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Escaravelho Coracao PDF
Escaravelho Coracao PDF
MUSEU NACIONAL
MESTRADO EM ARQUEOLOGIA
Volume I
Texto
Rio de Janeiro
2009
Marina Buffa César
Dois volumes
Rio de Janeiro
Julho de 2009
César, Marina Buffa
Egito
Aprovada por
Rio de Janeiro
Julho de 2009
Meu agradecimento mais que especial ao meu orientador, Antonio Brancaglion Junior,
por incentivar-me a crescer tanto academicamente como ser humano desde que fizemos nossa
primeira reunião em 2004. Por toda a ajuda nesses anos de trabalho, pelos ensinamentos em
sala de aula e reuniões e ótimos momentos passados conversando sobre a vida e o cotidiano
no Egito atual. Em relação à Marly, o que posso dizer a não ser que ela é um anjo sempre
presente em nossos corações? Meus agradecimentos pela ajuda com os textos, por me acalmar
nos momentos de desespero, por nossas conversas, por todo carinho com que me tratou em
todos os momentos. Agradeço a essa relação de amizade cultivada com Antonio e Marly,
dois anos de formação e muito aprendizado, muito obrigada. Agradeço a todos pelo
longo desses dois anos, pelos PowerPoints preparados na madrugada anterior à aula e por não
ter me passado o assustador texto de teoria evolutiva. Além de todo o carinho e ensinamento
que me passou enquanto fui sua aluna. À professora Cláudia, que me ensinou a anatomia
humana, por ter sido uma mãe para mim quando fraturei o pé nas pirâmides, pelos momentos
apoio que ela me dá em futuros projetos é indescritível. Agradeço ao professor Renato Cabral,
da Geologia, por me ensinar sobre as rochas tão importantes em meu trabalho. Ao professor
Wagner, por ter me alugado seu apartamento, facilitando a minha estada no Rio de Janeiro
Rabelo, que me recebeu na reserva técnica quando eu ainda era estagiária e muito me ensinou.
À Claudine, que sempre ajudou em todos os momentos e é mais que somente secretária do
Às minhas amigas do grupo do Egito, Cintia Gama, Cíntia (Lost), Juliana, Marilda,
Simone e Regina. Agradeço a todas da mesma maneira, porque todas tiveram papel
fundamental em meu trabalho. Obrigada por terem me apoiado, me acalmado, pelos cafés,
pelas conversas e por nunca me deixarem desistir nos momentos de fraqueza. Se hoje essa
Aos meus colegas de mestrado só posso dizer que os momentos que passamos juntos
foram ótimos e que tenhamos muito outros em nossa nova jornada. À Tatiana, que sempre
esteve ao meu lado não importando a hora. Tati, obrigada pelo apoio durante as madrugadas e
por todas nossas conversas. Outra pessoa importante nessa trajetória foi a Regina Norma.
Obrigada por tudo amiga! Diogo, Cilcair, Bia (Líticos), Bia (Faiança) amigos formidáveis e
jeito deles, sempre me apoiou e é a melhor família que eu poderia ter. Às minhas avós, que
sempre responderam com entusiasmo cada passo que eu dava nessa jornada. Às pessoas mais
importantes em minha vida, pai e mãe, muito obrigada por sempre acreditarem em mim e por
tudo que me deram até hoje. Obrigada por todas as oportunidades de estudo, de moradia.
Resumo
cotidianos, e selos, com nomes da realeza e de pessoas comuns. Eles eram identificados com
um dos mais importantes para assegurar que o morto chegasse ao Mundo Inferior sem
coração de acordo com a religião egípcia e textos funerários. O texto está baseado em textos
coração não são raramente encontrados em contexto original, sendo a maioria comprada ou
doada para Museus. O amuleto era colocado na região torácica do morto durante o processo
de mumificação, mais comumente em meio às bandagens. A sua função era impedir que o
coração de seu dono se levantasse contra ele em falso testemunho. O Capítulo 30b do Livro
dos Mortos aparece em sua maioria na base desses amuletos para eficácia do poder dessas
catalográficas e com fotografias. Esse volume serve como a base para o desenvolvimento do
texto do volume I.
Abstract
Ancient Egyptians used scarabs as amulets, funerary or ordinary, and as seals with common
people and royal names. Scarabs were identified with the solar god Khepri. One kind of
funerary amulet, the scarab heart, is known as the most important to assert that the dead
became safely though the Underworld journey. The objective of this work is to describe the
simbology of the scarab heart in accordance with the Egyptian religion and funerary texts. We
have used well-known references about the subject, and some excavations reports to
understand the archaeological context of those objects. In fact, the scarab heart is rarely found
in its original context, since most of them were bought or donated to Museums. It is known
that through the mummification process, amulet was placed inside the thorax, frequently in
the bandages. The function of this amulet was to avoid that the heart acted on false testimony
against the dead. The chapter 30b of The Book of the Dead appears in the base of these
amulets to assert a better of this power of words. The scarab heart was sculpted in rocks in the
form of the amulet, with the animal in one side and text in the opposite side.
The second volume is the heart scarab itself, composed with its description and photography.
Lista de figuras
ABSTRACT...................................................................................................................................................10
INTRODUÇÃO .............................................................................................................................................18
CAPÍTULO 1. RELIGIÃO ...........................................................................................................................22
CAPÍTULO 7. ESCARAVELHO-CORAÇÃO...........................................................................................127
7.1. PERÍODO DE UTILIZAÇÃO ..................................................................................................................... 129
7.2. FUNÇÕES E SIMBOLOGIA ...................................................................................................................... 131
7.3. POSIÇÃO NA MÚMIA ............................................................................................................................. 132
7.5. TEXTOS ............................................................................................................................................... 134
7.6. VARIAÇÕES ......................................................................................................................................... 135
7.6.1. O pássaro Benu ........................................................................................................................... 135
7.6.2. Escaravelhos com cabeça humana ............................................................................................... 135
7.6.3. Ouro e sua representação ............................................................................................................ 136
7.6.4. Pilonos ........................................................................................................................................ 136
7.6.5 Escaravelho-coração e amuleto do coração .................................................................................. 137
7.7 MÚMIAS DE ANIMAIS ............................................................................................................................ 138
CONCLUSÕES ...........................................................................................................................................139
BIBLIOGRAFIA .........................................................................................................................................141
VOLUME II ................................................................................................................................................146
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................150
METODOLOGIA .............................................................................................................................................151
CATÁLOGO ...............................................................................................................................................153
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Introdução
acompanhavam a múmia. Tal fato se dava porque a função desse amuleto era de não deixar
que o coração se levantasse contra seu dono no momento da pesagem no Tribunal de Osíris.
Destarte, o coração era tido como órgão mais importante do corpo humano, porque nele se
dinástico, estes eram vistos como a simbologia do deus solar Khepri ( ) que significava
ressurreição e renascimento, também identificado como o sol nascente. Ele pode ser
representado como um escaravelho com o disco solar ou como um homem com cabeça de
escaravelho. Por que ressurreição e renascimento? Porque os egípcios perceberam que esse
inseto fazia uma bola de excrementos e a arrastava pelo deserto com o intuito de enterrá-la.
Após 28 dias um novo escaravelho nascia. Fato que os levou a crer que os escaravelhos
renasciam. Dessa forma, os amuletos de escaravelhos eram utilizados nos caixões, nas
múmias e nas inscrições das tumbas egípcias para que garantissem o renascimento do morto.
Os amuletos de escaravelhos podem ser o de uso cotidiano que tem como simbologia
que aparece no Novo Império representa Khepri como o sol nascente, ligado ao ciclo solar do
nascimento até a morte, suas asas eram uma referência aos deuses do céu e seus poderes.
Pequenos amuletos de escaravelhos são colocados nas bandagens das múmias a partir do
Novo Império.
múmia, em meio às bandagens durante seu embalsamento. A partir da 21ª dinastia ele
aparece dentro da caixa torácica. Todavia anterior a esse período caso ocorresse um descuido
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do embalsamador e destruísse o coração o amuleto era colocado em seu lugar. Sua função era
não permitir que o coração do morto se levantasse contra seu dono durante o Tribunal de
Osíris. Esse Tribunal consistia no local onde o coração era pesado na balança da verdade e da
justiça, tendo como contrapeso a deusa Maat, representada por uma pena. Caso o coração
fosse mais pesado que a pena, ele era devorado por Ammit (deusa híbrida de crocodilo-
devorado, seu nome sumiria por toda a eternidade. Isso para os egípcios antigos seria a morte
coração fosse menos pesado ou de peso igual ao da pena, o morto teria o direito de ir para o
Mundo Inferior. Contudo, para que o coração tivesse esse peso, contava-se com a ajuda do
escaravelho-coração que possuía em sua base o Capítulo 30b do Livro dos Mortos. Todavia o
amuleto poderia conter outros textos que indicassem esse desejo do morto em manter o seu
coração leve.
O Capítulo 30b não aparece completo nos escaravelhos-coração por uma questão de
espaço. Os artesãos colocavam os principais trechos, aqueles que exaltariam o coração para
na múmia do escaravelho-coração. Isto posto indica que não será analisado somente o artefato
em si, porém todos os valores agregados a este. Para um entendimento fluido desse amuleto a
dissertação foi dividida em dois volumes. No primeiro volume têm os contextos religiosos,
O primeiro capítulo traz uma contextualização da religião egípcia com base nos
Osíris. O deus Khepri por ser o deus solar representado como escaravelho e símbolo do
20
pesagem do coração.
mumificação e alguns amuletos que se encontravam nas bandagens. O que ocorre no segundo
capítulo. Seguindo essa linha, os textos funerários que poderiam ser escritos tanto em paredes
O quarto capítulo trata do coração, o principal órgão do corpo humano com suas
próprias vontades que eram contidas pelo o escaravelho-coração. Havia um amuleto funerário
próprio para o órgão que o amuleto do coração, esse tinha como objetivo proteger o coração
sobre o escaravelho na natureza, aos olhares egípcios e como esses se tornam objetos de uso
cotidiano e funerário.
Os capítulos seis e sete são mais interligados com o segundo volume da dissertação,
Em estudos clássicos de Egiptologia, Petrie (1917) e Ward (1902) por serem mais antigos
deixam de citar muitos pontos importantes sobre o escaravelho-coração. Por outro lado, eles
inseriram a discussão de quando começou a ser usado e sobre qual era o material habitual em
sua feitura. Nas publicações de Quirke (1992), Andrews (1996), Söderberg (1991), Gardiner
O segundo volume é composto por setenta e cinco peças de referência utilizadas para a
Capítulo 1. Religião
rituais. Uma breve demonstração de teoria e forma que engloba a questão da religiosidade faz-
estudo em Egiptologia estará baseado em textos, assim como a presente dissertação, que tem
como base o Livro dos Mortos, mais precisamente o Capítulo 30b. O próprio amuleto aqui
abordado, o escaravelho-coração, exibe inscrição em sua base e, alguns casos, nele inteiro.
Não há como elaborar esse estudo sem o uso da filologia, mas a cognição por trás da
mais antropológica, com ênfase nos processos, princípios e agências, o que levaria a um
Um estudo mais holístico volta-se para a paisagem, porque por meio dela se consegue
ver as mudanças geográficas, do leito dos rios, da agricultura, do modo de vida das pessoas.
Para Hassan, a cognição é um meio de se elaborar esse estudo haja vista que atos e artefatos
1 Hasan Fekri, Theorizing ancient Egypt: towards a new paradigm, p. 88, ocorrido em maio de 2008 na cidade de Rhodes, na
Grécia.
como um tema da Nova Arqueologia dos anos 60 e 70, mas não ganhou uma identidade
distinta até o começo dos 90 (SHAW & JAMENSON, 2002). Ela aparece como uma resposta
ao materialismo proposto pela Nova Arqueologia. Isso ocorre porque essa linha de
crenças e os simbolismos não foram estudados. Para os autores que iniciaram as pesquisas em
arqueologia cognitiva são as ações e não o pensamento que fica registrado no material
pois ela pretende saber como trabalhou a mente e essa linha de pesquisa espera desvendar os
coração, o cognitivismo se encaixa perfeitamente nessa linha de raciocínio, porque o foco está
na habilidade humana de construir e usar os símbolos. Para Ian Hodder (1992) os itens
sociedades constroem sua própria realidade e a cultura material tem um lugar integral nessa
construção. A arqueologia é uma disciplina histórica com integração ativa de itens culturais
nas práticas diárias. Essa afirmação de Hodder pode ser vista no cotidiano egípcio com
relação às construções das tumbas. Os escaravelhos são uma representação clara da cultura na
vida cotidiana. Eles representavam o deus Khepri, eram símbolos do renascimento e também
foram utilizados diariamente em forma de anéis para lacrar vasos de comida e bebidas. A
3 Anotações de aula do curso de teoria arqueológica ministrada pela professora Dra. Tânia Andrade Lima no primeiro
semestre de 2008, no programa de mestrado em Arqueologia do Museu Nacional/UFRJ
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da cultura antiga que são produtos da mente humana: a percepção, descrição e classificação
É importante ressaltar o que cada um desses pontos significa para aqueles autores. A
do povo, pois o próprio Mundo era constituído de deuses, onde, por exemplo, deus Geb
representa a terra, sua mulher Nut o céu e entre eles Shu, que era o deus do ar.
poderes divino ou super-humano, para ser obedecido e venerado como o(s) criador (es) e/ou
ambos relacionados com a busca por valores de uma vida ideal. Ela é a consciência de um
deuses de certas regiões eram mais adorados que outros, resultando em uma importância a
deus, esse reconhecido e aclamado como de um determinado local. O culto local era o
plano político ou cultural, com estratégias para colocar a doutrina em operação. A ideologia
egípcia não era estática e imutável, ela se adequava às inovações e mudanças da sociedade.
A iconografia se refere ao fazer de uma imagem por entalhe ou desenho. Em casos nos
quais se pretende saber sobre cosmologia, religião e ideologia a iconografia se faz presente
que remete à iconografia que, por exemplo, está relatada em tumbas como na tumba do faraó
Thutmés III, governante da 18ª dinastia, no Vale dos Reis, inscrições com capítulos do Livro
dos Mortos onde está a vinheta deles, por mim estudados, e suas rubricas. Invocações ao deus
Kheper também podem ser vistas em templos, tumbas e papiros. Os templos são ricos em
relatos sobre a religião, cultura e cotidiano egípcios e, portanto, não é possível elaborar um
estudo dessa sociedade sem olhar atentamente para os relatos iconográficos. Na iconografia
podemos analisar o pensamento e as crenças e também como eles mudam no decorrer das
dinastias. Os escaravelhos-coração são um ótimo exemplo disso, já que com o passar dos anos
a sua função e simbologia não mudam, contanto o material utilizado em sua fabricação e os
pensamento nas sociedades do passado, com base em seus remanescentes (SHAW &
JAMENSON, 2002).
Para se estudar a arqueologia dos períodos históricos faz-se uso dos textos disponíveis,
o que acontece com que estuda Egiptologia. Na prática, isso não acontece de maneira linear,
afinal os escritos são considerados palimpsesto, ou seja, ele pode não passar de uma série de
resquícios acumulados ao longo dos séculos. Faz-se necessário analisar os contextos tanto
religião. Porque ela trabalha com os símbolos, com o sobrenatural (RENFREW, 1994) O
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tanto no campo religioso, quanto simbólico e até mesmo econômico haja vista que as rochas
Uma síntese dessa discussão pode ser entendida por meio das palavras de Claude
Traunecker
Para o autor, o ritual dependerá sempre do real, senão esse não se realizará. O
imaginário está na estátua divina, onde ele está definido, nomeado e personificado.
Império eles eram os intermediadores dessa relação entre homem e natureza, homem e o
cosmos. Os faraós eram uma personificação divina, Hórus habitando a terra, somente ele
poderia se comunicar com os deuses, o que ocorria após a coroação. A sacralização aparecia
nas regalias utilizadas pelo governante, como cetros, coroas e vestimentas. Destarte, o
governante não poderia realizar todos os rituais e cultos e, para isso, ele nomeava os
sacerdotes que fariam algumas de suas funções nos templos. Os sacerdotes ou vizires
poderiam realizar essas funções de culto nos templos porque eles eram tidos como a
apresentado como hereditário, eles só assumiriam tal posto se fossem nomeados pelo faraó.
estabelecimento da sociedade por Menés, como parte de uma ordem cósmica (FRANKFORT,
1948, p.33). Como o faraó é um deus na terra e ele é Hórus, a sua sucessão se faz legitimada
em um plano cosmológico porque esse faz os rituais para seu antecessor Osíris e com isso
garante, assim como Hórus, que a legitimação de seu trono seja baseada em uma sucessão de
O faraó quando divinizado poderia ser cultuado de duas maneiras. Enquanto vivo as
motivações que levavam a esse culto eram político-religiosas e após a sua morte era a
especiais.
justiça, respeito e verdade— caso isso não acontecesse haveria o estabelecimento do caos.
