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DossieE : a Wraa va > A quarta onda do feminismo CARLA RODRIGUES bre o ano de 2016, é bastante provavel que 86 a Historia venha a nos permitir saber 6 tamanho ¢ a intensidade da devastacao que as forcas de direita estio ‘promovendo no pals. Enquanto a perspectiva histbrica nao nos redime das dificuldades de analisar contempordneo de modo mais agudo, talvez.s6 nos reste olhat para aquilo que, apesar de todos 0s retrocessos ~ no campo social, po- Iitico e institucional, para citar apenas os mais graves -, cresceu em género, ntimero e grau, Poderia me referir amplamente aos diferentes movimentos de resisténcia que se insurgiram nas ruas e nas redes, mas quero ser mais espe- cifica, Quero afirmar o valor, a importancia decisiva,o caréler insurgente dos feminismos que, desde a #primaveradasmulheres, em setem- bro de 2015, desde as manifestagies de rua de 2013, desde a Marcha das Vadias, em 2011, vie- ram se consolidando como forea politica fun- damental no cenério da resistencia. Essa edicdo especial reine um conjunto de textos que, se no pode representar toda a forga dos feminismos, tem a capacidade de ampliar a nossa compreensio sobre a forca dos movi- ‘mentos de mulheres, O primeiro artigo é de ‘Magda Guadalupe dos Santos (PUC-MG) eter ‘aforga de trazer a historia das ondas feministas A autora nos conduz nao apenas pelo tempo, ‘mas também pelos roteiros nos quais os femi- rnismos se desenvolveram como um “projeto ‘ritico” que, ao lutar contra @ opresséo as mu- heres, acaba por reivindicar uma sociedade mais justa em diferentes aspectos. Estruturas patriarcais, capitalistas e machistas se sobre- poem, nos seus modos de autoritarismo, em camadas que tornam vulnerdvels mulheres, ‘mas nfo apenas. A cada marcador que se acres- ‘cents, soma-se também mais um estrato de violencia estatal, institucional, politica, De onde yem a importancia do conceito de géneto, trabalhado no artigo de Maria Luiza Heilborn (UER))? Forjado em um certo mo- mento do século 20, a fim de enfrentar as con- sequéncias da hierarquia social ¢ econémica entre homens e mulhetes, o conceito de género tem uma historia que cresce com a segunda onda feminista uma fortuna critica que ‘emerge a partir do final das anos 1990, com a necessidade de ampliar as reivindicagdes politicas para além dos bina- ismos, como masculino/feminino, sexo/género. Era preciso desesta- ‘ilizar 0s pares que nos configuravam sempre ao némero dois. Sea segunda onda feminista fot marcada pela construcio do conceito de género, como explica Heilborn, a terceira onda se pautou por questionar € tensionar 0 conceito até o limite de suas possibilidades de descons- trugdo, abrindo espaco para a configuracao de outros géneros, de outros sujeitos de direitos e de novos modos de fazer politica ‘Uma das estratégias dessa emergéncia foi dar novos significados a ‘termos que pretendiam ser pejorativos, Foi assim que, em 2011, um. grupo de mulheres em Toronto, Canada, organizou a primeira Marcha das Vadias, como conta Carla Gomes (UFR)) em seu attigo. Tudo co- ‘mecou quando, diante de uma série de estupros nao solucionados nem: contidos pela policia, um inspetor sugeriu que, se no quisessem ser estupradas, as mulheres deveriam parar de se vestir como vadias, Dali em diante, as manifestagdes se espalharam como rastro de pélvora e, por onde passou, a Marcha das Vadias revigorou os feminismos. Diferentes reivindicagdes de diversas geragées de mulheres se encon- traram nas ruas, recuperando a irreveréncia que havia marcado a se- gunda onda feminista e retomando palavras de ordem como “nosso. Corpo nos pertence” ou “meu corpo, minhas regras”, fazendo ecoat fo presente as duras batalhas dos anos 1970. 