia de que a cultura escrita estaria, como
defendem diversos estudos, sempre associada ao crescimento econômico, à industrialização, à estabilidade
política, à participação democrática, à urbanização, ao consumo e, ainda, à contracepção. Assim, o autor
mostra que é um mito considerar que as pessoas letradas são sempre empáticas, inovadoras, cosmopolitas,
urbanas e receptivas ao desenvolvimento tecnológico. Na mesma perspectiva, relativiza o papel atribuído
normalmente à educação que, sob o ponto de vista do “mito do letramento”, é capaz de, entre outras coisas,
estimular o desenvolvimento econômico, prover as bases da democracia, unir e integrar as pessoas em
torno de valores, instituições e linguagens comuns. Na visão do autor, embora a educação e o letramento se
transformem ao longo do tempo, nem sempre as consequências a eles diretamente associadas ocorrem na
mesma medida. Muitas das pesquisas que contribuem para ratificar o “mito do letramento” consideram, por
exemplo, escolarização, habilidades e atitudes letradas como sinônimos. Na verdade, muitas das
consequências atribuídas ao letramento são resultados da escolarização.
Em direção semelhante, Brian Street (1995) estabeleceu, para a análise da cultura escrita, os
modelos autônomo e ideológico. No primeiro caso, o letramento, como um bem cultural, seria considerado
bom em si mesmo, para todos, em qualquer lugar ou época, e, também por si mesmo, independente dos
contextos, de transformar os indivíduos e as sociedades; assim, o analfabetismo constituiria um mal que
deveria ser extirpado. O modelo ideológico, por sua vez, não considera a cultura escrita um bem em si
mesmo, mas um processo que está estritamente associado às condições/instituições socioculturais em um
determinado contexto. Situadas entre autoridade/poder e resistência individual/criatividade, as práticas de
letramento devem ser consideradas, para Street (1995) não somente aspectos da “cultura”, mas também das
estruturas de poder. Desse modo, o autor não considera a escrita como um divisor de águas entre dois tipos
completamente diferentes de culturas: para ele, o oral e o escrito coexistem incessantemente, havendo um
trânsito contínuo entre esses dois modos de expressão.
Street (1995) faz críticas severas, nos níveis metodológico, empírico e teórico, a autores como Ong
(1998), as quais colocam a escrita como o marco que dividiria as sociedades em dois estágios: de um lado,
a mentalidade “pré-lógica”, o mito e a incapacidade de abstração; de outro, a “lógica”, a história, o
89
desenvolvimento da ciência, da objetividade e do pensamento crítico78. Para Street (1995), Ong (1998), em
suas análises, não considera as condições sócio-históricas concretas das diferentes culturas. Do mesmo
modo, como muitas que são realizadas na perspectiva linguística, o autor critica as abordagens que
consideram como contexto da prática de letramento apenas a situação específica em que ela ocorre,
desconsiderando questões de caráter mais geral, como aspectos históricos, sociais, políticos, econômicos
etc. Como abordagem alternativa, o autor sugere que sejam utilizadas as contribuições da análise do
discurso e a abordagem etnográfica da antropologia.
Street (1995), ao criticar os estudos tradicionalmente realizados, enumera o que ele denominou
“mitos do letramento” presentes nessa produção e que, por se constituírem em um a priori em muitos
estudos, impedem que investigações mais profundas sejam realizadas. Inicialmente, o autor identifica a
noção de que o discurso escrito se torna significativo pela lexicalização e pela gramática, enquanto o
discurso oral realiza essa tarefa por meio de padrões para-linguísticos. Essa concepção reiteraria a “grande
divisão”. Além disso, Street encontra cristalizada nesses estudos a noção de que o discurso escrito é
“conectado” e “coesivo”, enquanto o discurso oral é fragmentado e desconectado. Finalmente, identifica o
mito de que a linguagem escrita deriva seu significado diretamente das próprias palavras escritas, enquanto
a linguagem oral encontra-se mais relacionada nas pressões sociais imediatas da comunicação face a face.
O autor, de forma semelhante à Graff (1987), não considera a escrita, em si mesma, responsável por
transformações nas culturas. Para ele, a própria linguagem oral é capaz de gerar comportamentos
tradicionalmente associados à escrita, como a fixação, a separação e a abstração. Além disso, as pinturas,
os rituais e as narrativas, típicos das culturas de oralidade primária são capazes de transformar a
evanescência do som em permanência, distanciando as pessoas do imediato e desenvolvendo o
pensamento abstrato.
A perspectiva de Ong (1998), para Street (1995), traz grandes marcas do evolucionismo, na medida
em que investiga as sociedades contemporâneas que continuam consideradas “primitivas”, como insistem
muitos autores, com o objetivo de nelas encontrar o que teria sido o passado da sociedade ocidental. Ong
apresentaria também uma visão evolucionista quando afirma, por exemplo, que as culturas orais vão, pouco
a pouco, cedendo espaço à penetração da escrita, pois “devemos morrer para continuar a viver” (1988,
p.24), quando divide a “evolução” das culturas humanas em etapas: oral, quirógrafa (ou manuscrita),
78
Street chega a afirmar, inclusive, que os trabalhos de Ong têm pouco valor nos estudos das relações entre oralidade e
letramento.
90
tipográfica e eletrônica (Ong, 1986, p.47). É, porém, verdade que, às vezes, o autor parece querer relativizar
essa posição, quando afirma, por exemplo, que a interação da escrita com as estruturas e práticas sociais,
no decorrer da história, não segue o mesmo desenvolvimento em todas as culturas (Ong, 1986).
Também o histórico traçado por Cook-Gumperz e Gumperz (1981) caracteriza-se por certo
evolucionismo quando não considera as especificidades e diferenças entre países, regiões, classes ou
grupos sociais. Ao terminar sua leitura, assim como de outros textos já referidos que investigam as relações
entre oralidade e letramento, tem-se a impressão de que toda a “humanidade” passou igualmente pelo
mesmo processo, constituído de etapas mais ou menos delimitadas e consequentemente caminha para um
mesmo fim.
Ong (1998), por sua vez, ao mesmo tempo em que valoriza a linguagem oral, reconhecendo-a como
natural e de primordial importância, considera a escrita como uma tecnologia capaz de alargar a
potencialidade da linguagem e reestruturar o pensamento. No trecho que se segue, é possível perceber
essas questões:
Como vimos no decorrer deste tópico, a discussão sobre a oralidade foi constituída,
progressivamente, nas alterações de abordagem dos estudos sobre a escrita. Mais do que descrever de
maneira mais ou menos dicotomizada as diferenças entre a cultura escrita e a oral, passou-se a buscar
apreender as condições sociais, históricas e técnicas em torno das quais, para diferentes casos históricos,
construiu-se uma determinada cultura escrita e um conjunto determinado de impactos políticos, sociais e
culturais. Passou-se, portanto, a buscar compreender não a cultura escrita em sua oposição à cultura oral,
mas culturas escritas e culturas orais. Para isso, formaram-se duas linhas principais de investigação.
91
A primeira delas volta-se para o estudo, em grande escala, da entrada de sociedades no mundo da
escrita, procurando responder como e em que condições a população dessas sociedades se alfabetizou,
bem como o tipo de cultura escrita que se construiu nesse processo. A segunda linha, por meio de
monografias, volta-se para o estudo de práticas de leitura e escrita, de modos de inserção individuais em
culturas escritas e da maneira pela qual essas culturas adquirem uma identidade específica, seja em razão
das finalidades e dos usos que nela se fazem da escrita, seja em razão do modo pelo qual nela se
relacionam o impresso e o manuscrito, assim como a oralidade. As investigações do segundo grupo,
portanto, voltam-se, com ênfase, para a diluição das dicotomias dos primeiros estudos sobre a cultura da
escrita, buscando compreender, por exemplo, como comunidades de intérpretes são criadas por meio da
oralidade ou, ainda, como e por meio de quais práticas uma scribal culture sobrevive, apesar de uma ampla
difusão do impresso.
Desta maneira, apresentamos agora uma abordagem da oralidade através da discussão de seu
elemento fundante, a palavra. Utilizaremos em nossa argumentação o texto clássico de Hampaté Bâ, A
Tradição Viva, cujo conceito de palavra nos permitirá uma melhor compreensão de sua dinâmica em
contexto iorubá. Isso se dá, pois, parafraseando Hampaté Bâ, quando falamos de tradição em relação ao
conhecimento africano, referimo-nos à tradição oral, e nenhuma tentativa de penetrar o imaginário
conceitual e o espirito dos povos africanos terá validade, a menos que se apoie nessa herança de
conhecimentos de toda espécie, pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao
longo dos séculos. “Essa herança ainda não se perdeu e reside na memória da última geração de grandes
depositários, de quem se pode dizer são a memória viva da África” (BÂ, 2011, p. 167).
A TRADIÇÃO ORAL
“A escrita é uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não
o saber em si. O saber é uma luz que existe no homem. A herança de tudo aquilo
que nossos ancestrais vieram a conhecer e que se encontra latente em tudo o que
nos transmitiram, assim como o baobá já existe em potencial em sua semente.”
Tierno Bokar
92
o que se encontra por detrás do testemunho, portanto, é o próprio valor do homem que faz o
testemunho, o valor da cadeia de transmissão de qual ele faz parte, a fidedignidade das memórias
individual e coletiva e o valor atribuído à verdade em uma determinada sociedade. Em suma: a
ligação entre o homem e a palavra (BÂ, 2011, p. 168).
Por essa afirmação temos duas considerações iniciais. A primeira diz respeito à ligação entre o
homem e a palavra. Na sociedade iorubá, por exemplo, tanto a coesão da sociedade quanto a função da
memória na dinâmica da experiência do mundo repousam nos valores e nas múltiplas ligações entre os
indivíduos e a palavra. Para Bâ, a palavra é a ontologia de grupos culturais negro-africanos: o indivíduo “é a
palavra, e a palavra encerra um testemunho daquilo que ele é”. Ademais, destacamos que a palavra
“empossada” pelo individuo, além de um valor moral fundamental, possui um “caráter sagrado vinculado à
sua origem divina e às forças ocultas nela depositadas”. Todas as formas de relação - sociais, culturais,
econômicas e espirituais -, concorrem, por conseguinte, “para preservar a fidelidade da transmissão oral”
(BÂ, 2011, p. 168 - 169). Em linhas gerais, podemos dizer que a palavra – para os iorubás, por exemplo – é
o conhecimento total.
A tradição oral, baseada em certa concepção do homem, do seu lugar e do seu papel diante da
realidade concreta, fundada na iniciação e na experiência de mundo, cria certo tipo particular de homem e de
mulher. Tal particularidade pode ser entendida pelo fato da tradição oral envolver uma também particular
experiência do mundo na qual assume os papeis de agente espiritual, conhecimento, ciência natural,
iniciação à arte, história divertimento e recreação. É na vida que a tradição oral recupera todos os seus
aspectos, sejam espirituais ou materiais, para “colocar-se ao alcance dos homens, falar-lhes de acordo com
o entendimento humano, revelar-se de acordo com as aptidões humanas” (BÂ, 2011, p. 169).
podendo ser indivíduos iniciados ou possuidores do conhecimento total da tradição em todos os seus
aspectos. No entanto, precisamos entender que não existe especializações nas tradições africanas, mas o
“conhecedor”, na maioria das vezes, é um “generalizador”, isso porque
trata-se de uma ciência da vida cujos conhecimentos sempre podem favorecer uma utilização
prática. E quando falamos de ciências “iniciatórias” ou “ocultas”, termos que podem confundir o
leitor racionalista, trata-se sempre, para a África tradicional, de uma ciência eminentemente
prática que consiste em saber como entrar em relação apropriada com as forças que sustentam o
mundo visível e que podem ser colocadas a serviço da vida (BÂ, 2011, p. 1975).
São muitos os tradicionalistas que podemos encontrar nas sociedades iorubás cujas dinâmicas
práticas dão conta de todos os aspectos existências, políticos, econômicos, sociais e espirituais. Nesta
dissertação, analisamos no segundo capítulo o babalaô (pai do segredo), sacerdote iniciado na prática do
jogo de Ifá.
Para os iorubás, todas as coisas existem em potencialidade e é pela palavra que adquirem a
materialidade existencial. Surgem em potência, em pensamento, para se tornarem um som e, por fim, uma
palavra, destaca-se a fala. Por materialidade, devemos entender a exteriorização dessas potências, das
transmissões de axé79 (“vibrações das forças). Falar e ouvir devem ser entendidos como realidades mais
amplas do que normalmente estamos acostumados. De fato, quando um iorubá fala, podemos ver, ouvir,
cheirar, comer e tocar a sua fala. É uma compreensão total, de um conhecimento no qual o ente (ser) está
envolvido na totalidade. Do mesmo modo, “sendo a fala a exteriorização das vibrações das forças, toda
manifestação de uma só força, seja qual for a forma que assuma, deve ser considerada como sua fala. É por
isso que no universo tudo fala: tudo é fala que ganhou corpo e forma” (BÂ, 2011, p. 172). A palavra é
criadora, pois, enquanto possuidora de axé, gera movimento e ritmo, e, portanto, vida e ação.
79
Axé é a força dinâmica de realização. Discutimos a respeito do axé no terceiro capítulo desta dissertação.
94
Segundo Bâ, todas as tradições africanas, de maneira geral, possuem uma visão espiritual do
mundo, já que
Desta maneira, para os iorubás a vida constitui-se na práxis do equilíbrio das forças que constituem
o seu mundo (a experiência da realidade concreta) e, assim, a ação do axé, manipulação dessas forças,
geralmente objetiva a restauração do equilíbrio perturbado e/ou reestabelecer a harmonia. Destacamos que o
entendimento de axé como elemento neutro e sua adjetivação como um bem ou um mal se deve ao uso que
se faz dele. Em todos os casos, a força da palavra é decisiva.
A palavra anima, coloca em movimento e fomenta o axé que está estático nas coisas. Ela está em
relação direta com a conservação, ou com a ruptura do equilíbrio e harmonia no homem ou na mulher,
também no mundo que os cerca. Todavia, para que a palavra produza seu efeito total, relação com o axé, ela
deve ser falada ritmicamente, porque “o movimento precisa de ritmo, estando ele próprio fundamentado no
segredo dos números. A fala deve reproduzir o vaivém que é a essência do ritmo” (BÂ, 2011, p. 174). Logo,
nas canções rituais e nas fórmulas encantatórias, a fala é, portanto, a materialização da cadencia.
E se é considerada como tendo o poder de agir sobre os espíritos, é porque sua harmonia cria
movimentos, movimentos que geram forças, forças que agem sobre os espíritos que são, por sua
vez, as potencias da ação. (BÂ, 2011, p. 174)
Agora podemos compreender melhor qual o contexto epistemológico, espiritual e social no qual
está localizada a importância da palavra nas sociedades de tradição oral, especialmente quando se trata da
compreensão da famosa frase de Bâ: “quando um velho morre, é uma biblioteca que se perde”. A
transmissão da palavra é herança dos ancestrais, ou seja, de tudo o que me constitui enquanto individuo
que participa de uma comunidade, estabelece relações com a natureza que o cerca e, por fim, com a
realidade particular de sua identidade.
95
A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE
Esse aspecto também é percebido nos grupos culturais africanos, vejamos um exemplo na cultura
do Mali quando BÂ (1991) se refere às associações de crianças e adolescentes estimuladas pelos pais, nas
quais se aprendem as regras do convívio social, assim como a diplomacia, o exercício da liderança, o
cumprimento das responsabilidades e a atenção ao grupo. Vejamos na narrativa de Hampaté Bâ o relato de
sua experiência sobre esse processo de formação:
foi então que minha mãe mandou construir uma casa bem grande para mim e meus
companheiros. Ali podíamos nos reunir, fazer as refeições e até dormir. Nós a chamávamos de
walamarou, “o dormitório da associação”. Foi a partir deste momento que comecei mesmo a
formar um círculo de pessoas a meu redor e a desempenhar meu papel de chefe da waaldé. (BÂ,
1991, p. 174)
As waaldés80 são como centros, escolas de formação nas quais as crianças e jovens são exercitadas
na prática a desenvolverem a responsabilidade e o comprometimento com o outro, com a comunidade.
Desse modo, aquilo que a tradição lhes proporciona é um encontro da teoria com a prática, do material com
o espiritual. Na waaldé, os valores oriundos da herança dos ancestrais são reorganizados em um tempo
presente, no qual as diferenças dos tempos, no que concerne à atualidade e à emergência de outras
situações, proporcionam o cenário no qual os velhos saberes podem ser reinventados. Essas situações
proporcionam um aprendizado que pode ser aprimorado e testado, conduzindo ao crescimento humano e
melhorando a vida em comunidade. Neste sentido,
80
Associações de crianças e adolescentes.
96
condição moral e mental que permite a realização perfeita e total do indivíduo. (BÂ, 1972, p. 12,
81
tradução nossa) .
Os ritos de passagem que ocorrem na sociedade tradicional africana são caminhos que preparam a
pessoa nas diferentes fases de sua vida para o convívio social. A memória, nesse contexto, é quase uma
fotografia para cada um dos indivíduos que coletivamente viveram uma mesma experiência. Amadou
Hampaté Bâ dirá que “quando se lembra, não são apenas palavras que são recordadas, mas cenas inteiras
são visualizadas. Podem-se ver cenas passadas como em uma tela de cinema. Assim, para descrever uma
cena só preciso revivê-la” (BÂ, 1991, p. 13).
Tudo é motivo para que a lembrança aconteça e esse tudo significa pensar todos os envolvidos,
todas as partes e os espaços em que os fatos ocorreram e a maneira como são alçados a memória. Essa
experiência possibilita que contextos inteiros sejam retomados. Essa mesma memória contida no espaço é o
que BÂ (1991) chama a atenção, pois todas as experiências vividas pelo grupo, os locais em que elas
aconteceram, são passíveis da rememoração, tão logo os espaços ainda existam, mesmo que modificados, e
as pessoas também existam.
reconstituir o acontecimento ou a narrativa registrada em sua totalidade, tal como um filme que
se desenrola do princípio ao fim, e fazê-lo no presente. Não se trata de recordar, mas de trazer ao
presente um evento passado do qual todos participam, o narrador e a sua audiência. Aí reside
toda a arte do contador de histórias. Ninguém é contador de histórias a menos que possa relatar
um fato tal como aconteceu realmente, de modo que seus ouvintes, assim como ele próprio,
tomem-se testemunhas vivas e ativas desse fato. Ora, todo africano é, até certo ponto, um
contador de histórias (BÂ, 1972, p. 45).
Para os babalaôs, por exemplo, a memória ocupa lugar central em sua práxis de Ifá uma vez que ele
sempre está lidando com narrativas orais as quais como “fichas imateriais” condensam todo o
conhecimento possível por Ifá. Tudo isso pode parecer caótico para um espírito moderno, mas é justamente
esse aparente caos fundado na palavra que constitui a potencialidade criadora para os iorubás. Nada está
consolidado, fixo, tudo se movimenta e possui ritmo, e está presente em cada palavra enunciada, seja nas
esferas mais ordinárias do cotidiano seja em importantes iniciações. Trataremos agora de como a memória
se apresenta nas dinâmicas de produção de conhecimento iorubá.
81
Le développement de la persone va s´accomplir au rythme des grandes périodes de la croissance du corps, dont chacune
correspond à un degré d´initiation. L´initiation a pour but donner á la personne psychique une puissance morale et mentale qui
conditionne et aide la réalisation parfaite et totale de l´individu.
97
Para os iorubás, todas as coisas acontecem por uma razão, um motivo. Essa razão não deve ser
compreendida como ação de “insondáveis desígnios” de uma divindade e tampouco um acontecimento que
ocorre deliberadamente. As razões de ocorrência de uma ação estão relacionadas com as interações e
performances de um indivíduo com o mundo. Por isso, metodologicamente, dividiremos em três esferas de
relações que não possuem divisões entre si e nunca ocorrem isoladamente quando de sua existência na
experiência de vida de um iorubá. São elas: a natureza, a comunidade e o individuo.
Antes de prosseguirmos, convém fazer algumas distinções entre alguns conceitos que iremos usar.
De um modo geral, o homo sapiens é caracterizado pela sua capacidade de simbolizar, ou seja, sua
capacidade de dar sentido à realidade concreta e a partir dela produzir um conjunto de símbolos que
determinam uma linguagem, a qual, por sua vez, gera as condições de produção do conhecimento
(DUSSEL, 2011). Assim, todo conhecimento é um produto histórico, cultural e social de um determinado
grupo cultural. Consequentemente, são conhecimentos diversos para relações simbólicas diferentes. Por
exemplo, os grupos culturais ocidentais estabeleceram ao longo de sua história que a linguagem para o
conhecimento é o racionalismo científico, a epistemologia filosófica cujo ponto de partida é o pensamento
grego e, ainda que contemporaneamente marginalizada, a reflexão teológica cristã.
A linguagem iorubá foi estabelecida a partir de outros referenciais (outras formas de simbolização)
distintos do que o espírito ocidental admite como válido ou legitimo 82. A natureza para os iorubás
compreende todos os elementos da vida animal, da vida vegetal, do mundo mineral, dos fenômenos
naturais, de todos os seres humanos e caraterísticas do espaço geográfico (solo, rios, lagos, mares,
montanhas etc.), os quais em seu conjunto recebem o nome de aiye (“mundo visível”). Contudo, a natureza
também se constitui de uma realidade habitada por outros entes e pelos ancestrais, recebendo o nome de
orun (mundo “invisível”) (AWOLALU, 1979). A interação entre essas duas realidades está presente em todos
os aspectos da vida iorubá, sendo regulado e administrado através das constantes transmissões de axé 83. A
comunidade é o agrupamento no qual todas as experiências do mundo se realizam, ou seja, é o lugar da
família estendida, dos diversos sacerdotes, das celebrações, do mercado, dos orixás, dos ancestrais e do
82
Para uma ampla discussão sobre a relação de poder entre o conhecimento ocidental e as outras formas de conhecimento,
conferir o livro Epistemologias do Sul organizado por Boaventura de Souza Santos e Maria Paula Meneses, sobretudo, os textos
Introdução, Para Além do Pensamento Abissal: das Linhas Globais a uma Ecologia de Saberes, Colonialidade de Poder e
Classificação Social, O Resgate da Epistemologia e Meditações Anticartesianas sobre a Origem do Antidiscurso Filosófico da
Modernidade. Conferir também os textos de Walter Mignolo (2007, 2009, 2011, 2013a, 2013b).
83
Discutiremos amplamente esta dinâmica orun/aiye no terceiro capítulo, porém, por ora, basta que compreendamos que orí é a
representação da individualidade de cada ente.
98
axé. Por fim, a individualidade é compreendida pelo orí84 de cada ente que determina as identidades
individuais nas duas realidades da experiência do mundo.
Desta feita, quando afirmamos que para os iorubás nada ocorre sem uma razão, devemos ter em
mente que essa razão é fruto das relações possíveis entre as três esferas, lembrando que tal divisão não
existe na prática e apenas a utilizamos para melhor apresentar a discussão. Portanto, todas as coisas
ocorrem por uma relação entre natureza, comunidade e individuo. Todas essas possíveis relações são as
experiências que são constitutivas do mundo iorubá. Assim, o conhecer é fruto das experiências, em outras
palavras, o conhecimento é fruto das experiências produzidas pelas relações entre natureza, comunidade e
indivíduo. Todo conhecimento iorubá é um saber prático e todas as experiências são absorvidas pela
linguagem, por conseguinte, estão presentes na palavra, como vimos, no corpo e no som.
Neste sentido, a memória para os iorubás é o depositário da totalidade das experiências. Ela é o
lugar dos saberes. À vista disso, temos que o ancestral, símbolo máximo da memória, é fundamental por ser
a linguagem da memória produzida na palavra, no corpo e no som (AWOLALU, 1979). Como a ideia de
tempo para os iorubás é sempre o presente (o passado está no presente vivido em memórias e o futuro está
no presente vivido na palavra), os ancestrais são as memórias coletivas da minha comunidade, memórias do
Àiyé, as memórias coletivas da minha comunidade no Orun e, finalmente, são as experiências do imaginário
individual marcadas em corpos que dançam e vivem os seus saberes. A ancestralidade 85, portanto, é um
dos elementos constituintes do imaginário conceitual de Ifá quando em sua dinâmica articula todos esses
saberes produzidos na experiência, criados na palavra e vividos nos movimentos como também ritmos de
corpos e sons. Para uma melhor compreensão da dinâmica memória/ancestral apresentaremos três formas
de experiência dos ancestrais: os Egúngún, as e o orixá Igunnukó.
84
Idem.
85
A discussão sobre ancestralidade exigiria uma maior argumentação, pois implicaria em um estudo mais aprofundado de como
se apresenta na linguagem espiritual e social, porém apontamos aqui apenas as características gerais sobre o tema que nos
auxiliam na compreensão do sistema de Ifá.
99
O princípio de senioridade determina que os mais velhos ocupem postos hierárquicos superiores e
que os mais jovens os respeitem por sua experiência e sabedoria, desde que a idade traga valores como um
grande número de descendentes e condições materiais satisfatórias de vida e virtudes. Dentro das práticas
espirituais iorubás, qualquer indivíduo notável e que viva uma existência plena, ou seja, uma vida abundante
com morte em idade avançada, pode integrar o grupo dos ancestrais veneráveis, uma vez realizados seus
rituais fúnebres. Os ancestrais masculinos têm sua instituição em diversas sociedades, como Egúngún,
Ìgunnukó, Oro e Agemo. Os ancestrais femininos, as Ìyá-Agbà (Mães Anciãs ou Veneráveis Mães Anciãs),
também têm sua instituição em diversas sociedades, entre as quais as Gèlèdé.
A palavra Egúngún designa, ao mesmo tempo, um orixá, o conjunto dos ancestrais masculinos da
humanidade e o conjunto dos ancestrais masculinos de uma família; é derivada de egún, que significa osso
ou esqueleto. No entanto, enquanto por egún se entende um ancestral em particular, um antepassado já-ido,
habitante do Orun, que pode se manifestar no aiye, e que pode não ser venerável, Egúngún ou Babá-Égún
designa toda uma coletividade de entes cultuáveis.
Nos cultos aos ancestrais masculinos, Egúngún ocupa o lugar central. Os ancestrais permanecem
junto aos seus descendentes e interferem em todos os âmbitos da vida pessoal e familiar de cada um deles,
apaziguando ânimos, atenuando discórdias, estimulando a solidariedade, o espírito de unidade e a
harmonia, renovando a energia exigida para o trabalho e interferindo em questões que ameacem a agregação
familiar, em casos de disputa e em problemas de herança, entre tantas possibilidades. Com voz rouca ou
utilizando tons agudos, trepidantes, sibilantes ou nasais, previne e ordena, de modo que sua palavra é aceita
e respeitada (BABAYEMI, 1980).
A presença de Egúngún na vida cotidiana de seus devotos mantém viva a relação de respeito e
reverência aos mais velhos. No entanto, o culto a Egúngún possui, entre outros, o objetivo de corrigir efeitos
de uma herança de caráter espiritual que se reflete em desequilíbrios de toda ordem: física, emocional,
espiritual. Para os iorubás, cada indivíduo recebe de seus antepassados uma herança biológica, emocional e
espiritual, uma carga genético-espiritual/emocional. O culto a Egúngún possibilita agir retroativamente no
sentido de eliminar fatores desfavoráveis ocorridos ao longo das sete gerações anteriores de uma pessoa,
100
dos quais decorreram dificuldades, doenças e problemas de toda ordem em sua vida. Esse culto também
possibilita resolver conflitos familiares vividos por pessoas das gerações passadas para restabelecer o
equilíbrio perturbado.
Suas festas são realizadas na época do plantio, mas como esta época varia de lugar para lugar, as
datas festivas também variam, perdurando as comemorações por cerca de quatro semanas. Todos os
lugares de realização dessas festas recebem muitos cuidados, dada a sua importância. Áreas de rodovias e
vilarejos, casas e armazéns são reformados ou pintados para melhor recepcionar os ancestrais, e algumas
pessoas percorrem grandes distâncias para poderem participar das comemorações. Além disso, toda festa
inclui danças e performances que culminam em exibições acrobáticas e encantadas (BABAYEMI, 1980).
Os símbolos de Egúngún são búzios, estátuas de madeira esculpidas com sete cabeças, que
representam as sete gerações passadas, e àtòrì. Além de vestes e colares coloridos.
Figura 26 - Festival Egúngún, Benin, 2013 (arquivo pessoal) Figura 27 - Festival Egúngún, Benin, 2013 (arquivo pessoal)
101
Todos os ancestrais femininos, as Ìyagbà ou Ìyámi, têm sua instituição em sociedades como Egbé
Eleye, Egbé Ògbóni e Egbé Gèlèdé, consideradas secretas pelo fato de os seus conhecimentos serem
transmitidos apenas a iniciados. As Iyami Oxorongá representam o poder ancestral feminino e os elementos
místicos da mulher em seu duplo aspecto: protetor e generoso, perigoso e destrutivo. Todos os orixás
femininos são detentores deste poder.
As Ìyámi (Iyami) são zeladoras da existência e guardiãs do destino: por isso sua boa vontade,
essencial à continuidade da vida e da sociedade, deve ser cultivada. Elas pertencem a um grupo de entes do
orun (espirituais) chamados Ajogùn, cujas funções incluem carregar o ebó para alimentar-se dele ou, mais
precisamente, do sofrimento humano do qual está impregnado. Ao processarem as energias dos ebós,
possibilitam a cura, a superação de dificuldades e a atração de bens necessários. Sua relação com os
poderes encantatórios lhes possibilita também neutralizar os efeitos negativos de pensamentos, palavras e
ações destrutivas que uma pessoa dirija contra outra ou contra si mesma. A presença e a influência de Iyami
no jogo oracular é fundamental, pois se manifestam em todos os odù e, sendo parceiras deles, têm como
ajudá-los a comunicar-se entre si. Parceiras também de Exu e dos demais orixás, indicam com eles os ebós
necessários para cada situação, sendo de competência comum a todos a tarefa de transportá-los
(FATUNMISE, 2013).
A expressão Ìyámi, Minha(s) Mãe(s) ou Zeladora(s), designa um orixá cujo axé é tão grande que
todos se referem a elas sempre no plural, aludindo a uma coletividade. Quando se quer saudá-las basta
pronunciar um de seus nomes, pois elas representam uma coletividade de entes relacionados a todos os
elementos fundamentais para a sobrevivência dos homens, assim, traí-las significa trair a própria essência
vital humana. Invocar as Mães implica em associar-se a uma coletividade de axé que vivem em estreita
relação com elementos indispensáveis à sobrevivência humana.
As Iyami podem assumir diferentes formas. Elas intervêm na existência humana no plano individual
(na saúde física, psíquica e espiritual, no casamento e na sexualidade) e no plano social (no trabalho e nas
amizades). Apoiando as pessoas em sua tarefa de organizar pensamentos e conhecimentos para melhor
atingir objetivos, atraindo sorte e favorecendo conquistas materiais. Promovem mudanças no plano
emocional, facilitando que um homem nervoso se acalme e um impaciente torne-se paciente. Intervindo nos
destinos, protegem as pessoas de danos causados por inimigos e por falhas próprias. Como harmonizam
103
O culto a Igunnukó tem sua origem entre os imigrantes nupes que chegaram nas terras iorubás.
Protetor da agricultura, força criadora e regeneradora, Ìgúnnukó favorece o plantio e a colheita. Ele integra
os cultos aos ancestrais masculinos e femininos com a finalidade de manter a conexão e a harmonia com os
antepassados, para que sua energia favoreça a boa colheita, a fertilidade, a cura, a prosperidade, a justiça
nas relações e a paz social. Como nos cultos a antepassados, o culto a Ìgúnnukó visa a eliminar ou atenuar
calamidades públicas. Seus símbolos são potes de barro, tambores, óta, ìrùkèrè e búzios. Sua preferência
são as roupas e os colares multicoloridos.
O festival ou cerimônia ritual de Igunnukó é realizada anualmente quando ocorre a saída de homens
vestidos de uma figura muito alta e feita de pano. Eles passeiam por entre as pessoas transmitindo o seu axé
dos ancestrais femininos e masculinos. O “baile” de Igunnukó ocorre com a movimentação das figuras de
maneira graciosa e ágil, com figuras altas e baixas, cada uma com cores especificas que estão ligadas com
funções e axés igualmente específicos (OGUNKO, 1980).
Vimos até agora as dinâmicas da palavra em contexto africano e, em linhas gerais, em contexto
iorubá, a ideia de memória e sua relação com a ancestralidade, e apresentamos três formas de experiência
da memória ancestral iorubá (Egúngún, Iyami/Geledé e Igunnukó). Finalizamos este primeiro tópico com
uma breve discussão sobre a transmissão oral do conhecimento para em seguida apresentarmos os dois
primeiros odù do sistema de Ifá.
o ofício, ou a atividade tradicional, esculpe o ser do homem. Toda a diferença entre a educação
moderna e a tradição oral encontra-se aí. Aquilo que se aprende na escola ocidental, por mais útil
que seja, nem sempre é vivido, enquanto o conhecimento herdade da tradição oral encarna-se na
totalidade do ser. Os instrumentos ou as ferramentas de um ofício materializam as palavras
sagradas; o contato do aprendiz com o ofício o obriga a viver a palavra a cada gesto (BÂ, 2011, p.
189).
Neste sentido, quando pensamos na transmissão oral dos conhecimentos, compreendendo o local
da palavra dentro das dinâmicas de produção dos saberes nos grupos culturais em contexto africano, não
podemos reduzi-la a transmissão de narrativas ou de determinados conhecimentos. De fato, ela é “geradora
e formadora de um tipo particular de homem”, o que implica dizer que toda atividade tradicional “constitui
uma grande escola iniciatória” (BÂ, 2011, p. 190).
108
ODÙ
Ifá, como aprofundaremos nos capítulos seguintes, é ao mesmo tempo um conjunto de narrativas
orais e a linguagem de uma determinada forma de conhecer, o sistema de Ifá 86. Essa divisão, como muitas
outras ao longo do texto, visam nos auxiliar na compreensão de Ifá. Vale ressaltar que tal divisão não possui
qualquer importância para além da que usamos aqui, já que na prática de Ifá, como na de todos os
elementos da cultura iorubá. Assim, as narrativas orais são compreendidas em sua totalidade, ou seja, todos
os possíveis sentidos são compreendidos na mesma palavra.