Com isso, a manutenção da ordem do estado egípcio se dava por conta da manutenção do
divino. O caos aqui era a não ordem, o domínio do deus Seth. Para Jan Assman (2006, p.34)
esse conceito é chamado de religião invisível, onde o princípio da harmonia universal que se
manifesta nos cosmos como ordem e na vida dos seres humanos como justiça. Esses conceitos
servem para expressar o significado total da ordem no maior plano de abstração. O rei é
responsável por manter as regras de Maat na vida terrena, ou seja, sem ele haveria o caos.
sua cosmogonia, com seu deus criador e seus mitos. Em alguns casos, essas eram conflitantes.
Muitos de seus deuses estão relacionados a fatores ambientais, tanto palpáveis como
abstratos. No caso, deuses como Rê, Shu, Tefnut, Geb, Nut e Kuk e Kauket (escuridão).
Contudo, antes de ocorrer a criação, foi preciso a presença de três poderes, que eram a energia
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necessária para essa concepção: Hu (palavra divina), Heka (magia ou energia divina) e Sia
mesma simbologia e era cultuado em todo o território, e os locais, que eram de cada nomo.
Os egípcios antigos agrupavam seus deuses em enéades, nove deuses; ogdóade, oito
deuses e trindades, geralmente pai, mãe e filho. Esse agrupamento, assim como o ato dos
deuses casarem, servia para formar a essência mitológica da religião. Essa divisão seria uma
maneira de segmentar o imaginário e conceber uma organização mais próxima de sua lógica
palpável.
A enéade Heliopolitana era formada pelos seguintes deuses que fazem parte do mito
de criação do Mundo de Heliópolis: Atum, Shu, Tefnut, Geb, Nut, Osíris, Isis, Seth e Néftis.
De acordo com diversos textos até hoje encontrados há várias versões de como o Mundo foi
criado. Pode-se dizer que a mais comum é aquela em que o Grande deus Atum surge do Nun,
o Oceano Primordial, e, após um ato de masturbação, ejacula e nesse momento nascem Shu
(que representa o ar) e Tefnut (a umidade). Shu e Tefnut geram Geb (a terra) e Nut (o céu). Os
deuses Geb e Nut geram dois filhos e duas filhas Seth, Osíris, Ísis e Néftis. O céu e a terra são
separados porque eles se casaram sem a aprovação do deus Rê e, por ordem desse deus, eles
nunca mais se encostariam. No entanto, à noite eles se encontravam, criando assim as trevas.
O deus Shu, quando Rê abandona a vida terrena, assume seu lugar frente ao governo egípcio
e, após preparar a paz e estabilidade, abdica de seu cargo em favor de seu filho Geb. A deusa
Nut era também considerada a mãe do Sol, aquela que todos os dias pela manhã o vomitava e
Atum não era somente um deus/conceito (TRAUNECKER, 1995, p.101), mas era uma
divindade histórica que possuía seu centro de culto em Heliópolis. Ele entrega a Osíris o
O deus Seth é considerado desde seu nascimento como aquele que propaga a não
ordem. Em alguns momentos do período faraônico, a humanidade era dividida entre aqueles
simbolicamente tido como faraó da 1ª dinastia. Algumas doutrinas dessa Teologia aparecem
como novas e foram aceitas no desenvolvimento da história egípcia. Outras aparentam estar
baseadas nas tradições mais antigas egípcias e africanas (FRANKFORT, 1948, p.24). O texto
é uma cosmologia que remete à criação e mostra que a unificação das Duas Terras se deu por
Menés e que elas não poderiam mais ser dissociadas. Contudo, o tema principal é o
julgamento de Geb em relação a Hórus e Seth, finalizando com o modo pelo qual Osíris se
torna o governante do Mundo Inferior. Ptah que possuía seu centro de culto em Mênfis foi
proclamado como o Criador de Tudo e ele era híbrido, combinado com outros deuses,
dependendo do contexto.
O texto sobre a Teologia Menfita encontra-se está bastante danificado, mas com partes
legíveis e em uma dessas o deus-criador Atum proclama que ele fora criado por Ptah na forma
de Ptah-Ta-Tjenen, que criara também todo o universo. A criação consistia em uma colina
primordial acima das águas do caos (Num) e Ptah surge nessa colina de onde ele cria todo o
resto. Os deuses são colocados como manifestações de Ptah. Tudo o que hoje existe é criação
do coração de Ptah que transformava seus desejos em palpável com a ajuda de sua língua.
Nesse processo de criação, vieram ao Mundo um deus após o outro e por meio deles foi
criado o universo, as criaturas vivas, a justiça e as artes. Após a criação, Ptah descansou. Esse
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deus também é tido como aquele que estava ao lado de Atum na criação da enéade
Heliopolitana.
A construção do palácio em Mênfis, no local onde Osíris fora enterrado, coloca esse
local como ponto de toda a autoridade do território estabelecida por Menés. Essa região
1.3 Mitos
e o seu nome não bastava para exprimir sua natureza. Ninguém poderia saber o nome secreto
dos deuses porque aquele que detivesse esse conhecimento poderia utilizá-lo contra o deus e
tornar-se mais poderoso. Todavia, invocar um deus contribuía para sua existência e
subsistência. Eles envelheciam, padeciam de doenças e até morriam. Entretanto, esse tipo de
deuses, assim como mostra a importância dos nomes dos deuses. O mito consistia no ponto
em que as pessoas e as divindades estavam ligadas ao deus criador identificado como Rê. Ele
aparecia sob diversas formas e era conhecido por uma infinidade de nomes, mas nenhum
desses era o seu verdadeiro nome. O verdadeiro nome desse deus ficava guardado em seu
estômago para que ninguém pudesse usá-lo contra ele. Ísis conhecia tudo na terra e no divino,
mas ela não sabia o nome de Rê e foi a única a desafiá-lo. A oportunidade para ela descobrir
se deu quando o deus, já aparentando uma idade muito avançada, começa a babar. Com isso,
ela pega um pouco de sua saliva e a mistura com terra moldando-a como uma cobra. Ela leva
a cobra para um local onde Rê passava todos os dias, ele é mordido pela cobra e o veneno
queima como fogo, fazendo o deus gritar e perturbando os outros deuses. No começo, ele não
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conseguia falar porque o veneno dominava seu corpo como uma inundação, mas depois ele
explica aos seus seguidores que fora picado por uma criatura que não tivera sido criada por
ele. O deus pede ajuda às outras entidades divinas e Ísis promete ao deus que destruiria essa
criatura com seus poderes mágicos. Contudo, o deus não contava com um pedido de Ísis: ela
diz que o ajudará se ele disser seu nome. Rê se descreve como aquele que criou o mundo
físico, que causa a inundação do Nilo, que dividiu o ano em estações e termina dizendo que é
chamado de Khepri no amanhecer, Rê ao meio dia e Atum no início da noite. Mas, nenhum
desses é seu verdadeiro nome e a dor continua. Ísis insiste que somente poderá ajudar se ele
disser seu verdadeiro nome. A dor aumenta a cada instante e o deus não resiste e sussurra seu
nome no ouvido da deusa. Ele diz que quando chegar o momento oportuno que ela diga a
Hórus o nome. A deusa então profere palavras mágicas e o veneno e a dor cessam.
Eventualmente, Hórus, seu filho e governante do Egito, seria, juntamente com ela, os únicos a
Para governar o Egito fora escolhido Osíris, que reinaria ao lado de sua irmã e esposa
Ísis. Seu irmão Seth não aprovou que Osíris assumisse o trono e, juntamente com seus
seguidores, preparou uma armadilha. O deus da não ordem convidou seu irmão para um jantar
e em certo momento, como uma brincadeira, ele convida todos para se deitarem em um
caixão. Feito especialmente do tamanho de Osíris, ao se deitar ele foi o único que coube e
rapidamente o caixão foi lacrado e escondido. Ísis, ao perceber que seu marido sumira, sai a
sua procura e o encontra, mas Seth também estava lá. Então, Seth pega o caixão e o parte em
vários pedaços. Há textos que dizem que esse foi partido em 42 pedaços e cada um escondido
em um nomo. Jan Assmann diz que fora dividido em 14 e que as águas carregaram suas partes
por todo o território e, nos locais onde pararam, foram centros de rituais por todo o período
faraônico (ASSMANN, 1989, p.138). A amada esposa então parte em busca de todos os
pedaços de seu marido, os encontra, junta e mumifica. Essa busca pelos pedaços do deus e sua
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posterior reunião são os precedentes do ato de mumificar. Contudo, ela não encontra o falo
porque esse havia sido arremessado aos crocodilos do Nilo. Ela então se transforma em uma
ave e em um ato mágico copula com seu marido mumificado e engravida de Hórus. Na
Teologia Menfita, Ísis aparece obedecendo Hórus e ela pratica esses atos em benefício de
Osíris porque Hórus pede que assim seja feito. O que está em comum acordo com o Texto das
Pirâmides onde Hórus, o rei vivo, faz atos benevolentes a Osíris, o deus e rei morto.
A Grande Contenda é um dos mitos egípcios mais controversos. Seus escritos datam
do Novo Império e é a narrativa mais longa já encontrada. Nesse mito, Hórus e Seth se
transformam em hipopótamos e lutam para ver quem consegue ficar mais tempo embaixo
d‟água. Depois eles competem em barcos, Hórus faz o seu de madeira, mas o pinta como
Tanto Osíris quanto Hórus sempre eram atacados por Seth e seus seguidores. O olho
de Hórus foi arrancado por Seth e os testículos do deus da não ordem arrancados por Hórus.
Thoth recolocou o olho danificado e Hórus venceu tornando-se rei do Egito e reconciliando-se
com Seth. Hórus fez uma série de rituais que consagraram Osíris como o rei do Mundo
Inferior. Esse ritual era encenado nos lagos dos templos e os participantes eram aqueles que
A batalha entre esses dois deuses causou uma perda de harmonia no cosmos e com
isso foi necessário fazer um Tribunal Divino encabeçado por Geb, mas com a autoridade
máxima do deus-criador. O Tribunal ocorreu em Heliópolis. Osíris estaria presente, com o seu
corpo tendo que ser seguro por Ísis e Néftis. Ele era tido como virtuoso. Seth tenta justificar
sua violência com o irmão, mas falha, o que cede espaço para Hórus pedir a legitimação de
sua posição como sucessor ao trono do Egito. Em algumas narrativas, a punição de Seth seria
carregar o corpo de Osíris até o seu local de habitação eterna. Os deuses decidem dividir o
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Egito, onde Hórus governaria os vales férteis do Nilo, a terra negra, e Seth a área desértica, a
terra vermelha. Há também a iconografia e a literatura que apresentam Seth como triunfante,
governando o território egípcio. Isso ocorre no período em que esse deus está nacionalizado e
No templo de Edfu há a iconografia de uma das versões finais da disputa, que é aquela
em que Hórus mata Seth, que está sob a forma de um hipopótamo, como ilustra a Figura 1.
A literatura mostra que o conflito entre Hórus e Seth termina com um coro de rezas
enquanto Hórus é coroado. No entanto, antes ou durante essa cerimônia o deus agora rei
aparece fazendo uma série de rituais funerários para seu pai, como a Cerimônia de Abertura
da Boca e a elevação do pilar-djed. Esses atos caracterizam os rituais funerários que todos os
novos reis precisavam fazer para aquele que estava morto, porque assim se confirmaria a
sucessão.
menos dois anos. Quando representados como adultos sempre no auge de sua plenitude e,
Um deus não exibe aparência única, depende do contexto ao qual ele se insere no momento. A
As mãos dos deuses raramente estavam vazias, poderiam conter a cruz ankh ou o
cetro-uas, assim como adereços que especificassem a sua natureza. Na cabeça possuíam
Os deuses que serão tratados com ênfase ao longo deste trabalho são Khepri e Osíris,
um por ser o símbolo dos escaravelhos e o outro por ser o principal deus funerário.
1.5 Khepri
É uma das três manifestações do deus solar Rê, o sol nascente. Tema que pode ser
vistos nos Hinos ao deus-sol. O Hino ao deus-sol, mostrado a seguir, foi retirado da estela dos
irmãos Suti e Hor que hoje está no British Museum (BM 826). A tradução para o inglês foi
feita por Miriam Lichteim (1976, p. 86-88) e para o português pela autora desta dissertação.
São dois hinos nessa estela, na qual aparece a menção a Khepri. Os trechos relacionados ao
Seu nome deriva da palavra Kheper que significa “tornar-se” ou “se transformar”, já
(PINCH, 2002). Por ser chamado como aquele que se criou, ele era identificado com o deus
criador Atum.
No Texto das Pirâmides5, Khepri já aparece como um dos nomes do deus Sol. Ele é
visto como “aquele que brilha” ou “aquele que está em Nun”. Ele estava ligado ao poder
criativo do coração e identificado com o deus Sol jovem, aquele que começa a criação por
nascer das águas primordiais na flor de lótus primordial. Em relação à sua jornada pelas horas
da noite, ele renasce todas as manhãs do corpo da deusa do céu, Nut. No mito conhecido
como O Nome Verdadeiro de Rê, o deus Sol diz a Isis que ele é “Khepri na manhã, Rê ao
meio do dia e Atum ao anoitecer.” A barca noturna é associada com Rê-Atum e a barca do dia
com Khepri.
jornada pelo céu. Em seu ambiente, os egípcios devem ter notado que o ato do escaravelho em
rolar sua bola pelo deserto seria o mesmo que o do Sol6. Contudo, a analogia feita por eles
não termina nesse ponto. Observando que da bola de excrementos nascia um escaravelho eles
5 Ver Capítulo 3
6 Ver Capítulo 5
36
Nun. Em Heliópolis ele era ilustrado como Atum-Khepri, era um único deus que diariamente
sofria uma série de transformações. Na tumba de Petosiris, vizir do templo de Thoth (c.340
a.C.) em Tuna el-Gebel, ele está representado usando a coroa atef do deus Osíris. Quando o
deus-sol se apresenta na forma de Khepri, ele possui o corpo de um homem e no lugar de sua
cabeça um escaravelho. Assim como Rê, ele carrega em suas mãos um ankh e um cetro.
O deus se encontra com Rê e Atum na jornada diária na barca solar. As várias formas
com Nun e Khnum (deus criador com cabeça de carneiro). Thoth e Maat ficam juntamente
com Hórus para a aprovação do caminho da barca e, no final do dia, elas entram no curso em
direção ao Mundo Inferior e a jornada continua com a barca noturna, na qual Hórus, Hapi, Ísis
e Néftis a aguardam em forma de adoração. A barca era atacada durante a noite por seus
inimigos e o mais perigoso de todos era Apófis— a personificação da parte mais obscura da
noite, ou seja, o caos— que se transformava em uma serpente. Ela atacava o deus-sol para
acabar com a estabilidade do Mundo. Para lutar contra a serpente, Rê assume a forma de um
como no templo de Karnak. Nesse templo ele se encontra, in situ, e um parecido está na
representava o deus está sob um pedestal e simbolizava arquiteturalmente o deus criador sobre
o monte onde ocorrera a criação do cosmos. Até hoje não foi encontrado nenhum templo
transfigurado). No Capítulo 83 do Livro dos Mortos ele era invocado para superar o medo
intenso da putrefação. O trecho onde fala sofre o deus é (ANDREWS e FAULKNER, 1985,
p.80).
1.6. Osíris
O deus Osíris aparece no Antigo Império, não possuindo referências no Período Pré-
Dinástico. A importância de seu mito é traçada no Texto das Pirâmides onde o faraó Unas é
identificado com Osíris. No Ritual de Oferendas desse faraó há a seguinte passagem: “Osíris
Unas, Eu lhe dei o olho de Hórus, oh Unas!...” Em outra passagem no Ritual de Abertura da
Boca está escrito: “Osíris Unas, Me deixe partir sua boca para você.” Assim como também a
citação do deus na declaração 210 que diz: “Uma escada foi erguida próxima ao Sol em frente
a Osíris, uma escada foi erguida junto a Hórus em frente a seu pai Osíris...”
Osíris era filho do deus da terra, Geb, e da deusa do céu, Nut, e tornou-se herdeiro do
trono do Egito. É tido como o primeiro faraó. Ele faz a sociedade egípcia sair de um estado de
barbárie e passar para o de civilização. O resultado foi um poder centralizado e com base
anual, local onde a terra fértil aguardava para receber novas sementes. No Período tardio,
essas eram as principais cerimônias de todo o Egito. Ela consistia em encontrar e embalsamar
Egito, cada membro estava em um nomo, o que criava uma unidade no território por meio do
ritual de reunião dos elementos em um único corpo. Ou seja, o que era reunido nesse caso
como aquele que se torna a terra. E, nesses textos, há o Tribunal que clama Hórus como o
sucessor legítimo do deus morto, aquele que governaria as Duas Terras, não como
Nesta Teologia, Osíris possui dois destinos após o seu enterro. Um deles é se juntar ao
deus-sol em seu circuito diário e o outro é se juntar à Corte de Ptah-Ta-Tjenen, além dele se
tornar a terra, o que explica mitologicamente porque a região de Mênfis era extremamente
mumificação nasce com o mito de Ísis e Osíris, essa é praticada até o final do período
faraônico.