0 diteito a ter um corpo nao violivel é um tema que mobiliza os feminismos negros, aqui apresentados pelo artigo de Djamila Ribeiro (Unifesp). Seu texto nos coloca diante do tema da interseccionalidade, ppasso fundamental para ir além dos discursos identitarios. Séo as mu- Theres negras que, pontua Djamila, perturbam seriamente qualquer nogdo de “mulher” como categoria unitéria. Perturbacio necesséria e Potente dentro dos feminismos que, no caso brasileiro, vao comecar'a sentir 0 impacto politico do movimento de mulheres negras « partir dos anos 1980, embora, como lembra a autora, desde 0s tempos da escravidéo as mulheres negras jé atuassem na reivindicagao de direitos, na lideranca dos quilombos, na luta cotidiana contra a opressio de raca, ‘enero e classe que até hoje infelizmente ainda se misturam, Lutar contra 0 machismo pode ser 20 mesmo tempo muito dificil ‘ou muito facil. Dificil, pelo seu caréter por vezes implicito e traigoeiro, quando se apresenta para nds como forma natural de tratar as diferen- «as sexuais, Facil se a cada vez pudermos dentinciar que hé machismo quando um homem se dirige a uma mulher de modo distinto do que faria se estivesse se dirigindo a outro homem. Aqui esté, do meu ponto de vista, a maior contribuicdo das jovens desta nova onda feminista, Em um momento historico no qual todas as nossas conquistas esto sob ameaca, € fundamental que a nova geracao valorize os avancas histéricos e lute para que estes nao se percam. E nessa luta que esta edigio especial se engaja, a fim de mostrar que dentro do que 2016 teve de mais assustador, ali mesmo onde o ano poderia ser dado como per- dido, desponta a possibilidade de novas mudaneas. E do encontro com ‘9 pior que arrancamos a nossa forca da resisténcia, i Nozio DOSSIE | A QUARTA ONDA DO FEMINISMO or que se fala em ondas dos feminis- mos? Se estes nao se referem apenas a direitos iguais para mulheres e ho- ‘mens, qual seria-o seu alcance? Sobre ‘0 que versa 0 seu conceito como uh movimen: to plural endo unitirio? Segundo Sally Scholz no livro Feminism: A beginner's guide, de 2010, “feminismo € um projeto critico” que se volta para aspectos que parecem opressivos as mu- Theres, oferecendo sugestdes alternativas em termos de anilises, priticas e discursos. A pre- feréncia atual pelo uso do termo no plural tem em vista a desconstrugdo dos papéis sociais € bindrios entre sexos e generos que alimentam © patriarcado. Nesse sentido, ao se tentar 22 BIE N29 entender as bases sobre as quais se assentam os feminismos, deve-se levar em consideragio a vida das mulheres como ponto de partida para teorias e praticas, ressaltando os caminhos dos 4quais as mulheres foram excluidas e problema- tizando as supostas caracteristicas que repro- duzem o sentido de serem mulheres. ‘Todas essas questdes nos remetem clara- mente as chamadas ondas feministas, ou seja, as geragdes dos projetos feministas, muitas ‘vezes controversas em nfvel tedrico e prético. O termo ondas (the waves terminology) & elu- Cidativo enquanto um projeto que ainda nio se completou, em dois sentidos. O primeiro corresponde a um parametro cronolégico ou de geragdes. O segundo liga-se as sucessivas construgées tedrico-temiticas. Ambas as in- terpretagdes pressupdem que, tal como ondas no oceano, com marés (ebb) ¢ fluxos (flows), com marés altas e baixas, 0 reconhecimento das ondas pretende mapear a “intensidade va- rdvel da atividade feminista em diferentes pe- rlodos de tempo”, acrescenta Scholz Na esfera da filosofia politica, otermo ondas (kymata) & usado.por Platéo, em A Repiiblica, para nomear as dficuldades a serem enfrenta- das para se constituir uma cidade justa. Pode-se dizer que, com todas as diferengas entre o que Projeta 0 fildsofo e os feminismos, nos dois ca- 50s 0 que se poe em relevo sio as enormes dif culdades que devem ser vencidas para a efeti- vasao de um projeto, dificuldades que nao se apresentam como simples, mas como necessé- tas & consecugio da finalidade maior: de uma sociedade usta, A cada on ead on Ns sequins ai Gouges! Platio, as trés ondas se referem & educagao pa- ritéria entre mulheres e homens na classe dos guardides, & comunidade de mulheres e filhos em uma nova ordem sexual e politica, ea pre- ‘valéncia do re fil6sofo — 0 qual nao poderia ser ‘uma mulher -, para os feminismos as ondas no visam conduzir a um “rei filésofo”, mas apontam os equivocos da sociedade falogocén- ‘rica e patriarcal. Conforme