O corpus de Ifá é constituído por duas partes, nomeadamente odù e . O corpus é dividido em
256 distintos “volumes”, os quais são chamados de odù. Cada um deles é subdividido em numerosos
“capítulos” chamados de . Enquanto o número de odù é conhecido, o número de em cada odù é
desconhecido. Isso se deve ao fato de que o conteúdo do Ifá estar em constante crescimento o que,
certamente, não afeta a totalidade de todo o sistema. Há duas categorias de odù. A primeira categoria é
formada pelos (os principais Odù) que são dezesseis em número. A segunda categoria é formada
pelos ou (os odù menores), duzentos e quarenta em número (ABIMBOLA, 1997).
86
Na descrição de Ifá encontramos algumas questões no que diz respeito ao uso das palavras, pois na língua portuguesa não
encontramos um conjunto semântico que de conta de descrever os elementos da produção oral. Os termos que a grande maioria
dos autores usa são empréstimos do campo semântico da escrita: texto, versos, corpus literário, poemas etc. Nosso objetivo não
é propor um novo vocabulário para a oralidade, ainda que seja urgente tal processo, mas também fazemos uso do mesmo
empréstimo quando explicamos, pela primeira vez, os elementos de Ifá para, metodologicamente, facilitar a nossa compreensão.
No entanto, no restante do texto mantemos a sua nomenclatura em iorubá já que é como realmente os elementos são conhecidos
e vividos na prática iorubá. Em toda a bibliografia utilizada e nos testemunhos orais coletados (quando foram respondidos em
inglês, espanhol ou português), a palavra “divinação” é empregada para descrever o sistema de Ifá e sua dinâmica. Optamos por
não utiliza-la, não obstante, pois “divinação” reduz e silencia uma grande parte dos aspectos que formam o mundo iorubá em sua
totalidade. Explicando melhor: divinação faz referencia a uma realidade divina o que pressupõe ao menos uma divindade, ente
teológico, que, por exemplo, seria Deus para o pensamento cristão ou quando usamos o termo deuses para definir os entes que
escapam a realidade monoteísta. Divinação é sinônimo de adivinhação e Ifá, para a experiência do mundo iorubá, não é um
processo de adivinhar nada, ao contrário, é uma linguagem que possibilita a comunicação entre todos os entes do Aiye e Orun, e,
enquanto produto da memória dos iorubás, é em si mesmo um processo de reflexão dos saberes iorubás. É interessante
observarmos que embora um babalaô iorubá possa, em inglês, português ou espanhol, explicar Ifá como uma divinação, em sua
prática na língua iorubá tal conceito é inexistente. É uma espécie de tradução pedagógica para alguns e, para outros, a reprodução
do vocabulário consagrado na academia. Usamos, portanto, o termo linguagem, pois um babalaô ao aprendê-la torna-se apto a
realizar a leitura da realidade de cada orí (individuo). Linguagem adquire o sentido de ser um conjunto coeso e coerente em seus
próprios termos que revela em si mesma uma forma de conhecimento. O termo sistema utilizamos no sentido de ser uma inter-
relação de partes, elementos ou unidades que fazem funcionar uma estrutura organizada. Logo, sistema de Ifá é todos os
elementos e partes que constituem o processo de leitura de Ifá. E, por fim, Ifá existe independentemente de seu sistema, este é o
modo material de ter acesso a realidade do Orun que é Ifá.
109
Apresentaremos ao longo da dissertação considerações gerais sobre os Ojú Odù que darão conta de
nos introduzir, ainda que sinteticamente, ao sistema de Ifá tal como ele é praticado. Para cada odù
fornecemos as seguintes informações: (a marca do odù, sua representação gráfica),
(os orixás que falam no odù), (as características gerais de cada odù) e
(narrativas do odù).
I I
I I
I I
I I
ÌWÀ ODÙ
As principais características desse odù são: traição, paciência, vitórias financeiras. Não se deve
praticar jogos a dinheiro. É um odù que representa o princípio e o fim, o qual denota muitas coisas boas e
muitas más.
110
O primeiro (“poema”) narra a história de quando Orunmilá decidiu ir para uma cidade realizar
alguns jogos de Ifá para as pessoas que lá viviam e foi consultar Ifá antes de sair em viagem. Realizado o
ebó prescrito por Ifá, Orunmilá vai, então, até a tal cidade e, por fim, retorna para a sua casa com muitos
lucros.
são poderosas
Àrìrà88 chega!
Àrìrà chega!
87
(Pedra-de-raio) refere-se aos antigos machados de pedra dos sacerdotes de orixá dos raios e trovões. Para os
iorubás, essas pedras caem do céu durante os trovões como resultado da irritação é inimigo dos ladrões,
mentirosos e traidores, e, assim que os encontra, ele joga pedras-de-raio nessas pessoas. Essas pedras possuem uma grande
quantidade de axé. Quando há acasos reincidentes de raios em alguma região, os sacerdotes de são chamados para
retirarem a pedra-de-raio que estaria causando a destruição bem como realizaria alguns ritos específicos para esse tipo de
situação.
88
Um dos nomes de que enfatiza sua força.
111
é o nome do filho de
O segundo narra a história do jogo de Ifá que foi realizado para a Orunmilá. Há duas ideias
importantes. A primeira diz respeito à ideia de senioridade para os iorubás, ou seja, é de extrema
importância que um homem ou uma mulher vivam uma vida longa e útil. Essa visão é resultado de um
sistema hierárquico de autoridade baseado na idade e sacerdócio. Além do mais, qualquer um que morrer
jovem não poderá se tornar um ancestral e, desta maneira, não viver uma vida completa é considerado falha.
Vivendo uma vida útil, para os iorubás, e esta é a segunda ideia, também inclui estar disposto ou disposta a
lidar com as próprias responsabilidades (sua casa, seus filhos, sua família estendida) até que os filhos
possam, pela maturidade, receber essas mesmas responsabilidades.
Em satisfação de alegria
Em satisfação de alegria”
Em satisfação de alegria
II II
II II
II II
II II
ÌWÀ ODÙ
O primeiro narra a história de quando o Peixe decidiu não realizar o ebó prescrito por Ifá por
achar que seria um sacrifício desnecessário. Como consequência, os filhos do Peixe foram capturados pelos
113
humanos e usados como comida (peixe com inhame, uma típica comida iorubá). Neste vemos que,
como analisaremos mais adiante e com outros exemplos, inúmeros de seus personagens são animais,
elementos da natureza, astros celestes, e todos consultam Ifá e realizam ebó. Como todos os elementos
estão interligados e são portadores de axé, todos esses mesmos elementos surgem em Ifá como
protagonistas nos Outro ponto é a ordem de Exu, aquele que é o grande protetor do axé de todos os
elementos e entes, o qual simboliza a forma com que Exu não impede o fim dos filhos do Peixe mesmo com
os ataques dos humanos.
Onde estão os filhos da terra não estão os filhos de Peixe (ABIMBOLA, 1977, p. 48).
Você é
Eu também sou
Mas também lhe foi avisado que fizesse ebó contra os ataques
dos humanos
Os humanos os pegaram
O segundo narra a história do jogo de Ifá que foi realizado para Simboliza, de um
lado, a ideia de destino para os iorubás que explicaremos detalhadamente no terceiro capítulo, mas, por ora,
vale sinalizar que as condições de realização da vida (o destino) são estabelecidas pela própria pessoa antes
do seu nascimento. Por outro lado, há maneiras de se evitar a morte (ikú) através de ebós que a enviam para
outra terra, ou seja, não é impedir que a morte realize sua tarefa mas que essa ocorra depois de muitos anos
de vida.
89
Pote usado para retirar água do rio.
90
É uma típica vestimenta usada pelos obás (reis) iorubás. É considerada como muito cara, leve e confortável.
115
91
Nome pessoal que significa: “morte, por favor, tenha piedade de nós”.
92
É um dos títulos tradicionais da cidade de Ìràwè, Oyo.
116
Vimos, no tópico anterior, o lugar da palavra em contexto africano, tanto nas dinâmicas de
comunicação geral quanto em seus múltiplos sentidos nos processos de produção de conhecimento e,
como nos aponta Hampaté Bâ, a palavra como fundante de um tipo particular de homens e mulheres. A
palavra, assim, ao ampliar a sua função comunicativa, estabelece um modo especifico de experiência do
mundo com seus próprios mecanismos de validação e legitimação de certa totalidade, ou seja, é parte
constituinte de um imaginário conceitual. No presente tópico, concentraremos nossa análise na palavra
iorubá, ou melhor, na tradição oral iorubá. Já vimos alguns elementos dessa tradição e, agora,
apresentaremos outros aspectos que nos auxiliarão na compreensão das dinâmicas envolvidas no sistema
de Ifá.
A tradição oral iorubá é composta de muitos elementos que exigiram um espaço maior para o
aprofundamento de cada uma, no entanto, objetivando elucidar características presentes no sistema de Ifá,
apresentamos algumas modalidades dessa rica tradição. São elas: èdè yorùbá (a língua iorubá), os orìkís
(evocações), os orin (cânticos), os (cânticos para os ancestrais masculinos), os
(cânticos para os ancestrais femininos) e as adúrà (rezas).
ÈDÈ YORÙBÁ
A língua iorubá é falada, principalmente, no oeste africano (Nigéria, Benin e Togo), mas também em
vários países do continente americano, onde a presença de corpos negros em diáspora forçada cultivou o
idioma dentro das práticas religiosas afro-americanas ou, em casos específicos como de Cuba (lucumi), na
criação de variações dialetais. Estima-se que existam 40 milhões de falantes de iorubá (BAMGBOSE, 1969).
O iorubá pertence ao grupo das línguas edekiri as quais somadas à língua itsekiri e à língua igala formam o
grupo Yoruboid dentro do tronco Volta-Níger da família Níger-Congo. A unidade linguística da família Níger-
Congo data, segundo especialistas, ao período conhecido como paleolítico superior (ADETUGBO, 1973). Os
117
principais dialetos em relação ao número de falantes são: ekiti, ijebu, ijesha, akoko, okun, oyo, egba, awori,
igbomina, owo, idanre, egbado, ilaje, ketu, mokole e o lucumi.
O iorubá é uma língua tonal. Possui três tons simples e dois tons compostos ou melódicos. Os três
tons simples são: o alto, o médio e o baixo. E os tons melódicos são variações de dois dos tons anteriores:
o tom alto é pronunciado como um tom ascendente quando ocorre após um tom baixo e o tom baixo é
pronunciado como um tom descendente quando ocorre depois de um tom alto (LAWAL, SADIKU e
DOMAPU, 2004, p. 459 - 460). Vejamos alguns exemplos:
A versão escrita iorubá (iorubá padrão) pode ser considerada como uma variante dialetal, aprendida
nas escolas e falada nos meios de comunicação. A sua constituição é baseada nos dialetos de Oyo e Ibadan,
mas incorpora inúmeros aspectos de outros dialetos. Possui estruturas estrangeiras, principalmente do
inglês, e um sistema de harmonização das vogais simplificado. Há uma grande discussão sobre o uso tanto
do iorubá padrão quanto da própria escrita do idioma. Muitos autores, alegando a ausência de uma
deliberada política linguística, questionam o que seria o “genuíno iorubá”, bem como outros autores
apontam que a versão escrita deve ser usada apenas como referencial, uma vez que a palavra escrita é
redutora das potencialidades da palavra iorubá93.
93
Para uma discussão ampliada sobre a escrita e o uso do iorubá padrão consultar: ADETUGBO (1982), AFOLAYAN (1982),
AJAYI (1960), BAMGBOSE (1965a, 1965b, 1969), FAGBORUN (1994), FRESCO (1970), LADIPO (1972), OYETADE & BUBA
(2000), OYENUGA (2007). Sobre a história da língua iorubá, consultar: ADETUGBO (1973), BIOBAKU (1973), HAIR (1967), LAW
(1973a, 1973b). Sobre reflexões sobre a gramática iorubá embora seja uma língua, morfologicamente, isolada e não possua
gêneros gramaticais, consultar: ADÉWOLÉ (2000, 2001), BAMGBOSE (1966), CROWTHER (1852), ROWLANDS (1969), WARD
(1952), YETUNDE e SCHLEICHER (2006).
118
ORÍKÌ
A palavra oríkì é composta de orí (“cabeça”) e kí (“saudar” ou “louvar”). Logo, oríkì significa “saudar
ou louvar o orí (cabeça) ou a origem” daquele a quem se refere. Sendo as palavras consideradas portadoras
de axé, atribui-se aos oríkì o poder de deterem em si próprios o axé (BABALOLA, 2000). Há vários modos de
recitação de oríkì. Quando faz referência a um orixá, evoca suas qualidades e suas realizações; e acredita-se
que tais referências farão com o que o pedido seja ouvido e as oferendas aceitas. Por essa razão, servem,
concomitantemente, para louvar o orixá bem como para acessar o seu axé. De modo geral, o oríkì de um
orixá ou de outros entes, como os elementos e fenômenos da natureza, relata episódios em que seus axés e
sua ajuda foram solicitadas e alcançadas. Assim como os ebós (oferendas), os oríkìs são fundamentais para
que o orixá se faça presente tanto em forma apenas sensorial quanto nos corpos de seus sacerdotes.
veículos da história falada, esses instrumentos são venerados e sagrados. Com efeito,
incorporam-se ao artista, e seu lugar é tão importante na mensagem que, graças às línguas
tonais, a música torna-se diretamente inteligível, transformando-se o instrumento na voz do
artista sem que este tenha necessidade de articular uma só palavra. O tríplice ritmo tonal, de
intensidade e de duração, faz-se então, música significante. Na verdade, a música encontra-se de
tal modo integrada à tradição que algumas narrativas somente podem ser transmitidas sob a
forma cantada. (VANSINA, 2011, p. 30)
Apresentamos abaixo dois exemplos de oríkìs, um para o orixá Oxóssi (A) e outro para o orixá
Xangô (B):
94
Os tambores de fala possuem o formato de uma ampulheta com duas faces (encouradas com couro de cabra, lagarto (iguana),
pele de peixe) amarrado com tiras que ligam as faces uma com a outra. São encontrados entre muitos grupos culturais do oeste
africano. Sua tonalidade é regulada a partir dos tons que imitam a prosódia humana. O tocador coloca o tambor embaixo do
braço e bate o instrumento com uma vareta ou um aro de ferro com uma bola na ponta. O tocador levanta ou abaixa o tom do
tambor falante ao apertar ou ao liberar as cordas do tambor com o braço. Isso pode produzir sons que são análagos às línguas
tonais africanas, entre elas, o iorubá. Um bom tocador consegue formular frases inteiras com os tambores. O tambor, desta
maneira, pode reproduzir os tons, volumes e ritmos da fala humana. Para uma discussão mais ampla sobre o assunto consultar:
EKWUEME (1975, 1978, 1980, 1981), EUBA (1967, 1970, 1974, 1975), KING (1980, 1960), OLANIYAN (1984a, 1984b) E
OMOJOLA (1983).
119
(A)
Neste oríkì são exaltadas as características do orixá Oxóssi como um caçador que combate, que
possui a inteligência necessária para enfrentar qualquer tipo de adversidade e cuja presença causa medo
(respeito).
(B)
Neste segundo oríkì temos a construção do orixá Xangô como o grande rei que simplesmente a sua
presença basta para causar medo (respeito). Na presença de Xangô todos devem demonstrar respeito.
ORIN
Os orin são outras formas de saudações que são utilizadas nas festas e celebrações aos Orixás.
Esses cânticos podem ser entoados oralmente ou por tambores de fala. Transmitem conhecimentos através
120
do canto dos ayan, mestres-músicos-historiadores, que pertencem a linhagens responsáveis por essa
profissão. Revelam amores e ódios. Destacamos dois tipos de orin: o (cânticos entoados em
homenagem aos ancestrais masculinos, Egúngún) e o (cânticos entoados em homenagem aos
ancestrais femininos, ). Apresentamos dois exemplos, um orin entoado apenas pelos tambores de
fala no qual não há voz humana, mas o cântico é produzido apenas pelo som do igbin (A) e um
(B):
(A)
Aquele que modelou os olhos e o nariz
É interessante notar nesse orin que toda a comunicação de sentido é produzida apenas pelos sons
emitidos pelo tambor. Além disso, vale destacar que a palavra tonal possui uma íntima e profunda relação
com os sons presentes nos tambores iorubás, assim, eles também são conhecidos como tambores de fala.
(B)
Ele rouba minhas folhas
Aqueles que são como pai para ele (porque ele é órfão)
No segundo orin, temos o diálogo entre um ente do Orun (ancestral) e um ente do aiye. A ideia é
simbolizar a relação de cuidado entre os ancestrais e a comunidade. Ambos as Gelede e os Egúngún,
participam da vida em comunidade através de exortações e cuidados que são revelados durante os
respectivos festivais. A presença desses entes ao longo do ano é percebida em inúmeras dinâmicas sociais
e espirituais que culminam com o período dos festivais.
ADÚRÀ
Adúrà são, em tradução livre, “rezas” que possuem uma enorme quantidade de axé e, por isso, são
portadoras da potencialidade de realização. Visam, como os oríkìs, obter as graças dos Orixás e são
dirigidas aos elementos que são dominados por eles. São utilizadas para fazer pedidos aos Orixás. Aos
ancestrais também são dirigidas as adúrà para que eles afastem da comunidade as doenças, as intrigas e a
má sorte. Algumas vezes, as adúrà são acompanhadas com o uso de água, obi (noz de cola) ou algum outro
elemento. Quando a água é usada, logo após terminar a reza, um pouco dela é derramado no chão e todos
os presentes molham a mão ali, passando-a em seguida na testa e no umbigo. No caso do obi, este é
repartido entre os presentes para que todos comam uma pequena porção dele. Em ambos os casos,
observamos a ligação entre os elementos transmissores de axé. Apresentamos abaixo um exemplo de adúrà
que ilustra a estrutura das rezas iorubás:
Vimos até agora alguns dos elementos da tradição oral iorubá e as performances da palavra dentro
das dinâmicas espirituais e sociais dos iorubás. Nosso objetivo não foi esgotar essas performances, mas, ao
contrário, buscamos oferecer uma visão geral de alguns desses enunciados da oralidade. Neste sentido, os
iorubás reconhecem a fala não apenas como um meio de comunicação diária, mas também como um meio
de preservação da sabedoria dos ancestrais, “venerados no que poderíamos chamar de elocuções-chave,
isto é, a tradição oral”. A tradição oral pode ser definida, de fato, “como um testemunho transmitido
verbalmente de uma geração para outra” e, por fim, a palavra, em contexto iorubá e em muitas outras
regiões africanas, “tem um poder misterioso, pois palavras criam coisas” (VANSINA, 2011).
ODÙ
Dando continuidade a apresentação dos dezesseis principais odù, Ojú Odù, do sistema de ifá,
segue, pela hierarquia fixa de senioridade, o terceiro odù: Ìwòrì Méjì.
Ìwòrí é simultaneamente o principio da cognição e das atividades propositais. Ele denota sucesso
temporário e as riquezas pessoais não ficarão por muito tempo. Fala sobre pessoas com a habilidade de ver
as situações em sua verdadeira perspectiva. A inscrição gráfica desse odù é:
II II
I I
I I
II II
ÌWÀ ODÙ
A principal característica desse odù é: os inimigos estão ao redor. A herança do consulente está
prestes a ser tomada por outra pessoa. Instabilidade no casamento. Chantagem. Morte.
O primeiro é uma reza para Ifá pedindo a ele que, por suas formas maravilhosas, traga coisas
boas para a vida do consulente. Este é mais um exemplo de um ser não humano como protagonista e
consultando Ifá. Alántaakùn, a aranha, aparece em inúmeras partes nos e está associada a sua
habilidade de, a partir de suas teias, produzir inúmeras formas artísticas.
Ele parece sorrir alegremente com seus dentes brancos (ABIMBOLA, 1977, p. 54).
O segundo explicita a relação entre Ifá e a nossa vida. De uma maneira geral, é em Ifá que
devemos buscar a sabedoria necessária para nos ajudar continuamente, sobretudo, para melhorar nossas
vidas.
Estalar-corda-couro
Vimos neste item a multiplicidade de enunciados orais dentro das performances sociais e
espirituais iorubás. Cada um desses enunciados possui características de produção de sentido que lhes são
próprias, ampliando, assim, a plasticidade da palavra em contexto iorubá. No próximo item, analisamos, em
detalhes, os enunciados orais de Ifá.
95
Cidade Igbó na estrada lagos-Abeokuta.
96
Implemento de caça iorubá.
125
Além dos nomes dos seres humanos, nomes de animais e plantas também são mencionados nesta
parte. Alguns exemplos de animais e plantas que aparecem nesta parte do são: (vaca de chifre
pequeno), (elefante), (vaca), (grama de elefante) e (grama gigante). Os entes não-
humanos mencionados nas partes I e II são personificações utilizadas para narrar uma história a partir de
seus universos no estilo característico de Ifá. Os nomes dos sacerdotes de Ifá, às vezes, são mencionados
também como nomes de personificações de entes não-humanos, tais nomes, desta maneira, possuem
relação com os nomes dos clientes que aparecem na parte III. Vejamos alguns exemplos: (grama de
elefante) é mencionada como um sacerdote de Ifá de (floresta), pois é encontrado na regição
das florestas iorubás; (grama gigante) é mencionada como um sacerdote de Ifá de (savana),
pois é encontrada na região da savana.
A segunda parte dos geralmente contém o(s) nome(s) do(s) cliente(s) para o qual foi
realizado o jogo de Ifá. Essa parte é iniciada por algumas destas frases: “ ” (“um jogo de Ifá foi
realizado para”) ou “ ” (“foi a pessoa que realizou um jogo de Ifá para”). Essas duas frases são de
grande significância dentro da estrutura do , já que “a maioria dos fazem uso delas e
alguém pode ter certeza de que dada uma passagem da tradição oral iorubá é um trecho de um
apenas por essas duas frases” (ABIMBOLA, 1997, p. 45).
Logo depois de alguma dessas frases, o(s) nome(s) do(s) cliente(s) para quem o jogo de Ifá foi
realiado deve ser mencionado. O nome pode ser seguido, ocasionalmente, por uma breve introdução sobre
a pessoa. Essa introdução pode ter a forma de um endereço residencial ou de um oríkì ou de uma descrição
como alto ou baixo, escuro ou claro em complexidade. Vejamos aum exemplo:
O grande tambor
No exemplo abaixo, temos o nome do cliente, uma pequena descrição sobre ele e seu endereço
residencial:
Apresentamos mais alguns exemplos que envolvem clientes que são entes não-humanos:
(A)
(B)
97
Orixá Òró.
128
(C)
Descendente do pantanal
(D)
(E)
Na terceira parte dos temos a razão pela qual o jogo foi realizado. Se há uma variedade de
clientes, há a mesma variedade de razões para se consultar Ifá. As mais procuradas são: motivos de doença,
medo da morte, medo dos inimigos, falta de esposa/marido, falta de crianças e falta de dinheiro. Podem
98
Uma espécie de pássaro.
129
aparecer na forma de uma afirmação, de uma pergunta ou de uma breve narrativa. Vejamos alguns
exemplos:
(A) Afirmação
(B) Pergunta
(C) Narrativa
Quando ele estava a caminho para visitar mais cedo sua fazenda
A quarta parte dos contém o pronunciamento do sacerdote de Ifá após o jogo ser realizado.
Uma parte importante desse pronunciamento é o ebó prescrito pelo sacerdote que o cliente deve realizar.
Vejamos alguns exemplos:
A quinta parte dos é aquela que diz se o cliente cumpriu ou não as instruções indicadas
pelo sacerdote de Ifá na parte IV. Vejamos alguns exemplos:
A sexta parte narra o que aconteceu com o cliente depois de ter realizado ou não as instruções dos
sacerdotes de Ifá. Exu geralmente é mencionado como um agente da disciplina quando as instruções não
são seguidas. Ele pune os clientes que se recusaram a realizar o ebó. Exu pode matar, lançar pragas ou
impedir que o cliente tenha prosperidade. Às vezes, as partes IV, V e VI são combinadas para dizer que foi
131
pedido um ebó, o cliente realizou e foi aceito pelos orixás. A sétima parte contem as reações do cliente
diante do resultado do jogo podendo expressar júbilo por ter realizado as instruções dos sacerdotes de Ifá
ou lamentação por ter falhado em cumpri-las. No final da sétimas parte, o sacerdote de Ifá pode optar por
repetir as parte I – VII ou as partes I – VI e, se preferir, ele pode seguir para a oitava parte sem repetição
alguma. A oitava parte contém a moral da história.
Parte III A ele foi pedido que realizasse ebó para que
tivesse dinheiro
Todos dançaram
É a hora de Ifá
E eu sou fazendeiro
É chegada a hora
E eu sou fazendeiro
Há outros aspectos estilísticos que poderíamos analisar nos , no entanto, como nossos
objetivos não comtemplam uma análise detalhada da estilística dos bem como tal tarefa
ultrapassaria os limites de espaço para essa dissertação, apresentamos apenas como referência as
principais características que encontramos: repetição, jogo de palavras, personificação, jogo lexical,
metáfora, paralelismo e onomatopeia99.
ODÙ
Apresentamos o quarto odù, Òdí Méjì, da hierarquia fixa de senioridade do sistema de Ifá.
Esse odù está relacionado com a curiosidade indiscreta. Denota que alguém está para chegar e
precisa demarcar seu próprio território. É um odù muito agressivo e pungente. Encontramos nesse odù a
narrativa de como Orunmilá acalmou as Iyami e, também, como as mulheres do mercado usam mel para
adoçarem as coisas na vida. Indica uma influencia limitada. Uma das principais ideias que envolvem esse
odù é que há descanço e há a possibilidade de se completar as ações iniciadas, no entanto, sem os devidos
cuidados tudo pode surgir antecipadamente. A inscrição gráfica desse odù é:
99
Para estudos mais aprofundados sobre a estilística dos versos de Ifá consultar o único autor que analisa tais aspectos:
ABIMBOLA (1964, 1967, 1968a, 1968b, 1969a, 1969b, 1971, 1972).
133
I I
II II
II II
I I
ÌWÀ ODÙ
A principal característica desse odù é: a maldade está próxima da pessoa. Relação de amizade,
melhor e em maior quantidade, com o sexo oposto. Ascenderá socialmente e profissionalmente com a ajuda
de seu orixá Òlóri (orixá de cabeça).
O primeiro narra a história de quando o jogo de Ifá foi jogado para o filho de Òyéniran. Foi-lhe
pedido para que realizasse um ebó evitando, assim, a morte. Há uma ênfase nos fundamentos de cada ser na
dinâmica da vida, neste sentido, quando sabemos quais os nossos fundamentos (awo) celebramos Ifá e
este, por sua vez, nos ajuda com a práxis da vida. Uma outra ideia é a de senioridade e os seus sentidos
tanto de sabedoria como de status social.
Filho de Oyèníran
E ficou feliz
O segundo narra a história do jogo de Ifá que foi realizado para Òdí e a maneira com que ele
consegue sua primeira esposa. Como acidentalmente ele verte o mel, remédio de Ifá preparado pelos
sacerdotes, no mercado, outras pessoas também sentem o desejo de se relacionarem sexualmente com as
mulheres do mercado. é a cabeça do mercado é conhecida em iorubá por eé
geralmente escolhida pelo governante de cada cidade entre as melhores mulheres comerciantes que
possuam qualidades de liderança. Dessa maneira, ela lida com toda a regulação do mercado.
O forte Òdí
Eles diziam
Doce mel
Doce mel”
Neste item apresentamos a estrutura dos versos de Ifá de modo a compreender, quando da leitura
de um poema, qual ordem seguir para a interpretação e, sobretudo, a localização do tema narrado.
Finalizamos esse capítulo com uma breve discussão sobre o orixá Exu e sua íntima relação com Ifá.
100
É um famoso mercado próximo a cidade velha de Oyo. Muitas narrativas sobre mercados e comércios centralizam-se nesse
mercado.
136
Exu também promove alívio para os sofrimentos e, como foi atribuído de poder para manipular o
ebó, pode influenciar o destino. Nos rituais de ebó, é Exu quem propicia o axé necessário à sua
manipulação e transporte e é a ele que compete estabelecer canais de comunicação entre o sofrimento
humano, o ebó e as divindades que o receberão para promover alívio do sofrimento humano.
A influência desse orixá sobre um destino, inclusive corrigindo caminhos cuja escolha foi
determinada por um mau orí, é possível, desde que seus princípios sejam adotados e respeitados: ordem,
organização e disciplina. Esses princípios se manifestam através da prática de virtudes como lealdade,
respeito, coragem, perseverança e, principalmente, paciência. A ordem surge do caos e a justiça, muitas
vezes, decorre da injustiça. Sendo Exu detentor dos princípios básicos da paz e da harmonia, a ele compete
regular a ordem, impondo disciplina e organização, opostos da confusão e da desordem. Disciplina e
organização conquistam-se através do exercício da paciência.
Exu é uma personagem controversa, talvez a mais controversa de todas as divindades do panteão
iorubá. Alguns o consideram exclusivamente mau, outros o consideram capaz de atos benéficos e maléficos
ao mesmo tempo e outros, ainda, enfatizam seus traços de benevolência. Em grande parte da literatura Exu é
apresentado como um ser ambíguo, uma entidade neutra entre o bem e o mal ou, simultaneamente, bom e
mau. Por vezes, é apresentado como o inimigo do homem. Um provérbio iorubá elucida a respeito dessa
atribuição feita ao Orixá Exu: Olotó ni òtá àiyé (Aquele que diz a verdade é inimigo dos seres): aponta para o
fato de que Exu julga e, ao manifestar a verdade, nem sempre agradável de ouvir, é considerado um inimigo.
137
Embora Exu seja considerado como um dos orixás, ele nem sempre favorece os orixás, e ao
contrário de todos os outros orixás, ele nem sempre auxilia os seres humanos. Abimbola diz que
parece ser plausível dizer que a ação de Exu em auxiliar ou se opor a qualquer força ou ente é
determinado, às vezes, pelos seus próprios caprichos e impulsos, e às vezes por um genuíno
desejo de punir os ofensores, especialmente aqueles que negligenciaram um ebó prescrito
(ABIMBOLA, 1997, p. 186).
Exu, entretanto, assume o papel de um imparcial vigia, punindo aqueles que desarmonizam a ordem
do universo. Ebós negligenciados são problemáticos para ele e favorece apenas aqueles que realizam a
oferenda prescrita. Este é o significado do ditado (Exu favorece apenas aqueles que
realizam o ebó), que geralmente aparece em muitos Toda realização através de Ifá depende de Exu,
pois ele possui (o poder do comando) o qual ele usa para concretizar qualquer ação possível.
Apresentaremos um exemplo das características de Exu e sua dinâmica dentro do sistema de Ifá através de
um .
Neste exemplo, temos o relato de uma ocasião em que Exu se juntou com a Morte e a Doença
contra Orunmilá. Os três foram visitar Orunmilá em um momento que ele não tinha nada em sua casa e nem
dinheiro para receber os visitantes. Orunmilá, conhecendo muito bem quem era os visitantes, enviou a sua
esposa ao mercado para vender alguns de seus pertences e, assim, conseguir algum dinheiro para poder
comprar comida e bebida com os quais poderia recepicionar aqueles perigosos visitantes (ABIMBOLA,
1997, p. 187-188).
Eu tenho segurança
Ààbò lamentou
E ficaram satisfeitos
Discutiremos agora algumas considerações gerais a respeito da relação de Exu e o sistema de Ifá.
Diferentemente dos outros orixás, Exu ocupa um lugar de destaque nas dinâmicas de axé que envolvem a
prática do jogo de Ifá, isso porque a sua própria natureza como vimos, embora suscintamente, implica na
compreensão de que Exu é o grande tradutor, ou seja, como Grande Mensageiro é ele quem faz a tradução
entre as linguagens do orun, da natureza e dos seres humanos (FALOLA, 2013). Neste sentido, qualquer
forma de comunicação entre o orun e o aiye só é possível através de Exu, e, portanto, além de vigia de todo
101
É um famoso mercado próximo a cidade velha de Oyo. Muitas narrativas sobre mercados e comércios centralizam-se nesse
mercado.
139
o axé e de suas formas de transmissão, ele também é o grande vigia da palavra. Assim como todo o sistema
de ifá, de maneira geral, é uma forma de comunicação, não há práxis de Ifá sem a presença de Exu.
Em uma das variantes da narrativa de criação dos iorubás 102, a “rocha eterna da criação” chamada
de oyìgìyìgì foi dividida em quatro cabaças de criação e está associada a Exu. Da interação entre as cabaças,
surgiram os dezesseis principais odù, também conhecidos como princípios da criação. Essa narrativa
sugere que Exu além de ser o grande mensageiro também é a semente primordial da criação. Apresentamos
resumidamente a história de Òsetùwá ou de como Exu se tornou Òsijè-Ebó para ilustramos como Exu é
compreendido dentro das dinâmicas de orun e aiye.
COMO SE TORNOU
Essa narrativa conta o nascimento do odù Òsetùwá e de como Exu se tornou (Exu,
aquele que transporta o ebó do aiye para o orun). Um grupo de sacerdotes de Ifá, babalaôs, realizou um jogo
de Ifá para os quatrocentos Irúnmolè da direita e para os duzentos malè da esquerda 103. Eles realizaram um
jogo de Ifá pra Oxum, que possui uma coroa de contas, no dia em que ele, Òsetùwá, tornou-se o décimo
sétimo dos Irúnmolè que vieram do orun para o aiye para construírem os pilares de fundação da existência
de todos os seres vivos e dos eborá104. Òlódumàrè lhes transmitiu todo o axé necessário e disse que assim
que chegassem ao aiye deveriam abrir uma clareira na floresta, consagrando-a a Orò, o Igbó Orò105.
Deveriam abrir uma segunda clareira consagrada a Eégún, o Igbó Eégún 106, que seria chamada de Igbó Òpá.
A quarta clareira deveria ser consagrada a Odù Ifá, Igbó Odù, onde seriam realizados os jogos de Ifá. Eles
102
Diferentemente de muitas outras formas de espiritualidade (“religião”), os iorubás possuem diversas versões de narrativas de
criação. Alguns elementos aparecem em todas elas, outros apenas em algumas. No entanto, a compreensão do que se entende
por criação para os iorubás independe da narrativa, pois com ou sem a presença de personagens, situações ou ações, a criação é
fruto do axé (possibilidade de criação). No terceiro capítulo estudaremos duas variantes dessas narrativas.
103
Discutiremos detalhadamente sobre os Irúnmolè no terceiro capítulo. Por ora, tanto os Irúnmolè quanto os malè e os ebora
podem ser entendidos como orixás.
104
Idem.
105
Orò é um orixá que representa a ancestralidade dos seres humanos masculinos, possui relações com as Iyámi. O Culto a Orò
representa o culto indireto a Ikú (Morte), assim, é um dos cultos aos mortos. Segundo a tradição oral, Orò é um orixá destruidor,
incontrolável, quando sai pelas ruas ninguém deve ficar em seu caminho ou será sacrificado. O único orixá que trata com Orò é
Xangô, pois realizou todos os ebós necessários para isso. Apenas homens podem fazer parte do culto a Orò.