40
A palavra múmia deriva do árabe mummya, que significa betume. No processo final de
mumificação era passada resina e a coloração do corpo ficava igual ao do betume. Todavia,
contrastantes, como uma região polar, onde o fluxo de ar é suficiente para a retirada da água
dos corpos, ou em climas áridos e secos. A mumificação artificial exige várias etapas de
Período Pré-dinástico. As pessoas nessa época eram enterradas diretamente no solo, com uma
trama de fios como proteção. O solo, por ser muito árido e a temperatura elevada, faziam o
áridas essa desidratação era rápida, o que preservava a camada de pele. As múmias naturais
são caracterizadas pela aparência rígida e a presença de pele fixada aos ossos, consequência
dinastias. Inicialmente, ela era destinada somente ao faraó e, depois de alguns séculos, essa
conhecer as partes abstratas das quais os egípcios acreditavam que as pessoas eram
41
compostas. O ser humano era constituído de cinco faculdades: seu corpo, sua sombra, seu ka,
seu ba, seu nome e aquele que era o poder, o espírito perfeito chamado akh.
O ka nascia juntamente com a pessoa, era chamado de duplo, porque ele seguia o ser
humano em todos os momentos de sua vida. Ele faz parte da personalidade da pessoa. O ka
O faraó possuía ka real era o deus no rei, e a relação entre deuses, rei e o povo
(GORDON,1996 p.33). Ou seja, o faraó recebe sua força vital dos deuses e age como
oferendas para ele. Quando a pessoa morria, acreditavam que ele então habitaria a estátua-ka
na capela dedicada a esse indivíduo, onde receberia as oferendas e orações, mesmo que essas
fossem só representadas. O ka precisava dessas provisões para que ele pudesse continuar vivo.
No Capítulo 30 do Livro dos Mortos há o trecho que diz “... você é o meu ka que está
em meu corpo...” onde o morto faz alusão ao seu duplo, pedindo para que esse o ajude a sair
do julgamento de seu coração como um justificado e assim adentrar ao Mundo Inferior. Essa
frase mostra também que em todo o momento o morto teve consciência de onde o ka residia.
O ba era uma manifestação do morto, que poderia habitar tanto o mundo terreno como
o Mundo dos Mortos. Ele fazia a ligação entre os dois mundos. A preservação do corpo do
morto resultaria na preservação tanto do ba quanto do ka. Pois, o ba retorna todas as noites
para a câmara funerária e assim ele pode migrar durante o dia. Se o corpo não estivesse
Sua representação era em forma de um pássaro com a cabeça humana. Entretanto, ele
poderia assumir a forma que quisesse e há várias fórmulas funerárias para assegurar essa
transformação.
O Capítulo 89 do Livro dos Mortos sugere em sua rubrica que seja feita uma
representação da ba em ouro e que essa seja colocada no peito da múmia. Assim, asseguraria
o retorno da ba ao corpo. O próprio título da fórmula já deixa clara a sua função, fórmula de
como fazer a alma se unir a seu corpo no domínio dos mortos. Um trecho do capítulo diz:
“(...) Deixa minha alma vir até mim onde quer que esteja.” (ANDREWS e FAULKNER,
1985, p.84)
Ao morrer, a pessoa se unia ao seu ka, mas não ao seu ba porque esse era dinâmico.
Na iconografia funerária, há cenas em que o morto está realizando algum ritual e o ka está
atrás dele. Em alguns papiros que descrevem a pesagem do coração, pode-se ver o ba ao lado
O akh era chamado por Claude Traunecker (1995, p.37) de espírito-akh e eram
espíritos luminosos que podiam ser temíveis. Não eram uma faculdade como o ba e nem um
estado como o ka, eram um poder ocasional perfeito. Ele era o espírito do bem-aventurado e a
O Mundo Inferior ou Duat era limitado pelo corpo de Osíris, porque ele isola o Duat
quando habitavam a vida terrena. O Campo dos Juncos situa-se a leste e é uma localidade de
passagem ligada ao Sol. O Campo das Oferendas está a oeste e esse já é um local de estadia.
O Campo das Oferendas era reservado aos mAa-Xrw, que significa “justo de voz”, “justificado”
ou “triunfante”, ou seja, aquele que já havia passado pelo julgamento do coração. Para eles a
43
justificação era uma etapa decisiva para que o morto não sofresse a sua segunda morte. A
No mundo ideal e simbólico egípcio, a mumificação era realizada em uma única noite,
pesado na sala do julgamento de Osíris. Todavia, hoje se sabe que o processo de mumificação
poderia levar em média 70 dias ou até muitos meses. Os fatores que influenciavam este tempo
tornam superestruturas e não mais há o contato do corpo com as areias áridas e aquecidas do
deserto que promoviam a conservação desses remanescentes. E, após uma série de tentativa e
erros os egípcios antigos perceberam que a chave para essa preservação era a retirada dos
fluidos corporais. Esse processo pode ter vindo provavelmente da análise do processo de
Não foram encontrados até hoje relatos completos de todos os passos para a
preparação de uma múmia. Há partes desse processo em papiros e paredes de tumbas, assim
como citações em rituais e oferendas. Mas, nada que mostre como era tratado o corpo físico.
Portanto, para fazer uma reconstituição dos métodos de mumificação são utilizados textos de
escritores como Heródoto e Diodoro, além das análises dos remanescentes físicos feitas por
experimental.
O texto escrito por Heródoto no século cinco a.C. é reproduzido por todos os autores
que tratam dos processos de mumificação. O relato do escritor grego diz que algumas pessoas
eram apontadas pelas leis para exercerem essa profissão. Quando o corpo de um morto era
44
levado para eles, eles exibiam aos amigos da pessoa morta diferentes modelos em madeira. O
mais perfeito deles assemelha-se a um cujo nome não poderá ser mencionado nesse contexto
(sabe-se que é Osíris). O segundo era inferior em execução e com preço menor e o outro tinha
qualidade ainda mais inferior. Após a demonstração eles perguntavam com qual modelo o
ao mais custoso, sempre lembrando que esse não era um processo técnico, envolvia muitos
O corpo do morto era levado até a “Casa Boa” (pr-nfr) onde no local de embalsamento
começavam as etapas de dissecação do corpo. O primeiro passo era a retirada do cérebro por
meio do orifício nasal. Introduzia-se uma ferramenta metálica e com ela fazia-se uma série de
movimentos destinados a dissolução do cérebro. Quando ele estava em estado mais líquido
era colocada uma espécie de coletor nas narinas. Outro método para a retirada do cérebro era
fazer uma incisão na base do crânio. A cavidade craniana era lavada e preenchida com
resinas. Os olhos eram mantidos no lugar até a 22ª dinastia, quando esses são substituídos por
A retirada dos demais órgãos era feita por meio de uma incisão no lado esquerdo da
órgãos eram lavados, drenados, recebendo substâncias aromáticas. Geralmente, eram envoltos
período faraônico eles aparecem em caixas aos pés do caixão, porque as arcas que contém
esses vasos nunca se afastam dos caixões. Isto pode ser visto em papiros onde na procissão há
45
o caixão e logo atrás os canopos. No Novo Império as tampas eram feitas em formato da
cabeça dos quatro filhos de Hórus e cada uma abrigava um órgão especificamente. Os deuses
são Qebehsenuef, que possui a cabeça em forma de falcão e abrigaria os intestinos; Duamutef,
com a cabeça de chacal onde estaria o estômago; Hapy, com cabeça de babuíno guardava os
pulmões e Imset, com cabeça de homem e abrigaria o fígado. A 20ª dinastia caracteriza o
momento em que Anúbis aparece na parte de cima das caixas canópicas e os quatro filhos de
Hórus nas laterais. Contudo, esses vasos perdem a utilidade na 21ª dinastia porque os órgãos
tradição de utilizar os Vasos Canopos e de utilizar nichos como na 4ª dinastia. No período que
compreende da 27ª a 30ª dinastias eles são guardados entre os pés da múmia e, no Período
Ptolomaico, são substituídos por arcas com um falcão na tampa, nas quais os órgãos eram
colocados.
Na cavidade abdominal restava somente o coração. Não era prática comum retirá-lo e,
caso isso acontecesse, ou ele era colocado novamente no tórax ou em seu lugar era colocado
posteriormente, era coberto com Natrão. O Natrão é uma substância salina composta de
NaCL, Na2CO3 e NaP2SO4, usada para acelerar o processo de retirada dos fluidos corporais
havia a aplicação de resinas para que esse pudesse ter elasticidade novamente e, com isso, dar
continuidade à mumificação. O abdômen era recheado com linho, flores, serragem e outros
materiais para que pudesse ser mantido o mais próximo possível do que era em vida.
46
Figura 4. Incisões.
A Figura 4 (SMITH, 1914, p.194) mostra as incisões que eram feitas no morto tanto
para a retirada dos órgãos quanto para a posterior colocação do material que preenchia as
cavidades. Com a ajuda das mãos ou alguma outra ferramenta, o embalsamador inseria linho,
manteiga ou até mesmo lama na região T e outro material na W, para que esse segurasse o
enchimento da região do pescoço. A localização da letra Y, que são as pernas, era preenchida
pela mesma incisão X. Em alguns casos era feita uma nova incisão para os pés. Após esse
estando pronto para a colocação das tiras de linho. No meio dessas tiras havia vários
amuletos. Esse processo poderia levar até 15 dias para que o corpo estivesse totalmente
coberto com o linho porque em alguns casos os dedos das mãos e dos pés eram primeiramente
47
enrolados um por um. Logo após o termino do preparo e a recitação de todas as orações, o
morto era colocado em seu caixão ou caixões e levado para a câmara funerária. Entretanto, a
múmia só iria para a câmara funerária caso o morto tivesse condições e status social para
possuir uma tumba. Senão, ela iria para a casa de seus familiares e ficava guardada em
O faraó depois de mumificado só poderia ser enterrado por outro governante, fato
sucessório que mostra que quando um faraó morre e está sofrendo o processo de
mumificação, o próximo governante era escolhido. Ao enterrar o faraó morto faz o mesmo
corpo não estava no sarcófago, mas uma descoberta surpreendente seria feita. As vísceras
contendo Natrão. O mais interessante é que após 4500 anos a substância continuava aquosa e
das Pirâmides, descrevendo que em uma estátua do deus ou do faraó a vida era inserida. No
entanto, a maioria dos remanescentes desse ritual é do Novo Império, que pode ser encontrado
em papiros e paredes de tumbas. Esse cerimonial poderia ser feito na múmia, no caixão ou em
Para Ann Macy Roth (1993) o ritual começa a ser feito em estátuas no Antigo Império,
não anterior à 6ª dinastia. Onde ao invés de instrumentos eram utilizados próprios dedos do
sacerdote. Para ela, esse cerimonial começou da observação de limpar a boca dos bebês após
o nascimento. Por isso que a metáfora em dar vida ao morto por meio desse ritual seria de
palavras: “Oh N, eu consolidei sua mandíbula então ela nunca mais será dividida. Eu
novamente abri a sua boca com o instrumento pesesh-kef, o qual é utilizado para abrir a boca
de todos os deuses e todas as deusas.” Contudo, esse ritual consistia em 75 atos separados e
Enxó está na mão de quem efetua o ritual. Todavia, Pesesh-kef é utilizado desde o Antigo
Império.
49
sucessão real pelo próximo faraó. Há aqui mais uma demonstração da legitimação do cargo,
onde Hórus faz a Cerimônia de Abertura da Boca em Osíris. A ritualística desse cerimonial
mais uma vez esbarra no viés político-social egípcio, segundo o qual para a legitimação do
poder e para que o novo faraó fosse reconhecido seria preciso realizar a Cerimônia de
Abertura da Boca no faraó morto. Ou seja, a ideologia aqui aparece de uma maneira
simbólica, mas com o intuito de colocar em ação uma troca de poder que nem sempre era
funerária de Tutankhamun, faraó da 18ª dinastia, onde seu sucessor Ay realiza a cerimônia
(Figura 6).
morto. Como o nome da cerimônia indica, ao abrir a boca do morto ele poderia novamente
falar e comer. Todavia, como há o toque em várias partes da múmia ou caixão não é somente
a abertura da boca, como também dos olhos, orelhas, nariz e outras partes do corpo. Quando o
morto tinha suas faculdades terrenas de volta ele poderia sustentar seu ka.
No Texto dos Caixões (CT 65) aparece a cena onde Hórus e Ptah abrem a boca do
morto, continuamente Ptah e Thoth fazem o ritual da transfiguração onde Thoth recoloca o
coração no corpo do morto e proclama: “assim você se lembra do que esqueceu e pode comer
pão como desejas.” A continuação dessa tradição pode ser vista no Capítulo 23 Livro dos
Mortos que trata especificamente desse ritual nas seguintes palavras (ANDREWS e
o Capítulo 23 citado), tendo o cerimonial realizado por um deus com cabeça de falcão que
possui em sua mão um Enxó, que dá novamente ao morto todas as faculdades para que ele
Para Jan Assman e Lorton (2005, p. 312) o ritual era realizado na entrada das tumbas,
onde o morto (no caso o caixão) era colocado em pé, virado para o sul e sustentado por
Anúbis. Para eles, esse ritual era feito inicialmente para trazer as estátuas do morto novamente
animais, adornos de deuses e símbolos da eternidade. O material com o qual esse era feito
tinha um efeito tão significativo quanto a sua forma. Alguns amuletos por si só já exercem o
seu poder, todavia, alguns precisam de apoio de textos. Como aqui se trata de amuletos
funerários em uso a partir o Novo Império, o texto é o Livro dos Mortos. No entanto, não quer
dizer que não eram utilizados anteriormente, somente que as fontes consultadas são dessa
época.
Um dos motivos pelo qual não podemos citar todos os amuletos é a sua grande
quantidade. Em Dendera há uma listagem com 104 amuletos que deveriam ser colocados nas
bandagens das múmias. Nesta lista os amuletos que mais aparecem são os escaravelhos e o
olho-udjat, todavia ela não especifica o local na múmia. Destarte, na 26ª dinastia o número de
amuletos diferenciados que existia chegava a 300. O amuleto que se refere ao coração e os
desenvolvidos hoje com o auxílio das tomografias computadorizadas, não se faz necessário
desenrolar as múmias para que se possa ver a localização de seus amuletos. Como pode ser
53
coração.
morto. Mas, no caso específico dos amuletos funerários que aparecem nas bandagens das
hieróglifos, como a cruz-ankh que era a “vida”, mas curiosamente, na listagem de Dendera
sua jornada até o Mundo Inferior. No Livro dos Mortos há capítulos específicos que falam
como deve ser feito cada tipo de amuleto, com qual material e como eles aparecem em suas
os que aparecem no Livro dos Mortos tinham seus locais específicos no pescoço do morto e
2.4.1 O pilar-djed
A sua origem não é certa, mas pode ter surgido em épocas pré-históricas. Ele é tido
como o amuleto que representa a espinha dorsal de Osíris, ou seja, ele daria estabilidade à ao
corpo do morto. Ele está citado no Capítulo 155 do Livro dos Mortos, em que na vinheta há
um pilar-djed em ouro somente. A rubrica desse capítulo diz que ele deve ser recitado diante
de um amuleto de ouro, colocado em uma base de sicômoro e que deverá ser colocado no
pescoço do morto no dia do enterro. Se isso acontecer ele será como os que estão eternamente
11
Ver Capítulo 7.
54
Como nem todos poderiam fazer um amuleto em ouro, ele poderia ser feito em faiança
2.4.2 Tit
Esse amuleto é chamado o nó de Ísis por se referir ao nó que prendia os cintos. Sua
referência no Livro dos Mortos está no Capítulo 156 que tem na vinheta o próprio amuleto. A
rubrica pede que se faça um amuleto em cornalina, podendo ser também em jaspe vermelha e,
depois de recitado o capítulo, ele será colocado no pescoço do morto no dia do enterro,
simbolizava o sangue da deusa (ANDREWS, 1994, p. 45), porque o capítulo começa com a
2.4.3 Wadj
Livro dos Mortos fazem alusão a esse amuleto, devendo ser colocado no pescoço do morto no
dia de seu enterro. Na vinheta do Capítulo 160 quem dá o amuleto ao morto é o deus Thoth.
Esse era para ser feito em feldspato verde, porque essa rocha garantia o vigor do morto e, com
arquiteturalmente falando. Essa planta era o emblema do Baixo Egito e em Buto no Delta ele
2.4.4 O olho-udjat
O mito de surgimento desse amuleto remete à batalha entre Seth e Hórus, no momento
em que Seth arranca o olho de seu oponente. Quando esse é obrigado a devolvê-lo, Hórus o
coloca não em seu lugar, mas na boca de seu pai Osíris, concedendo assim a ele uma nova
vida. Este foi o primeiro e mais importante amuleto que se tornou oferenda (JANOT, 2008,
55
p.234). Há também outra história que diz que esse era o olho esquerdo de Hórus que foi
arrancado na batalha e depois quando o deus o coloca de volta, seu olho passa a simbolizar a
lua cheia.