Chiara Severgnini no jornal La ‘Staripa, em 2016, cada onda (ogni ondata) traz consigo novas prioridades, novos métodos e novas protagonistas. Explicitam-se, assim, na primeira onda feminista, as pretensdes pon- tuais do século 18, chegando até o inicio das reivindicacdes das sufragistas, no século 20. Nesta primeira onda, cujos movimentos jé se revelavam mesmo antes da era iluminista, como na literatura e poesia de mulheres re- nascentistas, alguns nomes se. destacam. ed us hi upeda pelo * Ne219 KS 33 DOSSIE | A QUARTA ONDA DO FEMINISMO. reger em direitos e obrigagoes a vida da “mulher” e do “homem’, corre- lacionando liberdade, justica e resistencia 4 opressio. De modo seme- Ihante, Mary Wollstonecraft, em Vindication of rights of woman, de 1792, entendia que o simples ato de “nascer mulher” jé comporta em si inferioridade, opressio e desvantagem. Todavia, 0 cendrio revolucio- nario se apresenta e isto ocorre justamente porque as mulheres “refor- ‘mam a si mesmas no propésito de reformar o mundo”. Para De Gouges ¢ Wollstonecraft, era necessério que, ao lado do homem, a mulher pu- desse ser uma individualidade autdnoma, reconhecida em sua dimensio racional e moral. Apesar do viés ontol6gico iluminista, jé nessa pri- meira onda se manifesta uma critica a certa neutralidade universal, ‘modelada a partir do masculino, com discursos regulados pela légica do mesmo e do préprio. A segunda onda feministainsere-se no cenario dos anos 1960, com impacto nas duas décadas seguintes. Criado por Carol Hanisch em 1969, o lema “o pessoal é politico” propde que as mulheres se “livrem da propria culpa” e tentem enfrentar as situagbes da vida por meio de uma “terapia politica” que possibilite a todas pensarem por si mesmas. Destaca-se aqui uma fase em que problemas culturais ¢ politicos se mesclam, devendo as mulheres encorajarem-se para combater as estru- turas sexistas do poder. Mas jé em 1949, Simone de Beauvoir publica, na Franea, O segundo sexo, elaborando uma teoria critico-filosdfica da relagio entre o paradigma masculino, indicado como 0 mesmo, €0 desvio feminino, assumido como 0 outro. Suas teotias podem ser toma- das como passagens da primeira para a segunda onda, ao assumir a categoria existencial da diferenca, indicando, seja “a mulher’, sejam “as ‘mulheres’, como constringidas ao protétipo da alteridade, enquanto 0 outro do homem, e, pois, da cultura, Para recuperar a sta diferenga, como uma alteridade autonoma, “a mulher” ow as “mulheres” (termo usado ora no singular, ora no plural em O segundo sexo e outros escritos) devem recorrer aos desejos, tomando a si mesmas como referéncia, reativando seus projetos existenciais por meio da narrativa, reescreven- do sua histéria de uma perspectiva individual e comum, tal como ela faz em suas obras de meméria, como La force de lage, de 1960 e Tout compte fait, de 1972. A pritica de contar histérias ~ na forma da escrita autobiogréfica ~ é um tema constitutivo dos feminismos. No ato da escritura, cada mulher-escritora se descobre em suas caracteristicas € também como outro de si, por meio de um processo de autoeducacao. segundo sexo teve um forte impacto no sentido de perturbar a or- dem dos sexos estabelecida com base em uma diferenca desvelada e con- testada 20 longo dos anos 1970 e 1980, Como interlocutoras de Beauvoir, feministas norte-americanas como Betty Friedan, Kate Millet e a austra- liana Germaine Greer, entre outras, langam-se a movimentos pela eman- cipacao das mulheres, provocando novas iniciativas priticas e tedricas para que a violéncia sobre os corpos femininos pudesse ser freada, Para Friedan (1963), as mulheres deveriam reivindicar o poder, destituirem-se da “mista feminina’, abrindo novos espacos para o questionamento do cixo central da sexualidade fundado no patriarcado. Segundo Ute 34 219 Gerhard (1993), trata-se entio de pensar as mu- Theres nao s6 como submissas, oprimidas, mas de reconhecer e reconsiderar orientagées ¢ “va- lores femininos”. Surge certa ambivaléncia na avaliagio do que é o feminino na cultura. Te6ricas como Luce Irigaray, na