106
Egúngún.
140
eram responsáveis, também, por abrirem o caminho para os orixás e lhes preparar um local de culto, o Igbó
Orixá. Aprenderam a cultuar cada um dos orixás.
Quando vieram ao aiye, portanto, fundaram o Igbó Orò, o Igbó-Igbàlè (Eégún), o Igbódù (Ifá) e o
Igbóòòsa (Orixás). Todos os Irúnmolè realizavam suas oferendas, mas nunca chamavam Oxum para
participar. Cada vez que iam à floresta de Eégún, ou à floresta de Orò, ou à floresta de Ifá, ou à floresta de
Òòsà, quando retornavam, os animais oferecidos, fossem cabras, carneiros, ovelhas, aves, eram entregues a
Oxum para que ela os cozinhasse. Preveniram-na que não comesse nenhuma parte dos animais já que
seriam levados aos Malè. Oxum, incorformada com a situação, começou a usar seu axé das Iyami para
inutilizar todas as oferendas. Ifá dizia que se uma pessoa não morreria, essa pessoa não deixava de morrer;
Ifá dizia que se uma mulher teria muitos filhos, se tornaria estéril; Ifá dizia que se uma doença seria curada,
a doença ficava mais grave.
Ninguém sabia explicar o que estava acontecendo, pois todos seguiam rigorosamente todos os
elementos que lhes foram ensinados. Quando se reuniram, Orúnmìlà sugeriu que, já que eram incapazes de
compreender o que ocorria por seus próprios conhecimentos, não havia outra solução senão consultar Ifá
novamente. À vista disso, Orúnmìlà trouxe seus instrumentos e consultou Ifá. Contemplou longamente a
figura do Odù que apareceu e chamou esse odù pelo nome de Òsetùwá. Ele olhou em todos os sentidos. A
partir do resultado definitivo de sua leitura, Orúnmìlà transmitiu a resposta a todos os outros Odù-àgbà
(grupo de odù).
Como não conheciam esse odù, concordaram que um deles deveria ir até Olódumarè em busca do
axé necessário para a solução. Orúnmìlá foi o escolhido e quando chegou ao orun encontrou Exu Odara que
estava junto de Olódumàrè. Exu explicava que a razão de não conseguirem realizar mais nada era porque
não haviam convidado a décima sétima parte. Assim, ela estragava tudo o que eles pediam. Olódumàrè,
então, disse que não tinha mais o que ensinar e transmitir a eles, e que deveriam incluir a décima parte para
que tudo voltasse ao normal.
Orúnmìlà retorna ao aiye e comunica a todos os orixás o resultado de sua viagem. Chamaram,
então, Oxum e lhe disseram que ela deveria segui-los em todos os lugares quando do oferecimento de
sacrifícios. Porém, Oxum se recusou: ela jamais iria com eles. Começaram a suplicar à Oxum, ficaram
prostrados por um tempo, e iniciaram a homenageá-la e reverenciá-la. Oxum, no entanto, abusava deles e
os maltratava. Maltratava a Òrìsànlá, maltratava Ògún, maltratava Orúnmìlà, maltratava Òsányín, maltratava
Orànje, entre outros. Era o sétimo dia, quando Oxum se apaziguou. Então eles disseram que ela os
141
acompanhasse. Ela replicou dizendo que jamais iria, entretanto, seria possível que fizessem outra coisa já
que todos estavam fartos dessa história. Disse que se tratava da criança que levava no seu ventre. Para que a
vida no aiye não perecesse, eles teriam que descobrir como ela daria à luz a uma criança do sexo masculino.
Se fosse uma criança do sexo feminino, eles poderiam criar outro lugar para viverem.
Assim, apelaram a Òrìsànlá e a todos os outros orixás para saberem o que deveriam fazer para que a
criança fosse do sexo masculino. Disseram que não havia outra solução a não ser que todos utilizassem os
seus axés e que diariamente deveriam ir até o orí de Oxum e depositar o seu axé. Quando a criança nasceu,
Oxum disse que eles só poderiam vê-la no nono dia. No nono dia, Oxum convocou a todos para a cerimônia
do nome107. O nome que deram a criança foi À SE TÙ WÁ (“o axé a trouxe para nós”). Foi por isso que ela se
chamou Àsetùwá. Quando chegou o tempo, Orúnmìlà consultou Ifá acerca da criança, porque todos devem
conhecer sua origem e destino, e viu que o odù da criança era Òsè e Òtùá. E por essa razão, mudaram o
nome da criança para Òsètùá (Òsetùwá).
Òsètùá deveria acompanhar todos os odù mais velhos, pois sem a presença da décima sétima parte
jamais encontrariam uma solução para qualquer que fosse o problema. Òsètùá também fez um acordo com
Exu Odara no qual apenas por suas mãos é que Exu receberia os ebós. Òsètùá torna-se então o entregador
de ebós para Exu, Èsù Òsijé-Ebó. Eis a razão pela qual sempre que os babalôs fazem ebós, qualquer que
seja o odù Ifá que apareça e qualquer que seja a questão, devem invocar Òsetùá para que envie as oferendas
a Èsù, porque é só de sua mão que Èsù aceitará as oferendas para levá-las ao Orun.
ODÙ
107
Entre os iorubás, no nono dia após o nascimento da criança é realizada a cerimonia do nome na qual a criança recebe o seu
nome significando que faz parte daquela comunidade e possui os laços espirituais com os ancestrais e orixás de sua família.
142
I I
I I
II II
II II
ÌWÀ ODÙ
As principais características desse odù são: coragem, vitória. Qualquer realização pretendida
dependerá exclusivamente do orí. Ele está relacionado, principalmente, a Ògún. Seu símbolo é o ferro,
representando a coragem.
O primeiro narra a história de quando Oyèníràn estava chorando, pois não tinha nenhum filho.
À ela foi pedido um ebó. E Ifá lhe diz que o filho será menino, famoso e terá muito sucesso. Essa narrativa
aponta para uma das preocupações fundamentais na sociedade iorubá que é o fato de gerar filhos,
sobretudo, se forem meninos. Uma vida em equilíbrio pressupõe crianças. Outro fato importante é a relação
com o nascer do dia, simbolizando uma vida de prosperidade, harmonia e equilíbrio para a criança que está
por nascer.
Fechou-se a armadilha
Que está sem comer por não ter um filho para carregar nas
costas
Um carneiro
Onze búzios
O segundo narra a história do jogo de Ifá que foi realizado para Orunmilá quando ele estava
procurando ter um filho. Realizado o ebó, o filho nasce e ele começa a elogiar os seus fundamentos (awo).
Esse gesto simboliza a compreensão que, por Ifá e pela lógica dos awo, todos os desejos são possíveis. A
materialidade do desjo se realiza quando se cumpre o sacrifício prescrito por Ifá.
Por favor,
Realize o ebó.
Vimos nesse primeiro capítulo as interações entre oralidade, palavra e formas de produção de
conhecimento. A partir dos enunciados orais de Ifá, discutimos os processos pelos quais o conhecimento
de Ifá é realizado na performance da palavra e do som. A palavra é o agente transformador e, por ela, o fluxo
de memórias, de ancestralidades e de conhecimento é constantemente atualizado em dinâmicas de ritmos e
tonalidades. Desta feita, a palavra é, em sentido geral, o próprio conhecimento. No entanto, há outras
dinâmicas envolvidas na produção de conhecimento em Ifá e, neste sentido, o corpo ocupa lugar
fundamental, seja na produção de experiências do mundo seja na materialidade da dupla realidade iorubá.
Desta forma, dedicamos o próximo capítulo a compreendermos de que forma o corpo também é uma forma
de saber e como ele opera na corporeidade do babalaô, o sacerdote de Ifá.
145
CAPÍTULO II
“La Négritude, à mes yeux, n'est pas une philosophie.La Négritude n'est pas une
métaphysique.La Négritude n'est pas une prétentieuse conception de l'univers.C'est une
manière de vivre l'histoire dans l'histoire: l'histoire d'une communauté dont l'expérience
apparaît, à vrai dire, singulière avec ses déportations de populations, ses transferts
d'hommes d'un continent à l'autre, les souvenirs de croyances lointaines, ses débris
decultures assassinées.Comment ne pas croire que tout cela qui a sa cohérence constitue un
patrimoine?En faut-il davantage pour fonder une identité?”
―Discours sur le colonialisme, Aimé Césaire
146
147
E O PEIXINHO ENCANTADO
Certa vez havia um pescador muito pobre. Ele vivia unicamente da pescaria junto com sua esposa,
mas a pesca naquela área era tão difícil que ele e sua esposa viviam sempre na miséria. Um dia, saiu esse
pescador e, passado o dia inteiro, não havia pescado nada. Quando a noite já estava caindo, e o pescador já
estava desistindo de peixes naquele dia, ele, aborrecido, jogou o anzol já pensando na confusão que seria
quando chegasse em casa sem nenhum peixe. Ele viu um movimento muito rápido na linha e puxou para ver
o que era. Quando o anzol saiu da água, era apenas um peixinho dourado. Era tão pequeno que lhe deu
vontade de jogá-lo de volta na água com toda a sua raiva e frustração.
Para ele, naquele momento, o peixinho não tinha grande valor, nem econômico nem nutritivo,
devido ao seu tamanho diminuto, mas visto que pouco é sempre melhor que nada,
o pescador resolveu pegar o peixinho mesmo assim e lavá-lo à sua esposa para tentar apaziguá-la
e ver se pelo menos conseguiriam enganar a fome por mais uma noite.
Porém, assim que baixou a mão para estrangular o peixinho, esse começou a implorar ao pescador
que não o matasse, prometendo que lhe daria qualquer coisa que necessitasse. O peixinho ainda lhe
prometeu que em troca de sua vida, ele cumpriria, com o seu axé, quaisquer pedidos que o
pudesse ter. Bastaria que ele viesse até a beira do rio e o invocasse para obter satisfação.
O pescador não duvidou da sinceridade do peixinho e o soltou em seguida. Mas ao chegar em casa,
a esposa, uma senhora muito vaidosa e severa, apesar da extrema pobreza da família, ficou furiosa ao saber
que o marido tinha soltado o único peixinho que iria servir de jantar para os dois. Ela ameaçou colocar na
rua o marido se ele não arranjasse um jantar substituto naquela mesma noite. Nenhum argumento do
pescador fez a esposa mudar de ideia: o marido tinha que sair naquela mesma noite para procurar algo para
comer. Outro jeito não tinha.
Quando o homem já não aguentava mais a teimosia da esposa, decidiu voltar naquela mesma noite
ao rio para pedir ajuda ao peixinho amigo. Quando expôs seu plano para a esposa, ela desatou a rir,
chamando-o de burro por ter acreditado, tolamente, nas palavras de um peixinho esperto que só queria
salvar o seu pescocinho. Ela ainda disse que seria bem feito para ele se orixá protetor de todos os
peixes e outros animais que moram dentro do rio, o afogasse naquela noite, ou, se qualquer fera o
devorasse no caminho.
148
Muito deprimido e decepcionado com a atitude de sua senhora, rumou para o rio para
tentar a sorte com seu amiguinho, o peixinho dourado. O pescador chegou ao rio e, sem muita confiança,
começou a cantar para o peixinho a seguinte cantiga:
Para a surpresa do pescador, o peixinho mostrou a cabecinha por debaixo das águas do rio e disse
a seu amigo que poderia voltar para casa com a certeza de que o jantar já estaria na mesa quando chegasse.
E assim foi. Quando o pescador chegou a casa, mal podia acreditar no que encontrou. Havia em sua
casa um grande vai-e-vem de mulheres que estavam preparando um jantar suntuoso. Elas diziam que foram
mandadas pelo peixinho, seu príncipe, e que de agora em diante nem ele nem a esposa teriam que se
preocupar com o pão de cada dia, pois elas abasteciam a casa com comida a toda hora. Depois do jantar, as
mulheres desapareceram. O pescador ficou tão encantado pelo serviço que falou para a esposa que
acordaria cedo no dia seguinte para agradecer a generosidade de seu amigo, o príncipe peixinho.
No dia seguinte, quando ainda se preparava para sair, a esposa disse ao pescador: “Ó meu marido,
é bom ter um amigo como o seu peixinho que nos dá de comer por nada, mas é melhor saber aproveitar as
oportunidades. Não disse o peixinho teu amigo que poderia pedir qualquer coisa que te faz falta? Ora, olhe
para nós nesta pobreza vergonhosa, nem casa própria temos. Que tal pedir a teu amigo uma casa decente
para nós. Ou será que só sabe encher a barriga de quem lhe poupou a vida?”. O pescador ficou boquiaberto
com tanta ousadia de sua esposa. Mas quando o pedido da mulher se transformou em ameaças, caso ele
149
não conseguisse uma casa do peixinho, o homem prometeu dar um jeito. Ao chegar ao rio, entoou a mesma
cantiga com o novo pedido:
Mal terminou esse pedido, o peixinho subiu do fundo do rio e disse que estava tudo bem,
mandando que voltasse para casa e que a casa dos sonhos dele já estaria lá quando chegasse. Dito e feito,
ao chegar a casa, o pobre pescador mal podia reconhecer o lugar. O mísero barraco que ele e sua esposa
chamavam de casa transformou-se em um casarão de verdade. Casarão não, melhor dizer logo, um palacete!
A esposa estava sentada em uma poltrona de ouro quando ele entrou e, ao adentrar o seu quarto, descobriu
que seus farrapos transformaram-se em àrán108macio e, no lugar de suas antigas camisas cheias de
manchas, encontrava agora as mais puras e brancas rendas de fazer inveja a um sacerdote de Oxalá.
No entanto, a esposa surgiu com mais um pedido: “Está contente? Acha isso suficiente? É tudo que
é capaz de sonhar na vida? Seu burro! Para mim, isso ainda é pouco! Olha bem para esta cidade. Não acha
que deveria ser você mesmo o rei daqui já que ninguém tem casa tão bonita quanto a nossa? Ora meu bem,
se não sonhas em ser rei, eu cá quero é ser rainha! Portanto, vá logo procurar o seu amigo e peça que, desta
vez, ele nos faça donos absolutos desta cidade!”. O pescador até tentou tirar essa ideia maluca da cabeça de
sua esposa, argumentando que o rei da cidade ainda estava vivo e que não possui nenhuma linhagem real
em sua família. Foi em vão e debaixo de ameaças o pescador seguiu para o rio. Chegando lá, entoou a
mesma cantiga com o novo pedido:
Antes mesmo que ele terminasse o pedido, o peixinho surgiu e fez que sim com a cabeça. Ao
chegar a casa, encontrou algumas pessoas que trabalhavam para o rei em sua porta. Eles disseram que o rei
havia morrido e que pelo jogo de Ifá ele deveria substituir o rei no trono. Foi assim que o pobre pescador se
tornou rei e sua esposa rainha. Numa manhã, a esposa foi procurar o marido para se queixar do sol, pois o
108
Tipo de tecido muito suave e de grande valor para os iorubás.
150
seu sono real era atrapalhado por aquele sol forte todas as manhãs. Ela disse: “De que tens medo? Você já
não é rei disso tudo aqui? E desde quando um rei deixou de ? Francamente, meu rei,
você me decepciona! Acorda! Vá e peça ao seu peixinho que nos dê o controle sobre o sol e a lua!”. E,
assim, entristecido em seu coração, chegou à beira do rio e entoou a mesma cantiga com o novo pedido:
****************
PALAVRAS INICIAIS
Entendendo o corpo como “um espaço socialmente informado, que assume repertórios de
movimentos e se define como um lugar de produção de conhecimento” (SABINO e LODY, 2011, p. 16),
temos que para a nossa compreensão do corpo iorubá passemos, primeiramente, pela localização da
produção desse corpo, ou seja, se todo corpo é fruto de diferentes formas de conhecê-lo, logo, para
diferentes formas de saber há diferentes formas de se produzir o corpo. Em segundo lugar, enquanto um
lugar de produção de conhecimento, o corpo produz um tipo especifico de corporeidade que determina tanto
as formas afetivas quanto sociais do estar-no-mundo do mesmo corpo. A compreensão do corpo, portanto,
não é meramente o conhecimento fisiológico que explica, ao menos é essa sua pretensão, o funcionamento
biológico, no sentido de um organismo complexo, do que materialmente podemos compreender como
corpo. Ao contrário, o corpo também pode ser compreendido como portador de energias que determinam
uma presença (social, sexual, cultural, politica, econômica, espiritual), um corpo individual e um corpo
comunitário (GIL, 1997).
Desta feita, o corpo é o local onde as “ações cotidianas são espacialmente reorganizadas e
codificadas para se estabelecer outras estruturas de informação” (ÀJÀYÍ, 1998, p. 18), em outras palavras, o
corpo é revelador de algumas das formas com que o imaginário de um determinado grupo cultural diz sobre
si mesmo e sobre a atitude interna também externa na relação corpo-natureza. A linguagem do corpo, por
conseguinte, faz parte da linguagem dos saberes de um grupo cultural. Estão, assim, marcados no corpo os
indícios epistemológicos das diferentes formas de se compreender as interações entre corpos, ritmo,
espacialidade e movimentos. Neste sentido, antes de discutirmos as “estruturas de informação” do corpo
iorubá, apresentamos, em linhas gerais, as características deste “espaço socialmente informado”, o corpo,
no pensamento ocidental de modo a marcar, ainda que resumidamente, os pontos de divergência entre
corpo-ocidental e corpo-iorubá. Em seguida, na crítica às pretensões universais para a compreensão do
corpo, apontamos as possíveis implicações conceituais na linguagem do corpo iorubá e, à vista disso,
dialogarmos com a impossibilidade de falarmos aos corpos que dançam 111.
110
Corpo.
111
Alusão à frase que dá título ao texto “É impossível falar a homens que dançam” de Maria Antonieta Antonacci (ANTONACCI,
2014).
153
Embora houvesse uma discussão epistêmica que priorizasse a alma (intelecto) em detrimento do
corpo, este era ao mesmo tempo idealizado pelos gregos. Esta dialética foi uma das bases da educação
grega. O primeiro período da educação se dava através da ginástica, música, dança, treinando o corpo em
função de seu aprimoramento e sua valoração se daria pela sua saúde, capacidade atlética, beleza e
fertilidade. Ao conceito de cidadão relacionava-se uma imagem idealizada do corpo, elemento de
glorificação e de interesse do Estado. O segundo período da educação grega era reservado apenas para
aqueles considerados com uma personalidade racional desenvolvida (os homens) é onde se estudaria os
conhecimentos filosóficos e dialéticos. Contrariamente a uma natureza, qualquer que ela fosse, o corpo seria
sempre um artificio que poderia ser apreciado pelos seus atributos (beleza, força, resistência etc.) e
admirado como uma forma exemplar e ideal de um cidadão grego, porém, jamais seria visto como uma
possível forma de conhecimento racional(VERNANT, 1974).
Com o cristianismo surge uma nova percepção do corpo, de expressão da beleza para a fonte do
pecado, e evidencia-se a separação do corpo e da alma, prevalecendo o segundo sobre o primeiro. O
cristianismo resume a atitude de recusa; cabia ao homem descobrir-se como mais do que o seu corpo,
112
Não buscamos aqui esgotar a discussão sobre a presença do corpo no desenvolvimento do pensamento ocidental, mas
apontamos as principais ideias que encerraram o corpo nos limites éticos, políticos, estéticos e epistemológicos das sociedades
ocidentais contemporâneas, sobretudo, nos discursos teóricos e artísticos europeus e estadunidenses. Para uma discussão sobre
o assunto, conferir: BERMAN (1989), BLACKING (1977), FOUCAULT (1976, 1984a, 1984b), CHAUÍ (2002, 2011), DANTAS
(2005) e GIL (1997).
154
descobrir-se como alma que deve lutar contra os desejos para escapar da morte, assim conquistando a
eternidade e a salvação (VAZ, 2006). Dessa forma, durante a Idade Média, o corpo, prisão da alma, era, pois
uma vergonha, carregado de culpas por ser feito de carne e de sexo, assaltado por pudores, e deveria
encobrir seus membros e seus músculos. Uma figura do imaginário da época que mais simboliza esse
pensamento é a bruxaria cuja ideia central era a de que o demônio procurava fazer mal aos homens para se
apropriar de suas almas e isto era feito essencialmente através do corpo e esse domínio seria efetuado
através da sexualidade: pela sexualidade o demônio apropriava-se do corpo e depois da alma do homem
(GIL, 1997).
Com a consolidação do que se chamaria Modernidade, o corpo passaria a ter um novo papel social
e na História. No Renascimento, as leis sobre o funcionamento da sociedade agora eram ditados pela razão,
e questões como os sentimentos, as emoções, a sexualidade, que durante a Idade Média eram tidos como
ações pecaminosas, foram incorporadas pela nova sociedade (FOUCAULT, 1979). Levando em
consideração que a sociedade moderna foi caracterizada e controlada pela Razão, o corpo, como elemento
social, também não fugiria desse controle. O fato de ele ser considerado pelas Ciências Biológicas no final
do século XVII, como uma máquina cheia de engrenagens reflete bem a visão mecanicista, baseada na visão
cartesiana. O fazer, o agir e o ato de se movimentar, eram ações primeiramente pensadas, esquematizadas e
depois realizadas.
Ao longo do século XX, o corpo ganhou evidência através das novas tecnologias e tornou-se o
símbolo de um desejo pela perfeição física exigida pelos padrões ideológicos da contemporaneidade.
Santaella (2008) afirma que, atualmente, a mídia é um dos meios de difusão e capitalização do culto ao
corpo, consolidando tendências de comportamento. Ao associar o padrão corporal com a forma do
consumismo do capitalismo neoliberal, os corpos não são vistos como construções pessoais, mas uma
imposição ideológica que se baseia em uma concepção de beleza narcisista e padronizada.
Como vimos no primeiro capítulo, a palavra produz uma forma de se conhecer o mundo, ou seja, a
tradição oral é em si mesma a linguagem que produz e é produzida pelos conhecimentos de um
determinado grupo cultural, em nosso caso, os iorubás. O corpo, ao contrário do que se apreende no
155
pensamento ocidental, também é a linguagem dos saberes e local de produção de experiências. O corpo vai
além do falar, ele faz falar uma vez que possui os meios de produzir as energias criativas, o axé, revelando
em sua dinâmica rítmica e no conjunto de seus movimentos, por um lado, a possibilidade de realização e,
por outro, a vivência material de um mundo duplo (visível e invisível). Assim, a experiência de mundo
iorubá “visa a tornar possível a vida do corpo” (GIL, 1997, p. 64). E, em uma cultura “para o corpo o corpo”,
tudo
contribui para um equilíbrio que salvaguarda a singularidade de cada corpo, a sua potência, a sua
capacidade para se codificar e para se recodificar; e, à margem das instituições normais e dos
códigos, subentendendo os símbolos e carregando-os de forças, uma energia que circula sob um
outro regime, será “tratada” por certas práticas que se situam na periferia – mas também no
interior – do campo social (GIL, 1997, p. 64 - 65).
Para a compreensão do corpo iorubá, além da palavra, outro elemento requer uma breve atenção: a
música (som)113, enquanto parte de uma experiência múltipla, é fundamental para a cultura iorubá. A
associação de sons com as palavras, a dança, Orun/Aiye, a vida social, outras ideias e atividades extra-
sonoras é uma realidade comum das performances do corpo iorubá. É interessante notarmos que na
linguagem o próprio conceito de música não é definido em termos absolutos. Os iorubás não possuem
nenhuma palavra que corresponda à música no mesmo sentido que no pensamento ocidental. A Música é
comumente verbalizada como orin kiko (“canção-cantada”) ou ilu-ilu (“tambor-tocado”), uma performance
musical é entendida como ere sise, ou seja, é um termo que engloba o cantar, os instrumentos, a dança, a
poesia etc. (OMOJOLA, 1989)
Para Omoloja, a música para os iorubás constrói a sua comunicação através (a) das características
estruturais (melodia, harmonia, ritmo e forma); (b) da associação entre música com contextos performáticos
extra-musicais imediados ou remotos para um referencial de significados; (c) da concepção de instrumentos
musicais enquanto símbolos dos valores compartilhados pela comunidade; (d) do funcionamento de
canções como indicadores culturais e; (e) o discurso dialético entre som e palavra (OMOJOLA, 1989). Por
esse último temos que, dada a característica tonal do idioma iorubá e da rítmica dos instrumentos musicais,
e das possibilidades de movimento do corpo,
jogando com corpos e seus prolongamentos, em termos de habilidades vocais, fonéticas,
rítmicas e instrumentais, conjugações de dança, canto, música – carregadas de subjetividade,
pois suscetíveis a ânimos, oratória e sensibilidades –, emergem na centralidade de cosmologias
africanas, sustentando encontros de seus mundos visível e invisível (ANTONACCI, 2014, p. 225).
113
Não discutiremos aqui todas as implicações que o som (música) possui dentro das dinâmicas culturais iorubás, porém para
uma discussão mais ampla conferir: AKPABOT (1983, 1986), BLACKING (1969), KUBIK (1968), MEYER (1956) e OMOJOLA
(1989, 1995, 2012, 2014).
156
Discutiremos, por fim, a ideia de corpo na linguagem iorubá, apenas em seus aspectos
comunicacionais nas perspectivas sociais e espirituais. Outros aspectos poderiam ser apresentados (dança,
marcas sacerdotais e clânicas etc.), no entanto, nosso objetivo é a compreensão da ideia de equilíbrio
simétrico que é fundamental para o sistema de Ifá e seus modos de leitura e interpretação.
Há uma ideia que encontramos em todos os elementos da cultura iorubá que é expressa pela frase
Na linguagem cotidiana é referida como e é compreendida na
injunção de que todas as coisas e todos os entes devem estar equilibrados e em moderação. Um iorubá “se
espanta com os excessos e o ideal de vida é baseado em um moderado equilíbrio entre os aspectos
positivos e negativos” (ÀJÀYÍ, 1998, p. 27). Neste sentido, , ou seja, tanto o
positivo (ibi) quanto o negativo (ere) são companheiros. Logo, se um lado de uma situação não é aparente,
ela não é considerada real; ela é incompleta e desequilibrada. Em qualquer lado que falte, seja positivo ou
negativo, grandes esforços são feitos para levar a situação ao normal e trazer os efeitos consoladores da
reafirmação do Uma das funções de se realizar um jogo de Ifá é justamente a busca pela
compreensão total de uma situação e pelos modos de torná-la equilibrada.
Tal ideia de equilíbrio pressupõe que os aspectos positivos sejam em grande número com apenas o
necessário de aspectos negativos para assegurar a normalidade e completude de cada ação. Quando os
aspectos negativos são muito mais excessivos do que seria considerado normal, as suspeitas surgem: as
pessoas se perguntarão se é consequência de algum excesso cometido anteriormente ou até mesmo por
algum ancestral. Não obstante, há modos, como o sistema de Ifá, para buscar o equilíbrio apropriado.
Embora conceitualmente seja facilmente aceita essa ideia,
há um incomodo que faz com que todos estejam constantemente a espera de quando os aspectos
negativos surgirão. Acredita-se que quando o aspecto não desejado surge, será muito mais
excessivo do que é considerado normal; quanto mais demorar para o equilíbrio chegar, tanto
mais será excessivo o impacto negativo (ÀJÀYÍ, 1998, p. 28).
114
Equilíbrio e harmonia entre todos os entes e todos os elementos que compõem a totalidade-mundo dos iorubás.
157
Tudo o que qualificar como atingiu o que poderíamos dizer como perfeição; nada
pode ser retirado ou adicionado; é simplesmente completo em sua totalidade. Qualquer coisa que não se
qualifique dessa maneira é chamada de significando que não há inclinação ou mudança de
escala. Essa expressão implica que algo está abaixo do esperado e, portanto, não está proporcional e
moderado.
Na compreensão do corpo iorubá, a beleza física deve estar equilibrada com a beleza interior. Beleza
não é apreciada por si mesma, e o iorubá acredita que seu verdadeiro significado não pode ser determinado
por uma óbvia e facilmente manipulável aparência. Logo, ou (presença bela)
implica que o conjunto da personalidade - constituída por (uma ideia complexa da personalidade ideal
iorubá que em uma tradução simples e literal pode ser caráter ou comportamento), postura e, também,
aparência – que a pessoas acharão belo e digno de admiração.
é a medida crucial de beleza no sentido de ser a essência equilibrada do ser humano. Mesmo
que uma pessoa seja fisicamente bela, mas não possua um equilibrado, ela é, na melhor das hipóteses,
meramente tolerada, torna-se um (alguém que não possui um equilibrado,
não possui amigos) e conhecida como (o “feio” com um corpo intocável, ou com
marcas no corpo). No entanto, uma pessoa com o equilibrado, mesmo sem uma beleza física, é
considerada bela e, assim, popular, respeitável e amada; é conhecida como (referência a uma
pessoa ética) ou (alguém com perspicácia de espirito para agir corretamente em cada situação). O
(corpo “feio”) desvirtua o comportamento do corpo na sociedade indiscriminadamente enquanto o
(corpo “belo”) confronta e equilibra as convenções sociais com poucos erros, ou certezas, e
emerge como um (aquele que é equilibrado, balanceado). Nota-se que a ideia de equilíbrio não é
a ausência de falhas, uma perfeição ideal, mas uma atitude de busca de equilíbrio (ÀJÀYÍ, 1998).
Vimos neste item algumas considerações sobre o corpo e as dinâmicas dos saberes envolvidos em
corpos que ultrapassam uma materialidade biológica e se tornam meios efetivos de comunicação entre o
mundo-duplo iorubá (Orun/Aiye). O corpo para os iorubás é um veículo do conhecer. Além disso, a partir do
corpo apresentamos a ideia de o equilíbrio entre ibi (aspectos positivos) e ere (aspectos
negativos) de cada situação ou ação. E, por fim, uma das formas de se compreender a totalidade de cada
situação é através do jogo de Ifá que sinaliza quais os aspectos que estão em excesso e os meios para se
reestabelecer a normalidade, ou melhor, o equilíbrio e a moderação.
158
Figura 38 - Corpos que dançam. Festividades escolares, Lagos, 2013 (arquivo pessoal)
Figura 39 - Corpos que dançam. Mulheres dançando pakuromo em um casamento, Lagos, 2012 (arquivo pessoal)
160
Dando continuidade a apresentação dos dezesseis principais odù do sistema de Ifá, analisaremos
agora mais três odù: e
ODÙ
II II
II II
I I
I I
ÌWÀ ODÙ
As principais características desse odù são: vitórias e calúnias. Sofrimento por ingratidão. Morte.
Nascimento. Comércio próspero.
Nós rimos das pessoas que riem de nós (ABIMBOLA, 1977, p. 78).
115
Nome pessoal cujo significado é “alegria (riso) chegou novamente”.
116
Rei da antiga cidade de
117
Uma importante região da cidade de
162
O segundo narra a história do jogo de Ifá que foi realizado para Jànjàsá para que todas as
coisas ocorressem bem. Os iorubás estabelecem relações de camaradagem tanto com os entes do aiye
quanto com os entes do orun e algumas pessoas, antes de nascerem, foram líderes entre os entes do orun.
Tais pessoas precisam realizar muitos ebós, a fim de evitar que seus camaradas do orun o chamem de volta.
No sentido de evitar a morte prematura dessas pessoas, o orixá é alimentado com cana de
açúcar, cereais e outros itens que crianças gostam.
118
Orixá cultuado especialmente por mulheres e está associado às práticas das ajés (geralmente, na literatura, traduz-se por
“feiticeira”, bruxa”, mas o seu real sentido é “ser produtora de encantamentos” ou “aquela que, pela natureza, interfere no
destino”.
119
Nome pessoal.
163
Este odù está relacionado, sobretudo, à ideia de duração das conquistas humanas. Ele denota
pobreza e implica no desejo por prosperidade e felicidade. As crianças regidas por esse odù tenderão a ser
comerciantes ou sacerdotes de orixá. Segundo as narrativas orais, foi o odù que se tornou mais
próspero entre todos os seus irmãos (odù). Também se relaciona com a ideia de que cada pessoa é
responsável pelos caminhos positivos ou negativos de sua vida e que a condição de pobreza é resultado
exclusivamente dos esforços pessoais. Um de seus narra a história de quando Xangô foi expulso da
cidade de Oyo e Oyá foi o único orixá que ficou ao seu lado. O sua inscrição gráfica é:
I I
II II
II II
II II
ÌWÀ ODÙ
As principais características desse odù são: prosperidade, novas oportunidades, novos negócios.
Insegurança. Falsidade. Desprestígio. Tendência à pobreza.
Uma criança não consegue contar o número de sementes de um painço (ABIMBOLA, 1977, p. 86).
O segundo narra a história do jogo de Ifá que foi realizado para depois que ele
amarrara sua esposa no quintal de casa. Sua esposa era infiel. É interessante observarmos o discurso
ambíguo em relação ao corpo da mulher. No primeiro momento, ela é amarrada por seu esposo que cansara
de sua infidelidade exagerada (nota-se que o problema é o exagero). Essa é uma situação vergonhosa para
ambas as partes, para ela, a exposição de sua infidelidade, para ele, a inabilidade de lidar com a esposa. No
120
Um tipo de lagarto com uma pele muito áspera. Quando ele respira, sua garganta produz som e seu corpo incha.
121
Nome pessoal.
122
Idem.
165
segundo momento, o resultado é negativo para, também, ambas as partes, para ela, continua amarrada e faz
sexo com o babalaô, para ele, assiste em seu quintal o problema que ele queria tanto evitar 123.
123
Para os iorubás, o casamento não está ligado à sacralidade matrimonial, mas a união de esforços para o estabelecimento de
um lar propício para que crianças sejam geradas e educadas. Os objetivos do casamento são, de um lado, a inserção plena na
sociedade, e, por outro, a experiência concreta dos ciclos da vida. Para uma discussão mais ampla da crítica de gênero na
sociedade iorubá, confeir: OLAJUBU ( 2003) e DREWAL e DREWAL (1983).
166
Esse odù representa a ideia sobre as emoções e a energia física. Simboliza a chegada de Xangô ao
aiye, significando que as transformações poderão ocorrer por tragédias e crises. A sua inscrição gráfica é:
II II
II II
II II
I I
ÌWÀ ODÙ
As principais características desse odù são: tendência a ter fortuna, orgulho, inimigos rondando e
morte repentina. Doenças. Descontentamento. Ebó para Egúngún.