O material utilizado para a sua fabricação era quase exclusivamente faiança, mas o de
múmias, considerando o pensamento que, quanto mais amuletos iguais, mais proteção, era
essa a intenção deles. Ele poderia aparecer sozinho, ou com a cobra uraues fazendo a
Esses amuletos possuíam a simbologia da cavidade abdominal por causa dos vasos
canopos. Costumavam vir nas redes de contas que cobriam os corpos mumificados ou em
alguns casos nas bandagens das múmias. Eles são sempre moldados de perfil e mumiformes.
As suas funções como amuletos funerários é sempre estarem ao lado de Osíris para não deixar
A literatura funerária egípcia é composta por textos que guiavam o morto na vida após
a morte. Os principais são Texto das Pirâmides— escrito no Antigo Império, Texto dos
Caixões— no Médio Império e Livro dos Mortos— no Novo Império. Seus conteúdos podem
ocasionalmente, em templos. Há também o Livro dos Dois Caminhos, Livro das Cavernas e o
Livro das Respirações. Entretanto, esses não serão aqui tratados por não estarem diretamente
Os Textos das Pirâmides são os escritos religiosos e funerários mais antigos do Egito
Faraônico. Por utilizarem uma gramática e vocabulário muito ancestrais eles dificultaram a
Esses textos são uma coleção de fórmulas e rituais funerários primeiramente inscritos
três rainhas. São elas: Unas (2375-2345 a.C.), Teti (2345-2333 a.C.), Pepi I (2332-2283 a.C.),
Merenre (2283-2278 a.C.), Pepi II (2278-2184) e três de suas Rainhas Neith, Iput e
Esse corpus textual foi descoberto em 1880 e são até hoje objeto de pesquisas e
pirâmide de Pepi II. Os textos de Unas, Teti, Pepi I, Merenre e Pepi II foram primeiramente
publicados por seu descobridor, Gaston Maspero. Em 1908, Kurt Sethe publicou uma
compilação dos cinco textos e seu trabalho ainda é reconhecido. Escavações realizadas por
12
Grafia dos nomes das Rainhas retirados de DODSON, A.e HILTON, D. The Complete Royal Families of Ancient Egypt.
Cairo: The American University of Cairo Press, 2004 (p.73)
57
Gustave Jéquier (1897-1902) permitiram encontrar novas câmaras na pirâmide de Pepi II,
assim como novas pirâmides que exibiam essas inscrições (Neith, Iput, Udjebten e Iby) e,
Gustave Jéquier eventualmente publicou esses textos. Desde 1958, escavações sob a direção
de Jean-Philippe Lauer, Jean Sainte Fare Garnot e Jean Leclant são realizadas nos
Uma série de publicações anteriores dos Textos das Pirâmides foi realizada, como de
Raymond O. Faulkner em 1969. Para Allen (2005, p.2), essas obras não devem ser
desmerecidas, contudo a Egiptologia produziu considerável avanço nos estudos sobre religião
e escrita, e alguns trechos passaram a exibir significados diferentes das publicações anteriores.
A publicação dos textos de Pepi I colaborou para aumento substancial desse conhecimento.
pirâmides de seus sucessores possuem cerca de 750 declarações e alcançando quase 1000 em
algumas. Não se sabe o número exato dessas declarações porque as paredes colapsaram em
tumbas de pessoas que não faziam parte da realeza no 1° Período Intermediário. A cópia
posterior mais importante está na tumba de Senusret I (1991-1962 a.C.) em El-Lisht que
A tumba de Unas e de seus sucessores tem o mesmo arranjo interior, que consiste em
uma câmara funerária, uma antecâmara para o leste e um corredor que conduz da parede norte
da antecâmara até a face norte das pirâmides. Os textos ocupam as paredes dessas salas em
um arranjo específico que reflete sua função e a das salas. A parede norte da antecâmara é
58
devotada aos Rituais de Oferendas— pequenas fórmulas de uma ou duas sentenças cada,
faladas para o morto quando as oferendas eram apresentadas. As fórmulas que estão na
metade da parede sul da câmara funerária são poucas e longas. Endereçadas para o morto e os
deuses, eles formam os textos do Ritual da Ressurreição— designado para enviar o “espírito”
do morto para uma vida ao lado dos deuses. Esse ritual começa com as palavras “Você não foi
para outro lugar morto: você foi para outro lugar vivo.” E conclui com a garantia que “seu
nome estará vivo entre as pessoas, assim como seu nome estará com os deuses.”
Na pirâmide de Unas, esses dois rituais ocupam todas as paredes da câmara mortuária,
com exceção do frontão ocidental acima do sarcófago. Essa parede é devotada a um terceiro
jogo de fórmulas, que servia para proteger o sarcófago e seu conteúdo das cobras e outros
seres perigosos. Nas pirâmides mais recentes as paredes oeste da câmara funerária contêm
fórmulas endereçadas à deusa Nut. As paredes da antecâmara e corredor são inscritas com a
quarta parte de fórmulas, designada a ajudar para passagem do morto da noite da tumba para o
Originalmente o texto era escrito na primeira pessoa, porque era para ser recitado pelo
morto em sua jornada noturna e o nome da pessoa era a única parte alterada. Ele contém três
Ritual Matinal. O primeiro grupo aparece na parede norte da câmara funerária, onde ocorre a
libação, a limpeza por incensos e água salgada e a Abertura da Boca. O Ritual da Insígnia
consistia em roupas e regalias reais oferecidas a uma estátua do morto, que era apresentada
aos deuses na procissão. O Ritual da Ressurreição ocupa a parede sul da câmara mortuária e o
texto consiste em libertar o “espírito” do morto de seu corpo e da Terra e enviá-lo à sua
jornada diurna juntamente com os deuses. O terceiro grupo de rituais reflete as cerimônias nas
quais o Rei era acordado, trocado e alimentado durante a vida. Os outros textos nas paredes
59
das pirâmides são pessoais e se referem ao morto encontrar salvação em seus rituais matinais
O Texto das Pirâmides reflete uma visão da vida após a morte modelada na jornada
noturna do Sol pelo Duat em seu caminho para o renascimento. Como o sol recebia o poder
da nova vida se juntando ao corpo de Osíris, o “espírito” do morto ganharia o mesmo poder
ao se juntar todas as noites com o deus. Este conceito solar da ressurreição diária constitui a
análogos aos Textos das Pirâmides e Rituais de Oferendas, o que sugere que esses textos eram
200 caixões do Médio Império de diversos sítios. Os sítios são: Kom El-Hisn, Saqqara,
Dashur, El-Lisht, Herakompolis, Beni Hasan, Bersheh, Qau, Meir, Akhmim, Siut, Abidos,
Textos relacionados à vida do morto, que eram incluídos nos Textos dos Caixões,
Os caixões para os antigos egípcios significavam casas, a morada daquele que irá viver
uma vida nova. Esta casa é a visão do Mundo, onde há um céu (teto com a representação
astronômica), um sol (fundo, ornado com o Livro dos Dois Caminhos) e quatro horizontes (as
quatro tampas laterais). Nessa época a fachada de palácio (Serekh) que aparece nos caixões é
60
vista como a entrada do Mundo Inferior. Sua decoração exterior é característica desse período,
Figura 10. A cabeça é voltada para o norte. Figura 11. Os pés são voltados para o sul.
61
O Texto dos Caixões inclui hinos, orações, descrições da vida após a morte, textos de
mesmo tipo de material encontrado no Texto das Pirâmides e no Livro dos Mortos. As
descrições envolvem três principais divindades: o deus Sol, Rê, a quem o morto se junta ou
quem o deve guiar pelo seu circuito diário. O deus dos mortos, Osíris com quem o morto se
identifica e a deusa Nut que como mãe de Osíris representa o céu o qual Rê passa a noite e a
Esses textos são os mais antigos conhecidos utilizados por homens e mulheres não
ligados à realeza. Com isso, há uma eliminação da exclusividade real, a partir desse momento,
qualquer morto pode se tornar um Osíris N 13. Todavia, o grupo que faz um largo uso desses
textos é de nomarcas e suas famílias, oficiais, assim como pessoas do alto escalão da
sociedade.
O uso desse tipo de texto chega ao final com o início do Novo Império, onde esse se
transformou em um novo corpus textual denominado Livro dos Mortos, na 17ª dinastia.
Contudo, esses textos ainda são encontrados na câmara mortuária de Minnakhte (TT87) e, nas
A primeira obra que compilou esses textos foi escrita por C.R. Lepsius em 1867, na
qual ele estudou os caixões que estão em Berlim. Posteriormente, Pierre Lacau publicou o
Caixões do Médio Império no Museu do Cairo, como parte do Catalogue générale em 1904-
1906. James Henry Breasted e Alan Gardiner tinham planos de compilar todos os textos, mas
quem realizou esse trabalho foi Adriaan de Buck em uma publicação de sete volumes datada
entre 1935 e 1961. A primeira tradução completa em inglês é de Raymond O. Faulkner (1973-
1978) e em francês é de Paul Barguet (1983), obra que será muito utilizada nessa dissertação
linguagem utilizada é a do Médio Império clássico, sem sinais locais peculiares, mas com
conclusão. Como regra, os títulos se localizam no começo. A tinta vermelha é utilizada para
dar ênfase e indicar divisões, como a fórmula 1087, que é toda escrita em vermelho. O texto é
escrito em primeira pessoa, do mesmo modo que no Texto das Pirâmides. Em contraste com o
Texto das Pirâmides, esse corpus textual apresenta poucas, mas vinhetas e, também mostram
de maneira mais conceitualizada e concreta a vida após a morte e seus perigos estão mais
dramatizados.
63
O Livro dos Mortos é chamado pelos antigos egípcios de prt-m-hrwr Livro Para Sair à
Luz do Dia. Ele consiste de um grupo de fórmulas funerárias escritas em papiros do Novo
Esses textos eram utilizados por todos aqueles que poderiam copiá-los, em papiros
grandes e pequenos e até em tiras de linho. Alguns capítulos podem ser encontrados em
do coração, entre outros materiais votivos. Do mesmo modo que os corpora textuais
supracitados, o Livro dos Mortos possui fórmulas que apareceram anteriormente, no Texto das
O Livro dos Mortos começa a ser comumente utilizado por oficiais do reinado de
Thutmés III. A produção desses textos para durante o Período Amarniano (1350-1334 a.C.) e
Período Ramessida (1293-1185 a.C.) e 21ª dinastia, alguns papiros aparecem escritos em
hierático, porém também continuam em hieróglifo cursivo. Nos papiros mitológicos são
representadas somente as vinhetas dos capítulos. Na 22ª dinastia o Livro dos Mortos cai em
desuso, contudo na 26ª dinastia ele passa por uma revivificação com a adição de novas
demótico.
A primeira publicação desses textos é feita por Marcel Cadet em 1805 que reproduz
14 Ver GAMA, C.A. Os servidores funerários da coleção egípcia do Museu Nacional: Catálogo e Interpretação. Dissertação
de Mestrado-UFRJ/MN Programa de Pós Graduação em Arqueologia, 2008.
C. R. Lepsius traduziu um papiro do Período Tardio com 165 capítulos que hoje está no
Museu de Turin. Foi ele que, pela primeira vez, dividiu o Livro em capítulos e os numerou e,
Londres, em 1874, o projeto de uma edição completa dos papiros ficou sob cuidados de
Edouard Naville que utilizou 71 manuscritos do Novo Império, haja vista a grande quantidade
que havia nos Museus. Sua publicação foi feita em três volumes em 1886 e até hoje é
1899 uma compilação dos papiros que estão no British Museum. A edição de 1898 é
composta pelos hieróglifos que até hoje estão em uso e seus hieróglifos, assim como sua
tradução, são apresentados nessa dissertação. As traduções mais recentes desses papiros são
de Paul Barguet (1967), Thomas George Allen (1960), Erick Hornung e Raymond O.
Faulkner (1972). Conforme são encontrados novos capítulos, eles são colocados no final do
texto, sem nenhuma preocupação com sua real ordem. Para efetuar suas traduções Budge
utilizou os papiros de Ani e Nu, fazendo uma espécie de coletânea com os dois. No entanto,
Faulkner utilizou-se somente do papiro Ani. A atual edição da tradução de Faulkner (2008)
publicada em 2008 traz o fac-símile dos capítulos com suas respectivas traduções e
comentários.
O texto é escrito em preto em colunas de hieróglifos, separados por uma linha preta.
maioria dos manuscritos. Frequentemente são utilizadas para títulos ou comentários adicionais
sobre fórmulas individuais e sua efetividade, assim como dão instruções específicas para o
uso do capítulo. As vinhetas aparecem desenhadas e a partir da 21ª dinastia elas são coloridas.
Lepsius— podem somar 190 de acordo com a tradução de Budge e 186 de acordo com
Naville. Não se sabe exatamente quantos capítulos compõem o Livro dos Mortos, já que nos
papiros do Novo Império ele não aparece completo. Por exemplo, o papiro de Kha hoje no
Museu de Turim possui 33 capítulos, o de Yuya que se está no Museu do Cairo 41e o de Ani
com 65 e Nu com 137 que se estão no British Museum. O tamanho dos papiros não era
padronizado, com isso, os escribas colocavam os capítulos tidos como mais importantes e
levavam em consideração o tamanho da área a ser trabalhada. De mesmo modo, como muitos
eram feitos em oficinas, pode-se encontrar espaços pequenos ou muito grandes para se
Os objetivos do Livro dos Mortos são: entrar e sair à vontade do “Belo Ocidente”,
viajar a Abidos e seguir Osíris, derrotar seus inimigos, respirar a brisa e beber água à vontade,
não comer excremento nem beber urina, evitar os trabalhos no Mundo dos Mortos e obter o
3.4. Capítulo 30
3.4.1. Contextualização
Tribunal de Osíris. Ao ser recitado pelo morto pedia que o coração não se opusesse contra seu
discutidos a seguir.
Não se sabe quando esse capítulo aparece na cultura egípcia. A respeito do seu
surgimento há duas versões, mas se sabe que este é um dos capítulos mais antigos do Livro
dos Mortos. A primeira versão expõe que ele foi encontrado sob os pés de uma estátua do
16 Aula ministrada pelo prof. Antonio Brancaglion Junior, no Mestrado de Arqueologia do Museu Nacional, em 25/10/2006.
66
utilizada pelos estudiosos que trabalham com o Livro dos Mortos, atribui a descoberta ao
príncipe Herutataf, da 4a dinastia. Ele o descobriu durante uma viagem de inspeção aos
localizada em Khemenu (Hermópolis Magna), aos pés de uma estátua do deus Thoth, escrito
em uma placa de ferro (BUDGE, 2002, p.62). As duas versões conferem a escrita do texto ao
próprio deus e, com isso, era atribuída uma deificação ao capítulo, sabendo que os próprios
Carol Andrews (1994) afirma que essas versões são usadas somente para mitificar o
capítulo. No seu livro, ela diz que não havia nenhuma necessidade desse capítulo ser utilizado
antes do 1° Período Intermediário. Contudo, ao longo de seu texto, percebe-se que ela remete
encontrado até hoje era pertencente à 13a dinastia. Outro ponto que nos leva a entender o
porquê da escolha dessa data por Andrews é que a 9a dinastia foi formada pelos Hicsos, povo
que introduziu o amuleto do escaravelho como artefato comemorativo e não funerário. Por
serem afirmações muito subjetivas porque a autora não as baseia em fatos, preferimos, como
Para Malaise (1978) a idéia da pesagem do coração e a avaliação dos excessos se dão
no 1º Período Intermediário. Ele cita um caixão descoberto em El-Bersheh onde está o futuro
título do capítulo 30—“Não permitir que o coração de um homem se oponha a ele no Mundo
dos Mortos”—momento em que fica claro o ritual da pesagem do coração. A fórmula 112 do
Texto dos Caixões é denominada “para impedir que o coração de um homem se sente contra
ele”, a 459 demanda ao coração não abandonar o morto e a 715 pede para ele não se rebelar.
67
de escaravelhos-coração.
de capítulos nos quais cada seção possui um significado. Ou seja, cada uma possui fórmulas
que remetem a uma intenção no Mundo Inferior. Serão citadas aqui as divisões de Sir E. A.
27, 28 e 29, formando, assim, a proteção ao coração do falecido, para que esse não seja
roubado pelos “ladrões de coração” no Mundo inferior. Para Paul Barguet, que faz uma
divisão do Livro em cinco seções, o Capítulo 30 está na seção número dois, entre os Capítulos
17 e 63, que são denominados capítulos de “sair ao dia”, à regeneração. Assim, ele diz que
Esse capítulo possui uma ligação com a pesagem do coração do falecido no tribunal de
17 Papiro de Hunefer, que foi um escriba real ao final do reinado do faraó Ramsés I. A cena aqui representada do Tribunal de
Osíris é como a mesma aparece nas vinhetas.