Franga, e as italianas do grupo Diotima, como Carla Lonzi e Adriana Cavarero, postulam a politica de uma diferenca originaria anterior & histéria, na ine- sive realidade de que existem dois sexos, que 0 “individuo é dois’, criticando o tradicional Iéxico politico, no qual o conceito universal de individuo apenas convalida um discurso mas- culino que se emprega como absoluto e visa representar todo o género humano. Essas interpretagées abrem-se as leituias vivencias pés-modernas, proprias da denomi- nada terceira onda feminista. Apoiando-se na revisdo filoséfica dos conceitos de identidade ¢ diferenga, novas fronteiras sdo cruzadas na afirmacéo da diversidade das mulheres. Desconstroem-se os discursos neutros e asse- xuados, envoltos nos paradigmas falogoctn- tricos, desdobrando-se novos espacos relicio- nis, O que se torna evidente &a rejeigab de grandes teorias, das categorias e conceitos abstratos da racionalidade usados até entao. Visa-se superar 0 discurso racional e propor algo novo, opositivo, espontdneo, particular e vilido para contextos e horizontes especificos, como nas teorias de Teresa di Lauretis e Dona Haraway, entre virias outras. Recusam-se as generalizagées em torno de uma moral uni- versal. De outra perspectiva, pée-se também em questio se, na multiplicidade das diferen- 625, a particularidade contrastiva entre os se- os ndo perde significado e, portanto, 0 sujeito politico-juridico “a mulher” néo mais se con- figura como suporte e estimulo da Iuta por direitos e reconhecimento, As controvérsias se voltam ainda contra o modelo pés-moderno ¢ se questions a validade da rendincia a autode- terminagao das mulheres, no momento em que elas se descobrem a si mesmas como per- tencentes a um sexo e nao apenas como pes- soas isoladas, conforme problematizam Linda Nicholson e Nacy Fraser (1992), A terceira onda ¢ constituida, de fato, por ‘uma multiplicidade de feminismos que nio visam a hegemonia de uma tese sobre a outra, esse complexo processo tedrico, a figura de destaque é Judith Butler, especialmente por seus interesses politicos, que dialogam de for- ma especifica com as questdes de género e de sexualidade e podem ser compreendidos de certas perspectivas tedricas. A primeira é a revisio da linguagem performativa, a partir do que se questionam os efeitos da linguagem em relagdo as exigencias de reconhecimento e legitimacao social e politica, indicando como jogos lingusticos de autonomeacio enfrentam. certa instabilidade anti-identitaria. A segunda, correspondente a sua producéo dos anos 1990, responde a violéncia de certas politicas norte- -americanas e prope uma pratica de resistén- cia ao neoconservadorismo e ao neoliberalis- mo, visando a uma proposta nao violenta de democracia radical, que escaparia de um pro- jeto identitirio e nacionalista, com a defesa da iberdade e dos direitos civis, numa espécie de revisio das politicas feministas dos anos 1970. Em terceiro lugar, destacam-se suas teorias de antinaturalizagio da critica as presumidas inscrigdes genéticas no destino de cada indi- viduo e de seus desejos e voligées, justificadas em supostos fundamentos éticos. Sua proposta NA ESFERA DA FILOSOFIA POLITICA, OTERMO ONDAS (KYMATA) E USADO_ POR PLATAO, EM A REPUBLICA, PARA, NOMEAR AS DIFICULDADES A SEREM ENFRENTADAS PARA SE CONSTITUIR UMA CIDADE JUSTA consiste numa reviséo de niveis de inteligibilidade e de legitimagio de ligagées “nao naturais’, sempre em debate com os feminismos radicais, como se apreende em Gender trouble, de 1990, eém Bodies that matter, de 1993, ¢ em Frames of war: When is life grievable?, de 2008. Enfim, ndo se pode desconsiderar os feminismos descoloniais ea possibilidade de uma quarta onda, destinada a rever pressupostos de ‘um pés-feminismo, assim como as leituras sul-americanas dos femi- rnismos, especialmente a da argentina Maria Luisa Femenfas em sua luta continua contra a violéncia e em prol da democratizagéo das Américas. ‘Também no Brasil a produgéo textual ¢ as marchas feministas se des- tacam ao longo de nossa propria historia ‘Voltando ao sentido das ondas, tanto