167
Apresentamos dois exemplos de desse odù. O primeiro narra a história de quando o jogo
de Ifá foi realizado para o Galo que estava se lamentando pelo fato de não possuir esposa. A ele foi pedido
que realizasse ebó e, depois que o fez, encontro a Galinha na estrada. Em pouco tempo, ele estava casado.
Mais uma vez, vemos a importância do ebó como agente para a felicidade.
O segundo narra a história do jogo de Ifá que foi realizado para quando este estava
disputando a região que lhe foi deixada por seu pai, Orunmilá. Após a realização do ebó, torna-se
o grande senhor de toda a região.
168
Neste item analisamos a ideia iorubá sobre o corpo. Ele é um importante instrumento de produção
de saberes e, também, como elo de comunicação entre as duas realidades do mundo. Equilíbrio e harmonia
são os ideais para uma vida forte (cheia de axé) para os iorubás, assim, o corpo precisa expressar esse ideal
através dos elementos que o constitui. No próximo item, analisamos a corporeidade do sacerdote de Ifá, o
babalaô.
124
É o oitavo odù do sistema de Ifá.
125
É nome que nos enunciados orais de Ifá é reconhecido como a morada de . Muitas narrativas de Ifá fazem referências
à disputa entre e seus inimigos pelo domínio dessa região.
169
BABALAÔ
Apoiados nos trabalhos de Abimbola (1997), Idowu (1977) e Awalu & Dopamu (1979), e com o
objetivo de contextualizar Orunmilá, convém discorrermos126, ainda que brevemente, sobre a concepção de
Olodumare e dos orixás iorubás. Olodumare (Eledumare, Edumare) é o senhor absoluto, autoridade
espiritual máxima. Incluem-se na etimologia da palavra que o designa as ideias de muito grande, recipiente
profundo, muito extenso, pleno, aquele que permanece, aquele que sempre é, aquele que tem autoridade
absoluta sobre tudo o que há no céu e na terra e é incomparável, aquele que é absolutamente perfeito, o
supremo em qualidades. Também chamado de Olorun, senhor do Orun, Orise, fonte da qual se originam os
seres ou fonte de todos os seres, Olofin-Orun, senhor do Orun; Olori, senhor de tudo o que é vivo, possui
como atributos ser único, criador, rei, juiz e eterno, oyigiyigi ota aiku – a poderosa, durável, inalterável
rocha que nunca morre. Embora não seja diretamente cultuado, em todas as celebrações as rezas são
iniciadas com a expressão (axé): possa ele (Olodumare) aceitar isso (SALAMI, 1999).
O Orun (dimensão invisível da realidade concreta) é habitado pelos orixás, ancestrais masculinos
(baba-egun) e femininos (iya-agba ou iyami). Os orixás estão relacionados à estrutura da natureza enquanto
os ancestrais estão relacionados mais especificamente à organização social. Enquanto os orixás
representam ideias e energias gerais da natureza e definem a pertença dos seres humanos na ordem do
universo, os ancestrais representam valores restritos a grupos familiares ou linhagens e definem a pertença
dos indivíduos à determinadas instâncias sociais.
Segundo Awolu & Dopamu (1979), os orixás, “emanações de Eledumare”, têm o propósito de agir
na criação e condução do mundo. Alguns desses orixás são primordiais (participaram da criação do
universo), outros são ancestrais que se tornaram orixás e outros ainda, personificam energias e fenômenos
naturais. Entre os orixás primordiais estão incluídos Exu, Obatalá, Orunmilá e Ogum. Um exemplo de
126
No terceiro capítulo desta dissertação, discutimos amplamente os entes do orun.
170
ancestral que se tornou um orixá é Xangô, o quarto rei de Oyo, orixá do raio, relâmpago e trovão; e um
exemplo de orixá que personifica o fenômeno natural é Olumo, protetor dos egba, associado ao monte
rochoso Olumo, de Abeokuta. O grupo de orixás, composto por um grande número de orixás cujo total,
segundo distintas fontes, varia entre 200 e 1700, inclui divindades cultuadas por todo o território iorubá e
outras, particularmente reverenciadas em algumas localidades, o que determina variações regionais em sua
organização hierárquica.
Como outros nomes, os dos orixás também são descritivos: Olokun (Ol’ = senhor / okun = mar) é o
senhor do mar, Xapanã ( = varíola) é o orixá que pune com varíola ou pode curá-la. O nome Ifá,
segundo alguns estudiosos, inclui a raiz fá – conter, compreender, acumular, abraçar –, indicação de que
todo o conhecimento tradicional iorubá e “todas as possibilidades de alcançar a compreensão do Orun e do
Àiyé” acham-se contidas no sistema de Ifá (SALAMI, 1999, p. 79). Quanto ao nome Orunmilá, entre as
interpretações mais aceitas estão as seguintes: a palavra vem da contração de:
(somente) o grande morador do sabe quem sobreviverá; somenteo grande
morador do sabe conhece os meios de libertação; somenteo morador do pode
libertar. Abimbola (1997) considera haver boas possibilidades de erro nessas interpretações e considera
impossível traçar a etimologia de nomes antigos como estes, cuja estrutura não permite análise
insofismável.
Os sacerdotes de Ifá, babalaôs, e várias partes do sistema de Ifá indicam que seja Orunmilá o
principal entre os orixás. Outras autoridades, entretanto, afirmam ser Obatalá a mais importante. Abimbola
afirma que, sendo impossível definir com certeza a ordem de senioridade, podemos considerar Ifá como um
dos mais importantes orixás (ABIMBOLA, 1997). Graças a sua grande sabedoria, conhecimento e poder de
compreensão, esse orixá coordena o trabalho de todos os demais. Um de seus oríkì a ele se refere como
homem de baixa estatura cujo modo de viver é pleno em sabedoria. Intermediário,
171
portanto, entre o Orun e o aiye, palavra para os outros orixás e ancestrais, ele é o corpo mediador das
relações entre todos os entes.
Algumas narrativas dizem que quando Orunmilá veio com os outros orixás para criarem a terra
chegaram à cidade de Ifé, considerada o ponto de origem de toda a humanidade. Viveram inicialmente em
Oke Igeti, sendo por isso que um de seus oríkì se refere a ele como okunrin kukuru Oke Igeti – homem de
baixa estatura do Monte Igeti. Sua principal função dentro das dinâmicas de experiência do mundo para os
iorubás é, por sua sabedoria, o guia para uma reflexão sobre a existência e os modos para que se
multiplique a vida em todas as suas dimensões positivas, por conseguinte, os modos para que se evite as
dimensões negativas. Ele é o grande guia para se viver uma vida equilibrada, moderada e em harmonia, por
isso é também conhecido como (testemunha, defensor do destino humano, presencia o
nascimento de todos os seres humanos e testemunha o momento em cada experiência da realidade concreta
é determinada). Para os iorubás, portanto, somente ele, conhecedor do ipin-orí (destino do orí), conhece o
suficiente para aconselhar 127.
Em outra narrativa, Orunmilá, após um longo período em Ifé, viajou para Ado e ali passou a maior
parte de seu tempo no aiye, por isso se diz Adon’ile Ifá (Ado é o lar de Ifá). Ele transmitiu aos seus oito
filhos e a um grupo de discípulos os ensinamentos e as formas de manipulação do sistema de Ifá. Abimbola
menciona que “após ter sido chamado sucessivas vezes por Olodumare para resolver problemas no aiye, Ifá
foi um dia insultado por um dos filhos e resolveu retornar definitivamente ao orun. De sua retirada decorreu
grande confusão: fome e peste fizeram-se acompanhar de esterilidade” (ABIMBOLA, 1997, p. 43). Depois de
algum tempo, os moradores do aiye enviaram os oito filhos de Orunmilá ao Orun para que lhe pedissem
para retornar. Ele recusou a voltar, mas entregou a cada filho dezesseis ikin128e disse (ABIMBOLA, 1997, p.
44):
127
Se compreendermos que pedagogia iorubá é a preocupação com as formas de transmissão dos saberes acumulados e, ao
mesmo tempo, com as formas de atualizar os saberes, transformando-os sempre no presente, temos que ao refletirmos sobre o
desenvolvimento dessa pedagogia como um todo, o sistema de Ifá é o grande referencial dessas dinâmicas. Desta maneira, ao
dizer que Orunmilá/Ifá é o orixá da sabedoria, dizemos que ele é a forma de transmitir, atualizar e transformar os saberes.
128
Um dos métodos de leitura de Ifá que estudaremos mais adiante.
173
Se desejarem crianças
Aqui está para quem devem perguntar
Se quiserem construir casas no aiye
Aqui está para quem devem perguntar
Se quiserem possuir roupas no aiye
Aqui está para quem devem perguntar
Todas as coisas boas que desejarem possuir no aiye
Aqui está para quem devem perguntar
Ao retornarem, os filhos começaram a usar os dezesseis ikin recebidos de Ifá e eles se tornaram o
símbolo de sua autoridade. Através dos ikin e de outros métodos de leitura de Ifá tornou-se possível a
comunicação constante com esse orixá e foi garantida a sua presença no aiye. Os pesquisadores da
sociedade iorubá têm, como principais fontes de conhecimento sobre os atributos e características de todos
os entes, os orin (cantigas), as iba (saudações), as adura (rezas) e os oríkì (formas de evocar e louvar) e já
analisamos cada uma dessas fontes no primeiro capítulo. Por isso, apresentaremos alguns enunciados orais
iorubás para melhor caracterizarmos o orixá Orunmilá.
IBA IFÁ
Os atributos de Ifá que são apresentados aqui são: saber ouvir; ele sabe trabalhar o que ouve, ou
seja, sabe discernir rapidamente a respeito do que ouviu, compreendendo o significado do que foi dito; sabe
compreender os sentimentos de quem fala; há uma importância em saudar e louvar os primórdios e ao orixá
a quem se recorre; e, por fim, refere-se à necessidade das palavras e dos desejos estarem carregados de axé
para serem eficazes.
ORIN IFÁ
Esse orin (cântiga) refere-se novamente à necessidade de ser preciso que as palavras e os desejos
estejam carregados de axé para serem eficazes. Apela, também, à qualidade que Orunmilá possui de ouvir
atentamente e, com rapidez, compreender as necessidades de seus devotos.
129
Título do rei de Oyo.
175
ORIN IFÁ
Esse orin faz referência à rapidez com que o Odù Ogbedi responde às necessidades de quem chama
por ele. A expressão “venha ver” é compreensível a partir da tradição oral iorubá segunda a qual, tendo Ifá
sido traído por Eku (Rato), Eja (Peixe), Eye (Pássaro) e Eran (Bode), estes vieram a ser seu alimento. “Venha
ver” os chama para serem apanhados e oferecidos ao orixá. Vale apena ressaltar que Edu é outra forma de
chamar Ifá.
ORIN IFÁ
Neste orin, os atributos de Ifá destacados são o fato de ser grande e generoso, o senhor da coroa
(referência à benevolência de quem tem o poder). Esse orin aponta os atributos das nozes de palma:
longevidade e prosperidade. A prosperidade está associada à longevidade, ambas são expressões de axé.
ORIN IFÁ
Os atributos apontados por esse orin são: sábio, dono da terra (prosperidade), dono da vida
(longevidade). É recomendado o respeito à Ifá: é bom ir devagar. Neste sentido, Ifá possui os meios tanto
para a prosperidade material quanto a longevidade, ícones máximos para uma vida alegre para os iorubás,
porém, o tempo de realização nem sempre será como desejamos, assim, compreenda que Ifá não deve ser
apressado em suas ações.
ORIN IFÁ
Ifá me ampare
Peço que não me abandone, porque a raiz
De uma arvore viva não a abandona
Ope me ampare
Peço que não me abandone. Porque a raiz
De uma arvore viva não a abandona
Este orin refere-se à Ifá como ancestral: a raiz de uma árvore viva não a abandona. Neste sentido, faz
referência à íntima relação entre os seres humanos e esse orixá através da metáfora da árvore e sua raiz.
178
ORIN IFÁ
Os conhecimentos da água
Os conhecimentos da água que harmoniza as coisas
O conhecimento de evocar Ifá através de Aje
Todos trabalham para a longevidade
Longevidade
No dia em que o poder real foi distribuído
Foi nesse dia que Orunmilá recebeu sua realeza e o poder real
foi entregue ao Rei de Benin
O poder real também foi entregue a Olumoda
Orunmilá com uma capacidade maior que os outros orixás
Desejou vir para o aiye
Perguntaram a razão pela qual você quis vir
Ao aiye com uma capacidade superior aos outros orixás
Você respondeu que era para ouvir mais
E melhor os problemas das pessoas
Orunmilá, eu sou seu devoto e te invoco
Orunmilá, rapidamente ouça minhas evocações e desejos
Neste último orin temos os simbolismos da água: axé para harmonizar e sacralizar. Esses
simbolismos, associados ao axé de Ifá, favorecem a longevidade. A realeza de Orunmilá lhe foi entregue nos
primórdios dos tempos. Ele, orixá hierarquicamente superior, é o mais capacitado para ouvir e compreender
os problemas das pessoas. Confiança dos devotos de Orunmilá em sua capacidade de ouvir as evocações e
compreender os desejos humanos.
Além dos atributos de Orunmilá esses enunciados falam também de valores sociais iorubás: como
o respeito aos acontecimentos do passado e às divindades que devem ser saudadas e cultuadas. Falam de
lealdade e fidelidade, da necessidade imperiosa de se buscar uma vida repleta de felicidade, definida como
ausência de azar, um lar abundante de coisas boas, com saúde e vitalidade física para todos os membros da
família, prosperidade e longevidade – expressões usadas para dizer abundância de axé.
Os enunciados transmitem ensinamentos: é preciso que as palavras e desejos estejam com axé para
serem eficazes; a noz de palma é útil para que alcancemos longevidade e prosperidade. Trazem
179
recomendações como a de cultuar Ifá para sobreviver, atingir objetivos e como também ter axé. Incluem,
ainda, instruções de ordem prática tais como a de alimentar o próprio orí com e coco, e Ifá com
Incluem referências à necessidade de fazer ebós a Exu para desobstrução dos caminhos, para
desenvolver a paciência e para ser protegido dos ataques de impaciência dos outros. A frequência com que
Exu é mencionado nos enunciados orais de Ifá somente encontra equivalências nas referências feitas ao
orixá Ossaim, embora as relações de Orunmilá com todos os orixás sejam também frequentes. Parte dos
sacrifícios oferecidos através de Ifá aos outros orixás é sempre entregue a Exu e com muita frequência
observamos a grande paciência de Orunmilá para com seu amigo. Quanto a Ossaim, como toda consulta a
Ifá implica na realização de ebó, certamente o orixá das folhas é continuamente chamado a participar.
Considerado o irmão menor de Ifá, esse orixá é auxiliar indispensável no cumprimento das orientações de
Ifá. A respeito da relação entre Ifá e Exu consultar o primeiro capítulo e para a relação entre Ifá e Ossaim, o
terceiro capítulo.
Vimos neste item algumas características gerais do orixá que dá nome ao sistema de conhecimento
dos iorubás. Discorreremos agora sobre a sociedade dos babalaôs (grupo que tem como objetivo a
preservação e transmissão de todas as dimensões do culto a Orunmilá, tanto as características práticas
quanto as relações de senioridade e, sobretudo, as linhas interpretativas dos enunciados orais), o processo
de iniciação e uma leitura sobre igba odù.
vida no aiye. Suas possibilidades de ação sobre as forças naturais dependem de seu conhecimento da
natureza e da palavra130.
O processo de desenvolvimento de seus conhecimentos ocorre no interior de um grupo que
obedece a uma hierarquia rígida. Aprendizes de Ifá, , submetidos à autoridade dos mais
experientes, particularmente à de seus mestres, tornam-se, gradualmente, depositários dos segredos que
envolvem a atividade a desempenhar. De modo análogo ao que ocorre em outros processos iniciáticos,
espera-se que a humildade e devoção sejam ilimitadas. No longo aprendizado, durante o qual paciência e
perseverança são ingredientes indispensáveis, eles devem se sujeitar a sucessivos atos iniciáticos. Assim,
através de esforço contínuo e incansável e tendo como exemplo a conduta dos mais velhos, os
aprendizes, pouco a pouco, vão assumindo mais e maiores responsabilidades. O domínio
gradual e contínuo da oralidade, fundamental para a sua prática, neles fomenta o respeito
crescente pela palavra, cujo uso vai sendo diariamente aperfeiçoado. Atentos à sua forma e poder
intrínseco, desenvolvem capacidade comunicativa, essencial ao bom desempenho de suas
funções sociais (SALAMI, 1999, p. 119).
130
Sobre a palavra conferir as discussões propostas no primeiro capítulo desta dissertação.
181
Enfatizamos que o fato de ocupar postos inferiores na hierarquia não constitui motivo de vergonha
nem estabelece condição humilhante já que, nessa sociedade, todos têm sua importância reconhecida sejam
quais forem as funções que exercem. A diferença entre as pessoas é entendida como determinada pela
otimização da força vital disponível, seu axé, advindo de herança natural, ancestral e social, a qual é sujeita
a aumentos ou reduções, de acordo com o esforço pessoal de cada um. Desse mesmo empenho decorrerá o
bom conjunto de experiências e o acúmulo de conhecimentos necessários ao próprio bem estar e ao
desenvolvimento da comunidade.
Mesmo não sendo vergonhoso ou humilhante ocupar postos inferiores na hierarquia, é aspiração
de todos virem a ocupar altos cargos. Por ocasião da necessidade de escolha de um sucessor para o oluwo
e para os balogun, o primeiro procedimento é a consulta ao sistema de Ifá da qual decorre uma lista de
nomes de sucessores possíveis. Aqueles cujos nomes integram a lista deverão reunir-se para demonstrar
conhecimentos e habilidades. Encabeçará a lista aquele que demonstrar maior potencial da memória, mais
conhecimentos e axé de ação sobre os elementos naturais (ABÍMBÓLÁ, 2005).
Talvez seja desnecessário insistir na importância da para a manutenção e
reprodução da ordem social iorubá, pois, neste sentido, ela é
responsável principal pela guarda e interpretação do passado, pela preservação e/ou
reformulação de princípios da organização social, pela reprodução e impregnação de sentidos e
valores ancestrais às atividades cotidianas, a essa organização compete, mais que qualquer outro
complexo iorubá, a tarefa de reconhecer, conduzir e repor caminhos, estruturando, assim, o devir
social (SALAMI, 1999, p. 121).
Essa sociedade oferece, pois, proteção à comunidade, buscando entre seus membros, e fora deles,
meios para uma vida melhor. É importante repetir que o conjunto de conhecimentos iorubás está organizado
em sua oralidade que irrompe em múltiplas formas de articular a palavra, o som e o corpo. Todo esse
conjunto é produzido na experiência de mundo também legitimado, preservado e transmitido pelo conjunto
de memórias individuais e coletivas que estão presentes em todas as atividades de uma comunidade iorubá.
Essas memórias, reconhecidas como a ancestralidade iorubá, são as determinantes e as determinadoras das
possíveis experiências do presente. E, por conseguinte, é no presente que o conjunto dos saberes da
tradição iorubá é atualizado e adicionado à ancestralidade coletiva. Os saberes e as formas de produzi-los
bem como o exercício prático desses mesmos saberes nas experiências do mundo, sempre no presente,
produzem o que podemos chamar de tradição oral iorubá. Tal tradição é sempre o encontro da
ancestralidade com a vida presente.
182
(a) Construção de templos comunitários, onde permaneça o aparato de assentamento de Ifá da cidade,
para solução de problemas de ordem social, alguns dos quais, de competência exclusiva dos babalaôs. À
pedido do Obá (rei), o oluwo-Ifá, junto com outros babalaôs notáveis, consultará Ifá e outros orixás, nesses
templos, em busca de conselho e orientação;
(b) Realização de jogo para confirmar se determinado notável deve ou não assumir certas posições
sociais;
(c) Troca de informações sobre o sistema de Ifá; e
(d) Realização de festas anuais em homenagem a Ifá, visando favorecer o bem-estar da comunidade.
INICIAÇÃO EM IFÁ
O processo de iniciação em Ifá difere bastante dos processos de iniciação em outros orixás. Uma de
suas características é que, na iniciação de Ifá, as evocações, cantigas, saudações, acompanhadas do som
dos tambores, não induzem ao transe nem à incorporação. Apontamos que muitas pessoas consultam Ifá
sem que isso implique num compromisso com os aspectos espirituais que envolvem o processo. O mesmo
vale para a iniciação: não é pequeno o número de pessoas que pedem para ser iniciadas e o são, sem
contudo abandonar suas crenças religiosas e as práticas a elas associadas. Buscando conhecer o odù que
rege seu destino para dele extrair conhecimentos indispensáveis à criação de condições propiciadoras de
183
bem-estar, cada consulente poderá obter, durante a iniciação, conhecimentos sobre o que lhe é favorável ou
desfavorável. O conhecimento de seus ewo, interdições (alimentares, de conduta e outras), lhe permitirá
discernir a respeito do que deve ou não comer, de que modo deve ou não agir, para que possa, ao evitar
"descompensações" de axé por incompatibilidades naturais, favorecer o fluxo do próprio destino. Além
disso, através da iniciação tornam-se mais capazes de utilizar o axé do próprio orí para superar dificuldades.
O processo total de iniciação inclui atos secretos 131, de conhecimento privativo dos babalaôs e dos
iniciados que possuam Igba-odù132. Assim sendo, descrevemos no presente contexto, apenas as
informações que são possíveis de serem compartilhadas pelos não-iniciados. A iniciação que descrevemos
abaixo foi acompanhada durante a visita do autor ao babalaô Barami Agbonmiregun da cidade de Ouidah,
Benin, entre os meses de junho de julho de 2012.
A primeira fase da iniciação denomina-se igbadù (igba odù), a floresta do odù. O espaço físico para
sua realização é um quarto da casa do babalaô ou uma mata que foi encantada na região em que ele mora. A
entrada, seja do quarto ou do lugar da mata onde a iniciação será realizada, é revestida de mariwo, roupa
usada por Orunmilá. Ao mariwo, palmas de dendezeiro, também se associam os frutos do dendezeiro, os
ikin, símbolos de Ifá.
O babalaô, ao preparar o igbadù para receber os aspirantes à iniciação, grava sobre o oko, tábua
comprida, porém estreita (cerca de um metro e meio por trinta centímetros), os dezesseis odù principais. O
odù Osetura, considerado a energia regente do trabalho, será o responsável pela condução do ebó. A
gravação dos dezesseis odù obedece a uma determinada sequência, iniciando com o odù Eji-Ogbe e
terminando com o Ose Otura. Concluída a gravação, o babalaô distribui sobre o oko os ikin que farão parte
do assentamento dos iniciandos. Sempre ao som das cantigas vai colocando sobre o oko: obi, orogbo,
atare, inhame assado, bagre, preá e, por cima de tudo, o sangue sacrificial. Como a iniciação pode ser
realizada individual ou coletivamente, o número de ikin colocados sobre o oko é multiplicado pelo número
de iniciados. Iniciações coletivas incluem fases de trabalho individual. Após esse momento, ocorrem
algumas ações secretas.
Logo depois, são alimentados Igba-Odù e os ikin, e, em seguida, novas ações secretas. Cabem,
aqui, duas observações. A primeira, referente aos "segredos": ações secretas são transmitidas gradualmente
ao(s) aspirante(s), desde que satisfeitas às condições para isso. Os segredos vão sendo gradualmente
131
Tudo que considerarmos como segredo ao longo do texto deve ser entendido como reservado exclusivamente aos já iniciados
no culto a que referimos ou até mesmo reservado apenas para os ocupantes de determinados níveis na hierarquia desse mesmo
culto.
132
Analisaremos o Igba-Odù mais adiante.
184
conhecidos pelos awo (detentores do segredo). Assim, o que constitui mistério para os ogberi (leigos, não-
iniciados), faz parte dos conhecimentos dos awo. A outra observação diz respeito ao sangue dos sacrifícios.
É importante lembrarmos que Ifá só aceita o sacrifício de fêmeas de animais. Exceção a essa exigência só é
feita por recomendação de determinados odù. Antes de apurado o odù do iniciando, jamais se sacrificam
machos de animais.
Estando preparado o oko e alimentados Igba-odù e ikin, o iniciando é conduzido até osu, o bastão
sagrado. Ali, o babalaô evoca Orunmilá, o axé das Iyami e o axés masculino e feminino dos Ancestrais. Pede
que a morte, a doença e o fracasso não mais acompanhem a vida desse iniciando. Pede que seja
neutralizada a força de Aje133 e Oso134. Deposita então em Osu, para que sejam neutralizados, todos os
"detritos" produzidos até esse momento da Iniciação (resultantes do preparo do oko etc). Nessa fase do
processo, participantes podem acompanhar o iniciando até as proximidades de Osu, porém apenas o
babalaô pode interpor-se entre aqueles e o iniciando, devido às fortes cargas negativas aí presentes. O
processo é acompanhado de cantigas como a apresentada em seguida para exemplo:
Uma vez despejados os "detritos", o oko é lavado - o sangue, o dendê e os sinais ali gravados são
retirados. A cantiga que acompanha esse procedimento refere-se ao fato de estarem sendo retirados -
analogicamente - os problemas da vida do iniciando. Depois de lavado, o oko é levado de volta ao igbadù.
Agora são lavados os ikin para serem colocados no awo Ifá, recipiente cuja forma varia.
Chega então o momento em que é realizada a consulta a Ifá para que, uma vez apurado o odù de
nascimento, possa o iniciado receber as instruções correspondentes. O babalaô o recita, acompanhado dos
aprendizes. As instruções recebidas incluem recomendações sobre o animal a ser sacrificado para Ifá, o(s)
orixá(s) em cujo culto o iniciando em Ifá deverá ser iniciado também, os símbolos que deverão ser adotados
- utilizar um facão atrás da porta da frente de casa, colocar anzóis no assentamento, colocar um em
133
Feiticeiras.
134
Feiticeiros.
185
casa, colocar um preá na parte da frente e um peixe na parte de trás da casa (nos casos de Àbíkú,
particularmente), entre outros símbolos. Concluída a consulta, o iniciando vai repousar e o processo é
retomado na manhã seguinte.
Amanhecido o novo dia, o iniciando é banhado, são entoadas cantigas cujo conteúdo enfatiza, entre
outros conselhos, que se respeitem as interdições (ewo) e se permaneça consciente a respeito dos limites
do próprio poder: não se deve perseguir o que não se pode dominar. Retomando desse primeiro contato
com o osu, o babalaô embrulha o oko numa esteira, permanecendo nesse momento os iniciandos de costas,
para que os acontecimentos nefastos e as forças indesejáveis fiquem para trás. O babalaô entoa uma cantiga
ordenando que o indesejável fique para trás e se torne passado. O oko permanece no centro do quarto e os
iniciandos postam-se em frente a ele, em pé, um ao lado do outro. Cada um, por sua vez, dirige-se para
junto do oko e, circundando-o, caminham à sua volta - as mulheres dão sete voltas e os homens nove.
Depois, aproximam-se dele e então, o babalaô bate suavemente com os ikin na cabeça de cada um. Depois
de retirados os ikin e demais itens (alimentos ofertados) de cima do oko, ele é carregado pelo grupo de
iniciandos apoiado sobre suas cabeças. Enquanto o carregam, entoam uma cantiga. Há variações regionais.
Em Abeokuta, registramos a seguinte cantiga de iniciação entoada pelo Babalaô Fabunmi Sowunmi que fala
a respeito da necessidade de receber proteção de Ifá, através da iniciação, para alcançar vida longa:
Tendo descrito o processo iniciático e considerando a importância das relações entre Ifá e Odù para
uma melhor compreensão do imaginário conceitual iorubá presentes em Ifá, apresentamos, a seguir,
informações relativas à Igba-Odù.
186
IGBA-ODÙ
Mencionamos anteriormente que além da iniciação o aprendiz deve passar pelo ritual de Igba-Odù
para adquirir o elemento indispensável ao procedimento de iniciação de outras pessoas - condições de
olhar para o símbolo de Igba-Odù sem perder a visão nem o equilíbrio mental. Desse ritual complexo e
secreto somente podem participar pessoas já submetidas ao mesmo processo. O babalaô vai à feira e
compra os elementos necessários para o preparo de uma mistura com a qual lavará o rosto e a cabeça para
proteger-se, pois é muito intensa a força que invocará. Todos os elementos moídos sobre uma pedra, cada
um separado dos demais e posteriormente associados, resultam em uma mistura que somente pode ser
vista por pessoas que já possuam assentamento de Igba-Odù.
Da obra de Abosede Emanuel (2000) recortamos informações que, no presente contexto, podem ser
úteis. Etimologicamente, Igba-Odù significa cabaça do odù e designa aquele que possui todos os Ifá. O
orixá é simbolizado por uma ou várias cabaças contendo objetos sagrados. Os nomes Igba-Odù ou odù,
raramente pronunciados, referem-se aos espíritos dos babalaôs, visto que eles a representam (EMANUEL,
2000, p. 102).
Os nomes em honra a Igba-Odù são numerosos: Odulogboje - aquela cujo pote é feito de chumbo e
não de madeira, Ajerereabojuojo - aquela cujos olhos estão voltados para todas as direções, Adakinikinikara
- juíza suprema, que distingue o bem e o mal e que sanciona, Alaburaja - a sanguinária, que ama o sangue e
dele se alimenta, Okalekotogowo - a que dá vida e cobra, em seguida, com a vida dos dependentes; a que
tira aquilo que quer de acordo com sua vontade, Iya-agba - velha anciã, Igba-iwa - cabaça da existência.
Os nomes de algumas pessoas fazem referência a Igba-Odù: Odù-so - criança cujo nascimento foi
anunciado por um signo de Igba-Odù; Odùbiyi - filho de Odù, nome dado a crianças nascidas com seis
dedos na mão ou no pé.
Igba-Odù, considerada um dos orixás mais temíveis, é esposa de Ifá, seu maior segredo e ninguém
poderá apreender totalmente seu sentido. Misteriosa e de poder comparável ao das Iyami que inspiram
medo. Para assentar Igba-Odù em casa, a pessoa tem que ser bastante forte e, ao fazê-lo, recebe um axé
sólido de defesa contra ataques de toda ordem. Ela é “representada por uma cabaça grande que contém
quatro menores repletas de objetos, muitos dos quais de alto custo, representa o misterioso: Odù-wa lan pe
l’odù! - Odù que não conhecemos, salva- nos! Símbolo do céu e da terra em sua união fecunda, é detentora
187
suprema do conhecimento de Ifá” (SALAMI, 1999, p. 137). Seu culto prescinde de danças, cantos especiais
ou tambores. Os sacerdotes se ajoelham diante de seus símbolos, prostram-se na terra à sua frente,
estendendo-se sobre o chão de barriga para baixo e pedem algo de bom para suas vidas. Outras vezes,
limitam-se a entoar iba, adura, oríkì e orin, onde reverenciam seus nomes honoríficos intercalados com
elogios. Nunca se deve pedir o mal a Igba-Odù, pois este retomará ao agressor.
Maupoil (1988) ouviu de um babalaô que Igba-Odù é o orixá dos babalaôs. Os objetos
representantes dos reinos mineral, vegetal e animal utilizados para o preparo de seu assentamento são
colocados em quatro cabaças, cada uma com um dos quatro primeiros Odù (
), simbolizando cada qual um dos quatro pontos cardeais (MAUPOIL, 1988)
De nossa parte, fomos informados que em cada um desses recipientes é colocado um dos
seguintes elementos: efun (branco), carvão (preto), osun (vermelho) e terra. A mistura desses elementos é
potencializada pela ação de um preparado de encantamentos, feito com vários elementos, cuja fórmula é de
conhecimento exclusivo dos sacerdotes.
Uma descrição feita por outro babalaô a Maupoil (1988) relata que o assentamento completo de
Igba-Odù compreende uma cabaça grande, recipiente principal, circundada de 15 pequenas (de Ossaim),
perfazendo um total de dezesseis objetos. O conjunto todo é chamado de cabaça de Odù: Igba-Odù. As
cabaças menores diferem entre si e cada qual, com conteúdo específico, representa um servidor da principal
que permanece entre as secundárias como uma mãe entre os filhos. Da composição de elementos nas várias
cabaças somente os grandes iniciados conhecem o segredo. Igba nlá, a grande cabaça, simboliza a união do
Orun com Aiye, não sendo permitido, sob qualquer pretexto, erguer sua tampa (MAUPOIL, 1988, p. 465).
As quinze cabaças que contornam a principal são: (1) adesi - fêmea (a palavra adesi sugere a ideia
de ir procurar e retomar); (2) alesesi - macho; (3) alaola - fêmea (ala-wo-ola sugere a noção de curiosidade
indiscreta e corresponde ao signo feminino Òdi-Méjì); (4) Akale - aquele que guarda a casa contra os
inimigos de fora; (5) Baba-aja - pai de todos os encantamentos malignos; (6) Paya - aquele que mata as
mulheres culpadas (correspondente a Obàrà Méjì); (7) Iya- agba - mãe de todas as pessoas que moram na
casa onde está o assentamento; (8) amplo conjunto de enunciados que compõem esse magnífico corpo
literário onde o mítico e o histórico coexistem e vão sendo entregues, em suas vestimentas metafóricas,
poéticas, às novas gerações (IDOWU, 1962). Permeando todo o conjunto está a sabedoria iorubá, com seus
agentes veiculadores - babalaôs e sistemas iniciáticos - tendo como detentor integral Orunmilá, orixá
funfun, divindade primordial, oráculo de homens e deuses, de insetos e folhas, aves e peixes, mamíferos e
répteis, todos eles e todos nós em contínuo desenvolvimento.
188
Dando continuidade a apresentação dos dezesseis principais odù do sistema de Ifá, analisaremos
agora mais três odù: e
ODÙ
Esse odù representa a imagem da virilidade. Associado a Ògún: aquele que abre o caminho,
compulsivo e orgulhoso. Faz referência à necessidade de algum tipo de proteção. Essa proteção está
relacionada com a necessidade de sobreviver em vez de se tornar o ebó para a sobrevivência de outra
pessoa. A inscrição gráfica desse odù é:
I I
I I
I I
II II
ÌWÀ ODÙ
As principais características desse odù são: coragem, vitória. Qualquer realização pretendida
dependerá exclusivamente do Orí. Ele está relacionado, principalmente, a Ògún. Seu símbolo é o ferro,
representando a coragem.
ÒJÒNTARÌGÌ
A esposa de Ikú (ABIMBOLA, 1977, p. 100-102).
O segundo narra a história do jogo de Ifá que foi realizado para a Arma e como após o ebó ela
matou todos os seus inimigos. Em inúmeros como dito anteriormente, animais, fenômenos da
natureza, objetos e lugares são relatados como seres humanos, são os protagonistas do desenvolvimento da
história. Neste caso, temos a Arma como protagonista que realiza um ebó para poder vencer todos os seus
inimigos.