68
recinto e na parte superior ficavam os 42 juízes que auxiliavam Osíris (juiz supremo de todo o
cerimonial). O morto era trazido de mãos dadas com Anúbis (lado esquerdo da imagem) e,
logo após, seu coração era pesado juntamente com Maat, a deusa da verdade e da justiça, que
poderia ser representada por uma mulher sentada com seu símbolo na cabeça ou também por
uma pena (forma pela qual é mais conhecida). Há também a presença da deusa Ammit, um
híbrido com cabeça de crocodilo, corpo de leão e traseiro de hipopótamo, que espreitava ao
lado da balança. Se o coração fosse mais pesado que Maat, ela o devorava e a pessoa era
esquecida para sempre. Acontecia assim a chamada segunda morte. Um pouco adiante dessa
deusa encontramos o deus Thoth que anota todos os procedimentos. Contudo, o coração
precisava ser de mesmo peso que Maat para que o morto pudesse se tornar um justificado e
O morto recita as fórmulas desse capítulo pedindo que: ninguém se oponha a ele no
Julgamento diante dos deuses auxiliares; que o seu coração não o deixe; que os deuses
auxiliares de Osíris não façam seu nome cheirar mal; que não prevaleçam contra ele falsos
testemunhos; e que o veredicto de virtuoso lhe seja conferido depois que seu coração tiver
sido pesado.
3.4.2. O Capítulo 30
A partir desse ponto será discutido o Capítulo 30, suas divisões em 30, 30a e 30b e
suas traduções. O 30a e 30b são do início do Novo Império e o 30 é da Recensão Saíta
que,como foi enumerado primeiramente por Lepsius, ele está antes dos mais antigos. As
dinastia.
69
Malaise (1978, p.19-20) coloca em sua tese um Capítulo 30 tido por ele como ideal e
correto, mostrado na Figura 15. Esse capítulo não foi retirado de nenhum papiro específico é
uma compilação que serve, de acordo com o autor, para ilustrar como ele deveria ser.
Hieróglifos
Transliteração
(2) Dd.f
(12) m qmd grg r.i r-gc ntr (AA m-bAH ntr aA nb Imn.f)
Tradução
Sir. Wallis Budge (1910) também faz uma compilação de papiros para representar o
Capítulo 30b ideal, no qual o título é do papiro de Ani 19, a parte marcada pela letra A é do
As rubricas também compiladas por Budge (1910, p.131) foram retiradas do papiro de
Nu e de Amenhotep.
73
As rubricas desse capítulo ordenam que ele seja recitado diante de um escaravelho 22
inferior:
Oh meu coração, minha mãe; Oh meu coração, minha mãe! Oh meu coração
de minha existência sobre a Terra. Nada se erga para opor-se a mim no
julgamento; não haja oposição a mim diante dos príncipes soberanos;
[nenhum mal] seja manipulado contra mim na presença dos deuses; não haja
separação [entre ti] e mim perante o grande deus, senhor de Amentet.
Homenagem a ti, ó coração de Osíris-quent-Amentet! Homenagem a vós ó
meus rins! Homenagem a vós ó deuses que habitais nas nuvens divinas e sois
exaltados mercê dos vossos cetros! Dizei palavras justas em favor do Osíris
21 Papiro do primeiro século d.C., Dinastia ptolemaica. Texto escrito em demótico. Fonte: www.insecula.com acesso em
30/05/2006.
22 Ver Capítulo 7.
74
Auf-anc, e fazei que ele prospere diante de Neebca. E embora eu esteja junto
a terra, e na parte mais interna do céu, deixai-me permanecer na terra e não
morrer em Amentet, e deixai-me ser lá uma alma imortal para todo o sempre.
(2002, p.215)
A seguir, outra tradução feita por Thomas George Allen (1974, p.39):
Fórmula de como não deixar que o peito de um homem lhe seja tirado no
Meu coração de minha mãe, meu coração de minha mãe, meu peito que eu
tinha na terra, não se levante contra mim como testemunha, não se oponha a
mim no Conselho. Não haja contra mim perante os Deuses. Não pese contra
mim perante o grande Deus, senhor do oeste. Saudação a ti coração mil de
Osíris que preside sobre os ocidentais; saudação a ti intestinos. Saudação a
vocês, deuses que presidem os cachos e prendem seus cetros. Diga que o
bom de ações de Osiris N recomenda-o a Nehebka(u).Embora eu tenha sido
sepultado no lado oeste do Céu. Eu continuo na terra, que eu não morri no
oeste (mas) me tornei um abençoado nisso até a eternidade23.
Em muitos papiros, inclusive nos da recensão tebana, não são encontradas vinhetas;
deuses onde um está com a mão estendida oferecendo-lhe um coração. Esse capítulo não
A primeira tradução aqui descrita é de Sir E.A. Wallis Budge, mostrada a seguir.
Ó meu coração, minha mãe; ó meu coração, minha mãe! Ó meu coração de
minha existência sobre a terra. Nada se erga em oposição a mim no
julgamento perante os senhores do tribunal; não se diga de mim nem do que
tenho feito, „Ele praticou atos contra o justo e o verdadeiro‟; nada se volte
contra mim na presença do grande deus, senhor de Amentet. Homenagem a
ti, ó meu coração! Homenagem a ti, ó meu coração! Homenagem a vós, ó
meus rins (vísceras)! Homenagem a vós, ó deuses que assisti nas divinas
23 Capítulo retirado do papiro Ptolomaico de Nysw-sw.Tfwt que se encontra no Oriental Institute Museum em Chicago
75
nuvens, e sois exaltados graças aos vossos cetros! Falai [por mim] coisas
justas a Rá, e fazei que eu prospere diante de Neebca. E contemplai-me,
ainda que eu esteja preso a terra nas suas partes mais íntimas, consenti que
eu permaneça sobre ela e não me deixeis morrer em Amentet, mas me torne
uma Alma Imortal dentro dela. (2002,p.216)
24
Fórmula para impedir que o coração do N. não se oponha a ele dentro do
Fórmula para não deixar que o coração de N se oponha a ele no domínio do deus.
Ele diz:
Meu coração de minha mãe, meu coração de minha mãe,meu peito que eu
tive na terra, não se levante contra mim como testemunha perante os
Senhores das Oferendas. Não diga nada contra mim “Ele realmente fez isso”
a respeito do que eu fiz. Não traga nenhuma carga de encontro a mim
perante o grande deus senhor do oeste.
Saudação a ti, meu coração; saudação a ti, meu peito; saudação a ti, meus
intestinos. Saudação [a vocês deuses] que presidem os Cachos e possuem
seus cetros. Diga minhas boas ações a Rê; recomende-me a Nehebkau.
Olhe, ele está enterrado „no meio do grande‟ continuando na terra, não
morrendo no oeste (mas) se tornando um abençoado nisto25.
vinheta. Talvez, por aparecer junto com um dos textos que acompanham a cena do
julgamento, onde forma a oração colocada na boca do falecido. A presente vinheta mostra o
morto em pé, junto à balança, ao passo que seu coração é pesado junto com Ma‟at,
representada como deusa. O seu coração na imagem também pode aparecer como um
Em alguns papiros encontramos a rubrica do Capítulo 148 do Livro dos Mortos, que
diz: “Atenção, faze um escaravelho de pedra verde, lava-o com ouro e coloca-o no coração do
falecido, e o escaravelho executará para ele a cerimônia de Abertura da Boca, unta-o com
26Essa vinheta é encontrada em um papiro da 21a dinastia. Pertencente a Imenemsaouf, chefe das portas do templo do deus
Amon em Tânis. O papiro é escrito em hierático. Fonte: www.insecula.com acesso em 30/05/2006.
77
De como não deixar que o coração de Osíris, escriba das sagradas oferendas de
Meu coração, minha mãe; meu coração, minha mãe! Meu coração por meio
do qual nasci! Nada surja para opor-se a mim no [meu] julgamento; não haja
oposição a mim na presença dos príncipes soberanos; não haja separação
entre ti e mim na presença do que guarda a balança! És o meu duplo (Ka),
habitador do meu corpo; o deus Cnemu costurou e fortaleceu meus
membros. Possas tu sair ao lugar de felicidade para onde vamos. Não façam
os shenit, que formam as condições das vidas dos homens, meu nome cheirar
mal. [Seja ele satisfatório para nós, e seja a sua escuta satisfatória para nós, e
haja alegria de coração para nós na pesagem das palavras. Não seja o que é
falso pronunciado contra mim diante do grande deus, senhor de Amentet.
Grande serás, com efeito, quando te ergueres em triunfo]. (2002, p.217)
Fórmula para impedir que o coração de N. não se oponha a ele no império dos mortos:
Ó meu coração de minha mãe, ó meu coração de minha mãe, víscera de meu
coração de minhas diferentes idades, não se levante contra mim em
testemunho, não se oponha a mim diante do tribunal, não mostre hostilidade
contra mim na presença do guardião da balança!
Você é meu Ka que está no meu corpo, o Chnoum que torna prósperos os
meus membros. Levanta-te na direção do bem, que nós estamos preparados
aqui! Não tornes fétido meu nome perante os assessores que colocam os
homens em seus (verdadeiros) caminhos! Isso será bom para nós, isso será
bom para o juiz, isso será agradável àquele que julga. Não imagines mentiras
contra mim perante o grande deus, Senhor do Ocidente!Veja: de sua nobreza
depende a proclamação da justiça. (1967, p.75/76)
Fórmula para não deixar que o coração de N se oponha a ele no domínio do deus. Ele
diz:
78
Meu coração de minha mãe, meu coração de minha mãe, meu peito de meu
ser, não se levante contra mim como testemunha, não se oponha a mim no
Conselho. Não pese perante o guardador da balança.
Vossa arte de meu espírito que está em meu corpo, Khnum que faz o som de
minhas vísceras. Quando vós estais diante de um lugar bonito preparado para
nós, não faça nosso nome cheirar ml aos juízes que criaram a humanidade
em (seu) lugar, que será bom para nós e bom para o Auditor e aquele juiz
deve ser agradecido. Não pense mentiras (contra mim) perante o Deus na
presença do grande Deus o senhor do oeste. Contemple, a distinção como
um triunfante está (envolvido). 27 (1974, p.40)
das três partes, no caso a que mais deixa a desejar com relação ao conteúdo e uso do mesmo.
Segue.
Meu coração “ib” me vem de minha Mãe celeste. Meu Coração “hati” me
vem de minha vida na Terra. Que não sejam levantados falsos testemunhos
contra mim! Que os juízes divinos não me repudiem! Que sejam verdadeiros
os testemunhos concernentes as minhas ações na Terra ante o Vigilante da
Balança e o divino Senhor do Amenti. Salve oh! Meu Coração “ib”! Salve
oh! Meu coração “hati”! Salve oh! Entranhas minhas! Salve oh! Divindade
majestosa de luminosos Cetros, Senhores da Sagrada Cabeleira.
Que vossas Palavras de Potência me protejam ante Ra! Fazei-me vigoroso
ante Neheb-Kau! Em verdade, embora meu Corpo esteja preso a Terra, não
morrerei, pois serei santificado no Amenti... Oh tu, Espírito encarregado da
Balança do Juízo, sabe: tu és meu Ka, pois habitas nos limites de meu
Corpo! Tu, emanação do deus Khnum, tu dás a Forma e a vida a meus
Membros. Vem, pois aos lugares da felicidade para os quais marchamos
juntos. Que meu Nome não se corrompa nem se torne pestilento aos olhos
dos Senhores todo-poderosos que modelam os Destinos dos homens! E que o
Ouvido dos deuses se regozije e seus corações se encham de alegria quando
minhas Palavras forem pesadas na Balança do Juízo! Que não se digam
mentiras diante do deus poderoso, Senhor de Amenti! Em verdade, grande
serei no dia da Vitória. (NEGRAES, 1996, p.47/48)
Pela cópia de cada um dos capítulos e de cada autor, observamos algumas diferenças.
A última tradução aqui apresentada, do autor Negraes é a que apresenta menos conteúdo e
deixa uma série de lacunas entre as frases. Além de não informar de quais papiros ela foi
retirada. Coloquei-a por último para que se possa perceber que é uma combinação das
traduções de Budge e Barguet, com algumas modificações que deixam o texto complicado. A
Pode-se perceber também, ao longo da leitura dos capítulos, que a escrita egípcia
funerárias). O texto é um pouco cansativo, porém especula-se que isto era feito para dar
ênfase à parte repetida, três vezes, porque esse número formava o plural egípcio. Por ter sido
primeiro oral e depois escrito, o conteúdo ficou o mesmo e, tanto na oralidade quanto na
manufaturado como manda o Livro dos Mortos e as rubricas do Capítulo 30. No entanto, nem
todos eram feitos desse jeito. Alguns possuíam uma placa de prata na parte de trás e outros
não. O texto era incrustado na própria pedra e eles poderiam ser dos seguintes materiais: xisto,
amazonita, jaspe, serpentina, basalto, feldspato, obsidiana, alabastro e vidro. Contudo, o texto
encontrado nos escaravelhos-coração é o Capítulo 30b, mas como esse não cabia no amuleto,
trechos desse capítulo são escritos, como pode ser observado no escaravelho de Hati-iay [41],
no qual em suas nove linhas de textos o escriba pede que seu coração não se levante contra ele
e que não faça o seu nome cheirar mal. O escaravelho de Tewer-semen [43] traz cinco linhas
de inscrições e o morto pede que o coração não se levante contra ele em testemunho. O
amuleto de Intaneb [50] pede o mesmo que os outros, que o coração não se levante contra seu
dono em testemunho e que não se oponha perante ele no Tribunal. Contanto, percebe-se que a
parte principal do capítulo era inserida nos amuletos, nos quais se pede que o coração do
ressurreição, mas, principalmente, a proteção do coração no Mundo Inferior, para que esse
nunca fosse roubado ou que não depusesse contra seu “dono” no Tribunal de Osíris.
81
Capítulo 4. O coração
Este capítulo tratará do significado do coração para os antigos egípcios por meio de
terminologia, textos funerários e amuleto do coração. O coração era para os antigos egípcios o
órgão mais importante de um ser humano. Ele era o órgão que bombeava o sangue por todo o
corpo e também a sede de todas as faculdades dos seres. Assim como nada é estático na
cultura e na religião egípcias, o significado das funções do coração também muda ao longo do
período faraônico.
Segundo a Teologia Menfita, foi no segredo do coração de Ptah que todos os seres
foram concebidos. Através da nomeação da língua do ser criador eles se tornaram visíveis.
Cada ser possui um coração-consciência que o liga ao demiurgo, o coração possui assim um
domínio sobre o corpo, ele é a sede dos pensamentos29. Entretanto, o coração liga a pessoa
Sol, o centro de onde se irradia a vida. Os indivíduos eram guiados pelas ordens dos Faraós,
era uma sociedade estatal, embasada nos poderes reais. No Médio Império o coração torna-se
o centro de desenvolvimento individual a partir do qual cada homem poderia aderir à verdade.
Esse é o momento em que o coração do homem abriga seu caráter, sua virtude, sua
competência e sua vontade. A partir do Médio Império todos aqueles que morressem
poderiam se tornar um Osíris se não tivessem cometido pecados, ou seja, se o seu coração não
pesasse mais que Maat no Julgamento de Osíris. Essa atitude também mostra a divinização do
coração; é ele que recebe as ordens divinas que são transformadas em atos pelos seres
humanos. Quando uma pessoa segue seu coração ela segue uma vida digna e sem fracassos.
29 SOUSA, R.F. de A noção de coração no Egipto Faraônico: uma síntese evolutiva. In: Percursos do Oriente Antigo. s/d
30
op.cit.
82
No Novo Império a relação do homem com o coração não é mais unicamente racional,
ela passa a ser agora uma reciprocidade com o deus. Essa reciprocidade molda o caráter da
pessoa.
egípcios antigos, no entanto, para eles o movimento de todas as partes do corpo estava ligado
O coração hAti é o músculo cardíaco, aquele que bombeia o sangue para o corpo. É o
coração que funciona como uma máquina. Considerando que eles não detinham o
conhecimento específico de músculo, que pode ser interpretado como a máquina que mantém
o corpo funcionando juntamente com o ib. Ele era deixado nas múmias ao longo do processo
de mumificação e, caso fosse retirado por algum problema do embalsamador ele era
21ª dinastia. A proteção do coração do morto se dava de acordo com um amuleto do coração.
amor, ambição, raiva. Nele também atuavam os deuses. Nas palavras de Traunecker:
O coração ib era a força vital dos líquidos e do ar do corpo. Era mais que o coração,
eram os pulmões, o fígado, o estômago e o intestino. Portanto, quando uma pessoa adoecia,
era seu ib que estava enfermo; Este ocorria porque era a intervenção do deus no coração ib
Por ser o berço de todas as faculdades humanas, o coração ib possuía vontade própria.
Contanto, caso ele quisesse, poderia se levantar contra seu dono na hora do Julgamento de
Osíris. Todavia, quando o morto pede ao seu coração “não te levantas contra mim em falso
4.3. Terminologia
como o coração de um animal e não o humano. Certamente é o coração de um touro, que era
um dos itens mais importantes utilizados durante a Cerimônia de Abertura da Boca. Ele era
(ANDREWS, 1994).
Para escrever coração os egípcios possuíam dois modos: , ib, o coração como ele
físico. As expressões formadas na escrita egípcia com a palavra coração servem para mostrar
1. Tristeza:
31
Ver Capítulo 3.
