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Contardo Calligaris (/colunas/contardocalligaris/)

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Bolsonaro ficará na história cultural do Brasil junto de Jeca


Tatu e Macunaíma
Presidente é a explicação e o protótipo do brasileiro de 'Raízes do Brasil', livro de Sérgio Buarque de
Holanda

7.mai.2020 à 0h00

EDIÇÃO IMPRESSA (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/fac-simile/2020/05/07/)

Domingo, na rampa do Palácio do Planalto, o presidente Bolsonaro declarou: “Vocês sabem que
o povo está conosco. As Forças Armadas (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/forcas-armadas-enviam-recados-a-
governo-congresso-e-stf-em-nota-leia-integra-comentada.shtml), ao lado da lei, da ordem, da democracia, da liberdade,

também estão ao nosso lado”.

Luciano Salles/Folhapress
A frase me jogou de volta para a impressão inicial de estranheza de quando cheguei ao Brasil,
nos anos 1980.

“O povo está conosco” parecia mesmo de outras épocas, em que fascistas e comunistas
discutiam para saber quem era o povo e com quem ele estava. As cabeças pensantes, fascistas e
comunistas, aliás, invocavam “o povo”, mas sabiam que a massa é “estúpida, servil e covarde” —
palavras do historiador antifascista Gaetano Salvemini em 1935, que poderiam ser de Mussolini.

Mas o choque veio depois, com “as Forças Armadas estão ao nosso lado”. Certo, há vários
lugares no mundo em que um governo invocaria as Forças Armadas como sustento de sua
legitimidade, mas não na Europa nem na América anglo-saxã.

Estranha-me sobretudo não ter percebido antes que qualquer referência às Forças Armadas
num discurso político é um achado etnográfico, sinal de uma parada temporal no limiar da
modernidade.

Por misericórdia, no dia seguinte, o ministro da Defesa, o general Fernando Azevedo e Silva,
lembrou que as Forças Armadas são “uma instituição de Estado”, ou seja, elas não servem um
governo ou outro.

As Forças Armadas estarem do lado do governo seria como se os Correios, a partir de agora, não
entregassem mais as encomendas de quem pensa diferente do presidente.

Ou então como se médicos e enfermeiros do SUS se declarassem de oposição e parassem de


atender bolsonaristas. Cá entre nós, não seria uma má ideia no caso do casal de mentecaptos
paramentados de bandeiras que, em Brasília, no dia 1º de maio, agrediu enfermeiros que faziam
uma homenagem silenciosa às centenas de colegas vítimas da
(https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/homem-que-atacou-enfermeiras-trabalha-para-o-ministerio-de-direitos-humanos.shtml)Covid-19

(https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/homem-que-atacou-enfermeiras-trabalha-para-o-ministerio-de-direitos-humanos.shtml).

Aparte: eu, como cidadão dos Estados Unidos, penso que deve ser permitido fazer tudo com a
bandeira nacional, inclusive queimá-la em público. Mesmo assim, ultimamente, seria bom
maneirar no uso da bandeira brasileira, antes que ela se torne uma espécie de símbolo da
boçalidade.

Mas volto à fala do presidente. Ela me surpreendeu porque eu achava que o Brasil estivesse
lentamente se modernizando. E a fala me acordou: nada disso, estamos ainda na América Latina
de Macondo (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/05/1880408-classico-de-garcia-marquez-cem-anos-de-solidao-completa-meio-
seculo.shtml), e não é uma ficção.

Alguém estava ao lado do presidente com uma bandeira israelense e uma dos EUA. Só podia ser
um desavisado —nenhum político israelense ou americano, democrata ou republicano,
confundiria seu governo com o Estado e invocaria o suporte das Forças Armadas.
Essa invocação apenas acontece em culturas que só conseguem estabelecer uma legitimidade
no braço.

Enfim, o presidente do Brasil, sustentando sua autoridade na ameaça e nas forças, e junto dele
os 25% ou 30% de “povo” que não acham bizarros os “pronunciamentos” dele são uma
anomalia?

Nem um pouco. A frase de Bolsonaro tem a mesma origem da resposta dele quando foi
observado que seu candidato a diretor da Polícia Federal era amigo da família. “Devo escolher
alguém amigo de quem?” Não lhe ocorreu que se trataria de escolher alguém não por ser amigo
de quem quer que seja, mas por ser isento. Ou então, quando acharam curiosa a escolha do filho
dele como embaixador nos EUA: “se puder dar um filé para meu filho, eu dou” e “indicado para
embaixada tem que ser filho de alguém, por que não meu?”. Não lhe ocorreu que, para escolher
embaixador, a competência contaria mais do que os ascendentes.

Mas, cuidado, se Bolsonaro desconhece e nem sequer entende os princípios básicos da


convivência republicana, não é porque ele seria um monstro antidemocrático. É simplesmente
por ele ser, pasme, brasileiro.

Quer entender quem é nosso presidente? Releia “Raízes do Brasil”


(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2016/08/1799285-edicao-critica-celebra-80-anos-de-raizes-do-brasil.shtml) (Cia. das Letras),
urgente.

O Brasil e o brasileiro descritos por Sérgio Buarque de Holanda em 1936 continuam valendo
(para um 30% no mínimo).

A autoridade se funda na força. Não quero nem saber o que fazem ou fizeram meus filhos: o
privado (a família) é muito mais importante do que o público (o Estado). Ou seja, a
modernidade brasileira é ainda um projeto.

Bolsonaro ficará na história cultural do Brasil junto de Jeca Tatu e Macunaíma; ele é a explicação
e o protótipo do brasileiro de “Raízes do Brasil”: o coração e a bile antes da razão, os amigos e a
família antes do país e a violência acima de tudo, legitimando o poder.

Contardo Calligaris
Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com
Maria Homem (Papirus)
twitter.com/ccalligaris)

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historia-cultural-do-brasil-junto-de-jeca-tatu-e-macunaima.shtml

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