É a boca pela qual a Arma fala que ela conquista seus inimigos (ABIMBOLA, 1977, p. 104 - 106).
Esse odù está associado aos mistérios e poderes do feminino. A sua imagem é as sociedades
secretas das mulheres e, neste sentido, é profundamente associado às ajés (“feiticeiras”). Por esse odù, seu
melhor amigo pode se tornar o pior dos inimigos. No entanto, também aponta para muitos filhos e filhas, e
muita riqueza. A inscrição gráfica desse odù é:
II II
I I
I I
I I
ÌWÀ ODÙ
As principais características desse odù são: riqueza, Ódú púpà, hipocrisia e prosperidade. Ação das
Ajés. Falsidade. Está relacionado a e as Ajés. Denota um grande número de filhos e filhas, também
muitas riquezas.
O primeiro narra a história de quando a Orunmilá foi jogado Ifá e lhe disseram que uma mesma
doença do ano passado estava voltando. O conflito se dá entre a eminência da morte e a transformação da
realidade pelo axé para que a morte não vença. Encontramos referência a um provérbio iorubá que diz que o
redemoinho, em sua briga, não leva o pilão, significando que aquele que leva todas as coisas não levará
aquele que consegue vencer o desafio de enganar a morte.
193
O segundo narra a história do jogo de Ifá que foi realizado para Òge, orixá das mulheres
estéreis, quando perguntou a Ifá se poderia ter filhos. Ela realizou o ebó prescrito e abençoou a seus filhos e
filhas.
135
Pote de cabaça ou de concha de coco no qual unguento de madeira é guardado.
194
Esse odù está associado à proteção já que muitas situações irão surgir repentinamente. Há a ideia
de se perder oportunidades, “as coisas escapam pelos dedos”. Denota que para se ganhar uma guerra,
algumas batalhas são perdidas. A inscrição gráfica desse odù é:
II II
I I
II II
II II
136
Orixá cultuado por mulheres estéreis.
137
Nome do local que se acredita ser a origem de Òge.
195
ÌWÀ ODÙ
O primeiro narra a história de quando o jogo de Ifá foi jogado para Yindinyindin que estava
preocupada, pois não tinha nenhuma criança. Yindinyindin é uma casa de formigas fortemente construída
com terra. Todas as jovens formigas que ainda não estão completamente desenvolvidas vivem nesta casa até
se tornarem maduras e saírem para a superfície. Em apenas uma casa de formiga há milhares de ovos e
jovens formigas. As formigas jovens são brancas na cor e, assim, lembram larvas.
YINDINYINDIN
Yindinyindin, a mãe de incontáveis crianças (ABIMBOLA, 1977, p. 114).
O segundo narra a história do jogo de Ifá que foi realizado para Okó, a canoa, para que ela
chegasse a Olueri, orixá que controla e vive nas profundezas dos rios.
196
Neste item, analisamos a constituição ontológica dos sacerdotes de Ifá, relacionando, para isso, as
suas relações com os entes do aiye e com os entes do orun. Os babalaôs, enquanto portadores dos saberes
de Ifá, são responsáveis pela transmissão e dinamicidade dos elementos de Ifá. A partir dos elementos já
apresentados, segue, no próximo item, o primeiro exemplo de uma leitura completa de Ifá.
197
A DÍÁ FÚN - I
Discutimos até agora as estruturas gerais do sistema de Ifá: seus “versos”, Orunmilá, os métodos
do jogo, os Odù e algumas técnicas de interpretação. Com base nisso, apresentamos um primeiro exemplo
de leitura que foi realizada no ano de 2013 durante o Festival Anual Agbonniregun quando do dia primeiro
de junho no Templo Orunmilá (Orunmilá Temple), Oke Itase, Ilê-Ifé, Nigéria138. A leitura faz referência ao ano
de 2013/2014 que para os iorubás teve início em junho.
O festival anual de Ifá139 é um período em que as pessoas normalmente procuram mostrar gratidão a
Ifá e por todas as coisas que por ele foram possibilitadas. A despeito do festival que cada sacerdote de Ifá
deve realizar a cada ano, há um festival coletivo anual o qual é uma ocasião de alegria e agradecimento. Um
momento em que as pessoas saem e dão o que possuem de melhor para Ifá, um momento de comunhão
entre os orixás e seus sacerdotes, como também um momento para uma especial renovação de
compromissos coletivos e individuais (IDOWU, 1962, p. 109). Em algumas cidades como, por exemplo, nas
terras Egba140, de 16 a 20 de agosto de todos os anos é celebrado pelos seus sacerdotes o festival anual de
138
Todos os “versos” de Ifá que são citados e alguns comentários foram recolhidos pelo autor quando de sua estadia na Nigéria
entre 2012 e 2013. Esta leitura é referencial para todos os babalaôs uma vez que os babalaôs de Ilê-Ifé são considerados, segundo
a tradição oral, como um padrão interpretativo de Ifá. O festival dura sete dias que envolvem inúmeros ebós para os orixás, ebós
para os assentamentos de Ifá, ao Igba Odù comunitário e para a árvore que produz o ikin. Nesta época do ano Egbe Oxum
alimenta os tabuleiros de divinação. Durante o festival o corpo de Ifá inteiro é recitado. Isto normalmente leva quatro dias de sol-
a-sol.
139
Diferentemente do que a literatura sobre religiões afro-brasileiras consolidou quando da compreensão das celebrações aos
orixás em um único momento, o xirê, as celebrações em contexto tradicional iorubá são realizadas em festivais dedicados a orixás
específicos e que duram dias. Os festivais, assim como no processo de preparação para o xirê em contexto brasileiro, são
constituídos por um conjunto de ações que atualizam na palavra, no som e na música a memória ancestral da comunidade para
produzir, primeiramente, axé – elemento que possibilitará a realização de qualquer ação –; em segundo lugar, atualizar, sobretudo
nos corpos que dançam e os cedem aos seus próprios orixás, o conhecimento, fruto da experiência de toda a comunidade, que é
revivido no presente enquanto um saber possível para a realidade coletiva e individual do grupo; e, por fim, é uma celebração de
todas as possíveis realidades do Orun e aiye: a natureza e todos os entes que a habitam (nos ebós, nos banhos, nos enfeites nas
vestimentas e na rica culinária iorubá), os elementos minerais (nas vestimentas, nos assentamentos, nos utensílios de cozinha e
de rituais, nos enfeites dos cabelos, nas pinturas dos corpos), os entes humanos (das pessoas mais novas às mais velhas) e os
entes não-humanos (todos os orixás, Exu, Ifá, Iyami, Egúngún, Ancestrais etc.). Os festivais, neste sentido, são sempre uma
celebração de toda a comunidade como a totalidade de seus conhecimentos ainda que na celebração de apenas um orixá.
140
Todos os exemplos são dos lugares visitados pelo autor, não possuindo, portanto, nenhuma tentativa de homogeneizar a
compreensão sobre Ifá. Por esta razão, todas as informações são apresentadas com o seu respectivo local de ocorrência,
indicando, assim, o modo que foi observado em uma determinada forma de se realizar a ação descrita. É claro que tanto na
literatura quanto na prática encontraremos diferenças entre as ações em diferentes localidades de ocorrência, no entanto, elas não
198
Ifá. Isso ocorre, pois acontece no mesmo período que marca a chegada da nova mandioca (SOBOLA, 1988,
p. 19). Antes do festival, todos os sacerdotes de Ifá se encontram para consultar Ifá e descobrirem quais
materiais serão utilizados nos ebós durante o festival. Os sacerdotes, em alguns casos compram o mesmo
tipo de roupa tanto para eles mesmos quanto para suas esposas.
Os aspectos comuns dos festivais são: (a) Iwe Ifá (lavagem dos emblemas de Ifá – braceletes,
colares de contas/miçangas, búzios, sementes de palma, rabo de vaca etc.); (b) o ebó anual para Ifá e; (c) a
colheita da nova mandioca com comida, bebidas e divertimentos. Cantigas especiais, encantamentos e
tambores acompanham cada momento ou estágio dos sacrifícios e rituais. Orìkí são entoados e sacrifícios
são oferecidos para afastar a morte prematura e para possibilitar um ano de prosperidade, proteção e
equilíbrio.
O festival de Ifá, geralmente, atrai também pessoas de outros lugares, comerciantes ganham
dinheiro vendendo comida e materiais para os ebós (cabras, pombas, carneiros etc.) e uma má sorte é
transformada em boa sorte pelos rituais. Se a cidade estiver passando por problemas externos, Ifá lhes dirá
o que fazer para resolver essas questões desde que contribua para a estabilidade política local. O período do
festival é usado para “limpar a terra” da má sorte e trazer melhorias para as atividades da cidade. Ele
possibilita que tocadores (músicos) desenvolvam e demonstrem seus talentos, enquanto realizam suas
performances durante o festival.
Durante o festival de Ifá que ocorre em Ilê-Ifé no templo Orunmilá (Orunmila Temple) em junho de
todos os anos, é realizado um jogo de Ifá pelos sacerdotes locais para o próximo ano já que, como
mencionado anteriormente, os iorubás iniciam os anos em junho. Esse jogo é acompanhado por muitos
outros sacerdotes iorubás e por sacerdotes da diáspora. É em Ilê-Ifé que está localizado o principal templo
de Orunmilá-Ifá entre os iorubás e, por extensão, para todos os sacerdotes de Ifá em diáspora. Dentro da
hierarquia da ancestralidade entre os sacerdotes de Ifá, os sacerdotes de Ilê-Ifé são os mais velhos e,
portanto, embora cada região possa realizar o seu próprio jogo para o novo ano, como fazem, a leitura de
Ilê-Ifé é sempre reverenciada e respeitada por todos os sacerdotes.
divergem em relação às compreensões gerais que envolvem axé, orixás, ancestrais, Ifá, Exu, Iyami, Egúngún etc., que são
justamente os elementos que estamos discutindo ao longo da dissertação.
199
Apresentamos o jogo realizado para o ano de 2013/2014 cuja duração foi de aproximadamente sete
horas. À vista disso, a nossa versão141 é uma síntese que nos auxiliará na compreensão dos elementos já
discutidos sobre o imaginário conceitual de Ifá. Dividimos em quatro partes a leitura do jogo: a primeira
apresenta o odù que caiu no jogo, sua representação gráfica e indicações gerais de suas principais
características; a segunda apresenta as dez principais interpretações que foram realizadas pelos babalaôs
que conduziram a realização do jogo e, para isso, são destacados trechos que foram entoados na ocasião; a
terceira apresenta os orixás que falam neste odù e as suas característas para o odù; e, finalizando, a quarta
apresenta a relação dos tabus que devem ser observados.
ODÙ
O odú que foi revelado no jogo foi Oturupon Isokun (Oturupon Irosun). Esse odù ocupa a 138ª
posição na ordem de senioridade, sendo 1º o mais velho e o 256º o mais novo. A sua representação gráfica
é:
I II
I II
II I
II II
Por esse odù, Ifá revela ire Aikú142 para todos os devotos. Ebó Riru143 manifestará após sua
realização o iré previsto por Ifá. Aos nascidos por este odù, bem como a todas as outras pessoas, devem
141
Nossa versão está baseada nos registros obtidos pelo pesquisador durante o festival bem como a publicação oficial da leitura
no site do Templo Orunmilá (Orunmila Temple).
142
Como dito anteriormente, antes de qualquer jogo devemos perguntar se Ifá falará positivamente (iré) ou negativamente
(osogbo). Isso deve ser entendido no sentido de o bem que Ifá irá realizar-se facilmente (se é iré) ou com dificuldades (se é
osogbo). Iré significa “estar bem”, “estar em equilíbrio”. Há vários tipos de iré: Iré elese aikú (equilíbrio/bem da parte dos
ancestrais e na saúde), Iré elese otonoguá (equilíbrio/bem do Orun), Iré elese orisa (equilíbrio/bem da parte dos orixás), Iré elese
allé (equilíbrio/bem no Àiyé), Iré elese lowo (equilíbrio/bem pelas próprias mãos), Iré elese omó (equlibrio/bem para sua criança),
Iré elese eledá (equlibrio/bem para seu orí), Iré elese eriloco (equilíbrio/bem assentando em seu orí), Iré elese ocuní
(equilíbrio/bem pelas mãos de um homem), Iré elese obbin (equilíbrio/bem pelas mãos de uma mulher), Iré elese eggun
200
oferecer durante ebó com duas galinhas e dinheiro. Eles também precisam alimentar Ifá com cabra e
convidar muitas pessoas para comemorar com eles.
PRINCIPAIS INTERPRETAÇÕES
A primeira interpretação aponta que Ifá diz que esta cerimônia anual possibilitará progresso,
sucesso, realização e bem-estar geral para todos os devotos de Ifá/Orixá durante este ano. Haverá a
necessidade de celebrarmos o nosso sucesso e nossas conquistas durante o ano. Ifá aconselha que cada
templo, comunidade, grupo ou indivíduo ofereça ebó com quatro pombos, quatro aves e dinheiro. Eles
também precisam celebrar a cerimônia, para aqueles que não o fazem, de Ìbéjì neste ano. Por isso, Ifá diz:
(equilíbrio/bem por um ancestral), Iré elese owó (equilíbrio/bem por dinheiro), Iré elese abbure (equilíbrio/bem por um irmão ou
irmã), Iré elese ará okó (equilíbrio/bem pelo campo), Iré elese ará onú (equilíbrio/bem pelo Orun), Iré elese osinsé (equilíbrio/bem
pelo seu trabalho), Iré elese irewe (equilíbrio/bem por um jogo de sorte), Iré elese arubbo (equilíbrio/bem por um ancião), Iré
elese otá (equilíbrio/bem por uma pedra) e Iré de wantolokun (equilíbrio/bem pelo mar).
143
Ebo riru é importante sacrifício para conferir axé para a vida de qualquer pessoa. A sua execução é bastante complexa e
somente awo ou babalaôs muito experientes o realizam.
144
Nome obscuro de um babalaô.
145
Nome de uma cidade iorubá.
201
A segunda interpretação aponta que Ifá diz que seremos abençoados com iré em casa e fora das
localidades onde moramos. Ifá nos garante que seremos pessoas altamente respeitadas dentro e fora das
nossas localidades. Ifá nos aconselha a oferecer ebó com dois pombos, dois patos, duas aves e dinheiro.
Nós também precisamos alimentar nosso orí como recomendado pelo Ifá. Sobre este aspecto, Oturupon
Isokun diz:
A terceira interpretação aponta que Ifá diz que este odù também é muito bom para a seleção de
parceiros ou parceiras. Ifá diz que o casamento deve ter sucesso e ser muito proveitoso este ano. Aqueles
que se casam neste ano gozam de compatibilidade com seus cônjuges. Ifá aconselha aqueles que
pretendem se casar este ano oferecer ebó com quatro ratos, quatro peixes, duas galinhas e uma cabra. Dois
ratos, dois peixes e uma galinha devem ser usados para alimentar Ifá. Por isso, Ifa diz:
A quarta interpretação aponta que Ifá diz que prevê o iré de prosperidade para os devotos de
Ifá/Orisa neste ano. Eles vão ser mais ricos do que nunca. Ifá aconselha a todos os devotos a serem mais
perseverantes e dedicado às suas respectivas vocações profissionais e tudo estará bem neste ano. Ifá
aconselha a cada um de nós oferecer ebó com dois pombos, duas aves e dinheiro. Cada um de nós também
precisa alimentar Ifá com quatro ratos e quatro peixes. Há também a necessidade de se alimentar a Aje com
branco pombo, Ekuru e mel. Por isso, Ifa diz:
A quinta interpretação aponta que Ifá aconselha todos os grupos de sacerdores de Ifá/Orisa a
oferecerem ebó para que continuem a aumentar em número. Ifá diz que o número de devotos é muito
pequeno quando comparado a outros grupos espirituais. Ifá diz que é preciso fazer esforços conscientes
para aumentar o número de devotos de Ifá/Orixá este ano e, ao mesmo tempo, garantir que a qualidade da
espiritualidade não seja comprometida. Os materiais do ebó são dois carneiros adultos e dinheiro. Um dos
carneiros deverá ser usado para alimentar os ancestrais. Eles também precisam alimentar Ìbéjì como
prescrito por Ifá. Por isso, Ifá diz:
F’agada la’mi148
Um jogo de Ifá foi realizado para a cidade de Isokun
Quando eles apenas 20 em número
À ela foi aconselhado que realizasse ebó
Ela realizou
146
Jovem babalaô.
147
Nome de um dos 256 odù de Ifá.
148
Nome obscuro de um babalaô.
203
A sexta interpretação aponta que Ifá aconselha todos os grupos ou comunidades de todo o mundo a
oferecerem ebó contra várias mortes repentinas. Ifá avisa que não será uma taxa mais elevada de desastres
naturais este ano, em comparação com a do ano anterior. Há a necessidade de todos os devotos de Ifá e
Orisa participarem mais ativamente na procura de soluções para os problemas que afligem suas respectivas
comunidades.
É evidente que as presentes soluções para os problemas sociais falharam lamentavelmente. Há,
portanto, a necessidade de todos os devotos de Ifá e Orisa de trazerem soluções originais que só Ifá pode
oferecer para salvar as sociedades em que vivem. Os materiais para o ebó são dois carneiros adultoso, dois
bodes e dinheiro. Um dos bodes será usado para alimentar o orixá Ogun enquanto os dois carneiros serão
usados para alimentar o orixá Oro. Parte do segundo bode que foi usado para oferecer o ebó será usado
como Ipese149 para o orixá Obaluaiê. Assim Ifá diz:
Rogbarogba gbe150
Rogbarogba gbe
Um jogo de Ifá foi realizado para os moradores de Ikosun
Quando eles estavam morrendo no florescer
Quando eles estavam morrendo jovens
A eles foi pedido que realizassem ebó
Eles realizarem
Morte, por favor, se afaste desta cidade
Aflição se afaste desta cidade
Contenção se afaste desta cidade
Perda se afaste desta cidade
A sétima interpretação aponta que uma das causas de múltiplas mortes no próximo ano é
consequência de grandes volumes de água que inundam seus bancos. Esta é a razão pela qual as pessoas
que vivem perto de grandes extensões de água, especialmente os oceanos e as lagoas, sentirão o impacto
149
Ebó para as Iyami.
150
Nome obscuro.
204
da ameaça mais do que quaisquer outros grupos. Portanto, é do seu melhor interesse reconsiderar sua
posição e fazer planos adequados para tais contingências deste ano que se aproxima. Ifá nos aconselha a
oferecer ebó com dois bodes e dinheiro. Um dos bodes será usado para alimentar Exu Odara. Por isso, Ifá
diz:
A oitava interpretação aponta que Ifá aconselha a cada pessoa, ou grupo, que se certifique de que
um projeto seja finalizado antes de iniciar um novo. Isso é para evitar fracasso e fortuna não consumada. Os
materiais para o ebó são: três pombos, três galos e dinheiro. Ifá diz:
Agbe tigbole152
Pakiti feyin jagbon153
Um jogo de Ifá foi realizado para Akanko Exu
Quando ele foi à floresta pegar tartaruga terrestre
A ele foi pedido que realizasse ebó
Ele falhou em realiza-lo
Akanko Exu
A tartaruga que vc estava assegurado desapareceu
Você! Akanko Exu!
151
Genericamente conhecido como “complemento de ebó”.
152
Nome obscuro.
153
Expressão de difícil tradução, mas seu significado aproximado seria: “não se diz não ao que é sim, e não se diz sim ao que é
não”.
205
A nona interpretação aponta que Ifá diz que muitos devotos de Ifá/Orisa serão colocados em
posições de liderança no próximo ano. Ifá assegura-lhes que, se bem trabalhado, eles se tornaram os
favoritos de muitas pessoas para o resto da vida deles. Os materiais para o ebó são dois pombos, duas
galinas da guiné-pintadas, dois patos e dinheiro. Ifá diz:
A décima interpretação, por fim, aponta que Ifá adverte a todos os devotos que tenham muito
cuidado na forma como narram suas histórias. Embora tudo o que é narrado seja verdade, infelizmente,
essa verdade será muito ofensiva e desconfortável para muitas pessoas. Isso pode levar aos falam a verdade
acharem difícil, senão impossível, alcançarem as ambições de suas vidas. Também pode levar a uma
situação em que eles serão segregados e discriminados em sua comunidade. Os materiais para o ebó são
dois galos, duas galinhas e dinheiro. Ifá diz:
Os orixás que falam neste odù e suas características em relação ao odù são: Ifá (direção, progresso,
sucesso, apoio, vitória, conquista, contentamento, elevação e bem-estar geral), Orí (cumprir o destino, guia,
proteção, apoio, elevação, vitória, contentamento e autorealização), Exu-Odara (apoio, vitória, sucesso,
elevação e bem-estar geral), Obatala (direção, liderança, proteção, tranquilidade e sucesso), Egbe
(companheirismo, liderança, progresso e autorealização), Ogun (vitória sobre os inimigos, sucesso e
liderança) e Ibeji (sucesso, multiplicação, conquistas, segurança, progresso, gravidez e bem-estar geral).
(a) Nunca ser irreverentes em nossas declarações para evitar fortuna não consumada,
retrocesso, arrependimentos e fracasso;
(b) Nunca jurar em falso para evitar arrependimentos e dissatres;
(c) Nunca usar vestimentas vermelhas ou pretas para evitar fortuna não consumada e a ira
de Obatala;
(d) Nunca brincar com armas perigosas para evitar arrependimentos e desastres;
(e) Nunca deve consumir cobras para evitar fracasso e arrependimentos;
(f) Nunca deve trabalhar em dois projetos ao mesmo tempo para evitar fracasso e
arrependimentos em ambos;
(g) Nunca deve desejar mal a alguém para evitar que esse mal recai sobre nós.
207
Figura 44 - Jovens babalaôs praticando a leitura de Ifá. Benin, 2012 (arquivo pessoal)
Vimos nesse capítulo de que forma o corpo iorubá, ao assumir um repertório de movimentos, se
define como lugar de produção de conhecimento. Nesse sentido, discutimos a localização da produção
desse corpo e o tipo específico de corporeidade que determina tanto as formas afetivas quanto sociais do
estar-no-mundo iorubá. Ao determinar uma presença, o corpo se transforma em uma linguagem de saberes.
Apresentamos também, a ontologia dos sacerdotes de Ifá, babalaôs, através do orixá Orunmilá, da sociedade
dos babalaôs, da iniciação a Ifá e, por fim, de igba-odù. Finalizamos a discussão com a descrição de uma
leitura de Ifá. No próximo capítulo, nossa análise será sobre os elementos do mundo iorubá e como se dão
as dinâmicas das experiências desse mesmo mundo.
211
CAPÍTULO III
“The white man is very clever. He came quietly and peaceably with his religion. We were
amused at his foolishness and allowed him to stay. Now he has won our brothers, and our
clan can no longer act like one. He has put a knife on the things that held us together and we
have fallen apart.”
― Chinua Achebe, Things Fall Apart
212
213
O PAPAGAIO ADIVINHO
Um dia estavam o Papagaio, o Sol, a Lua e o Fogo conversando, contando suas façanhas, onde o
Sol, a Lua e o Fogo disseram não haver nada no mundo que lhes pudesse mudar as feições; só ao Papagaio
poderia isso acontecer, devido ele não ter cor definida, pois o encarnado que tinha em sua roupa podia ser
desbotado. O Papagaio que já estava prevenido, pois todos os dias pela manhã antes de sair fazia seus
preceitos para saber de tudo o que tinha de lhe acontecer durante o dia, foi logo dizendo:
- Não se deve fazer pouco no pouco, aposto toda a minha fortuna, como há no mundo quem faça
mudar as feições de vocês.
Aceitaram os outros, e logo que a aposta ficou legalizada com testemunhas e etc... o Papagaio
despediu-se de todos dizendo que no outro dia, quando voltasse, queria receber a aposta e voou sem
destino a procura de uma árvore para se abrigar, pois ia cair um grande temporal. Dito e feito, depois que
ele encontrou a árvore e estava abrigado, caiu o temporal com muito vento e trovoada a ponto de escurecer
todo o céu encobrindo a claridade do Sol durante o dia e da Lua durante a noite. No outro dia, depois de
sanado todo o temporal, o Papagaio apareceu todo molhado, ao Sol, ao Fogo, e à Lua, com suas penas
muito mais encarnadas, a fim de receber a aposta que ele ganhara, tornando-se o pássaro mais rico daquela
redondeza (SANTOS, 1961).
PALAVRAS INICIAIS
No primeiro capítulo discutimos a ideia da palavra e como, por ela, é formado, segundo Hampâté
Bâ, um tipo particular de homens e mulheres. A partir disso, apresentamos alguns enunciados da tradição
oral iorubá, principalmente, os que são os “versos” que compõem cada odù. Dentro da discussão
em torno da palavra, o som surge como elemento fundamental já que é parte constituinte das dinâmicas
comunicativas da oralidade. Terminamos o capítulo apresentando o orixá Exu pelas suas dinâmicas gerais e
suas dinâmicas específicas com o sistema de Ifá. No segundo capítulo discutimos a ideia de corpo para,
então, apresentarmos o corpo do babalaô, ou seja, como o babalaô, sacerdote de Ifá, estabelece sua
ontologia através da constituição de si mesmo, iniciação, e da sua participação na realidade do Orun através
214
do orixá Orunmilá. Terminamos o capítulo com a primeira leitura de um jogo de Ifá. Em nossa terceira
aproximação ao sistema de Ifá, discutimos a cosmogonia, o mundo e a experiência de mundo iorubás.
Terminamos o capítulo com a segunda leitura de um jogo de Ifá.
215
COSMOGONIA IORUBÁ
Não há nenhuma forma de totalidade entre os iorubás que não seja a do conjunto absoluto de todos
os axés que, genericamente, denominaremos de cosmos. Conhecêlo, portanto, exigiria o conhecimento de
todos os seus axés. Assim, a totalidade é entendida como a própria natureza, a comunidade e o indivíduo
(um orí individual) enquanto portadores de axé. Desta maneira, a ideia de um todo concreto não há, mas
uma ideia do todo é possível em Olòdúmarè (Olodumare), não enquanto um orixá a ser cultuado, mas como
aquele que é a origem de todos os axés. Por exemplo, quando Olodumare confere a (Obatalá) o
axé necessário para a criação do mundo (Aiye), há a legitimação do axé de Obatalá já que sua origem é o
próprio Olodumare. Por fim, mesmo quando pensamos em Ifá, a totalidade dos conhecimentos também é
em potência: ela é possível, mas depende exclusivamente dos conhecimentos do babalaô para ser
descoberta. A limitação é sempre humana enquanto o conhecimento é sempre infinito.
Em nenhuma das versões encontradas, seja no trabalho de campo seja na literatura 154, há uma
unanimidade na forma de narrar a cosmogonia iorubá. Não obstante, um conjunto de personagens é
reincidente nas diferentes narrativas encontradas, são eles: (Olodumare),
154
Na literatura etnográfica ver, por exemplo: ADEDEJI (1979), AKINTOYE (2010), ANDERSON (1991), AWOLALU (1979),
AWOLALU & DOPAMU (1979), IDOWU (1962), BEIER (1970, 1980), LUCAS (1948) e PEEL (2000).
216
OLÓDÙMARÈ (OLODUMARE)
Nos trabalhos acadêmicos pioneiros sobre estudos da religião iorubá, alinhados com a atitude geral
do colonialista europeu, há uma construção ontológica e epistemológica da concepção de Olodumare
equivocada em sua tentativa de encontrar na “religião tradicional”, epíteto do “primitivismo africano”, a
incapacidade intelectual dos iorubás em conceber a “sofisticada” ideia de deus, ou melhor, de um ser
supremo; bem como os atributos que foram designados a Olodumare que são, na maioria dos casos,
errados e enganosos já que são exatamente os mesmos atributos das religiões monoteístas, sobretudo as
cristãs e islâmicas, a respeito do ser supremo: onipotência, onipresença, onisciência, benevolência, criador
etc.
Tais escritores e pesquisadores, nativos ou ocidentais, como Idowu (1973, 1962), Mbiti (1969,
1970), Parrinder (1949, 1969) entre outros, estabeleceram pontos iniciais para futuros estudos e
discussões, mas, epistemologicamente, são cativos do lugar inferior das formas de conhecimento africanas
e, em alguns deles, o ponto de partida de uma experiência espiritual é a teísta cristã. Por exemplo, a
complexa discussão da incompatibilidade da existência de um ser supremo (deus) e a existência do mal,
não encontra respaldo entre os iorubás já que todo ser é capaz potencialmente de realizar o bem e o mal,
sendo, assim, uma problemática estrangeira que colonialmente implicou (e implica) na tradução de
Olodumare em “deus” e de Exu em “diabo”.
217
Geoffrey Parrinder, ministro metodista, foi um missionário durante quase duas décadas no Benin e
na Costa do Ouro. Em seu livro sobre a religião no oeste africano (PARRINDER, 1949), encontramos, em
uma ambivalência característica, o dilema e a confusão de um estrangeiro teólogo:
Politeístas que justificam sua adoração a deuses menores, quando pressionados, podem se
referir a grande distancia do céu ou, pelo menos, as demandas mais urgentes dos outros deuses.
Esses estão mais próximos deles, mais aptos em intervirem em suas vidas, e mais fácil de
acessar. Eles podem se irritar se forem negligenciados em favor de uma única divindade.
Qualquer sacerdote dirá que seu deus é filho do Ser Supremo, e que Deus fala através de seus
filhos. Mas ele argumentará que deve obter o favor de todos os espíritos, e não agradar apenas
um, a fim de que os outros não retirem seus favores e poderes. Ele é pensado estando em uma
posição remota em relação aos assuntos e necessidades humanas do que os outros deuses os
quais são seus filhos (PARRINDER, 1949, p. 23, tradução nossa).
De maneira geral, o culto é irregular (...) fora de ocasiões pontuais antes de uma viagem ou um
empreendimento, muitas pessoas não parecem dar a Deus muito espaço em suas vidas (...)
Orações são oferecidas a ele em qualquer lugar e a qualquer hora, embora geralmente sejam
preces individuais (PARRINDER, 1949, p. 24, tradução nossa).
Bojaji Idowu, iorubá e ministro da Methodist Church Nigeria (Igreja Metodista da Nigéria),
justificando a importância e necessidade da pesquisa da crença iorubá no ser supremo, diz que
em todos os trabalhos anteriores que possuem relevância para o estudo da religião dos iorubás,
Deus (Deity) foi posto em um lugar que o faz remoto, pouco interessado no acontecimento das
coisas. Pouquíssimas pessoas que realmente conhecem os iorubás podem fugir da incomoda
sensação de que há algo de inadequado, para dizer o mínimo, sobre essa noção; e é essa
“incomoda sensação” que levou à minha pesquisa sobre o que realmente os iorubás acreditam
sobre Deus (Deity) (IDOWU, 1962, p. vii, tradução nossa).
Tal concepção equivocada do ser supremo entre os iorubás tem sua origem na justificação das
ações colonialistas das nações europeias, uma vez que, certamente, um povo que compreende o “Ser
Supremo” como estando um pouco mais “alto” do que os outros seres, ou o coloca como o “primeiro entre
iguais” deve ser inferior em relação àqueles que colocam deus inteiramente acima e além de todos os seres.
(PARRINDER, 1949, p. 12). Destas citações, há duas considerações a serem feitas. A primeira diz respeito à
ideia do lugar remoto ocupado por Olodumare. Tal argumento encontra duas refutações óbvias: de um lado,
temos a presença de Olodumare em inúmeras formas de celebração, sobretudo, nas formas pontuais de
rezas, cantigas e preces que são realizadas ou durante festividades de outros orixás ou na experiência
espiritual individual e familiar. O próprio texto desses autores aponta para este fato, o que ocorre, portanto, e
218
esta é a segunda refutação, é que a ideia de um ser supremo em si mesma pressupõe uma ontologia e uma
epistemologia estrangeira ao modo como os iorubás constroem seu imaginário conceitual, e a própria ideia
de culto com suas formas litúrgicas esperadas para um cristão, no caso, não possibilita a compreensão das
dinâmicas entre o mundo iorubá e Olodumare.
A segunda consideração é a interpretação dos orixás como filhos e filhas de Olodumare. Mais uma
vez, a necessidade de construir uma teologia iorubá a partir de uma epistemologia cristã fez com que a
mesma relação entre o deus cristão e os santos fosse importada para, doutrinariamente, justificar tanto a
ideia do ser supremo quanto a ideia dos orixás. De todo material disponível, raramente há uma sugestão que
Olodumare tivesse filhos ou filhas. Os outros orixás são “suas criações; alguns estão com ele e continuam a
ser seus mensageiros, e ninguém sabe ou contempla suas origens (dos orixás) enquanto tal (filho ou
filha)”155 (BEWAJI, 1998, p. 3, tradução nossa).
John S. Mbiti (1969, 1970), escritor e filósofo queniano, desenvolve em seus estudos um resgate
das dimensões do ser supremo entre os iorubás, porém toda a sua argumentação é baseada nas estruturas
teológicas cristãs. Há um claro projeto de africanização do cristianismo em seus escritos, sendo, portanto,
fundamental a construção da ideia de Olodumare nas mesmas vestimentas que o deus cristão.
Os estudos sobre Olodumare seguiram a seguinte evolução dentro das pesquisas acadêmicas:
primeiramente, os pesquisadores apontaram a impossibilidade dos iorubás (africanos) de possuir qualquer
conhecimento sobre deus; diante dos irrefutáveis fatos da experiência iorubá, negaram tal posição, em um
segundo momento, para apontar que existiam ideias, concepções e formas de culto a deus, embora fossem
simples; e, por fim, a problemática muda de uma ontologia para uma conceptualização de deus entre os
iorubás, ou seja, os iorubás possuem uma ideia adequada de deus e como ela seria?(BEWAJI, 1998).
Para uma apresentação da ideia iorubá sobre Olodumare, discutiremos, primeiramente, alguns de
seus nomes que revelam suas qualidades, atributos ou ideias conceituais. A palavra Olódùmarè
resulta da contração de ol’/oni (senhor de, dono de, parte principal, líder absoluto, chefe,
autoridade); òdù (muito grande, recipiente profundo, muito extenso, pleno); e ,àrè/mà rè (aquele
que permanece, aquele que sempre é), mò are (aquele que tem autoridade absoluta sobre tudo o
155
O único material encontrado que faz referência que Olódùmarè teve filhos pode ser encontrado em MAKINDE (1983). Neste
trabalho, no entanto, ele discutiu a ideia de que é o aspecto de vida. “A alma dá ao corpo (ara) sua vida enquanto o orí
controla o destino humano; é entendido como a descendência de Olódùmarè ( Olódùmarè) que corresponde a sua
espiritualidade e imortalidade” (MAKINDE, 1983, p. 45, tradução nossa). A palavra descendência não se refere a filhos e filhas,
mas possui o significado de “originado de” já que no mesmo texto Makinde escreve sobre Olódùmarè soprando (o sopro da
vida) dentro do corpo moldado por (p.50).