84
2. Inquietude: essa pode ser demonstrada de diversas maneiras, assim como na frase que diz
“o coração não está em seu lugar”. É o que ocorre, principalmente, quando uma pessoa se
encontra apaixonada.
“Estou como um cavalo agitado, o sono não vem em meu coração durante o dia, ele
5. Desejo:
“Ele fez recuar o coração (coragem) de Seth, porque você é maior que ele.”
8. Memória, pensamento:
“Meu coração sabe, mas os meus olhos não o vê.” (PIANKOFF, 1930, p.48)
86
O verbo compreender pode ser escrito por , que significa “liberar pelo
coração”.
Texto das Pirâmides, Texto dos Caixões e no Livro dos Mortos. Com relação ao Livro dos
No Texto das Pirâmides o coração se mantido em seu lugar permite ao Rei morto a
coração é hAti
“... sua espinha dorsal é Neith e Selket, seu coração é Sekhmet, a grande.”
Outro trecho do Texto das Pirâmides que faz essa alusão aos deuses é:
32
Ver Capítulo 3.
87
O céu se agita, a terra treme, Hórus chega, Thoth aparece, eles erguem Osíris
ao seu lado e o fazem ficar em pé perante as Duas Enéades. Lembre Seth, e
coloca em seu coração as palavras ditas por Geb.. 34. (FAULKNER, s/d,
p.164)
Oh Rei, Hórus veio e ele pode procurar por você, ele fez com que Thoth
virasse para trás os seguidores de Seth para você, e ele os trouxe junto, ele
conduziu para trás o coração de Seth para você, porque você é maior do que
ele... (FAULKNER, s/d)
Saudação a você, suas águas trazidas por Shu, nas quais as duas fontes se
levantaram, onde Geb banhou seus membros. Corações (ibw) estão
impregnados com medo, corações (hAti) estão impregnados com
terror...(FAULKNER,s/d,p.173)
No Texto dos Caixões na fórmula 229 o morto pede para “ser apto a falar e prosperar
em mágica, por ser quem equipa o coração com desejos”. Há também passagens relacionadas
33
. O espaço deixado em branco tanto nos hieróglifos referem-se ao local onde se inseria do nome do morto.
34
Tradução do inglês para o português feito pela autora.
88
Os capítulos relacionados ao coração no Livro dos Mortos são 26-29b. Eles estão
com o coração na mão direita se dirigindo a Anúbis. Na mão esquerda que está estendida, Ani
segura um colar de contas coloridas de várias voltas que possui fecho em forma de um pilono
35
Papiro Ani BM10470, folha 15. Os hieróglifos dos Capítulos 26, 27, 28, 29, 29a e 29b foram retirados do livro BUDGE,
E.A.W.The book of the dead. The chapters of coming forth by Day. London: Kegan Paul Trench Trübner & Co. LTD,
1898
89
Possa meu coração (ab) estar comigo na Casa dos Corações! Possa meu
coração (hat) estar comigo na Casa dos Corações! Possa meu coração estar
comigo, e descanse ele ali, [ou] não comerei dos bolos de Osíris no lado
oriental do Lago das Flores, nem terei um barco pra descer o Nilo, nem outro
para subi-lo, nem poderei singrar contigo às águas do Nilo. Possa minha
boca [ser-me dada] para que eu fale com ela, e [sejam-me dadas] minhas
pernas para eu andar com elas, e minhas mãos e braços para eu derrubar meu
90
Esse capítulo mostra a relação dos dois corações com os membros e como o morto
necessita do coração para ter todas as suas atividades restabelecidas no Mundo Inferior.
Consegue-se também perceber a diferenciação dos dois corações. Na parte em que ele diz
O Capítulo 27 possui na vinheta Ani com as mãos erguidas em sinal de adoração, seu
coração está colocado em um pedestal, diante dos quatro deuses sentados na representação do
hieróglifo de Maat.
91
Esse capítulo mostra a dominação do morto perante o seu coração e como nesse e nos
capítulos seguintes haverá sempre um pedido para que o coração não se levante contra seu
36
As palavras entre chaves são do papiro de Mes-em-neter
37
Papiro de Nu, BM 10477, folha g
92
antros de Suti, mas não deixes que lhe seja dado meu coração, que fez o que
desejava diante dos príncipes soberanos que estão no Mundo Inferior.
Quando encontram a perna e as ataduras eles as enterram. (BUDGE, 2002,
p.213)
Assim como no capítulo anterior, o morto pede que o coração hAti não seja destruído
pelos deuses, para que assim ele possa recuperar o domínio de seus membros.
Volta para trás, ó mensageiro de todos os deuses! Dar-se-á que tenhas vindo
[para arrebatar-me] o coração que vive? Mas meu coração que vive não te
será dado. [Á proporção que] avanço, os deuses atentam para minhas
oferendas, e todos caem sobre seus rostos em seus próprios lugares. 39
No presente capítulo, o morto pede a proteção de seu coração ib porque ele precisa
além do movimento de seus membros (Capítulo 28), também de sua memória, caráter e
sentimentos.
38
Papiro de Nu, BM 10477, folhas i, j
39
BUDGE 2002, op.cit.pág.213, ele nomeia esse capítulo como 29a, no entanto ao se olhar os hieróglifos e as referências,
esse corresponde ao 29.
94
Meu coração está comigo, e jamais acontecerá que ele venha a ser levado
embora. Sou o senhor dos corações, o matador do coração. Vivo na justiça e
na verdade (Ma‟at) e nelas tenho o meu ser. Sou Horo, habitador de
corações, que está dentro do habitador no corpo. Vivo em minha palavra, e
meu coração tem ser. Não se permita que meu coração me seja arrebatado
nem ferido, nem que eu perceba ferimentos ou talhos por ele me haver sido
arrebatado. Seja-me permitido ter meu ser no corpo de [meu] pai Seb, [e no
corpo de minha] mãe Nut. Não fiz o que é abominado pelos deuses; não se
permita que eu sofra ali uma derrota, [senão que eu seja] triunfante. 41
40
Papiro de Amen-hotep, Naville, Todtenbuch, Bd. I, Bl.40
41
BUDGE, 2002, op.cit. pág. 214, nesse capítulo ocorre o mesmo problema que o anterior. O autor o nomeia como 29b e ele
é 29a
95
Sou o Benu, a alma de Rá e guia dos deuses no Tuat (Mundo Inferior). Suas
almas divinas saem à terra para fazer a vontade dos seus duplos, permita-se
portanto à alta de Osíris Ani sair para fazer a vontade do seu duplo. 43
O coração era deixado no corpo durante o processo de mumificação porque ele poderia
amuleto do coração. O primeiro autor a estabelecer uma tipologia para esse amuleto, assim
É usualmente aceito que esse amuleto representava o coração do touro, haja vista que
esse é uma representação do hieróglifo. O texto que esses amuletos traziam era o Capítulo 29b
Para Carol Andrews (1994, p.72), somente dois amuletos do coração são conhecidos
anteriormente ao Novo Império e esses são utilizados até o final das dinastias egípcia. No
42
Papiro de Ani, BM 10477, folha 33
43
BUDGE, 2002 op.cit. pág. 214. Ocorre aqui o mesmo problema, Budge o nomeia como 29c quando ele é 29b.
96
entanto, confrontando essa datação Rogério Sousa (2005) por meio de seus estudos com
Esses amuletos eram produzidos para o uso cotidiano e por serem de tamanho pequeno
poderiam ser colocados em pulseiras ou colares. A partir da 18ª dinastia é possível diferenciar
os que eram produzidos para fins funerários e os cotidianos. Os amuletos funerários possuíam
Capítulo 5. Escaravelhos
do vivo assim como do morto. Será apontada qual a morfologia biológica, quando eles
começam a ser utilizados na cultura egípcia, assim como suas funções de selo, real, particular
e comemorativo.
Síria e Palestina. Assim como, há uma grande quantidade encontrada na Grécia, que datam do
artefatos são da família Scarabaeidae ou Coprophagi. Essa família é composta por uma grande
quantidade de espécies, cerca de 30 mil. A maioria dos escaravelhos dessas famílias pertence
esterqueiros que são cerca de cinco mil espécies. O tipo admirado e copiado pela população
sagrado dos egípcios é o Scarabeus sacer ou, para alguns autores, Ateuchus sacer. Este inseto
é encontrado no Egito, no sudoeste da Europa, China, oeste da Índia, leste da Ásia e nordeste
50 vezes o seu. Alguns possuem pelos em suas patas, o que facilita a locomoção na areia.
98
Esses pelos são representados em escaravelhos-coração como estrias nas patas, alguns
A imagem mostrada na Figura 18 é uma representação desse inseto, que serve para
O ciclo de vida do Scarabeus sacer observado por escritores gregos, era de mesmo
modo imaginado pelos egípcios antigos. Plutarco45 relata que: a raça dos escaravelhos não
tem fêmea; são todos machos. Eles ejetam seus espermas em uma pelota redonda de material
na qual eles a rolando com suas patas traseiras, de mesmo modo que o sol aparenta girar nos
céus na direção oposta ao seu próprio curso, a qual é do leste para o oeste. Em Horapolo46 há
os transformava em uma forma esférica, rolando-a de leste para o oeste, olhando-se para o
leste. Tendo um buraco para o esterco, ele enterrava a bola por 28 dias e no 29° dia ele abria a
Hoje sabemos, ao contrário do que os egípcios imaginavam e que foi relatado por
escritores gregos, que esse ciclo consiste em a fêmea fazer uma esfera de estrume de gado e
44
Imagem cedida pelo prof. Dr. Antonio Brancaglion Junior
45
Em Ísis e Osíris 318A
46
Horapolo, i, 10
99
rolá-la pelo deserto com o auxílio de suas patas traseiras, com a cabeça voltada para o oeste.
No trajeto ela seleciona um macho para copular, a copulação leva desde minutos até 17 horas.
Após o ato, ela procura um lugar seguro para enterrar a bola e, em seguida, coloca o ovo
larva se alimenta dos resíduos da esfera de excrementos. No vigésimo dia o escaravelho nasce
e o ciclo de rolar a bola recomeça. No entanto, a bola de excremento pode ser roubada por
outro escaravelho, que resulta resultando em grande embate. Por causa dessa briga, eles eram
vistos como símbolo de coragem e aptidão física (BEN-TOR, 1989). O inverno é o período
que os esterqueiros preferem para fazer e rolar suas bolas de excremento. O caminho
47
Exemplar de um Scarabeus sacer fêmea, rolando a bola de excrementos com a ajuda das patas traseiras. Imagem cedida
pelo professor Dr. Antonio Brancaglion Junior.
100
Para os egípcios antigos, a idéia de “geração” se dava por causa da maneira como o
escaravelho se enterrava com a bola. Com isso, fizeram uma analogia com o deus criador
A datação precisa de quando esse artefato começa a ser confeccionado até o presente
momento da Egiptologia não pode ser estabelecido. Apesar de haver milhares de escaravelhos
espalhados pelos museus e coleções particulares, boa parte desses foi encontrada sem
contexto e alguns não estão em registros de escavações. Mesmo os escaravelhos com nomes
48
Imagem cedida pelo prof. Dr. Antonio Brancaglion Junior e as legendas traduzidas por mim
101
reais não podem ser utilizados para datações porque eles eram também produzidos anos após
a morte do Faraó. Mostraremos como diversos autores que estudam esses artefatos debatem as
datações.
Há uma convenção entre os estudiosos citados ao longo desse tema que os egípcios
começam a utilizar esses artefatos no período Pré-dinástico. Desde essa época eles observam
o ciclo de vida dos escaravelhos porque jarros com escaravelhos secos desse período foram
Segundo autores como W. M. Flinders Petrie, John Ward e Isaac Myer, escaravelhos
começam a ser utilizados desde o período pré-dinástico, mas os que possuem nomes de reis
são da 3a dinastia. Já para Meulenaure, começaram a ser utilizados somente com Khufu, faraó
da 4a dinastia. W.M. Flindres Petrie diz que os escaravelhos de Khafra — trabalhados por ele
Khufu somam 22 e Menkhaure não possui nenhum. Como o feitio desses escaravelhos era
parecido, Petrie afirma que poderia causar confusão para se saber a quem pertenceu cada uma.
Segundo Olga Tufnell (1984, pág.xv) é possível traçar uma cronologia baseada nos
escaravelhos de governantes da 12ª dinastia. Contudo, não é possível delinear essa cronologia
No período de dominação dos Hicsos, há uma vasta produção dos escaravelhos como
nunca antes vista na cultura egípcia antiga e como não aconteceria mais. Para Petrie (1911), a
ordem dos nomes dos faraós que compuseram as dinastias dos Hicsos pode ser organizada de
acordo com seus escaravelhos e o grau de degradação de sua decoração. Para ele, é evidente
49
Encontrados em Diospolis (cova B 17, 217, 234 e 328). Ver: PETRIE, W.M.Flinders. Scarabs and cylinders with names.
London: School of Archaeology in Egypt University College, 1917
102
que os escaravelhos da 15ª a 17ª dinastias foram encontrados no Delta, porque era nesse local
que estava capital do governo dos Hicsos. As escavações de Manfred Bietak em Tell el-
Dab‟a, antiga Avaris identificou 15 nomes de reis que só aparecem em escaravelhos. Esses
nomes são egípcios e alguns semíticos, precedidos por epíteto como “o bom deus”, “o filho de
Rê” e “o governante de países estrangeiros”. Os primeiros dois epítetos foram utilizados por
Reis egípcios por anos. Estilisticamente, esses escaravelhos podem ter sido feitos tanto no
Egito como na Palestina. No entanto, os estilos os ligam aos produzidos durante a 13ª
dinastia. Até hoje, pelo trabalho realizado por Bietak não é possível organizar esses
escavação. Para John Ward os escaravelhos deixam de ser utilizados no período de dominação
Greco-Romana porque eles não entendiam o que estava escrito nos hieróglifos e faziam uma
cópia mal feita deles, com uma série de erros e, com isso, eles passam a utilizar menos esses
artefatos. De acordo com os outros autores, eles deixam de ser utilizados gradativamente na
30ª dinastia.
entanto a de Willian A. Ward dos anos 1970 sempre foi a mais utilizada. Não obstante, David
O‟Connor, Manfred Bietak, James Weisntein e Daphna Ben-Tor sugerem que a maneira de se
Segundo Salima Ikram (2005), escaravelhos podem ser encontrados nos sítios de
Heliopolis e Tebas. A autora enfatiza que no Período Greco-Romano vários animais eram
mumificados, como cabras, babuínos, carneiros, leões, gatos, cães, hienas, peixes, gazelas. Os
onde houve contato com a cultura egípcia antiga, como Grécia, Sírio-Palestina, Sudão e
Roma.
artefatos, como decoração e formato do inseto, da cabeça do animal, o topo da peça, posição e
5.3 Tipologias
Para o estudioso W. M. Flinders Petrie (1917, pág.5), que fez a primeira padronização
dos estilos de escaravelhos para uma possível datação, em cada época são utilizados cinco
em forma lunar. O Catharsius possui uma cabeça quadrada e é o segundo mais comum.
é o Copris. O Gymnoplerus tem marcas dos dois lados em direção ao élitro. Finalmente, o
Hypselogenia é caracterizado por uma parte traseira alongada. A tipologia é feita também
50
Caixão de Madeira para escaravelhos mumificados, datado c. 664 a.C. Está no British Museum, EA36155. Fotografia da
autora da dissertação.
104
com base no estilo de manufatura de cada período. Destacando os seguintes padrões utilizados
para se fazer as patas com pelos, a cabeça de forma lunar ou profunda ou fundida com o
clípeo, clípeo destacado ou plano, as marcas em V no topo do élitro e linhas curvas na parte
traseira. Para uma possível datação pode ser feita porque entre a 12ª e 18ª dinastias nenhum
ovais somem no período de Senusret III. Os escaravelhos do período dos Hicsos não possuem
decorações elaboradas como os posteriores. A Figura 26 traz o desenho feito por Petrie onde
51
A presente tipologia está em PETRIE, 1917, p.176
105
No entanto, hoje essa tipologia é revisada pelos egiptólogos que estudam esses
artefatos, porque mesmo passado muito tempo da morte de um Faraó ainda se faziam
essa tipologia no início do século XX e, após esse período, uma infinidade de escaravelhos foi
A autora Kathlyn M. Cooney (2008) sugere a seguinte tipologia, na qual ela divide os
Período Tardio e tem a iconografia de deuses e frases que trazem boa sorte. Esse grupo
também possui artefatos do Novo Império e Terceiro Período Intermediário que são
escritos na base que datam do Médio Império ao Período Tardio. A terceira categoria possui
nomes e títulos de pessoas que não fazem parte da realeza, o que sugere que seu uso era como
selo, um tipo muito utilizado no Médio Império. O quarto grupo pertence a uma decoração
Asiática que foi adaptada à iconografia egípcia, a sua maioria data do Médio Império e 2°
Período Intermediário, uns poucos são do Novo Império. O quinto grupo possui decoração
Para John Ward52 a arte decorativa mais antiga dos egípcios é a encontrada nos
escaravelhos. Para ele, a decoração em espiral possuía um significado ainda não resolvido, ela
passa a integrar a composição decorativa de armas, objetos de madeira e relevos. Nessa época,
os padrões de decoração sofrem mudanças, são motivos florais, desenhos enrolados, espirais e
52
Ward, 1902, Em seu livro há pranchas com a representação dos escaravelhos e o de Nebkara, faraó da 3ª dinastia.