219
Olodumare é o ser absoluto, o chefe maior entre todos e sua perfeição deve ser entendida no que os
iorubás compreendem por tal atributo: o justo equilíbrio entre a positividade de uma experiência e a
negatividade de uma experiência. Qualquer ente para os iorubás, como dito anteriormente, possui em
potencialidade a capacidade de realizar o bem e o mal, este último é entendido como algo que não nos
favorece ou que nos causa aflição, nada é essencialmente mal. Não há um mal absoluto que dê origem a
todos os males, nem tampouco um ser que represente o mal, ou seja, o seu senhor. Desta feita, o próprio
Olodumare pode realizar uma ação que seja um mal em nome do cumprimento de sua justiça ou para o
aperfeiçoamento da sociedade. Por ter autoridade absoluta sobre tudo, ele não exclui, enquanto instrumento,
o uso do mal. Olodumare é o criador de todas as coisas, sempre em potencialidade, ou seja, é o
autor/criador do axé necessário para o realizar, mesmo que não seja ele quem de fato realize a criação. Tal
evidência é
Kòròfo, o sacerdote de
Foi aquele que jogou Ifá para Olódùmarè
E declarou que sua morte nunca seria anunciada
(AWOLALU, 1979, p. 34)
Nesta passagem, assim como em inúmeras outras, Olodumare realiza consultas com Ifá,
demostrando que embora seja a origem de todo o conhecimento ele possui limitações que são resolvidas
através de suas criações. Ele é o portador de todos os axés, logo, ele é a potencialidade de realização de
todas as coisas.
Este oríkì tem sua origem em uma querela envolvendo Olodumare e a Terra. Ambos saíram para
caçar e apanharam apenas um rato. No momento da partilha, a Terra exigiu ficar com o rato, pois ela era a
mais velha, porém Olodumare declarou que ele era o mais antigo. Ele decidiu, então, deixar o rato com a
Terra e voltou ao Orun determinado a provar que ela estava enganada. Assim que chegou, Olodumare
interrompeu o funcionamento de todas as coisas e, consequentemente, não houve mais chuvas, as colheitas
não aconteceram e todos os seres vivos começaram a perecer. Ao perceber a situação, a Terra consultou Ifá
e lhe foi dito para fazer um (ebó) com o rato e enviá-lo a Olodumare. Como não achou ninguém para
levar a oferenda, a Terra pediu para o abutre que realizasse a entrega. Resolvida a confusão, a chuva voltou a
cair sobre a Terra (FILHO, 2014, p. 24-25).
Esta narrativa ilustra que a realidade de Olodumare não está alheia a realidade da existência em
geral, ele pertence às dinâmicas existenciais como um todo: envolve-se em querelas, busca ajuda em Ifá,
tem suas dúvidas, possui suas hesitações, porém, sua característica é ser soberano entre todos, por ser a
própria origem de toda forma de vida e de axé.
Por fim, Olodumare também é conhecido por outros nomes que indicam as ideias sobre o ser
supremo entre os iorubás:
Vimos as características gerais de Olodumare e o seu local dentro das dinâmicas espirituais dos
iorubás. Apontamos mais uma vez que as diferentes interpretações sobre esse ente têm sua origem na
221
adoção de concepções de espiritualidades alheias a experiência de mundo dos iorubás 156. Apresentamos,
em seguida, uma das versões da cosmogonia iorubá.
157
Antes da existência de todas as coisas, Olodumare vivia no Orun com os orixás e outros seres. Na
terra havia somente água. Era o reino de Olóòkun 158 (Olokun). Obatalá decidiu, então, criar a terra e foi
consultar Ifá para saber o que seria necessário para tal tarefa. O resultado do jogo foi este: Obatalá deveria
levar uma corrente ( ), um caracol (ìgbín), uma semente de palmeira ( ), terra ( ) e
algumas sementes (kóró). Ogun foi quem preparou a corrente para Obatalá. De posse de todos os itens,
Obatalá recebe de Olodumare o seu àbá159 e seu axé. O àbá colocou debaixo de seu (chapéu) e o axé
dentro de seu (sacola). Foi assim que Obatalá tornou-se , senhor que tem o axé
para sugerir e criar.
156
É interessante notar que quando analisamos cronologicamente a literatura sobre Olodumare, a forma com que sua interpretação
é construida sofre variações. Citamos aqui apenas um exemplo. Siriku Salami em sua dissertação de mestrado e em sua tese de
doutorado apresenta uma interpretação de Olodumare a partir da própria ideia que encontramos na linguagem dos iorubás. No
entanto, em seu novo livro “Exu: a ordem do universo” ele refaz a interpretação utilizando os termos consagrados na etnografia
nacional: Olodumare transforma-se no “deus” dos iorubás. Há, como notamos, uma enorme dificuldade em conceber outras
organizações de imaginário conceitual em que a ideia de um “deus supremo” não exista ou se apresente de outras formas que não
a de uma transcendência abstrata. Desta dificuldade, temos a problematização de questões que não pertecem às possibilidades de
experiência dos iorubás: o problema da não existência de um culto a Olodumare ou o problema do mal. Essas questões, como
muitas outras encontradas na literatura, são frutos de preocupações teológicas cristãs que, colonialmente, consideram a ideia do
deus cristão como a mais bem cabada ideia sobre a origem espiritual de todas as coisas.
157
A versão que narramos aqui é baseada nas narrativas dos seguintes autores: ADEDEJI (1979), AKINTOYE (2010), ANDERSON
(1991), AWOLALU (1979), AWOLALU & DOPAMU (1979), IDOWU (1962), BEIER (1970, 1980), LUCAS (1948), MARINS (2013) e
PEEL (2000).
158
No Benin é considerado do sexo masculino e em Ifé do sexo feminino, é orixá do mar. Proprietário/a (Oló) dos Oceanos
(òkun). Orixá compulsivo, misterioso e violento. Representa os segredos da vida e da morte, bem como os mistérios das
profundezas do mar que se relacionam com as profundezas do presente. Também representa a riqueza do fundo do mar e da
saúde. Todo babalaô deve cultuá-la/o e sempre deve ser assentado com suas dezoito “ninfas”, as nove Olossás e as nove Olonas.
Elas representam os rios, córregos, lagoas, cachoeiras, nascentes, lagoas, extensões marinhas e de águas pluviais.
159
Possui o sentido de “sugestões” indicando que a capacidade de se fazer sugestão também tem sua origem no axé.
222
do Orun. Ele amarrou a corrente e foi descendo até ficar bem próximo das águas de Olokun. Ele abriu seu
e pegou o ìgbín com a terra e jogou nas águas; em seguida, soltou a galinha que começou a
ciscar e a espalhar a terra em todas as direções. Ele jogou a semente da palmeira e as outras sementes que
começaram a crescer. Solta o pombo que voa sobre toda a terra espalhada. (Agemô), enviado por
Olodumare, foi até Obatalá para conferir como estava a criação. Vendo que tudo estava em ordem, retornou
ao Orun e relatou o que viu para Olodumare. Assim criou-se a terra.
Algum tempo depois, Obatalá começou a modelar os corpos de homens e mulheres com barro e os
colocava para secar ao sol. Quando sentiu sede e não tinha mais água para beber, ele foi até a palmeira e fez
vinho de palma. Embriagou-se e continuou a modelar os corpos, porém eles não estavam mais perfeitos
como os primeiros. Obatalá, depois de tanto beber, adormeceu. Agemô faz mais uma vista e encontra os
corpos de barro, mas estavam sem vida. Ele relata o que viu para Olodumare que sopra sobre os corpos de
barro seu emí160 dando-lhes vida. Quando despertou, Obatalá percebe que os corpos agora estavam vivos,
mas que havia corpos defeituosos. Obatalá jurou nunca mais beber e daquele dia em diante seria o protetor
das pessoas com deficiência.
Outra variante dessa narrativa diz que Olórun-Olódùmarè chamou Obataláque lhe pediu para criar o
Ayê, recebendo para isso o àpo-ìwá, o saco da existência. Obatalá consultou Orunmilá que recomendou
fazer ebó para evitar qualquer problema durante sua realização. No entanto, Obatalá não seguiu a
recomendação de Ifá e não realiza o ebó, confianto apenas em seu próprio axé. Odudua, que observava tudo
atentamente, também foi consultar Orunmilá que assegurou que se ela oferecesse os ebós prescritos seria a
chefe do Ayê que iria ser criado.
A oferenda consistia em quatrocentas mil correntes, uma galinha com pés de cinco dedos, um
pombo e um camaleão, além de quatrocentos mil búzios. Odudua faz as oferendas. Chegando o dia da
criação do Ayê, Obatalá se pôs a caminho da saída do Orun, onde Exu é guardião – .
Porém, Obatalá não fez as oferendas neste lugar como estava prescrito. Exu, que ficou muito irritado com o
esquecimento de Obatalá, usou de seus poderes para se vingar: uma grande sede começou a atormentar
Obatalá que se aproximou de uma palmeira e tocou no seu tronco com o òpá-sorò161. Da palmeira jorrou
vinho em abundância e Obatalá bebeu do vinho até se embriagar. Ficou completamente bêbado e adormeceu
na estrada, à sombra da palmeira de dendê – Igi-Òpe. Ninguém ousaria despertar Obatalá.
160
Elemento que dá vida aos seres. Analisaremos detalhadamente mais adiante neste capítulo.
161
Instrumento ritual de Obatalá.
223
Odudua tudo acompanhava. Quando percebeu que Obatalá dormia, ela apanhou o saco da criação
que fora dado a Obatalá por Olodumare. Foi a Olodumare e lhe contou o ocorrido. Olodumare viu o saco da
criação com Odudua e confiou a ela a criação do aiye. Com as quatrocentas mil correntes Odudua fez uma
só e por ela desceu até a superfície do mar – Òkun. Sobre as águas sem fim, abriu o saco da criação e
deixou cair um montículo de terra. Soltou a galinha de cinco dedos e ela voou sobre o montículo, pondo-se
a ciscá-lo. A galinha espalhou a terra na superfície da água. Odudua exclamou: “Ilé Ifè!” – a terra é ampla!
Frase que depois deu nome à cidade de Ifé que está situada no lugar onde Odudua criou o aiye. Em seguida,
Odudua apanhou o camaleão – Agemô – e fez com que ele caminhasse naquela superfície, demonstrando,
assim, a firmeza do lugar.
Quando Obatalá despertou e tomou conhecimento do ocorrido, ele voltou a Olodumare contando
sua história. Olodumare disse: “O aiye já está criado. Perdeste uma grande oportunidade”. Obatalá prometeu
nunca mais beber vinho de palma, ele e todos os seus descendentes. Obatalá começou a modelar corpos
com barro e Olodumare, com seu sopro, deu vida aos corpos.
Apresentamos uma das versões mais conhecidas da cosmogonia iorubá juntamente com uma de
suas variações. Destacamos desta narrativa a presença de Ifá em todos os momentos em que alguma
decisão precisa ser tomada. É a ele que todos os entes devem buscar quando da procura dos conhecimentos
e das ações necessárias, no Orun e no Ayê, para que os objetivos que estão em potência se concretizem na
realidade da experiência de cada ente. O conhecimento para os iorubás não se encerra em nenhuma
instância, somente em uma reflexão teórica ou conceitual (se é que podemos designar os processos de
reflexão iorubás com essas palavras), mas a sua completa realização, o conhecer, só se dá quando de sua
concretização na experiência de mundo para o iorubá. Não é um conhecimento apenas para fins práticos, ao
contrário, é a ideia de que qualquer conhecimento deva ser possível nas dimensões visíveis e invisíveis da
realidade, em outras palavras, o conhecer é sempre palavra-som-corpo em múltiplas dinâmicas comas
realidades possíveis do Orun e do Aiye.
Para uma compreensão mais ampla sobre a ideia de orí para os iorubás e suas implicações nas
dinâmicas que envolvem tanto a leitura quanto a linguagem do sistema de Ifá, apresentamos um que
ilustra qual o papel que orí desempenha na experiência de mundo dos iorubás.
224
O que se segue narra a história de como o orí é escolhido no Orun e as consequências dessa
irrevogável escolha para cada indivíduo. A narrativa é sobre três amigos – (filho de Ògún)
(filho de Ìja) e (filho de Orunmilá) que estavam caminhando em direção a casa de
Olodumare para a escolha do orí. Os três amigos foram avisados que durante esta jornada não deveriam
parar em nenhum lugar e que fossem diretamente a casa de Àjàlá (Ajalá), aquele que faz cabeças (orí) no
Orun. e seguiram seriamente o aviso e nem falaram com seus próprios pais quando
passaram por suas casas. No entanto, insistiu que queria ver o seu pai e,
assim, abandona sua jornada ficando alguns dias na casa de seu pai.
enquanto isso, estava na casa de seu pai que decidiu jogar o Ifá para seu filho. Os
babalaôs que estavam por lá pediram para que se realizasse um sacrifício de três sacos pequenos de sal e
três vezes nove mil búzios. Os sacerdotes dão para parte do dinheiro (búzios) e do sal para que
levasse na viagem. Depois de muitos dias, chegou na casa de um porteiro e lhe pergunta sobre
como chegar até a casa de Ajalá, mas o porteiro insistiu que primeiramente deveria terminar a sua sopa
antes de ensinar o caminho para Enquanto eles cozinhavam a sopa, reparou que o
porteiro estava usando cinzas ao invés de sal para temperar a comida. Ele, então, compartilha com o porteiro
o sal que trazia consigo. O porteiro gostou tanto do sal que ensinou o segredo de Ajalá que o
levaria a escolher um bom orí.
O porteiro contou para que Ajalá era um incorrigível devedor e que estava sempre se
escondendo no celeiro de sua casa para evitar os cobradores. Ele instruiu a pagar todas as
dívidas de Ajalá para que ele pudesse sair de seu esconderijo e o auxiliasse pessoalmente na escolha do orí.
Quando chegou na casa de Ajalá, ele pagou todos os cobradores que estavam por lá e Ajalá saiu
162
A versão iorubá desse texto está no livro “Sixteen Great Poems of Ifá” (1975) de Wande Abimbola, p.178-207. A tradução para
o português é nossa.
225
do esconderijo. O resultado foi que escolheu um bom orí e quando retornou ao aiye viveu uma
vida próspera.
Todos devem ir à casa de Àjàlá para a escolha do Orí (ABIMBOLA, 1975 , p. 181 - 207)
163
Nome pessoal cujo significado é obscuro.
164
Outro nome pessoal cujo significao é obscuro.
165
Um orixá.
166
Nome pessoal.
167
Nome pessoal comum entre os iorubás.
226
168
Um dos 240 odù menores. Seu verdadeiro nome é Ogbègúndá que é uma combinação de Ogbè à direita e Ògúndá à esquerda.
228
concordou
E lhe deu dois sacos de sal
Quando finalmente terminaram de cozinhar a sopa
O porteiro levantou
E apontou o caminho e caminhou
o seguiu
Eles caminharam por muito tempo
Eles andaram e andaram
Quando chegaram perto da casa de Àjàlá
Eles começaram a ouvir um barulho
O porteiro disse: “O barulho vem da casa de Àjàlá.”
Ele disse: “Isso mostra que Àjàlá não está em casa
Eles está se escondendo para evitar os credores
Os credores são aqueles que fazem o barulho.”
Ele perguntou a se ele tinha algum dinheiro com ele
E disse que tinha
O porteiro disse que se visse algum dos credores
Ele deveria ajudar Àjàlá a pagar suas dívidas.
Quando chegou na casa de Àjàlá
Ele encontrou um credor
Gritando, resmungando feito um cavalo
perguntou qual era a quantia envolvida
O credor disse que era um total de doze mil búzios
abriu sua bolsa
Retirou o dinheiro e pagou o credor.
Depois que ele pagou a dívida
E o credor foi embora
Àjàlá saiu do celeiro
De onde se escondia
Ele cumprimentou
o cumprimentou
Você encontrou alguém na casa? - perguntou
respondeu que encontrara alguém
Que disse que você (Àjàlá) lhe devia doze mil búzios
disse que pagara a dívida.
Àjàlá agradeceu a
E lhe perguntou o que queria
232
Há alguns pontos importantes nessa narrativa. Primeiro, vemos a importância do sacrifício como
guia pelos caminhos corretos em todas as situações (ebó). Foi o sacrifício de dinheiro (búzios) e de sal
realizado por na casa de seu pai que lhe possibilitou a escolha de um bom orí na casa de Ajalá.
Ele apresentou o sal para o porteiro que gostou tanto que compartilhou com ele como agir na casa de Ajalá.
usou o dinheiro (búzios) para pagar os cobradores de Ajalá o que possibilitou que este último lhe
auxiliasse na escolha de seu orí.
Segundo, vemos a importância do ritual e da ideia de progresso do sal. Ele representa uma boa,
feliz e harmoniosa vida. Terceiro, a narrativa nos diz que uma vez escolhido o orí, essa é uma decisão
irreversível. Para aquele que não escolhe um bom orí, apenas uma vida de duro trabalho e inúmeros rituais
sacrificiais poderão aplacar as desfortunas que um orí desse tipo pode trazer. Já aquele que fez uma boa
escolha do orí, não está isento de um duro trabalho e sacrifícios, mas alcançará uma vida boa, feliz e
harmoniosa. Os benefícios de um bom orí são sempre em potência, exigindo trabalho e sacrifícios para sua
169
“Orí o recompensou abundantemente”.
234
realização. A relação do orí e a existência individua, também coletiva, serão estudadas posteriormente ainda
neste capítulo.
Vimos, assim, nesse primeiro item, a cosmogonia iorubá identificando quais as diâmicas
envolvidas na construção da experiência de mundo dos iorubás a partir dessa narrativa. Em seguida,
discutimos, em linhas gerais, as características de Olodumare que é a origem de todos os axés e não possui
nenhuma forma de culto ou sacerdócio, mas está presente em inúmeras referências em determinados ritos e
cantigas. Por fim, apresentamos em sua totalidade a dinâmica da escolha do orí que, para os objetivos
dessa dissertação, nos revela que independentemente do tipo de orí que se escolheu (implicando nas
condições presentes da vida de uma pessoa) a consulta ao sistema de Ifá é imprescindível para qualquer
possibilidade de vida harmoniosa.
Dando continuidade a apresentação dos dezesseis principais odù do sistema de Ifá, analisaremos
agora mais dois odù: e
ODÙ
Esse odù representa a ideia de instabilidade dentro das dinâmicas do aiye e denota a prospecção de
nascerem filhos ou filhas gêmeas. O odù revela como a faculdade de reflexão (inteligência) surgiu no aiye.
Relaciona-se com Egúngún (sociedade dos ancestrais) e ele deve participar na resolução de qualquer
conflito. E, por fim, esse odù lida com as consequências da falta de coragem: há muitas ideias e pouca
realização. A inscrição gráfica desse odù é:
235
II II
II II
I I
II II
ÌWÀ ODÙ
As principais características desse odù são: enfermidade, feitiços, inveja. Indica nascimento de
gêmeos prósperos e traz o àbíkú.
Apresentamos dois exemplos de que pertecem a esse odù. O primeiro eviedência uma das
características desse odù em relação à prosperidade que surgirá na vida de uma pessoa através da grande
quantidade filhos e filhas que terá. Faz referência a um pássaro que não tendo mais o que fazer fica apenas
namorando em cima da árvore, o que significa que será uma fase onde muitos filhos e filhas nascerão.
170
Um tipo de pássaro.
236
O segundo narra a história do jogo de Ifá que foi realizado para a Arma e como após o ebó ela
matou todos os seus inimigos. Em inúmeros como dito anteriormente, animais, fenômenos da
natureza, objetos e lugares são relatados como seres humanos, são os protagonistas do desenvolvimento da
história. Neste caso, temos a Arma como protagonista que realiza um ebó para poder vencer todos os seus
inimigos.
Não há sábio que faça um nó na água das bordas de uma vestimenta (ABIMBOLA, 1977, p. 122 -
124).
I I
II II
I I
I I
ÌWÀ ODÙ
As principais características de odù são: filhos prósperos, morte prematura, vitória sobre os
inimigos. Prevenir-se contra roubo e cuidar-se em relação ao fogo.
Apresentamos dois exemplos de desse odù. O primeiro faz referência ao chefe do culto de
Ifá, Àràbà, que possui o simbolismo de ser o grande pai no sentido de ser aquele que possibilita a vida de
seus filhos e filhas. A aldeia simboliza a relação com a comunidade e a cabaça a relação com os entes do
Orun.
Àràbà171 é o pai
Àràbà é o pai
Aquele que encontramos na aldeia é o pai
Aquele que encontramos na cabaça é o pai
Um jogo de Ifá foi realizado para o Pai que tem roupa
grande
Que usa a todos em seu proveito
Quem é o pai de Eínwo?
Àràbà é o pai de Erinwo
O segundo ilustra uma das imagens de Ifá que é justamente o “encontro entre dois caminhos”
no sentido de ser Ifá aquele que pode mudar qualquer situação, que pode transformar qualquer
acontecimento em positividade para a vida de alguém. Por fim, ele é o único que pode dar prosperidade
àqueles que se “casam” com ele, ou seja, àqueles que o cultuam.
171
Chefe do culto de Ifá.
172
Ancestral.
239
Vimos neste primeiro item as principais ideias, elementos e agentes da concepção de origem da
natureza tal qual a vemos na realidade. Não há na linguagem uma ênfase no processo de criação em si, mas
aos elementos que compõem a narrativa, sobretudo, a questão da escolha do orí que, como veremos
adiante, está intimamente relacionada com as dinâmicas de Ifá. No próximo item, analisamos o mundo
iorubá, ou seja, a totalidade de sentido dos iorubás, a partir de alguns elementos gerais.
240
O MUNDO IORUBÁ
Quando falamos de mundo, segundo Dussel (2011), nos referimos ao horizonte cotidiano dentro do
qual vivemos e, assim, ele é uma totalidade instrumental de sentido. Não é simplesmente a soma exterior
dos entes ou o cosmos como totalidade das coisas reais, mas é a totalidade dos entes com sentido. Todo o
mundo é uma totalidade e enquanto tal indica esse limite de limites. Evidentemente é o limite dentro do qual
todo ente encontra seu sentido. Na contramão dos analistas matemáticos acostumados a somente formalizar
entes e objetos, o mundo é a totalidade fundamental; é a totalidade de totalidades. A partir de agora, quando
nos referirmos a totalidade sem outra indicação, falamos de mundo.
Desta feita, por mundo iorubá entendemos a totalidade de sentidos produzida pelos iorubás em
relação à realidade concreta da existência. Tal realidade é transformada através das experiências individuais
e coletivas dando origem a um conjunto de conhecimentos (e formas de suas produções) que possui
igualmente um conjunto de outros conhecimentos que determinam os sentidos objetivos e subjetivos de ser
iorubá. As experiências sociais, politicas, sexuais, culturais, “espirituais” e econômicas são determinadas e
determinantes da episteme iorubá, as quais em seu conjunto formam o que chamaremos de imaginário
conceitual iorubá.
Para Boaventura de Souza Santos (2010) “toda experiência social produz e reproduz conhecimento
e, ao fazê-lo, pressupõe uma ou várias epistemologias”, essas entendidas como “toda a noção ou ideia,
refletida ou não, sobre as condições do que conta como conhecimento válido”(SANTOS e MENESES, 2010,
p. 15). Assim, uma dada experiência social torna-se “intencional” e “inteligível” por via do conhecimento
válido, logo, “não há conhecimento sem práticas e atores sociais”. Desta maneira, ao determinar as
condições da produção e reprodução do conhecimento, um dado conjunto epistêmico encontra na
experiência social a sua possibilidade de realização plena e, no interior dessa dinâmica, as práticas criam e
transformam as relações entre os atores sociais que ao mesmo tempo criam e transformam essas mesmas
práticas. Por conseguinte, a relação entre as práticas e os atores sociais tem a sua intencionalidade –
sobretudo conjunto de razões e aspirações que são determinados por um desejo, propósito, plano ou ideia
– e sua inteligibilidade através do conhecimento que é gerado na experiência social e determinado por uma
ou várias epistemologias.
241
Nos capítulos anteriores, as nossas duas primeiras aproximações ao imaginário do sistema de Ifá –
ao mesmo tempo uma forma de conhecimento e uma experiência social –, discutimos questões gerais
(oralidade, som, corpo) e questões relativas ao imaginário material do babalaô (versos de Ifá, Orunmilá, os
odù, os métodos do jogo). À vista disso, analisamos a contextualidade do sistema, ou seja, as
circunstâncias (práticas e atores sociais) que acompanham a práxis de Ifá. Em outras palavras, com esta
análise apontamos que o contexto político e sócio-cultural dos iorubás é aqule que estabelece, por um lado,
as diferenças conceituais enquanto “critérios de validade” para este conhecimento que é produzido e
reproduzido na experiência social iorubá. E, por outro lado, os elementos culturais e epistêmicos das
práticas e dos atores sociais que determinam este mesmo conhecimento.
Não obstante, o imaginário conceitual iorubá tem como um dos seus princípios epistemológicos a
ideia de dualidade existencial que é a compreensão da realidade em dois distintos níveis de existência
inseparáveis, Orun e Aiye, que são as referências fundamentais na constituição da experiência do mundo
para os iorubás. Há uma linguagem múltipla e complexa que estabelece as relações entre esses dois níveis.
E uma das formas dessa linguagem é justamente o sistema de Ifá. Neste momento, analisaremos alguns dos
elementos fundamentais do imaginário conceitual de Ifá: Orun, Aiye, Axé, Eniyan – Orí e os Orixás.
ORUN – ÀIYÉ
Como dito anteriormente, a realidade iorubá é entendida em uma experiência do mundo em dois
níveis, o Orun e o Aiye. O primeiro é o locus existencial de todos os entes não-humanos, os ará-orun: os
Orixás, os Egunguns, os Ancestrais, as Iyami, Olodumare e os Ajoguns, e que compreende as ideias de
ilimitado e de origem/fonte de axé. É governado em sua totalidade por Olorun (o senhor do Orun), um dos
nomes de Olodumare. O aiye é o locus existencial de todos os entes naturais, principalmente, os ará-ayé, a
humanidade. Logo, o mundo iorubá é composto por essas duas realidades que juntas formam a totalidade
de sentidos para os iorubás.
As marcas deste mundo podem ser vistas nas palavras, nos corpos que dançam, nas iniciações,
nos festivais dos orixás, na manipulação de Ifá, nas vestimentas, nos símbolos corporais, na vida cotidiana,
242
nos mercados, nos funerais, nos encantamentos, nos objetos ritualísticos, na natureza etc. Toda experiência
é estabeleceida a partir de um mundo que se apresenta em um duplo harmônico e perfeito. Há uma
representação bastante comum do mundo iorubá que é uma cabaça formada por duas metades unidas, a
parte inferior representando o Aiye, e a parte superior, o Orun. Essa cabaça recebe o nome de igbá-odù.
(axé) é um dos princípios mais complexos de ser definido quando a linguagem disponível não
compreende o mundo da mesma forma que os iorubás. No entanto, na tentativa de aproximação ao sentido
de axé, partiremos da ideia de energia. Energia é qualquer capacidade ou força capaz de produzir um efeito
ou de realizar algo. Axé, neste sentido, é a capacidade de realização de qualquer ação nos planos material,
social e espiritual. Todos os elementos da natureza possuem o seu axé bem como todos os entes de orun e
de aiye. Outro sentido seria sua capacidade criadora: axé é um dos princípios da criação de todas as coisas
já existentes e daquelas que ainda estão por vir. Enquanto energia é indestrutível, já que não pode ser criada
ou destruída.
No sentido apresentado, axé é a energia vital, a capacidade realizadora e criadora. Mas, também,
axé pode ser compreendido como aquilo que possibilita a relação entre orun e aiye, além de estar
intimamente ligado às possibilidades de comunicação através de diversas formas e de múltiplas linguagens.
Também está intimamente próximo a Exu, considerado o protetor dos axés dos orixás. Assim, “axé está nas
palavras, nos movimentos dos corpos, no comer, numa cantiga, nos sons produzidos pelos instrumentos
musicais e pela própria natureza” (ABÍMBÓLÁ, 2005, p. 60).
Os orixás possuem os seus próprios axés com características distintas que indicam quais as
possibilidades de realização e criação de cada um deles. Um dos pontos fundamentais quando falamos de
axé é a sua transmissão. Todo axé pode ser obtido, acumulado, perdido e transmitido. A transmissão ocorre
quando entramos em contato com os portadores de axé (babalaôs, babalorixás, iyalorixás etc.), quando o
ingerimos ou quando passamos por algum processo de iniciação. A realização na existência depende da
força do axé. Ele também é transmissível através de substâncias materiais de seres e elementos, de objetos e
243
lugares, a outros seres e objetos. Essa transmissão alimenta e renova o poder de realização. O axé é
absorvido, elaborado, desgastado e acumulado, por isso a necessidade dos rituais de sacrifícios e de
oferendas para conservá-lo (AWOLALU, 1979).
O axé é ativado pela conduta pessoal e pelos rituais. Ele está relacionado com iwá e abá. Ifá diz que
uma boa vida e um bom mundo são definidos através de alguns elementos essenciais: o conhecimento das
coisas, a felicidade em todos os lugares, o fim do antagonismo com os outros seres, o bem viver e,
finalmente, a libertação da pobreza e da miséria. É interessante observar que o conhecimento ocupa uma
centralidade na experiência ética para os iorubás: é através dele que compreendemos nossa humanidade em
todas as suas formas expansivas e, também, em sua multiplicidade de saberes e formas de se estar no
mundo.
O caráter para os iorubás é definido e problematizado a partir da ideia de eniyan gidi, o verdadeiro
ser humano. Ele é constituído por três conceitos: iwa-pele (o correto caráter, a ação correta), iwa l’ewa
(unicidade do caráter em relação com a inerente beleza da natureza) e iwa l’aiya (a conjugação harmônica
entre os dois elementos anteriores, uma vida sem regressões). Ìwá é a medida crucial de beleza no sentido
de ser a essência equilibrada do ser humano. Mesmo que uma pessoa seja fisicamente bela, mas não
possui um ìwà equilibrado, ela é, na melhor das hipóteses, meramente tolerada, torna-se um eni tí kò ni ìwà
kò ni arà (alguém que não possui um ìwà equilibrado, não possui amigos) e conhecida como òbùrewà, alàra
re (o “feio” com um corpo intocável, ou com marcas no corpo). No entanto, uma pessoa com o ìwá
equilibrado, mesmo sem uma beleza física, é considerada bela e, assim, popular, respeitável e amada; é
conhecida como omoluwabi (referência a uma pessoa ética) ou olòyàyà (alguém com perspicácia de espirito
para agir corretamente em cada situação). O alàra re desvirtua o comportamento do corpo na sociedade
indiscriminadamente enquanto o olòyàyà confronta e equilibra as convenções sociais com poucos erros, ou
certezas, e emerge como um gún regé (aquele que é equilibrado, balanceado). Nota-se que a ideia de
equilíbrio não é a ausência de falhas, uma perfeição ideal, mas sim uma atitude de busca de equilíbrio
(ÀJÀYÍ, 1998).
Abá é a ideia que todo homem ou mulher ao nascerem possuem em si mesmos toda e qualquer
possibilidade para a realização dos designos de seu orí. Tudo é possível desde que seu caráter e sabedoria
(ìwá) permitam transmição de axé entre seu próprio ser (orí), os orixás e os ancestrais. O axé é a força vital
que promove o dinamismo do ser humano. “É uma energia que existe nos seres e precisa ser mobilizada e
veiculada pelas relações, isto é, dada e retribuída. Esta força realiza as potencialidades (abá) e promove os
acontecimentos” (ÀJÀYÍ, 1998, p. 24).
244
ÈNÌYÀN – ORÍ
A palavra iorubá para pessoa (ser humano) é ènìyàn. Entretanto, ènìyàn, possui uma dimensão
normativa, bem como um significado cotidiano. Assim, não é incomum, em referência a um ser humano,
para um observador dizer ki i se ènìyàn (ele/ela não é um ènìyàn). Tal comentário é um julgamento de um
padrão moral para o ser humano que é, desta maneira, determinado por se enquandrar nas prerrogativas que
o reconhecem como tal. Voltaremos mais adiante sobre a discussão dos requisitos para ser, moralmente
falando, um ènìyàn. Na língua, uma grande ênfase é dada nessa dismensão normativa, talvez mais do que a
dada na língua portuguesa. Por ora, entretanto, vamos analisar os elementos estruturais do ser humano.
Nas discussões sobre o conceito iorubá de ènìyàn, alguns elementos são proeminentes (ara, okàn,
èmí, orí), no entanto, há muita confusão sobre o que eles significam e qual a relação existente entre eles.
Uma maneira de evitar, ou pelo menos minimizar, tal confusão é não iniciarmos com os termos equivalentes
em português, mas sim descrever seus usos entre os iorubás e relacionar uns com os outros nos termos de
suas interdependencias funcionais. Além de nos ajudar a evitar julgamentos inadequados no que se refere
aos discursos conceituais presentes na língua portuguesa e na língua iorubá, também nos auxiliará na
ampliação da linguagem conceitual iorubá dentro do que entendemos por imaginário conceitual iorubá.
Ara é a parte física do ser humano, inclui tanto os componentes internos e externos (pele, ossos,
coração, intestino etc.) quanto os termos físicos descritivos (pesado/leve, forte/fraco, quente/frio etc.).
Obviamente, seu uso, às vezes, parece sugerir que se refere à totalidade da pessoa, como, por exemplo,
quando se diz (Ela conhece apenas a si mesma – Ela é egoísta). Em tal uso, podemos ter a
certeza de que a intenção é transmitir a mensagem de que a pessoa referenciada é julgada como possuindo
preocupações apenas com seu corpo (sem se preocupar com os outros ou até mesmo com seu próprio ser).
Imotara-eni-nìkan é a palavra iorubá para egoísmo (BALOGUN, 2007). A ideia é que uma pessoa egoísta é
mais preocupada com o bem-estar de seu próprio corpo (em oposição à dimensão do Orun da existência).
Isso sugere que se um ser humano se preocupa com a dimensão do Orun da existência, ele ou ela não seria
egoísta. É a ignorância sobre o que é exigido para ser um verdadeiro ser humano que transforma uma
pessoa em egoísta.