106
Figura 23. Escaravelho do Médio Império53 Figura 24. Escaravelho do 2° Período Intermediário54
Figura 25. Escaravelho do 2° Período Intermediário55 Figura 26. Escaravelho do período de dominação dos
Hicsos56
53
Petrie Museum, UC11141
54
Petrie Museum, UC11121
55
Petrie Museum, UC28868
56
Petrie Museum, UC28878
107
Os exemplos citados ilustram a discussão dos autores com referência à decoração dos
escaravelhos. Contudo, não é correto afirmar que uma época possui uma decoração melhor
que a outra. Há sim uma preocupação com os padrões decorativos, assim como o seu feitio se
dá com relação ao seu período. No Novo Império os hieróglifos compõem nomes e títulos e
são mais claramente vistos. Contundo, na Baixa Época os escaravelhos possuem uma forma
Atualmente, para se efetuar uma datação são usados todos os critérios viáveis, como
dinastia. Eram fabricados durante a vida do rei, mas em alguns casos eles são recentes, como
um sinal de adoração ao faraó morto. A maioria desses escaravelhos foi feita como sinal de
devoção ao faraó.
foram fabricados no Novo Império e não durante o reinado desses faraós. Contudo,
57
Petrie Museum, UC11256
108
reinados dos faraós do Antigo Império, como o de Unas da 5ª dinastia e Pepi I da 6ª dinastia.
58
Escaravelho contendo o nome do faraó Unas, Petrie Museum, UC13382
59
Escaravelho do período de dominação dos Hicsos, contendo o nome do rei Sheshi 15ª dinastia (c.1666 a.C.). Hoje está no
Fitzwilliam Museum, Cambridge, UK, com o número de referência E.SC.52.
109
A utilização dos escaravelhos como selo se dá a partir da 13ª dinastia, onde nomes e
títulos de grande oficiais começam a aparecer entalhados nos escaravelhos e não somente
cartuchos com nomes reais. Esses escaravelhos eram colocados em anéis e empregados como
selos.
Os escaravelhos selos eram utilizados para lacrar potes com mantimentos e bebidas e
para que os jarros não se perdessem ou fossem roubados. O selo desses objetos era feito com
uma faixa ou tampa de argila e, ainda molhada, era feita a impressão da parte escrita do
escaravelho. Em outra maneira, uma fita de linho era colocada envolvendo o objeto a ser
lacrado, colocava argila e fazia a impressão. Antes desse período, ele o escaravelhos era usado
60
Figura 30. Jarro contendo o selo em sua tampa
61
Figura 31. Escaravelho-selo
60
Jarro com tampo em argila e contendo no lado inferior direito da tampa o selo com a designação de a quem ele pertencia.
Possui 1 m de altura e 25,4 cm de diâmetro. Objeto atualmente no British Museum, London, UK, sob número de referência
EA 27741.
111
as casas.
Esse tipo de escaravelho possuía o nome de pessoas ou títulos. Contudo, eles não são
período da História Egípcia no qual se observa grande quantidade desses artefatos. Todavia,
para W.M. Flindres Petrie (1917, p.12), o escaravelho mais antigo desse tipo pertenceu a
muitos são do reinado de Amenhotep III. Contudo, seus escaravelhos também foram
O escaravelho que relata o casamento do Faraó com a Rainha Tiy aparece na Figura
(3) Pacificador das Duas Terras, Hórus de Ouro, Grande de Força, Destruidor dos
Asiáticos;
(4) Rei do Alto e do Baixo Egito, Senhor das Duas Terras, Neb-Maat-Rê, filho de Rê
Amenhotep Governante de Tebas,
61
Escaravelho selo, colocado em um anel, utilizado para lacrar potes com mantimentos. Sua feitura se deu na 19ª dinastia
(1293-1185 a.C.), ele possui o tamanho de 1,8 cm. O objeto está no Fitzwilliam Museum, Cambridge, UK, sob o número de
referência E. 106.1920
62
Período governado pelo faraó Amenhotep IV/Akhenaton (1350-1334 a.C.) no qual foram feitas reformas político-religiosas
no Egito.
112
(5) O faça Viver. A Grande esposa Real Tiy, a faça viver o nome de seu Pai
63
Figura 32. Escaravelho com o relato do casamento do Faraó com a Rainha Tiy
Amenhotep III também possui escaravelhos que narram caçadas a touros e leões. Os
relacionados a leões são 137, encontrados até hoje e que contam várias caçadas realizadas
pelo Faraó. Ele também possui escaravelhos que relatam a abertura de lagos.
sempre o seu respeito à Aton, seu deus Sol, e também aparecia o nome de sua rainha Nefetiti.
Novo Império. No entanto, mesmo 1000 anos após sua morte, o faraó Tuthmosis III ainda é
63
Escaravelho comemorativo onde está relatado o casamento do faraó Amenhotep III com a rainha Tyi. Possui entre 6-7 cm.
Objeto encontra-se no Fitzwilliam Museum, Cambridge, UK (número de acesso E.86.1934).
113
homenageado com escaravelhos. Isso poderia ocorrer porque o nome do faraó, Menkheperre
O amuleto de escaravelho era utilizado tanto em vida como na morte. O mais antigo
encontrado estava em uma tumba da 6ª dinastia, feito em Marfim. A sua função simbólica se
dava principalmente por forma que já remetia a esperança de uma nova vida. Os textos e
imagens decorativas em sua base também são marcantes para determinar o simbolismo.
Alguns textos possuíam os dizeres de “boa sorte”, “que você seja abençoado com muitos
filhos”, “estável é a cidade que Amun manda”, “faça com que Khonsu seja a minha proteção”.
Ou seja, esse amuleto provia proteção e atraia boa sorte para quem o utilizasse, tanto em vida
como na morte.
esses nomes possuíam poderes de proteção, se acrescessem palavras com significado mágico
Carol Andrews (1994, p.52) discorda a afirmação anterior, para ela os escaravelhos
como amuleto tinham a sua base sem inscrição. O material era o determinante para atestar a
sua função, como lápis-lazúli, turquesa. Sobre materiais a afirmação da autora está correta,
mas nem sempre seriam utilizadas rochas preciosas ou semipreciosas para a manufatura desse
amuleto. Assim, sendo o texto também atestaria juntamente com a forma e se possível o
O material utilizado para a fabricação desses amuletos poderia ser qualquer matéria-
prima que o artesão tivesse disponível. Contudo, os mais comuns eram de Esteatita e Faiança.
O amuleto do escaravelho-coração64 era feito para ser usado somente no dia do enterro
e sepultado com a múmia. Outros amuletos de escaravelho que eram usados em vida também
eram enterrados com o falecido 65, mas sem a mesma função religiosa.
O amuleto do escaravelho alado, era colocado nas bandagens da múmia, também faz
Grécia, Península Ibérica e Núbia, mostrando a relação dos egípcios com outros povos.
Para Olga Tufnell (1984, p.1), ao se referir a escaravelhos selos, logo se pensa nos
Outra evidência que sugere o contato dos egípcios com povos de outras regiões é o
escaravelho com o nome de Senusret I (1971-1926 a.C.), Faraó da 12ª dinastia, encontrado em
suas próprias crenças. A influência artística egípcia se deu com grande força na Idade do
Ferro (c.1200 a.C.), quando artesãos Fenícios criaram seus próprios escaravelhos. O mesmo
processo ocorreu no Sul do Egito, nos reinos de Napata e Meroe (localizados no Sudão),
64
Ver Capítulo 7
65
Ver Capítulo 2
115
5.10. Escarabóide
ovalado do escaravelho, mas que na parte onde aparece o animal tem-se outro. Nos
escarabóides aparecem patos, babuínos, leões, gatos. Como pode ser visto nas Figuras 33 e
34. Ele aparece no Primeiro Período Intermediário (2181-2040 a.C.) e é utilizado até ao final
tinham a função de amuletos quando em seu topo tivesse a representação de um deus. Caso
66
Figura 33. Escaraboide
67
Figura 34. Escaraboide
66
Escarabóide contendo uma impressão de selo, com 1,8 cm. Atualmente no Fitzwilliam Museum, Cambridge, UK sob o
número de referência E.SC.19
116
Será utilizada como fonte de referência na elaboração desse capítulo a obra de Thierry
6.1. Materiais
estudo são faiança, ardósia, argila, arenito, amazonite (feldspato), calcário, cobre, cornalina,
diorito, esteatita, granito, grauvaque, jaspe, lápis-lazúli, madeira, mármore, ouro, prata,
6.1.1. Faiança
A faiança egípcia era feita por meio de uma combinação de quartzo ou cristal moído
com óxido de cálcio e Natrão. A sílica compunha 99% do material. Esses eram misturados
com água e colocados em moldes de argila, como mostrado na Figura 35, ou a peça era
modelada à mão. Contudo, esses moldes não são encontrados antes da 18ª dinastia. Nas
escavações realizadas por W. M. Flindres Petrie em Tell el Amarna, foram encontrados cerca
de cinco mil moldes. Há também remanescentes de moldes em outros sítios como Qantir,
Naukratis, Mênfis, Tebas e Gurob. O resultado era uma cerâmica vitrificada de tonalidade
67
Escarabóide feito com anel, com um pato representado de um lado e hieroglifos de outro. Objeto encontra-se no
Fitzwilliam Museum, Cambridge, UK, sob número de referência E.GA.44.1947.
117
pontiagudos de quartzo sem a mistura de outros materiais (LUCAS, 1962). A sua coloração é
branca, mas podia ser tingida de marrom, cinza, azul, verde e tom amarelado.
68
Figura 35. Molde para escaravelho
A vitrificação era comumente utilizada para fazer artefatos na coloração azul ou verde.
colorir. No caso poderia ser carbonato de cálcio em pequenas quantidades, que se tornava
carbonato silicoso por causa do calor e, uma grande proporção de sílica. Em altas
temperaturas a sílica age como um ácido que combina as substâncias. Pode acontecer de
nenhum material silicoso ser utilizado nesse processo, pois como a faiança era composta de
sílica, ela combinaria com o carbonato de cálcio, de sódio e de potássio. A faiança é utilizada
do período pré-dinástico até a dominação Islâmica. Provavelmente, os objetos feitos com esse
68
Molde para o feitio de escaravelho em faiança. Objeto encontra-se no Fitzwilliam Museum, Cambridge, UK, sob o número
de referência E.40.1887
118
6.1.2. Rochas
quantidade de rochas, que podiam ser ígneas, sedimentares ou metamórficas. Essas rochas se
podem ser divididas em dois tipos principais. As intrusivas que se formam no interior da
Terra quando o magma é empurrado para dentro de fendas ou entre camadas rochosas. As
rochas ígneas aqui descritas são granito, feldspato, diorito e basalto. O outro tipo são as
rochas chamadas extrusivas, que se formam a partir da lava que é depositada na superfície
terrestre. Essas rochas possuem granulação fina, pois são formadas rapidamente com o
de rocha, o que a torna uma nova rocha. Essas rochas fornecem várias informações sobre as
encontro de placas tectônicas ou magma, em local onde a pressão e a temperatura podem ser
composição. A maneira mais comum era recolher blocos do fundo de oásis e vales.
sistemática e em larga escala. Essas rochas eram retiradas em blocos, facilitando o transporte
119
e confecção de templos, tumbas, estatuaria e amuletos, entre outros. Na rocha in situ eram
feito buracos e depois com um cinzel ou machado esse bloco era separado dos demais.
hieróglifos com ferramentas nesse material. Para finalizar, a rocha era polida por meio de
atrito. Esse polimento era feito com o auxílio de uma ferramenta de metal em conexão com
que servia como percutor. Essa rocha é macia, mas somente no momento em que está
recentemente escavada. As rochas mais duras como granito, diorito e quartzito eram
A esteatita é um material que era trabalhado com o auxílio de uma agulha e com
pequena pressão. Após ter sido moldada no formato do escaravelho, a esteatita era levada ao
fogo, onde recebia o acabamento de vitrificação de diferentes cores. Contudo, geralmente era
azul ou verde. Os escaravelhos desse material encontrados com uma coloração branca ou
Os escaravelhos feitos de argila são moldados e depois levados ao forno para queima.
Encravar os hieróglifos e detalhes no artefato de xisto era mais complicado e uma ferramenta
6.1.2.1. Ardósia
A ardósia é uma rocha metamórfica composta por argila e cinza vulcânica e com grãos
finos.
120
6.1.2.2. Arenito
formar em ambientes com água, como rios e lagos. O gradativo acúmulo de material arenoso
Essa rocha era comumente encontrada no deserto sul oriental de Gebel Migif e na
região do Wadi el-Gemal ,Wadi Abu Rusheid, Wadi Nugrus e Wadi Higelig.
Era utilizada desde o período Neolítico para a fabricação de contas e comumente usada
6.1.2.4. Calcário
Possui uma composição homogênea, com granulometria compacta ou muito fina, ficando com
superfície lisa e brilhante ao ser polida. O material é composto de calcita em diferente estágio
Essa rocha é encontrada em toda a extensão do território egípcio. Esse material era
Baixa Época.
6.1.2.5.Cornalina
A cornalina Hrst.
Ela era extraída na região do Deserto Oriental, mas não era explorada
6.1.2.6. Diorito
O diorito é uma rocha ígnea, heterogênea, com coloração escura e com variação
granulométrica que pode chegar a medir centímetros e seus grãos podem vistos a olho nu. As
jazidas são localizadas principalmente ao Sul de Assuã e algumas estão nos desertos do Sinai.
6.1.2.7. Esteatita
A esteatita vitrificada é tida como um dos mais antigos produzidos pelos egípcios.
esteatita é uma rocha metamórfica, composta por silicato de magnésio hidratado, com
granulação pequena, que pode ser facilmente cortada com uma faca ou marcada com as
unhas. Suas cores são, geralmente, branca ou cinza. Por sua maciez ela era utilizada para
122
moldar pequenos artefatos, como amuletos, contas e escaravelhos que são largamente
produzidos durante o Período Faraônico. A esteatita pode ser encontrada em Gebel Fatira, a
160 km de El Badari, Hamr, que está localizada próxima a Assuã e Wadi Gulan na costa do
Mar Vermelho.
6.1.2.8. Granito
granito vermelho de Assuã e o porfirítico. O granito é uma rocha ígnea intrusiva composta
principalmente por feldspato, quartzo e mica, com medida granulométrica visível a olho nu. O
Império e é facilmente reconhecido. Sua duração como matéria-prima foi até a Baixa Época.
Nos escaravelhos estudados ele aparece nos pilonos de Sennedjem [73] e [74] e o
granito utilizado é o chamado pelos Egiptólogos de granito escuro, que possui minerais
6.1.2.9. Grauvaque
A grauvaque bxn.
é encontrado geralmente no estrato referente à era Paleozóica. Por causa de sua coloração,
cinza, marrom, amarela ou preta, é confundido com o basalto.. Essa rocha era encontrada
123
Época.
6.1.2.10. Jaspe
A jaspe xnmt.
Essa rocha se apresenta como um material compacto, na maioria das vezes homogêneo
com granulometria muito fina e coloração variada. Nos escaravelhos é utilizada basicamente a
jaspe verde. Quando polida essa rocha fica com a superfície lisa e brilhante.
Os autores Thierry de Putter e Christina Karlshausen (1992) afirmam que não se sabe
exatamente onde estavam as jazidas dessas rochas. O jaspe é utilizado desde o Período Pré-
6.1.2.11. Lápis-Lazúli
O lápis-lazúli xsbD .
rocha não era encontrada no Egito, mas vinha por meio de comércio com a região hoje
conhecida por Afeganistão. Seu uso começa nas primeiras dinastia e vai até a Baixa Época.
6.1.2.12. Mármore
Essa rocha era encontrada principalmente na região de Gebel Rokham, que se situa
próximo a Edfu, na região do Deserto Ocidental emWadi Dib, Wadi Dagbag e Wadi Mia e ao
Na 1ª dinastia já se encontram recipientes feitos com essa matéria-prima e seu uso vai
até a Baixa Época. Essa rocha é rara de ser utilizada para a fabricação de escaravelhos-
coração.
6.1.2.13.Quartzito
6.1.2.14. Serpentina
ou shwt.
Se levar em consideração a primeira forma de se escrever esse tipo de rocha, essa será
do Capítulo 30b quando diz “...faze um escaravelho em pedra verde...”69. Nos hieroglifos essa
69
Ver Capítulo 3.
125
grupo de minerais de filossilicato hidratado de magnésio e ferro. A sua extração era feita
principalmente nas regiões de Barramiya, próxima a Edu e Wadi Shaït, a oeste de Kom
Ombo. A sua utilização começa no Período Pré-Dinástico e se estende até a Baixa Época.