O corpo é como um armário cujos compartimentos são os sentidos que constituem os principais de
seus elementos. Há, na verdade, nenhuma controvérsia em relação a natureza do corpo. É importante notar
que a questão se um ser humano é todo corpo ou outra coisa não encontra o lugar característico dentro da
245
reflexão típica do pensamento ocidental já que para um babalaô, por exemplo, a totalidade da existência
possui em si mesma uma dupla realidade existencial, orun e aiye, como discutimos anteriormente. Assim,
para o babalaô é muito óbvio que para uma pessoa há muito mais que um corpo.
No entanto, se somente considerarmos ara como o corpo físico não compreenderemos a total
dimensão de seu significado. Além disso, e talvez como consequência disso, devido os corpos humanos
possuírem diferentes constituições, eles naturalmente se adaptam diferentemente em diferentes situações.
Uma pessoa mais musculosa irá absorver as pressões externas diferentemente de uma pessoa mais magra.
Doença e saúde são funções da constituição corporal, e esta é uma importante consideração nos
diagnósticos tradicionais no tratamento de doenças.
Os órgãos internos são concebidos por terem suas funções no funcionamento ideal de uma pessoa.
Por exemplo, o intestino tem participação na força física de uma pessoa. Uma pessoa fraca é descrita como
possuindo apenas um ìfun (intestino) ou nenhum. Esta ideia é baseada na compreensão de que o intestino
possui um papel importante na construção da força física pela sua função nas atividades metabólicas do
corpo. Uma pessoa fraca é, assim, alguém cujo intestino não está funcionando bem ou possui nenhum. Da
mesma forma, opolo é reconhecido como o local da formulação dos pensamentos, das atividades racionais
(no sentido de racionalidade enquanto capacidade de simbolizar, raciocinar, produzir linguagem,
compreender). Localizado atrás da cabeça, opolo controla as atividades mentais dos seres humanos. Uma
pessoa que não cumpriu com suas funções é descrita como alguém que não possui opolo ou que seu opolo
não está funcionando. Os deficientes mentais são aqueles cujos opolo não estão completos, o louco é
aquele cujo opolo está danificado. Opolo é, portanto, um componente material e as funções e atividades que
ele realiza são produzidas e reconhecidas no nível material da experiência (GBADEGESIN, 2002).
Okàn é outro elemento da estrutura de um ser humano. Na linguagem, ele surge com um duplo
caráter. De um lado, é reconhecido como o órgão físico responsável pela circulação do sangue e é assim
identificado. Por outro lado, todavia, ele também é compreendido como a fonte de todas as emoções e
reações físicas. Para encorajar alguém, podemos dizer kìí lókàn (fortaleça o okàn [coração]). Uma pessoa
que fica facilmente entristecida é descrita como possuindo nenhum okàn e quando uma pessoa está triste
falamos que o seu okàn está corrompido (GBADEGESIN, 2002). Nesse sentido, nos parece que os estados
emocionais de uma pessoa são compreendidos como funções do estado do okàn. Seria, à vista disso, o
okàn a consciência identitária equivalente na língua portuguesa ao conceito de mente? Essa é um pergunta
difícil uma vez que o próprio conceito ocidental de mente é ambíguo (BALOGUN, 2007).
246
Se começarmos pela concepção não-técnica de mente, ela significa “parte sensível do ser humano,
imaginação, memória, percepção, intenção” ou “desenvolvimento intelectual”. É assim que o dicionário
Houaiss a define, reservando o sentido técnico para “parte incorpórea, inteligente do ser humano (em
contraste com a matéria [corpórea])”. No sentido não-técnico, a mente pode ser um ente mas não
necessariamente ente no senso cartesiano cuja a essência é o pensamento, ou seja, que o sujeito da
consciência possa ser um ente material. O dicionário não nos dá nenhuma ajuda em relação à natureza da
mente. Em alternativa, o sentido filosófico de mente, o qual a contrasta com a matéria, a descreve mais
como um ente imaterial cuja essência é o pensamento. Já que estamos interessados como a língua iorubá
constrói o sentido de mente, debruçaremos no sentido não-técnico. A questão é, desta forma, se okàn é
construído enquanto “desenvolvimento intelectual” na linguagem. Essa é uma questão pertinente já que
okàn é considerado como um elemento material do corpo. Então, okàn é um componente material cujas
atividades possuem consequências físicas e emocionais, para os estados de pensamento de uma pessoa, e,
por isso, pode ser responsável por eles? Ou será que além do físico e visível okàn há algo que seja
responsável por todas as formas de identidades conscientes.
Parece-nos que a ideia da segunda pergunta está mais envolvida. Seguindo a primeira definição,
significaria que o pulsar e a circulação do sangue de um coração físico é construido de forma tão crucial que
os seus resultados estão conectados com o estado de pensamento e de emoções da pessoa em algum ponto
no tempo, e que, desta maneira, entre opolo (cérebro) e okàn (coração), concebidos em termos físicos,
poderíamos compreender as atividades mentais e estados emocionais de uma pessoa. Embora razoável,
acreditamos que seja uma hipótese muito rebuscada e um pouco artificial para a compreensão da visão
iorubá sobre o assunto. Isso porque a construção da conexão entre atividade e/ou estado do coração físico e
os estados mentais das pessoas exige muito mais que um entendimento intuitivo e que exigiria técnicas que
não estão disponíveis para qualquer um, seja africano seja um ocidental.
Isso nos leva a concepção não-física de coração na língua portuguesa. Assim, após definir
zoologicamente como o “órgão muscular oco que recebe o sangue e o impulsiona”, o dicionário Houaiss
nos dá a seguinte definição, entre outras: parte mais íntima de um ser; o berço dos sentimentos, das
emoções, do afeto, do ânimo, da coragem etc. Essa definição sugere que para além do órgão físico, há uma
fonte de consciência identitária que é construída para ser invisível e mais ou menos espiritual.
Na língua iorubá, ìgboiyà (coragem), èrù (medo), ìfé (amor), ìkóríra (ódio), ayó (alegria), ìbànújé
(tristeza), ojora (covardia) são diferentes manifestações do estado de uma pessoa e okàn é identificado como
sendo a base para tais condições. Um covarde é um aláèlókàn (pessoa sem coração). Obviamente, não
247
devemos entender como alguém sem um coração físico. Uma pessoa teimosa é olókàn líle (uma pessoa de
coração duro) (GBADEGESIN, 2002). Nesses dois casos, a referência é ao estado de consciência dos
sentimentos da pessoa o qual não é identificado com o funcionamento do órgão físico. Também podemos
verificar que não há uma identificação com qualquer ente espiritual que está além do órgão físico. Não há
necessidade de tal identificação e referência para okàn em tais frases já que são usos metafóricos da própria
linguagem.
Não obstante, parece-nos ser uma forte evidência para sugerirmos que na língua e no pensamento
iorubá, okàn é compreendido enquanto fonte de pensamento, e, por isso, faz sentido falarmos de uma fonte
invisível para os pensamentos e emoções que é distinta do coração físico. A língua iorubá reconhece a
existência do pensamento, trataremos um pouco dessa ideia.
A palavra iorubá para pensamento é èrò. Pensar é ronú; pensando é ìrònú. Etimologicamente, rò
significa “movimentar” e inú, “o interior”. Logo, ronú significa “movimentar com o interior da pessoa”; e
ìrònú significa literalmente “movimentando o interior”. Contudo, o sentido só se completa quando
identificamos o interior enquanto um receptáculo para os vários órgãos e, por conseguinte, pensamento
enquanto uma atividade que pertence à totalidade dos órgãos (BEWAJI, 1998). Tal raciocínio vai ao encontro
da visão iorubá sobre o assunto, e nos parece que o caminho etimológico não nos ajudará aqui. A pergunta
kíni èrò? significa “quais os seus pensamentos?”, e ela se compara com kíni ó wà lókàn re? que significa,
literalmente, “o que está no seu okàn?” ou “quais são os seus pensamentos?”. Sugere, assim, que a fonte de
èrò (pensamento) é algum lugar próximo ou senão idêntico ao okàn. No entanto, como vimos, okàn traduz-
se por coração físico e a compreensão iorubá sobre o coração enquanto órgão que pulsiona e circula o
sangue não nos possibilita afirmar que seja a fonte dos pensamentos conscientes. Seria, entretanto, outra
fonte para essas atividades, embora relacionada com o coração. Todavia, a compreensão da dupla natureza
da existência nos auxiliará nesta discussão já que, pelo exame da linguagem, okàn é reconhecido como o
responsável pela circulação do sangue e possui também uma contraparte invisível que seria a fonte de tais
atividades conscientes.
Tal afirmação levanta outro problema: se okàn refere-se à fonte do pensamento, qual seria a função
realizada por opolo (cérebro)? Èrò, como ocorre no okàn, parece fazer referencia a uma ampla extenção de
processos do que o opolo faz. Nesses processos incluímos o desejo, a disposição, a vontade, a esperança, a
preocupação, a crença etc. Quando uma pessoa é descrita como aláèlókàn (aquele sem okàn) significa que à
pessoa falta a capacidade de persistência. No entanto, há uma classe de atividades as quais opolo parece ser
248
particularmente responsável: as atividades de raciocínio. Assim, uma pessoa que é incapaz de um simples
raciocínio é descrita como aláèlópolo (uma pessoa sem cérebro). E, por isso,
é um erro de linguagem referir-mos a uma pessoa cruel como olópolo líle(aquele com um
cérebro duro), bem como é incorreto descreveu um deficiente mental como olókàn dídàrú(aquele
com um okàn corrompido). E mais, a correta descrição para tal pessoa seria aláèlópolo. Em
resumo, opolo significa ser reconhecido enquanto uma fonte de pensamento (raciocínio) e okàn
enquanto a fonte de todas as respostas da consciência e das emoções(GBADEGESIN, 2002, p.
40).
Èmí foi principalmente traduzido como alma e espírito, mas acreditamos que tais traduções
confudem mais do que iluminam o significado. O modo com que èmí é compreendido na linguagem e pelos
babalaôs, por exemplo, é melhor entendido quando analisamos como ele entra no corpo da pessoa. Enìyàn é
feito pelo esforço combinado de Olodumare e Obatalá. Como vimos nas narrativas cosmogônicas iorubás,
Obatalá constrói os corpos do barro e Olodumare sopra o èmí que dá vida aos corpos. Èmí é compreendido
enquanto o principio ativo da vida, o elemento de vida colocado pelo orixá. Ele também é compreendido
enquanto a respiração de Olodumare.
O babalaô Bàbá Sehinde A. Ademuleya173 quando se refere a uma pessoa que morreu ou durante os
preparativos para um enterro diz que Èmí re ti bo, o èmí foi embora, significando que o que dava vida àquele
corpo já não se encontra mais lá. É interessante percebermos que não se trata de um “espírito”, mas sim, o
elemento que garante a vida do corpo no Ayê.
Devemos distinguir da palavra èémí (respiração) que é fisicamente identificável. Èémí é entendido
como a manifestação da contínua presença de èmí. Em outras palavras, uma vez que o corpo recebe seu èmí
pelo sopro de Olodumare, ara agora possui èémí (respiração) e começa a mí (respirar). A presença de èmí
assegura que o corpo humano, outrora sem vida, torne-se um ser humano – um ser que existe. Já que èmí é
parte da respiração de Olodumare, ele continuará como princípio de vida para um ser humano em particular
segundo a vontade de Olodumare (AWOLALU, 1979). Quando ele é recolhido, a existência humana deixa de
existir. Logo, èmí é mais um determinante e uma garantia da existência. Notamos também que essa noção é
estendida a todos os seres vivos, pois todos vivem como fruto da atividade criativa dos orixás e Olodumare.
Èmí, enquanto elemento ativo da vida, é um elemento comum a todos os seres humanos. Ele não só
“ativa” o corpo suprindo com os meios para a vida e a existência, mas também garante a existência
consciente desde que se mantenha forte. Como uma afirmação da vida, ele também traz esperança e
transforma os desejos em realização. Duas grandes ideias já foram levantadas sobre a natureza de èmí:
que ele é espiritual e que ele possui uma existência independente. Ambas as ideias são objetos
de uma disputa filosófica. Primeiro, foi contestado o fato de que èmí não pode ser espiritual já
173
Babalaô e doutor em Antropologia pela Universidade Obafemi Awolowo, Ìbàdàn – Nigéria.
249
que ao mesmo tempo ocupa um espaço por ser incorporado. Segundo, a questão da existência
individual é disputada sobre as bases de que ele não é um ente, mas uma força e como tal não
pode ter uma existência independente (GBADEGESIN, 2002, p. 212 - 213).
Na tentativa de traduzir “espiritual” para o iorubá não encontramos uma saída para a primeira
questão. Em iorubá “espírito” é traduzido por èmí, “espiritual” por ti èmí, “matéria” por ohunkóhun tí a fi ojú
rí, tí a sì fi owó kàn (qualquer coisa que vemos com os nossos olhos e tocamos com as nossas mãos) e
“material” por nkan ti ara(aquilo que é relativo ao corpo). Ademais, nos parece que os iorubás entendem èmí
como o fio condutor da existência humana. Eles o compreendem como uma porção da respiração de
Olodumare. Como Olodumare também é entendido como espiritual, aquela porção de fonte de vida que é
dada aos seres humanos também deve ser espiritual. É pela sua própria fonte que a natureza de èmí pode
ser entendida como espiritual, a não ser que não desconsideremos a espiritualidade de Olodumare, não
podemos, sem alguma inconsistência, desconsiderar a natureza espiritual de èmí.
Agora, temos que discutir a segunda questão que é uma preocupação de caráter epistemológico e
tem seu sentido apenas para um pensador de formação ocidental: a incoerência da crença, ou melhor, como
um espirito pode ocupar um espaço e manter-se um espírito? Pontuamos que essa questão não faz parte
das preocupações de um babalaô, por exemplo, já que para ele, como para qualquer pensador tradicional
iorubá, a totalidade do mundo se dá em duas realidades coexistentes e harmônicas, assim, a relação entre
materialidade e espiritualidade é compreendida dentr dessa dinâmica de mundo. O que está dentro do orun
(espiritual) possui modos e linguagens próprios de estar, de ocupar e de se comunicar com a realidade do
aiye; o que está no aiye também possui modos e linguagens de estar, ocupar e comunicar-se com a
realidade do orun (BALOGUN, 2007). A mesma dinâmica vale para todos os seres e elementos que são
portadores de axé. A partir de uma determinada experiência do mundo, como veremos mais adiante, que é
determinada e determinante da produção e das formas de conhecer essa totalidade, implicará na revisão de
nossas compreensões de materialidade e espiritualidade nos termos e sentidos em que eles são
compreendidos na linguagem iorubá. Talvez um dos exemplos mais paradigmáticos do que estamos
discutindo é quando um olorixá (um iniciado em um orixá) incorpora o orixá em seu corpo: é o momento
em que a realidade do orun, o orixá, ocupa um espaço e tempo na realidade do aiye. Um olorixá incorporado
é para um iorubá um orixá que está materializado, é um encontro entre o orun e o aiye, é o espiritual
ocupando o material, evidenciando que o mundo iorubá constitui-se de duas realidades e a experiência
desse mundo é possível nas duas realidades.
Desta feita, podemos dizer que èmí é um elemento espiritual (Orun) que ocupa um espaço material
(aiye). De fato, é como podemos compreender os espíritos livres (iwin, òrò), o èmí de uma ajé que pode voar
250
durante a noite e participar de encontros com outras ajés ou os encontros entre orixás e até mesmo
Olodumare com os seres humanos como vemos em inúmeras partes nos odù de Ifá (GBADEGESIN, 2002).
Orí é outro elemento da constituição da ideia de ser humano para os iorubás. Orí possui um duplo
caráter. De um lado, ele se refere à cabeça física, dado o significado de conhecimento da cabeça no mesmo
sentido que o restante do corpo, orí é considerado vital mesmo em ser caráter físico. É o lugar do cérebro e,
pelo que observamos anteriormente, sua importância não pode ser enfatizada demais. A postulação de um
orí espiritual para além do orí físico está no reconhecimento disso. De qualquer modo, há uma ideia de orí
que é reconhecido como o portador da identidade pessoal bem como o determinante dessa personalidade.
Quando discutimos o processo de criação do ser humano como uma combinação dos esforços de
Olódùmàrè e dos Orixás, mencionamos Orìsànlá como o artesão dos corpos. Há outro orixá, Àjàlá, que
como vimos no apresentado, é o artesão de orí. A ideia é que depois que èmí foi colocado em seu
lugar, o novo ser humano recém-criado segue para o segundo passo: a casa de Àjàlá para a escolha do orí.
O orí é, como ele foi, o “compartimento” no qual os destinos individuais foram colocados. Cada ser humano
escolhe seu “compartimento” sem saber o seu conteúdo (ABIMBOLA, 1997). No entanto, o que estiver
dentro daquele orí determinará o curso de vida de uma determinada pessoa durante sua vida no aiye. Assim,
é o orí escolhido, portador do destino individual, que determina a personalidade. Podemos verificar essa
ideia na linguagem pelos exemplos que seguem (ABIMBOLA, 1997, p. 45 - 46):
(A)
Ele que é sábio
É sábio pelo seu orí
Ele que não é sábio
É mais tolo que um pedaço de inhame pelo seu
orí
(B)
Outras pessoas não gostam de ver alguém
aliviado de seus problemas
É o orí da pessoa que traz o alívio
personalidade, se ajoelha para a escolha do destino. Outros, entretanto, sugerem que o orí é escolhido pelo
individuo depois de animado pelo sopro do èmí (AWOLALU, 1979). Ambos nos parecem interpretações
coerentes e fazem sentido quando analisamos a linguagem. Porém, para o que nos interessa aqui, a
segunda interpretação tem sua origem nas histórias narradas nos odù de Ifá e demonstra claramente a ideia
por trás da expressão linguística da escolha do destino.
Pela linguagem, o processo é descrito como a escolha do orí e orí é construído como um ente no
qual o destino foi selado. Ou seja, é o orí que é escolhido. A imagem que criamos pela segunda
interpretação é de inúmeras possibilidades de orí com diferentes destinos e porções já preparados e os
indivíduos (ara + èmí) escolhendo um orí sem saber qual o conteúdo (destino) de cada um deles. Mais uma
vez temos que compreender a dupla função, material e espiritual, que os elementos que constituem o corpo
humano possuem, logo, orí possui representa também o ente que é o guardião e protetor do destino do
individuo.
Segundo Abimbola, “o orí de cada pessoa é considerado como seu orixá pessoal e de quem é
esperado uma maior atenção aos assuntos pessoais do que os outros orixás que são considerados como
pertencentes a todos. Enquanto um orixá, orí é cultuado e recebe oferendas sacrificiais” (ABIMBOLA, 1997,
p. 114). Citamos exemplos de alguns que demonstram a relação entre orí e as oferendas sacrificiais
(ABIMBOLA, 1997, p. 115):
(A)
À Ìyàndá foi pedido para que realizasse ebó
(B)
A mim foi dito que ao chegar em casa
Lavasse as sementes de palma cuidadosamente
Como mencionado no primeiro capítulo, Orunmilá é a voz que realiza a comunicação entre os
orixás e os seres humanos. É através dele que alguém descobre quais os desejos dos orixás para a sua vida.
252
Quando é a voz para o orí, Orunmilà é conhecido como (testemunha da escolha dos destinos
pelos seres humanos). Muitos babalaôs dizem que Orunmilà estava presente quando da escolha dos orí
pelos seres humanos e, portanto, não seria difícil para ele, através do sistema de Ifá, dizer para qualquer um
os desejos de seu orí (ABIMBOLA, 1997). Neste sentido, Ifá deve ser consultado de tempos em tempos para
saber quais os caminhos que o orí precisa que sigamos. Todos os orixás também possuem seus próprios
orí e fazem uso do sistema de Ifá para saberem quais os desejos de seus orí. Os seguintes narram que
Orunmilá foi consultar Ifá para descobrir os desejos de seu próprio orí.
A IDEIA DE DESTINO
orixás. O que é realizado ou não por eles deve, portanto, ser explicado em relação ao seu propósito original,
seu destino, seu orí. O conceito que discutimos de orí expressa essa ideia.
No entanto, o conceito de destino e sua relação com o orí levantou inúmeros problemas para a sua
compreensão174. Um primeiro problema é o uso das palavras no processo de tradução. Destino ou
predestinação, como alguns autores usam, implica na compreensão, por um lado, de destino como uma
sucessão inevitável de acontecimentos relacionada a uma possível ordem cósmica e, por outro lado, de
predestinação como o destinar com atencipação de algo ou de alguém com uma finalidade. A ideia de
destino para os iorubás está associada ao ideal de vida que pressupõe o equilíbrio entre os aspectos bons e
ruins da vida e, sobretudo, uma vida prospera e abundante.
Desta feita, ao fazer uma boa escolha do orí, a pessoa escolheu um orí que lhe proporcionará com
facilidade a harmonia e prosperidade que uma boa vida exige; ao escolher um orí que não seja bom, a
pessoa terá grandes dificuldades para atingir os mesmos objetivos. A escolha do orí determina a
potencialidade de uma vida harmônica e próspera para cada ser humano (ODUWOLE, 1996).
O cumprimento, então, dessa potencialidade realiza-se na experiência da própria vida. As
determinações de Ifá auxiliarão nesta tarefa ao indicar tanto as exigências dos orixás que possuam relações
com aquele orí bem como as exigências de seu próprio orí. Essas indicações são transmissões de axé
suficientes para que a realização do destino aconteca em sua plenitude, ou seja, de forma harmônica e
próspera. Citamos uma cantiga iorubá que expressa a ideia de orí como o portador do destino enquanto
potencialidade de uma vida (ODUWOLE, 1996, p. 45):
Com Ifá surge a ideia de que o destino pode ser mudado uma vez que através de suas leituras e
respectivos ebós, podemos alterar o curso dos eventos e transformá-los a nosso favor. Pela linguagem,
observamos que há duas maneiras de realizar tal ateração no destino. A primeira, por exemplo, é quando
antes de embarcar em um grande empreendimento, de uma pessoa é esperado que consulte Ifá para
descobrir como será o desenlace de toda a situação. Se Ifá diz algo terrível, geralmente virá com as direções
174
Para uma discussão mais ampla sobre a relação entre orí e destino no que diz respeito aos problemas de interpretação,
conferir: ALI (1995), BALOGUN (2007), IDOWU (1962), MAKINDE (1985), ODUWOLE (1996) e OLADIPO (1992).
254
sobre quais ebós realizar, e o mal destino pode ser mudado se tal ebó for realizado. E se a pessoa, todavia,
se recusar a realizar a consulta ou o ebó, ele ou ela não poderá culpar o destino pelos eventuais infortúnios.
A segunda maneira está relacionada com o caráter da pessoa. Um bom destino pode se tornar um mau
destino em consequência do caráter da pessoa. O sentido de esè, por exemplo, enquanto um elemento
importante da personalidade humana. Esè (pernas) é o símbolo do movimento. Se uma pessoa possui um
bom destino, mas não é dinâmica, o destino pode não se realizar. Então, destinos individuais expressam as
potencialidades de se tornar algo, de conquistar algo.
Finalizando essa parte da discussão, apontamos, brevemente, mais uma característica de orí, o orixá
Orí. Como já vimos, Orí pode ser considerado com um orixá pessoal, mas também é considerado um orixá
como todos os outros, recebendo oferendas e festas. Seus símbolos são: e búzios. Entendida
a sua importância para a experiência de mundo dos iorubás, Orí pode ser considerado o principal orixás do
panteão iorubá já que todas as ações que em potência podem ocorrer na vida de uma pessoa são sempre
sancionadas por Orí. Apresentamos, agora, um orìkí de Orí que ilustra a relação entre Orí e a realização da
vida em potência.
Orí me guie
Orí me guie
Orí me apoie
Orí me apoie
Orí garanta a minha abundância
Orí sustente meus futuros filhos
Orí apoie meu relacionamento
Orí proteja a minha casa
Orí me guie. Orí me guie. Orí me guie
Protetor das crianças, meu orí será sempre grato
Axé
255
Os entes que habitam o aiye, como vimos, são chamados de ará-ayé e os que habitam o orun, ará-
orun. Os ará-orun são designados, na linguagem, pelos seguintes termos: irúnmonlé, orixá, eborá, iyami,
ancestrais, egúngún, geledés, ajé, ajogun, entre outros. Na literatura, é comum encontrarmos tentativas de
uma definição para cada um desses termos e, geralmente, tal distinção recai em uma classificação
hierárquica confusa. Apresentaremos aqui as principais ideias sobre os termos segundo a linguagem, Ifá e
as práticas de terreiros iorubás tanto na Nigéria e Benin quanto no Brasil.
Irúnmonlé são, de maneira geral, distintos dos egúngúns, das iyami, dos ancestrais, das geledés,
das ajés e dos ajoguns. Cada um desses, portanto, é outra forma de existir no orun. Anteriormente, já
discutimos sobre as iyami, os egúngúns, os ajoguns e as geledés. Em uma invocação aos irúnmonlés
encontramos o seguinte esclarecimento (LUCAS, 1948, p. 45):
Assim, temos a primeia ideia de que há dois grupos de irúnmolés: os da direita e os da esquerda. É
interessante apontarmos que os números quatrocentos e duzentos nunca aparecem sozinhos, mas com o
número “1” associado a eles, 400+1 e 200+1, alguns associaram com Exu, o número “1”, porém
encontramos que tal inscrição remete a possibilidade da existência e/ou da possibilidade de criação de
novos entes; logo, há sempre em potencialidade a criação de novos entes, implicando sempre na
dinamicidade inerente ao axé (LUCAS, 1948). Há inúmeras versões interpretativas dos sentidos de direita e
esquerda para esta divisão, porém, não encontramos nenhuma evidência que sugira um sentido outro que
não o de duas categorias distintas.
Essa distinção está baseada na senhoridade dos entes. Pelos versos de Ifá teríamos que de
Olodumare surgiram os primeiros irúnmolés, os da direita, e, entre eles, por exemplo, temos os orixás
funfun ( ou
etc.), todos esses orixás estão associados ao branco e juntamente com disputaram,
como vimos, a criação do aiye. Todos os irúnmolés da direita são designados por orixás. Há inúmeros
outros entes que são de classificação obscura, para aqueles que insistem em uma classificação, como, por
256
exemplo, Orí (analisado anteriormente neste capítulo) e Orunmilá (analisado no segundo capítulo).
Insistimos que segundo os versos de Ifá e alguns babalaôs, a classificação entre os irunmolés tem uma
função mais de legitimar a senioridade dos entes, característica fundamental da experiência de mundo entre
os iorubás, do que uma relação de uma hierarquia de importância (LUCAS, 1948).
Os duzentos irúnmolés da esquerda são designados como eborás. Não há nos versos de Ifá, uma
descrição das diferenças existentes, mas podemos dizer, em linhas gerais, que são os entes relacionados
com o aiye como, por exemplo, Oyá, tempestades e ventos, e Oxum, rios e lagos. Tanto nas religiões afro-
diaspóricas quanto nos terreiros iorubás nigerianos, beninenses e brasileiros, todos os irúnmolés são
chamados de orixás e suas diferenças são construídas através dos elementos que constituem o culto
individual de cada um.
Desta feita, na práxis de Ifá, tal divisão dos irunmolés não encontra tanto espaço quanto nos
estudos acadêmicos sobre o assunto. Existe uma diferença importante entre cada um dos dois grupos (em
relação à senioridade e a criação do aiye), mas o que não impede a denominação de todos pelo nome de
orixá175.
Para Sàlámí, a palavra orixá não possui uma definição clara e uma de suas interpretações seria que
ela é uma
Compreendemos um orixá pelo seu axé, ou seja, são os atributos, qualidades, características,
comidas, orìkí, cantigas, cores, vestimentas, objetos, formas de rituais etc., que evidenciam a qualidade do
axé de um orixá, determinando a sua potência criadora e transformadora específicas. É justamente essa
qualidade de axé que podemos dizer ser uma forma de se conhecer um determinado orixá. Os orixás que
175
Em muitos textos que encontramos tanto na literatura quanto nos inúmeros sítios da internet, há uma precipitada ênfase nesta
divisão, servindo inclusive para apontar o quanto não africano são os ocultos afro-brasileiros. No entanto, percebemos que tanto
em terreiros, ou casa de cultos, em Oyo e Abeokuta na Nigéria, Porto Novo no Benin, que seriam consideradas casas “tradicionais
africanas”, quanto casas de culto abertas em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília por sacerdotes iorubás, adotam a nomemclatura
orixás sem nenhuma problematização sobre a divisão entre os irunmoles. As diferenças entre os cultos se dá pela senioridade do
orixá e pelas suas características particulares. Citamos, por exemplo, o livro “Exu: A Ordem do Universo” do babalaô nigeriano
Siriku Salami no qual os entes do Orun são já apresentados como orixás, fazendo, obviamente, as divisões que também são
evidentes na linguagem de Ifá: Olodumare, egunguns e Iyami.
257
Dando continuidade a apresentação dos dezesseis principais odù do sistema de Ifá, analisaremos
agora mais dois odù: e
ODÙ
Uma das principais ideias sobre esse odù envolve a presença de um motim e/ou uma rebelião os
quais podem trazer uma vida longa ou uma doença infectuosa. Esse odù denota que se faz necessário a
iniciação em Ifá. Narra como as Iyami vieram para o aiye. Uma pequena decisão pode alterar o resto de sua
vida. É nesse odù que Orunmilá aprende o segredo da prosperidade. A sua inscrição gráfica é:
I I
I I
II II
I I
176
Há uma vasta bibliografia que trata individualmente cada um dos orixás e no Anexo II apresentamos uma bibliografia a esse
respeito. No entanto, em linhas gerais, há duas grandes introduções ao tema: DARAMOLA e JEJE (1975) e ÒGÚNBÒWÁLÉ
(1980).
258
ÌWÀ ODÙ
As principais características desse odù são: Riqueza. Ódú púpà. Hipocrisia. Prosperidade. Ação das
Ajés. Falsidade. Ele está relacionado a e as Ajés. Denota um grande número de filhos e filhas,
também muitas riquezas.
O primeiro narra a história de quando Solo Arenoso, Solo Molhado e Esponja realizaram jogos
de Ifá. A cada um foi pedido que realizasse ebó, mas somente Esponja o faz. Consequentemente, Esponja é a
única que consegue a felicidade. Esse odù evidencia a importância de se realizar ebó para que as ações em
vida sejam possíveis.
177
A versão em iorubá desse verso é a imitação do som produzido por uma esponja quando ela é vigorosamente balançada para
retirar a água após o banho.
178
Esponja utilizada para banho entre os iorubás.
259
O segundo narra a história do jogo de Ifá que foi realizado para Orunmilá quando ele buscava
se casar com Moranín. Toda realização só se torna possível pelo ebó. Podemos já observar que o ebó é
constantemente reiterado como meio para a realização. E, mais uma vez, nada pode ocorrer, a partir da
palavra de Ifá, se não for realizado o ebó.
179
Quando alguém usa a esponja para se banhar, a água que cai faz o solo ficar úmido de tempo em tempo, e, por isso, prejudica
o solo, mas deixa a esponja limpa.
260
Esse odù representa a criatividade feminina. Alerta para buscar dinheiro com paciência e discrição
para que o dinheiro não destrua a pessoa. Ele denota muitas crianças, vitória sobre os inimigos e boa
fortuna. Há a indicação de sacerdócio nesse odù. É nesse odù que a orixá Oxum é apresentada como a dona
da abundancia. Sua inscrição gráfica é:
180
Uma cidade e um dos dialetos iorubás.
181
Outro nome para Oxalá.
182
Tipo muito caro de missanga.
261
I I
II II
I I
II II
ÌWÀ ODÙ
As principais características desse odù são: muitas amizades, problemas judiciais e inimigos
derrotados. Perspicácia. Inteligência. Discrição. Ilusão. Ciúmes e traição.
O primeiro narra a história de quando a Folha realizou um jogo de Ifá para se casar com a Noz
de Cola. Se os ebós corretos forem realizados, haverá prosperidade financeira e casamento estável. Há
sempre um perigo em torno desse odù como se o não realizar de seus ensinamentos complicasse mais
ainda uma situação já problemática.
O segundo narra a história do jogo de Ifá que foi realizado para Orunmilá que buscava vencer
seus inimigos no aiye e no orun. Somente através do ebó é que se conquista vitórias.
Vimos nesse item a composição do mundo iorubá: os entes do aiye e os entes do orun.
Independentemente de qual realidade o ente habita, todos possuem orí que é a representação da
individualidade, destino e desejos de cada um. Compreender o orí é ter controle sobre sua própria vida, no
sentido de uma vida equilibrada e harmônica. No próximo item, analisaremos de que forma são produzidas
as experiência de mundo para os iorubás.
264
A EXPERIÊNCIA DO MUNDO
O TREINAMENTO DE IFÁ
Antes da iniciação propriamente dita184, qualquer um que aspire a se tornar um sacerdote de Ifá deve
se submeter a um elaborado sistema de treinamento que envolve tempo e paciência. A maioria das pessoas
183
Experiência é usada no sentido de obtenção de conhecimento tanto de uma forma não organizada e adquirido de maneira
espontânea dentro das dinâmicas sociais, culturais e religiosas da comunidade (conhecimento abrangente) quanto de uma forma
organizada e que se aprimora com o correr do tempo (conhecimento específico).
184
A relação entre treinamento e iniciação não é unânime entre os babalaôs. Há alguns (Sociedade dos
Babalaôs) que dão inicio ao treinamento com a iniciação, outros, como o analisado aqui, estabelecem um período de treinamento
anterior a iniciação. De qualquer maneira, a sequência pedagógica e a forma de ensino dos conteúdos são iguais,
independentemente de se começar pela iniciação ou não. Há uma tendência contemporânea de se colocar a iniciação em Ifá como
265
começa o seu treinamento ainda bem jovem, geralmente entre 6 a 12 anos, e permanece com seus mestres
nos próximos dez ou dezesseis anos antes de completar o treinamento e iniciação. Os aprendizes podem ser
tanto homens quanto mulheres, porém, o sacerdócio e as práticas são distintos para um homem e uma
mulher185. Na grande maioria dos casos, os aprendizes passam a viver na casa de seus mestres e, durante o
processo, devem permanecer solteiros, tal exigência justifica-se pela “alegação de que os prazeres sexuais
reduzem a capacidade de concentração, extremamente requisitada no aprendizado do corpus literário de Ifá,
o que não implica, todavia, numa interdição total e absoluta das práticas sexuais”. E, para as mulheres, além
de socialmente atribuírem aos homens a tarefa de manipulação do jogo, “as exigências de muitos anos para
a formação posterga a ocorrência de casamento, o que não é desejável nessa sociedade em que as mulheres
casam muito cedo”(SALAMI, 1999, p. 122).
Como dito acima, no processo pedagógico de Ifá, o tempo é o elemento fundamental para o
aprendiz. Esse tempo, determinante da forma de aprendizado e da ordem das informações transmitidas, é o
próprio tempo da vida. Não há, portanto, dissociação entre a vida e o tempo durante o treinamento em Ifá.
Desta maneira, não há “pressa alguma nem desejo de abreviar a duração do curso que permitirá atingir o
posto hierárquico mais elevado e sublime do sistema social” (SALAMI, 1999, p. 123).
A relação entre o mestre e o aprendiz é de profunda cumplicidade deste último para com o primeiro,
fundadamentada em juramento selado entre ambas as partes antes de iniciado o convívio. A base da relação
é a honra à lealdade. Há uma saudação que todo aprendiz faz pelas manhãs ao seu mestre que ilustra bem a
importância da disciplina e obediência às regras no relacionamento mestre-aprendiz (SALAMI, 1999, p.
127):
o primeiro passo para o treinamento de um futuro babalaô uma vez que as dinâmicas sociais atuais contribuíram para a
modificação das relações entre mestres e aprendizes. Vale a pena insistir que não há definitivamente nenhuma diferença entre os
dois modos de treino, é apenas uma escolha metodológica particular de cada
185
Em relação aos homens já discutimos os níveis hierárquicos no capítulo 2 desta dissertação. As mulheres que foram iniciadas
em Ifá e completaram no mínimo cinco anos de aprendizado com um Awo ancião, eventualmente ganham o título de Ìyánifá. Por
padrão, todas as mulheres iniciadas que praticam o sacerdócio de Ifá também se enquadram na categoria de Awo Elégan (ver
capítulo 2). As razões das mulheres, sob nenhuma circunstância, de não verem, trabalharem e possuírem o odù está além
do escopo deste trabalho. Há também muitas diferenças regionais sobre a questão das mulheres serem iniciadas em Ifá e/ou
sacerdotisas de Ifá. Em algumas localidades não permitem mulheres ser iniciadas em Ifá, podendo somente realizar a cerimonia
chamada Ìsé'fá, chamada também de Owófákàn, uma mão de Ifá, podendo ocorrer ao mesmo tempo outra cerimonia chamada
Isodè, quando a mulher que recebe o Idè Orúnmìlà, e deverá casar-se com babalaô, vindo a ser uma apètèbi. Já em outras
localidades, permitem mulheres serem iniciadas em Ifá (Ìte'fa) e que venham a ser Ìyánifá, mas somente com permissão para jogar
Ifá com òpèlè. Por fim, temos localidades nas quais as mulheres são iniciadas em Ifá (Ìte'fa) e podem jogar Ifá com ambos, ikin e
òpèlè. De qualquer modo, após pesquisas nas terras iorubá, descobrimos que não há um odù que proíba mulheres de jogar Ifá
com ikin.
266
E o mestre responde:
Uma das maneiras de se interpretar essa saudação está no odù Ògúndá Méjì que narra que certa vez
Olófin sentenciou os babalaôs a serem decapitados. Como estava alimentando o seu orí e realizando
Ògúndá Méjì não conseguiu ser achado. Os animais sacrificados foram cozidos e colocados em
uma bolsa com outros Ògúndá Méjì, quando terminou os rituais, partiu em direção a casa de Olófin.
No meio do caminho, ele sentou embaixo de uma árvore e viu uma mulher na beira do rio que lhe disse:
cuidado, veio parindo uma bananeira. Também o alertou que havia muitas ciladas pelo caminho. Ògúndá
Méjì deu a mulher uma galinha e lhe perguntou o nome. ela respondeu.
Seguindo o seu caminho, Ògúndá Méjì encontra uma segunda mulher que estava cortando lenha.
Assim que o viu, ela lhe disse: todos os babalaôs ficaram presos, tenha cuidado! Ògúndá Méjì deu a mulher
uma galinha e lhe perguntou o nome. ela respondeu. Despedindo-se da mulher, segue seu caminho
e encontra uma terceira mulher que lhe disse: Olófin deseja casar sua filha. Ògúndá Méjì deu a mulher uma
galinha e lhe perguntou o nome. ela respondeu.
Quando chegou ao seu destino, Olófin disse a Ògúndá Méjì que o estava esperando para realizar
um jogo, pois tinha uma parente grávida e gostaria de saber qual o necessário para que a mulher
tivesse um bom parto. Ògúndá Méjì que sabia da cilada respondeu que não precisava fazer um já que a
bananeira não pode parir, que ele, Olófin, mantinha preso a todos os outros babalaôs e que deveria soltá-los
para poder se salvar, e, por fim, que desejava casar com a filha dele. Olófin ao se ver em tal situação,
libertou todos os babalaôs. Ògúndá Méjì, então, casou-se com as três mulheres.
Esta narrativa ilustra os possíveis sentidos das três palavras que se tornaram uma forma de
saudação indicando a potencialidade de concretização, realização e completude das ações através de Ifá. Em
uma tradução literária, SALAMI (1999, p.127) apresenta a seguinte tradução da saudação:
, bom dia! Tudo o que eu faça se concretize!
E o mestre responde:
Longevidade para você!
Que sua vida se mantenha organizada como deve ser!
267
Segundo Abimbola (1973) há duas modalidades do treinamento: uma formal e outra informal. A
primeira modalidade tem início com a aprendizagem da manipulação do (idêntico ao ,
porém sem importância litúrgica), a esta fase dá-se o nome de e das sementes de palma (ikin),
nessa fase dá-se o nome de e, também, a memorização dos sinais e dos nomes de cada um dos
256 odù. Essa fase dura de dois a três anos de prática186. Assim que o aprendiz dominar os sinais e nomes
de cada odù, ele começa passo a passo a aprender os que pertencem a cada odù. O mestre recita
algumas linhas de um de uma única vez e o aprendiz o imita. Desta maneira,
um pequeno poema pode ser aprendido a cada dia enquanto um poema longo pode levar vários
dias para ser aprendido. O aspirante passa muitas horas sozinho tentando lembrar os já
ensinados pelo seu mestre. Isso aviva a memória e ajuda saber quais já foram aprendidos a fundo
e quais foram esquecidos (ABIMBOLA, 1977, p. 12).
186
A duração de casa fase do treinamento depende muito do aprendiz, alguns podem terminar rapidamente outros podem demorar
mais já que a capacidade de memorização varia de pessoa para pessoa.
268
Uma boa parte do treinamento dos sacerdotes de Ifá é, entretanto, informal. Durante os jogos
realizados pelo seu mestre para seus clientes, o aprendiz aprende observando a manipulação e como seu
mestre entoa os de Ifá. Às vezes, o aprendiz auxilia na preparação de algum remédio ou na busca dos
materiais exigidos para um sacrifício. Assim, o aprendiz tanto reforça os ensinamentos já aprendidos bem
como conhece novos e novas formulas medicinais e de . O processo de iniciação envolve a
realização de inúmeros atos e muitos são de conhecimento exclusivo dos babalaôs e dos iniciados que
possuem Igba-Odù. Os aprendizes tornam-se, neste momento, filho do segredo ou kekere-awo,
o pequeno que domina o segredo.
A botânica iorubá nomeia as plantas seguindo critérios como o cheiro, a cor, a textura das folhas, a
reação ao toque, a sensação provocada pelo contato etc. Diferindo da botânica ocidental, ela não se
preocupa com uma classificação e nomeação das plantas baseada em um nome científico e em suas
características farmacológicas, mas o essencial é “o conhecimento dos encantações transmitidas
oralmente e pronunciadas no momento de preparação ou aplicação de diversas receitas medicinais, oògùn”.
Nos “encontramos a definição da ação esperada de cada uma das plantas que entram na receita”
(VERGER, 2001, p. 23).
A manipulação das plantas nas sociedades iorubás é realizada pelos olósàyin, oloògun ou
, bem como pelos babalaôs, babalorixás e iyalorixás. Iremos apenas discutir sobre a prática
dos babalaôs, no entanto, uma discussão introdutória sobre a prática da egbogi, medicina iorubá, se faz
necessária para uma ampla compreensão das dinâmicas praticadas pelos babalaôs na manipulação das
plantas.
É muito comum nas culturas ocidentais contemporâneas a distinção entre medicina tradicional e
alternativa. A cultura iorubá também possui uma distinção comparativa, no entanto, os significados dos dois
termos são invertidos. No ocidente, a medicina tradicional, nos dias de hoje, é a medicina ortodoxa, aquela
187
“Não há folhas, não há orixá”
188
Olósàyin são sacerdotes ou sacerdotisas do orixá Ossaim que é responsável justamente pela manipulação das plantas dentro
dos cultos aos orixás. O herbalista, e o oloògun são usados quase como sinônimos, porém este último é sempre um
sacerdote ou sacerdotisa. Há outras nomenclaturas tais como: gbogbonise (problemas de coração), teguntegun (problemas nos
ossos), elewe omo (pediatra), lekuleja (farmacêuticos) e ateyanrin (encantadores).
269
praticada por um específico profissional, médico ou médica, que passou por um longo treinamento em uma
escola médica e foi aprovado por alguma associação médica.
Medicina alternativa é um termo genérico usado para descrever qualquer outra abordagem que
utilize princípios e métodos que sejam diferentes daqueles da medicina ortodoxa. Acupuntura chinesa,
ayurveda indiana e os aspectos de cura do sufismo são todas consideradas como medicinas alternativas no
ocidente. Na sociedade iorubá medicina tradicional refere-se a uma antiga, holística e não ocidental
abordagem da medicina. Por definição, o que é chamado de medicina tradicional no mundo ocidental
(medicina ortodoxa) torna-se medicina alternativa nas sociedades iorubás tradicionais (ABÍMBÓLÁ, 2005).
Primeiramente, faz-se necessária uma diferenciação entre os princípios e métodos da medicina
tradicional iorubáe aqueles da medicina ortodoxa (ocidental). Para tanto, uma caracterização das diferenças
entre medicina tradicional e alternativa é fundamental para se esclarecer a diferenciação nas abordagens da
medicina. A medicina ortodoxa é, geralmente, alopática no sentido de que sua metodologia para o
tratamento das doenças é baseada no que se pode chamar de “princípio contrário”. Por esse princípio, as
doenças e enfermidades devem ser tratadas com agentes químicos que produzam efeitos que sejam
contrários, em oposição àqueles exibidos pela doença ou enfermidade. E mais, a medicina alopática
preocupa-se, em um primeiro momento, na eliminação dos sintomas (ABÍMBÓLÁ, 2005, p. 56).
Medicina alternativa (no sentido ocidental de “alternativa”) é homeopática. Assim, o seu tratamento
é baseado no “princípio da similaridade”, ou seja, através do uso de ervas medicinais que provoca em uma
pessoa saudável sintomas similares aos de uma pessoa doente. Logo, enquanto a medicina alopática
preocupa-se em se livrar dos sintomas, a medicina homeopática está mais preocupada com a identificação
das causas da doença e enfermidade em um esforço para restaurar o equilíbrio holístico no sistema
biológico.
A medicina tradicional iorubá, egbogi, é homeopática, pois não está preocupada em combater os
sintomas, em primeiro lugar, mas seu interesse é na identificação e remoção das causas da doença. O seu
objetivo é reestabelecer o equilíbrio biológico da pessoa doente. Além disso, há uma dimensão espiritual no
tratamento oferecido pelos (literalmente “criadores de medicina”). Logo, em seus esforços na
restauração holística do paciente, o também se interessará em descobrir as causas espirituais da
doença (se houver alguma), bem como ele ou ela estará interessada em restaurar o equilíbrio espiritual do
paciente (se necessário for).
Restaurar o equilíbrio espiritual torna-se importante por duas principais razões. Primeira, o jogo é
uma forma de restaurar o equilíbrio holístico. Como vimos anteriormente, o ser humano é formado de quatro
270
partes: (i) , o corpo (esqueleto criado por e moldado por ; (ii) , o sopro de
que gera a vida no homem; (iii) orí, que é o princípio do sucesso material e atualização; e (iv)
, que é o princípio do esforço individual. , resumidamente, representa a ideia de que, em última
instância, o sucesso depende exclusivamente da pessoa.
Utiliza-se a divinação por Ifá como uma importante forma de descobrir diagnósticos pelos
praticantes da medicina tradicional. Depois da divinação, o poderá determinar que a origem da
doença ou enfermidade é espiritual, assim, juntamente com as ervas e medicamentos que serão prescritos
para a reparação do corpo, serão prescritos, também, instruções para a reparação espiritual. O sacrifício é
obrigatório após qualquer divinação. , logo, a prática da
medicina iorubánão é, portanto, apenas um tratamento homeopático, mas também uma forma de equilibrar
as energias espirituais uma vez que uma doença ou enfermidade pode ter uma dupla origem (física e
espiritual).
Desta feita, analisaremos agora como os babalaôs manipulam as plantas na dinâmica da divinação
do sistema de Ifá. Sob cada odù estão determinados os remédios e os oògùn que são prescritos e realizados
para os consulentes. Durante a preparação de um oògùn, o babalaô estabelece uma ligação entre o oògùn e
o odù, a qual é construída na performance verbal entre o nome da planta, o nome da ação medicinal ou de
encantamento e o odù correspondente. Tal performance se dá através de elos verbais que “são essenciais
para ajudar o babalaô a memorizar as noções e conhecimentos transmitidos por tradições orais, tendo assim
um caráter coletivo e não individual” (VERGER, 2001, p. 19).
Na língua iorubá, geralmente, há uma relação direta entre os nomes das plantas e suas qualidades,
e é importante saber se receberam tais nomes devido às suas virtudes ou se devido a seus nomes
determinadas características foram a elas atribuídas, os Os sendo pronunciados
em orações solenes, podem ser considerados como definições e com frequência são as bases
sobre as quais o raciocínio é construído. Servem também como conclusão e prova final nas
histórias transmitidas de geração a geração pelos babalaôs, e expressam ao mesmo tempo o
ponto de vista da cultura iorubá e o senso comum de seu povo (VERGER, 2001, p. 24).
A palavra, veículo de transmissão de axé, somente possui o seu efeito quando pronunciada. Em
todo trabalho de preparação dos oògùn deve-se entoar os Estes, conforme VERGER (2001), possuem
um verbo atuante que é uma das sílabas do nome da planta ou do ingrediente empregado e em cada verso
ele é repetido em uma das sílabas do nome da planta ou do objeto empregado, como podemos notar, por
exemplo, no seguinte oògùn nárun que utiliza as plantas e :
189
“Um pouco de sacrifício e um pouco de medicamento é que salva uma pessoa em vias de morrer.”
271
O elo atuante, invocado nos não se limita apenas ao verbo, mas pode aparecer em uma frase
curta ou longa:
Também pode ser encontrado em mais de uma sílaba do nome da planta. Um exemplo:
quando pèrègún é usada em trabalhos para se obter boa sorte (àwúre oríre), o elo é criado a partir
de pèrè, com o Pèrègún per ere wá. “Pèrègún chame a sorte (rere) para cá”; mas quando é
usada em trabalhos para agradar as ajés ( ), o elo se baseia em gún, com o
Pèrègún ò nì kì ayè mi ò gùn, “Pèrègún mande que a minha vida seja reta (gún)” (VERGER,
2001, p. 39).
Os oògùn podem objetivar uma ação negativa (àdìlù) ou de proteção (ìdáàbòbò). Sendo o primeiro
o causador da ação e o segundo o seu antídoto. Assim, temos, por exemplo, oògùn para òjò (chuva), èpè
(maldições), (processos judiciais), mágùn (para matar o amante da esposa), ibi (mal), ikú
(morte). Há os oògùn para efeitos estimulantes e tranquilizantes, tais como: (boa memória),
272
(virilidade), márale ou ìmú ara le (força física), (tranquilidade), wèrè (loucura). Para os iorubás, a
grandiosidade e a abundância está no dinheiro, no número de esposas e no número de crianças, logo, há
oògùn para cada um desses desejos.
O ebó deve ser entendido, por conseguinte, como uma das ações que estabelecem e solidificam a
comunhão entre os seres que vivem no aiye e os seres que vivem no orun. Ele é o movimento material da
realidade de modo a transformá-la em uma nova realidade potencializada por Ifá. E, também, ele é o símbolo
da própria vida em transformação no presente, tudo e todos estão no agora, e transformar este agora é
continuamente estar no presente da realidade concreta da vida. Qualquer realidade existencial se dá somente
no presente, e, assim, o ebó é a movimentação da materialidade de todos os elementos da natureza, que
uma vez transformados, inauguram um novo presente. Viver é um contínuo jogo de transformações (fruição
de axé) e o ebó é uma das formas de se realizar essas transformações.
As transformações refletem, obviamente, as necessidades sociais, econômicas, políticas e
espirituais dos iorubás os quais, de uma maneira não exaustiva, realizam ebó ou para atrair o bem ou para
prevenir-se de um mal iminente ou para afastar um mal que já se encontra instalado. De um modo geral, o
ebó é realizado objetivando conservar, fortalecer e/ou estabelecer a harmonia existencial individual (relação
com o orí pessoal) ou coletiva (por exemplo, problemas com a falta de chuvas, questões específicas de um
273
núcleo familiar, questões que envolvam os ancestrais). Para a sua realização são indispensáveis os
elementos da natureza (água, fogo, terra, ar, folhas, arvores etc.), da presença do sol ou da lua, o preparo e a
oferta de comida e de animais sacrificiais. Ele pode ser oferecido a Exu, às Iyami Oxorongá, aos demais
orixás e aos ajoguns. Exu, dentro das dinâmicas da economia de axé 190, ocupa um lugar fundamental, pois
ao mesmo tempo em que ele é o protetor/guardião dos axés dos outros orixás, é ele quem transporta o ebó
e o consome, este último dividido com as Iyami Oxorongá e os ajoguns.
Na dinâmica do sistema de Ifá, para se completar o processo da divinação, há sempre um sacrifício
prescrito. Tanto em situações nas quais a leitura indicou algo bom quanto nas que indicou algo ruim, o
consulente sempre deverá oferecer um ebó. Após a consulta, o consulente deverá providenciar todos os
elementos necessários para o ebó e retornar ao babalaô para que ele o realize. Não é incomum o consulente
não conseguir todos os elementos para o ebó, ainda assim, o babalaô deve aceitar qualquer que seja a
fração para a realização do ebó. A não realização do sacrifico é condenada por Ifá. Citamos a seguir duas
listas de materiais necessários para um ebó a partir do odù
(a)
O ebó para esse cliente é a medida de uma vasilha de milho, uma cabaça quebrada e um ramo de
palma. O ramo de palma deve ser cortado em duas partes e um pinto deverá ser colocado em
cada um junto com dois mil e duzentos búzios, quatro porções de mingua de milho, nove nozes
de cola e um pouco de óleo de palma. O sacrifício deve ser colocado em um lugar aberto próximo
da casa do consulente.
(b)
190
Entendida como todas as formas/maneiras de se obter, aumentar e perder axé.
274
O ebó para esse cliente é um invólucro branco grande e seis bolos de feijão. O cliente deve comer
um bolo de feijão fora dos muros da cidade e colocar outro no muro. Ele deve comer um dos
bolos no altar de Exu e colocar um bolo no altar. Ele deve comer um dos bolos no segundo altar
de Exu e colocar um bolo no altar.
o sacerdote de Ifá em
, o sacerdote de Ifá de
O homem robusto
Que sempre estava com mãos e pés amarrados
de sua casa
Mas o sacrifício não foi aceito
A ele foi pedido para que fizesse sacrifício ao senhor do
mercado
Mas o sacrifício não foi aceito
O senhor do mercado recusou o sacrifício
A ele foi pedido que fizesse um sacrifício para seu Orí
Ele fez sacrifícios repetidamente para seu Orí
Até sua cabeça ficar careca
A ele foi pedido que fizesse sacrifício à Terra
Ele fez sacrifícios repetidamente à Terra
Até que ele criou um buraco na terra
A ele foi pedido que fizesse sacrifício
A , o pai dos ebós
Ele disse que sabia que o pai de alguém
É o Egúngún de uma casa
Ele disse que sabia que a mãe de alguém
É a deusa do mercado
Ele disse que sabia que Orí era a cabeça
E que ilê era a terra, mas não sabia
O que era , o pai dos ebós
Eles disseram que a boca das pessoas
A boca das pessoas era conhecida como
O que cultuamos em Ifé?
A boca das pessoas
É a boca das pessoas que cultuamos em Ifé
A boca delas
Eu já entreguei para aqueles daqui
Eu já entreguei para aqueles de lá
A boca delas
A boca delas já não pode mais contra mim
A boca delas
Eu já entreguei para aqueles de minha casa
Eu já entreguei para os de passagem
A boca delas
A boca delas já não pode mais contra mim
A boca delas
276
Dando continuidade a apresentação dos dezesseis principais odù do sistema de Ifá, analisaremos
agora o último odù:
ODÙ
Esse odù denota todos os tipos de caráter e personalidades dos seres humanos. Há consentimento
de poder por outras pessoas. Quando se vive de acordo com a palavra de Ifá, a vida é “mais doce que mel”.
O odù aponta que a sabedoria transcende o fato de se ter ou não dinheiro já que o dinheiro é que prejudica o
caráter. A sua inscrição gráfica é:
II II
I I
II II
I I
ÌWÀ ODÙ
O primeiro narra a história de quando o jogo de Ifá foi jogado para a Montanha, aquele que não
pode ser subjugado. Trata-se do simbolismo sobre aqueles que seguem a palavra de Ifá e, como
consequência, são sempre fortes e firmes.
O segundo narra a história do jogo de Ifá que foi realizado para Okó, a canoa, para que ela
chegasse em Olueri, orixá que controla e vive nas profundezas dos rios.
A vida de Ifá estava mais fria do que a água (ABIMBOLA, 1977, p. 150).
191
Nome pessoal cujo significado é: “a coroa cabe na cabeça”.
192
Rei da cidade de Àrán. Os descendentes da linhagem de àrán são os responsáveis por produzirem as roupas dos Egúngún.
193
Nome pessoal cujo significado é: “a coroa é bela”.
278
Vimos neste item alguns dos elementos que compõem a experiência de mundo para os iorubás,
sobretudo, o ebó e as folhas (ewe). O ebó, como observamos ao longo de todo o texto, ocupa lugar de
destaque nas dinâmicas de Ifá. Não há realização da palavra de Ifá sem o ebó. As folhas também fazem parte
da práxis de Ifá na preparação de remédios ou encantamentos para os mais diversos tipos de problemas.
Apresentamos, a seguir, a segunda leitura de Ifá.
194
Nome pessoal cujo significado é: “aquele que desperta para lucrar sobre tudo”.
195
Faz referência a uma sacerdotisa de Oxalá já que os sacerdotes desse orixá não podem tomar banho com água quente.
279
Apresentamos o segundo exemplo de uma leitura de Ifá que foi realizada no ano de 2014 durante o
World Ifa Festival quando do dia sete de junho, que é o primeiro dia do calendário anual de Ifá. O odù que
foi revelado no jogo foi Ofunosa. Esse odù ocupa a 251ª na ordem fixa de senioridade do sistema de Ifá. Sua
inscrição gráfica é:
II II
I I
I II
I I
Por esse odù, Ifá revela ire Aikú (aspecto positivo), vida longa e ebó é recomendado para
concretizá-los.
PRINCIPAIS INTERPRETAÇÕES
A primeira interpretação aponta que Ifá diz que existir assistência mútua. Ifá deseja que nós,
complementarmente, trabalhemos juntos. As pessoas precisam fazer as coisas certas para reparar ou
recuperar sistemas que estão quebrados. Ebó deve ser feito para que as pessoas certas sejam enviadas com
esse propósito. Os itens do ebó são: oito pombos, mel, gin, papa e dinheiro. Por isso Ifá diz:
É muito branco
Tornou-se muito branco
Sacerdote de Eyin, o Dente
Um jogo de Ifá foi realizado para Eyin, o Dente
Quando o Dente estava procurando redenção.
A ele foi pedido que realizasse ebó.
280
Ele realizou.
Todos e misturados
Vamos unir nossas mãos
Para deparar nosso Dente
É muito branco
Tornou-se muito branco
A segunda interpretação aponta que, em Ofunosa, Ifá diz que há alguém que perdeu poder e voz
devido à conspiração de outras pessoas. Elas roubaram a sua propriedade de herança e querem que o Rei o
puna por ter perdido uma terra que pertencia a todos da região. Ifá recomenda que ebó seja realizado e a
pessoa deve levá-lo até a fazenda onde seu pai foi enterrado. Os itens para o ebó são: um bode, um rato
grande, papa, óleo de palma e dinheiro. Por isso, Ifá diz:
A terceira interpretação aponta para a necessidade de fazer ebó para que tenhamos sucesso em
todos nossos empreendimentos. Aje, o orixá da riqueza, deve ser alimentado. Além disso, qualquer um que
procure por esposa precisa realizar ebó para ter sucesso. Os itens para o ebó são: quatro pombos, mel, gin,
dinheiro, banana, ovos e papa. Por isso Ifá diz:
281
A quarta interpretação aponta que ebó precisa ser realizado contra doenças. Os itens para o ebó são:
cabeça, pele e carne de um gorila, feijões, três galos, óleo de palma e um prato de bronze. Depois do ebó,
Oxum deve ser alimentada. Por isso, Ifá diz:
É branco
A quinta interpretação aponta que pessoas entrarão em guerra pela posse de propriedades. Tais
donos de propriedade devem realizar ebó com um bode, sete patos, óleo de palma e dinheiro. Há
necessidade de se iniciar em Ifá e em qualquer outro orixá para vencer os usurpadores. Ifá diz que as
pessoas devem estar atentas aos inimigos que sempre tentarão roubar a herança. Por isso Ifá diz:
A sexta interpretação aponta que discussões devem ser evitadas nesse ano. Todos devem realizar
ebó para seus filhos e filhas. Precisam saber quem é o pai do amigo de seu filho. Perigo de morte de filhos
e filhas. Os itens para o ebó são: roupa branca, três galos, cinzas, óleo de palma e dinheiro. Por isso, Ifá diz:
A sétima interpretação aponta que as pessoas devem demonstrar mais compaixão com uma com as
outras. Há inimigos entre os amigos. Os itens para o ebó são: um rato grande, um galo, papa, óleo de palma
e dinheiro. Por isso Ifá diz:
Ofun saarasa
Babalaô de Eera, a Formiga realizou um jogo de Ifá para Eera
Também para Poporo, a espiga de milho
Quando eles eram amigos
A eles foi pedido que realizassem ebó
Todo meu pessoal
Todos sacerdotes de Ifá
Vocês não sabem que a Formiga não gosta da Espiga de Milho
As pessoas não me amam genuinamente
As pessoas não desejam que eu como em um prato caro
A oitava interpretação aponta para competição sobre lideranças. Há necessidade de se ter cuidado
ao dar títulos para quem não mereça. Ebó deve ser realizado para que a pessoa certa receba o seu título de
chefe. Ifá diz que tal pessoa deve ser humilde e gentil, e não ansiosa para que as outras pessoas apoiem a
recomendação do título. Os itens para o ebó são: pombos, banana, mel, papa, água fria e dinheiro. Por isso,
Ifá diz:
A nona interpretação aponta que as pessoas não devem ser sempre tão confiantes. Há sempre a
necessidade de aceitar o fato que nem todos são perfeitos e que devemos procurar conselhos daqueles que
sabem mais. Assim, vida longa e aceitação de todos os rituais estão garantidos para esse ano. Por isso, Ifpa
diz:
A décima interpretação aponta que Ifá irá abençoar com axé todos os seus devotos. Devemos ser
gratos a Ifá e divulgar sua grandeza pelo mundo. Os itens para o ebó são: dois ratos, dois peixes, duas
galinhas, um bode, noz de cola, gin e dinheiro. Por isso, Ifá diz:
Os orixás que falam nesse odù são: Ifá Egbe, Orun Oku (ancestrais), Olokun, Olosa, Ogum, Xangô,
Oyá, Osun e Ossaim.
CONCLUSÃO
288
289
Para compreendê-lo apontamos que a primeira atitude seria assumirmos criticamente o locus de
produção dessa compreensão (a dissertação) que, a partir da crítica das formas de produção de
conhecimento, se realiza em uma linguagem racista e opera, sistematicamente, pela colonialidade de poder
e de saberes. Transcender, epistemologicamente, a modernidade europeia é um projeto cujas extensões
ultrapassam os limites deste texto e, à vista disso, optamos por realizar três aproximações ao sistema de Ifá.
O sistema de Ifá é constituído por um aparato e estrutura de enunciados orais específicos. Todo o
processo de elaboração simbólica dos conhecimentos e as dinâmicas da prática do jogo de Ifá constituem a
sua linguagem, ou seja, é no conjunto de relações possíveis entre os enunciados orais, o babalaô e o
aparato que o sistema de Ifá se realiza enquanto produtor de conhecimento.
Os estudos sobre Ifá, como argumentamos, podem gerar inúmeras possibilidades de leitura desde
uma rica fonte de enunciados orais que revelam a história social e cultural dos iorubás, passando por
analises dos aspectos da palavra (oralidade), até discussões que envolvem a produção de conhecimento
iorubá no que chamamos de “imaginário conceitual”. Optamos nessa dissertação por apresentar uma
introdução ao sistema de Ifá através de suas características práticas e, principalmente, dos elementos gerais
que, como vimos, determinam um tipo particular de linguagem que expressa um mundo igualmente
particular. As características práticas são aquelas que constituem, de maneira geral, o que chamamos de
290
jogo de Ifá: as características dos “versos” de Ifá, a ontologia dos babalaôs (sacerdotes de Ifá), as regras de
leitura etc. Os elementos gerais são aqueles que produzem a particularidade do mundo iorubá, sua
imaginação africana: a palavra, o corpo e a cosmovisão iorubás.
Surgiram, por conseguinte, três questões fundamentais: (a) qual a natureza da linguagem e suas
implicações na experiência de mundo iorubá assumindo seu locus de produção de conhecimento que é a
tradição oral?; (b) como se operam as dinâmicas de temporalidade, de espaço e de movimentos na
performance do corpo iorubá que também é um locus de produção de conhecimento?; e, por fim, (c) quais
os elementos que determinam os sentidos, as pedagogias, as produções, as reflexões, as transformações e
as performances da experiência de mundo iorubá?
Desta feita, a possibilidade de uma introdução ao sistema de Ifá se deu pelo reconhecimento
epistemológico da densidade da qual o presente iorubá é feito e pela compreensão das práticas das quais os
iorubás criam sua conduta particular. Logo, apresentamos o sistema de Ifá através da compreensão da
linguagem (na palavra, no som, no corpo e no mundo iorubás) que o possibilita enquanto produtor de
conhecimento..
não apenas como um meio de comunicação diária, mas também como um meio de preservação
da sabedoria dos ancestrais, venerada no que poderíamos chamar elocuções-chave, isto é, a
tradição oral. A tradição pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente
de uma geração para outra. Quase em toda parte, a palavra tem um poder misterioso, pois
palavras criam coisas. Isso, pelo menos, é o que prevalece na maioria das civilizações africanas
(VANSINA, 2011, p. 139 - 140).
Para os iorubás todas as coisas existem em potencialidade e é pela palavra que adquirem a
materialidade existencial. Desta meira, a palavra é o agente ativo do axé, é memória, é ancestralidade. A
tradição oral iorubá é composta, dentro outros, pelos “versos” de Ifá que ancoram em si mesmos os saberes
transmitidos pelas performances do som e do corpo.
Na segunda aproximação, o corpo irrompe como local de produção de conhecimento, mas também
como forma comunicativa entre as realidades que compõem a totalidade-mundo dos iorubás, orun e aiye.
Uma vida, cuja a atitude em relação a experiência de mundo é a busca de equilíbrio, se revela em um
processo de múltiplas possibilidades. Cabe aos babalaôs, sacerdotes de Ifá, a tarefa de agenciar as
291
A díá fún é como encontramos nos enunciados orais iorubás a referência a um jogo de Ifá que foi
realizado. Essa frase expressa que todos os elementos necessários para que se estabeleça a comunicação
entre o orun e o aiye foram realizados e, sobretudo, antecipa que o que se ouvirá é a palavra de Orunmilá,
orixá que representa a possibilidade de todo o conhecimento iorubá. Ela pressupõe, então, que os iorubás
não possuem somente uma capacidade narrativa de síntese e um rico universo simbólico, mas que o
sistema de Ifá é um processo de reflexão em uma imaginação africana que determina a produção de uma
outra forma de saber e de se estabelecer relações com a totalidade-mundo.
O projeto abriu inúmeras possibilidades de estudo sobre o sistema de Ifá, como também sobre a
religião tradicional dos orixás. Falta aos estudos sobre o universo iorubá analises sobre as dinâmicas que
envolvem os orixás e a prática de Ifá; sobre os processos de produção dos odù e suas transformações para
questões da contemporaneidade; sobre a relação entre a tradição de babalaôs em contexto africano e em
contexto diaspórico; sobre a performance da palavra em contexto iorubá, sobretudo, nas dinâmicas de Ifá e
nos rituais aos orixás; e, por fim, sobre as implicações éticas e políticas da possibilidade de uma existência
a partir de Ifá.
Para finalizarmos, apresentamos uma pequena reflexão da Iyalorixá Mãe Stella do Ilê Axé Opô
Afonjá, que nos servirá como ebó de encerramento.
Exu é a nossa bússola, aquele que nos protege para que não fiquemos desnorteados. Afinal, enquanto seres
humanos, nós somos muito instáveis.
A vida nos coloca sempre em encruzilhadas, onde somos obrigados a escolher que atitude tomar,
por isto se diz que é na encruzilhada que se encontra o destino. É que as encruzilhadas, isto é, os
cruzamentos de caminhos, são espaços sagrados, daí a responsabilidade que se deve ter com os rituais e,
consequentemente, os pedidos feitos nestes locais.
Repetindo, as encruzilhadas são lugares sagrados onde se pede ajuda aos orixás para que
tenhamos critérios nas escolhas feitas, a fim de não nos perdermos no caminho. São também nesses locais
que pessoas que possuem o devido preparo espiritual, com muita responsabilidade e respeito, realizam
rituais cuja finalidade é despachar, no sentido de expulsar, as energias negativas, que o sagrado consegue
transmutar em energias positivas, para depois serem devolvidas aos homens, já livre de todas as impurezas.
Pois as encruzilhadas são lugares, e momentos, de reflexão para escolha do caminho a seguir, mas também
são lugares naturais para que possamos nos desvencilhar das negatividades por nós criadas ou em nós
respingadas.
Itens para o ebó: três galos, um bode, mel, pimenta da costa e búzios.
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REFERÊNCIAS
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