6.1.2.15. Xisto
O ouro, a prata e o cobre também estão presentes, contudo eles eram utilizados como
anéis que envolviam o escaravelho, como podem ser vistos nos números [39], [24] e [27] que
possui a placa de ouro onde eram escritos os hieróglifos. Imagina-se que os escaravelhos-
coração que não possuem nenhum tipo de inscrição tinham uma placa com um desses
materiais metálicos que foi retirada para um posterior derretimento e fabricação de outro
artefato.
A madeira é utilizada nos pilonos, não forma necessariamente o escaravelho, mas faz
que são fabricados com mais de um elemento, então a numeração desses aparecerá em todos
Capítulo 7. Escaravelho-coração
Diversos amuletos eram colocados na múmia para assegurar proteção a certas partes
coração é tido como o amuleto funerário mais importante. Isso ocorria porque esse amuleto
evitaria que o coração se levantasse contra seu dono e proferisse contra ele falsos testemunhos
contradizer o seu dono, o que resultaria na segunda morte. Os egípcios antigos almejavam se
tornar um justificado e para isso precisariam passar pela Sala do Julgamento de Osíris. Nesse
era o órgão que recebia a primeira vitalidade do segundo nascimento, era por ele que o morto
revivia.
A pessoa que viveu de acordo com Maat teoricamente não precisaria do amuleto do
escaravelho-coração. No caminho para a Sala do Julgamento o morto passa por vários portões
10. Ó tu, Espírito, que te manifestas em Mênfis e que fazes surgir e crescer
as chamas! Não subtraí o alimento de meus semelhantes.
11. Ó tu, Espírito, que te manifestas em Amenti, divindade das duas fontes
do Nilo! Eu não difamei.
12. Ó tu, Espírito, que te manifestas na região dos Lagos (região do Faium) e
cujos dentes brilham como o Sol! Eu nunca fui agressivo.
13. Ó tu, Espírito, que surges junto do cadafalso e que, voraz, te precipitas
sobre o sangue das vítimas! Sabe-o: Eu não matei os animais do templo.
14. Ó tu, Espírito, que te manifestas na vasta Sala dos trinta juizes e que te
nutres das entranhas dos pecadores. Eu não defraudei.
15. Ó tu, Espírito, Senhor da Ordem Universal que te manifestas na Sala da
Verdade-Justiça. Conhece! Eu nunca monopolizei os campos de cultivo.
16. Ó tu, Espírito, que te manifestas em Bubatis e que andas retrocedendo,
Conhece! Eu nunca escutei às portas.
17. Ó tu, Espírito Aati, que apareces em Heiópolis! Eu nunca pequei por
excesso de palavras.
18. Ó tu, Espírito, Tutuf, que apareces em Ati! Eu nunca pronunciei
maldições quando me causaram qualquer dano.
19. Ó tu, Espírito Uamenti, que apareces nas covas da tortura! Eu nunca
cometi adultério.
20. Ó tu, Espírito, que te manifestas no templo de Amsu e que olhas com
cuidado as oferendas que te levam! Sabe-o: eu nunca me masturbei.
21. Ó tu, Espírito, que apareces em Nehatu, tu, chefe dos deuses antigos! Eu
nunca aterrorizei qualquer pessoa.
22. Ó tu, Espírito-destruidor, que te manifestas em Kaui! Eu nunca violei a
ordenação dos tempos.
23. Ó tu, Espírito, que apareces em Urit, de quem ouço a voz que salmodia!
Eu nunca cedi à cólera.
24. Ó tu, Espírito, que apareces na região do Lago Hekat sob a forma de uma
criança! Eu nunca fui surdo às palavras da Justiça.
25. Ó tu, Espírito, que apareces em Unes e cuja voz é tão penetrante! Eu
nunca promovi querelas.
26. Ó tu, Espírito Basti, que apareces nos mistérios! Eu nunca fiz derramar
lágrimas aos meus semelhantes.
27. Ó tu, Espírito, cujo rosto se encontra na parte traseira da cabeça e que
sais da tua morada oculta! Eu nunca pequei contra a natureza dos homens.
28. Ó tu, Espírito com a perna envolta em fogo e que sais de Akhekhu! Eu
nunca pequei por impaciência.
29. Ó tu, Espírito que sais de Kenemet e cujo nome é Kenemti! Eu nunca
injuriei ninguém.
30. Ó tu, Espírito, que sais de Sais e que levas nas tuas mãos as tuas
oferendas! Eu nunca fui briguento.
31. Ó tu, Espírito, que apareces na cidade de Djefit e cujos rostos são
múltiplos! Eu nunca agi com precipitação.
32. Ó tu, Espírito, que apareces em Unth e que estás cheio de astúcia! Eu
nunca faltei com respeito aos deuses.
33. Ó tu, Espírito ornado de cornos e que sais de Satiú! Nos meus discursos
nunca usei demasiadas palavras.
34. Ó tu, Nefertum, que sais de Mênfis! Eu nunca defraudei nem agi com
perversidade.
35. Ó tu, Tum-Sep, que sais de Djedu (Busíris)! Eu nunca amaldiçoei o Rei.
36. Ó tu, Espírito, cujo coração está ativo e que sais de Debti! Eu nunca
poluí as águas.
37. Ó tu, Hi, que apareces no Céu!Sabe-o: As minhas palavras nunca foram
altaneiras.
129
38. Ó tu, Espírito, que dás as ordens aos Iniciados! Eu nunca amaldiçoei os
deuses.
39. Ó tu, Neheb-neferet, que sais do lago! Eu nunca fui impertinente ou
insolente.
40. Ó tu, Neheb-Kau, que sais da cidade! Eu nunca intriguei para me fazer
valer.
41. Ó tu, Espírito, cuja cabeça é santificada e que sais, de repente, do teu
esconderijo! Sabe-o: eu não enriqueci de um modo ilícito.
42. Ó tu, Espírito, que sais do Mundo Inferior e levas diante de ti o teu braço
cortado! Eu nunca desdenhei o deus da minha cidade. (BUDGE, 2002,
p.325)
Essas são algumas das confissões feitas pelos mortos onde eles negam qualquer ato
que possam ter cometidos. Após a recitação das Confissões Negativas, o coração poderia se
levantar e contradizer o seu dono caso ele tenha feito algo que fora negado.
jaspe71, a coloração escolhida para esse amuleto não foi aleatória. O verde é o símbolo da
vida, da ressurreição. Osíris é associado com essa cor quando ele aparece mumificado na
iconografia. O único problema era que a jaspe era difícil de ser encontrada e entalhada, por
oficial que serviu durante o reinado do faraó Sobekhotep IV na 13ª dinastia. Esse amuleto era
feito em Xisto e no local da cabeça do animal havia uma cabeça humana, como os
tido por diversos estudiosos como o mais remoto. Na simbologia egípcia o faraó não
Mas, a partir do Novo Império os faraós aparecem com esses amuletos. A respeito desse fato
70
Ver Capítulo 3.
71
Ver Capítulo 6.
130
podem ser supostas duas hipóteses, ou os escaravelhos-coração reais são mais antigos que o
da 13ª dinastia, mas nunca foram encontrados; ou esse amuleto fez o caminho contrário da
utilizado pelos cidadãos comuns e depois foram usados pelos faraós. A segunda opção faz-se
mais viável porque poucas múmias reais continham esse amuleto. Mais uma vez os nobres e
cidadãos faziam mais uso desse recurso para garantir a sua vida no Mundo Inferior.
início de seu uso no Médio Império, momento esse em que os amuletos funerários são
Outro ponto de discussão é o momento em que esse amuleto deixa de ser utilizado.
Ikram e Dodson (1998, p.140) dizem o escaravelho-coração é usado até o Período Romano.
Contudo, é comum argumentar que ele deixa de ser fabricado progressivamente, de mesmo
modo que o Livro dos Mortos por volta da 26ª dinastia. Para Malaise (1970, p.77) na 26ª
dinastia os escaravelhos-coração se tornam cada vez mais raros e são anepigráficos, o que
contextos arqueológicos é que os recursos estilísticos não seguem uma padronagem temporal.
Ele poderia pertencer à Baixa Época [17] como não. Os escaravelhos-coração [01] e o [46]
72
Ver Capítulo 5.
131
são do Novo Império, o [50] é da 20ª a 25ª dinastias, os [25] e [26] não possuem datação
cronológica.
curto também não são parâmetros para datação. Esses estilos de manufatura variavam de uma
oficina a outra, assim como o material também é importante. Se a rocha for muito dura a
tem escaravelhos-coração cujo nome da pessoa fora apagado [31] onde a primeira linha
Os escaravelhos-coração que possuem o texto em sua base podem ser analisados para
uma possível seriação, essa feita com base nos hieróglifos. Todavia os que são anepigráficos
tentar silenciar o coração para que esse não testemunhe contra o seu dono perante o Tribunal
de Osíris. Quando analisada a sua forma, ele é o símbolo do renascimento, da renovação, por
ser o amuleto do deus Khepri. Com base na sua coloração ele é a regeneração diária do morto
O escaravelho-coração era visto como o coração de Ísis, a mãe do morto, deste modo o
para sua vida futura, na ordem de dar estabilidade para seus membros e seu feitiço asseguraria
renascimento ou a renovação, então essa seria a forma mais indicada para reanimar o coração
Julgamento.
A definição de sua função e simbologia é citada por vários egiptólogos de uma forma
superficial. Em Ikram (1998) assim como Shaw (2002) acrescentam a essas discussões pontos
que até então não eram comentados, como, caso o coração fosse retirado por descuido dos
poderosas que silenciariam a voz acusadora do coração porque essa não perceberia o mal que
iria testemunhar. Andrews (1996) quando não se tinha o Capítulo 30b nos escaravelhos-
coração, teria outro texto cuja função seria a de prevenir que o morto perdesse um de seus
Shaw e Nicholson (2002) dizem que após a descoberta que o coração poderia revelar o
múmia, essa informação provém dos estudos feitos através das tomografias computadorizadas
133
(JANOT, 2008, p.225). Quando por descuido o coração fosse tirado de dentro do corpo, o
amuleto era então inserido em seu lugar. O amuleto poderia ser colocado na múmia como um
colar, por meio de ganchos que se encontravam na frente da peça [27], [30], [37], [45]. O
cordão poderia ser feito de ouro ou contas. O escaravelho-coração sempre era colocado na
região torácica.
abdominal da múmia, mas também aparece em meio às bandagens. Como pode ser vista na
se encontra nas bandagens em uma posição não usual, provavelmente essa mudança de
73
A múmia está no Museu Nacional do Rio de Janeiro, com numeração 157. A tomografia computadorizada realizada em
2004 na CDPI (Clínica de Diagnóstico por Imagem), sob supervisão do Museu Nacional com o apoio da FIOCRUZ
(Fundação Oswaldo Cruz), COPPE/UFRJ e INT (Instituto Nacional de Tecnologia)
134
seja, com essa mudança de posição ele pode fraturar um osso. Os trabalhos hoje realizados
seu deslocamento.
7.5. Textos
em sua base. Quando não era possível escrever o capítulo inteiro, os artesãos colocavam
escaravelho-coração aquele que possui esse capítulo. Os estudos atuais mostram que o
importante não era o capítulo escrito nele e sim, as palavras. Alguns escaravelhos, como o de
Shabits.
coração somente pelo seu texto. Podem aparecer os Capítulos 21, 29b e 27 que são
coração eram “não se levante contra mim em testemunho”, “não crie oposição no tribunal”,
“não seja hostil com o guardião da balança”, “não faça meu nome cheirar mal” e “não diga
esses foram arrancados. Mas se colocados na região do coração, continuariam a exercer a sua
função.
135
7.6. Variações
A ave Benu (nome egípcio) ou garça aparece nos escaravelhos-coração [24] e [29]
feita em material vítreo de diversas cores e lápis-lazúli. Os detalhes que compõe as partes da
No início do período faraônico, essa ave era deificada. O que provavelmente levou a
essa associação foi que após a inundação do rio Nilo, essas aves ficavam nas águas rasas e
barrentas. Assim foram associadas com a criação porque a vida surgiu das Águas Primordiais
e elas são as primeiras aves a habitar o leito do rio após a inundação. O epíteto dado as aves
não fosse traído por seu coração no Tribunal de Osíris, além dos símbolos de ressurreição que
era a ave e o deus Khepri. Seria então um modo do morto regenerar a si mesmo. Assim como
ocorre com o amuleto do escaravelho de uso cotidiano que ao somar palavras poderosas está
No Capítulo 29b do Livro dos Mortos, o morto proclama a sua identidade com a ave
Benu.
Os escaravelhos com cabeça humana são tidos como os exemplares mais antigos desse
escaravelhos-coração restaram dessa época. No Novo Império eles ainda são produzidos.
faraó, os escaravelhos [46] e [50] possuem a cabeça proeminente, como se fossem esfinges.
136
Amuleto com esse tipo de cabeça são mais incomuns que os com a cabeça humana
substituindo a do animal sem elevação. O [46] tem a sua datação no Novo Império, momento
coração [50] possui a datação entre 20ª e 25ª dinastias, época em que há a retomada de antigas
tradições.
Para Malaise (1970) eles possuíam a cabeça humana como forma de conferir ao
colocá-lo em uma base de ouro. Como nem todos possuíam providências para ter a base de
ouro [27] fazia-se um anel com ouro e circundava a peça [43-44], [55], o amuleto [39] possui
o anel feito em cobre. O escaravelho-coração [65] tem o anel em prata. O que pode atestar que
duração infinita. A matéria dourada vem do corpo do Sol, participa da natureza do céu, o que
7.6.4. Pilonos
Os pilonos são peitorais [70-75] que tem como destaque central o escaravelho-
coração. Começam a ser utilizados após o reinado do faraó Tutankhamun na 18ª dinastia, mas
da Vila de Deir el-Medina possuía dois peitorais com escaravelhos-coração [72-73]. O [72]
era feito em madeira com o escaravelho em granito e o [73] era de madeira, com granito e
ouro.
Osíris, aquele que renasceu. Por estar flanqueada por Ísis e Néftis a sua identificação Osiríaca
é reforçada. Caso ele apareça com a barca solar abaixo [72] [75] esse escaravelho remete a Rê
e não somente ao deus Khepri. Os peitorais [70-73 e 75] possuem as deusas postadas em pé,
O pilono [75] traz entre as deusas e o escaravelho a iconografia dos amuletos tit e
pilar-djed, remetendo ainda mais o sentido Osiríaco do conjunto. Os pilonos eram as fachadas
dos templos.
O escaravelho-coração tinha função de não deixar que o coração se levante contra seu
dono, ou seja, ele pedia para o ib não fazer o nome do seu dono cheirar mal. O amuleto do
coração por outro lado, protegia o hAti porque ao proteger o órgão, os movimentos corporais
estariam assegurados.
pensamento egípcio que, quanto mais enfatizada, mais potencializada seria a fórmula. Por que
do coração [32], [36] e [53] datam do Novo Império, cronologia desconhecida e 25ª a 26ª
dinastias respectivamente.
138
Os três exemplares de amuletos unidos possuem trechos do Capítulo 30b em sua base.
Conclui-se que o escaravelho-coração atuaria pelo seu formato e também por suas palavras e
suas bandagens escaravelhos-coração. Duas múmias do touro Mnevis que datam do período
Conclusões
assim como estudos específicos sobre o tema. O trabalho que trata diretamente de
são frutos da pouca documentação produzida até hoje. Acreditamos que com a utilização de
seriação, porque como mostrado no capítulo anterior os recursos estilísticos são praticamente
utilizados ao longo de várias das dinastias. Com base em pequenas exceções a datação precisa
para a proteção da múmia, porque esse protegia o seu ib e não deixava que por vontade
própria ele se levantasse contra o seu dono no Julgamento de Osíris. Esse amuleto recebia
seus próprios rituais antes de ser colocado na múmia. A Cerimônia de Abertura da Boca só
A ligação do escaravelho-coração com o Capítulo 30b está no fato que um foi criado
em função do outro. Apesar do Capítulo 30b também ser encontrado em papiros juntamente
possuem uma versão maior e outros uma menor, dependendo de seu tamanho e do modo de
fabricação (sabe-se que alguns amuletos eram feitos em série nas oficinas especializadas). O
poder mágico dos dois é incontestável, pois eles são utilizados basicamente a partir da 12 a
dinastia, até o Período Romano, quando se tem o último vestígio do Livro dos Mortos e que
coração começa a ser usado juntamente com o Capítulo 30b, um não teria efeito sem o outro,
coração cada um se dirigiria. O amuleto do coração remetia à proteção do coração hAti aquele
que não poderia ser destruído e assim traria novamente movimento aos membros. E o
escaravelho-coração era usado para impedir que o coração ib se levantasse contra seu dono na
pesagem do Tribunal de Osíris. Todavia, assim como ocorre com o Capítulo 30b os amuletos
Permitindo ao morto atingir o “Belo Ocidente” com as suas faculdades físicas estabelecidas.
141
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