nos feminismos quanto em Platdo, as dificuldades podem ser lidas como a insercao de realidade snuma cidade/sociedade ideal. Monique Canto (1994) entende tal insercio em A Repiiblica como um ponto de lucidez, Se a sociedade politica é€o espago no qual circulam mulheres e homens, em suas fungGes, las po- ddem ser tomadas como corpos politicos que tornam possivel a vida po- Iitica, ea procriagao se apresenta como o primeiro ato politico por exce- lencia, Platio estaria escolhendo as mulheres como referencial de diferenca e, segundo sua diferenca e alteridade, a cidade lograria ver como bem “a gravidez, a parturigao e a povoagao”, sem recair na pleo- nnexta, em um desejo desenfreado ou excessivo. f preciso que a experi- das mulheres invada as leis da cidade e as reelabore sob normas préprias, sendo enquanto forga de alteridade que as mulheres provocam “oriso, a critica ea refutagdo na Antiguidade grega”. Entretanto, esa é também a condigo humana plena de desejos, de medo, de temporalidade eda procura do outro, As mulheres representam, assim, a necessidade de continuas mudangas que toda sociedade deve encontrar, apesar do 1iso ¢ dos riscos envolvidos. As ondas da cidade plat6nica redefinem 0 lugar também das mulheres, pois ¢ pela alteridade que se consttuiré 0 sentido profundo e possivel da politica que se quer justa, mesmo que na pluralidade de vozes para além das simetrias ut6picas. N-219 BI 3s DOSSIE | A QUARTA ONDA DO FEMINISM A distingao entre sexo e género permitiu que pesquisadoras e militantes feministas assem a natureza social € politica da subordinacao das mulheres e apontassem para sua posstvel alteracéio historia dos conceitos é formada a partir de debates, exigéncias poli- ticas, disputase discussdes. O con- ceito de género tem sido, desde a segunda metade do século 20, objeto dessas idas e vindas, fluxos e refluxos, em campos como a Antropologia, as Ciéncias Sociais ¢ a Filosofia, O généro como categoria itil de ané- lise; como no titulo da norte-americana Joan Scott, foi feito e desfeito a partir de questiona- _mentos sobre até que ponto tal conceito foi e ainda um importante operador para a critica de situacées sociais nas quais as mulheres (mas nao apenas os corpos fisicos fémeos) ain- da so subjugadas. Na histdria das teorias s0- ciais sobre diferengas sexuiais, a distingao se- xolgénero possibilitou interrogar a ideia de iferenca sexual como principio universal de diferenca e de classificagao. A partir da desse- melhanga sexo/género, delineiam-se os argu- mentos para pensar a diferenca sexual como produto da cultura e ndo como esséncia da modelagao dos papéis sexuais. Nesta aborda- gem, individuos nascidos e classificados como 36 BM N=219 homens e mulheres seriam socializados para agit, pensar e sentir segundo roteiros cultu ralmente construidos em posigées vinculadas a0 sexo andtomo-biol6gico. Sao perspectivas que trabatham com base na construgdo cultu- ral dos papéis de género e tendem a conceber as relagdes entre os sexos a partir de pressu- postos de costume e estabilidade social. Em geral, tendem também a descartar a possibi- lidade de mudanca nesse arranjo social. ‘A década de 1970 foi marcada pela pro- sressiva incorporagao do conceito de género nas Ciéncias Sociais e na Historia. A distinc sexo/género foi se constituindo como ferra- ‘menta conceitual e politica e representou um argumento decisivo nas lutas em torno dos direitos das mulheres. Nesse processo de di- ferenciagio, o primeiro termo ~ sexo ~ reme- teria natureza e, de maneira mais especttica, A biologia, e 0 segundo termo ~ género ~ se refere as construgbes culturais das caracteris- ticas consideradas femininas e masculinas. Tais construgoes sio percebidas como aspec- tos que mantém relacéo com a biologia, mas Jule Lipmn,suragits inglesa durante sanifestagio pelo dato 30 vot, 110 ; dela nio derivam condutas especificas. A enor: ‘me variagao dos humanos em diferentes con- textos atesta essa ndo determinagio, Ao ilu minar o caréter arbitrério das nocées de masculinidade e feminilidade, a distingao entre sexo e género permitiu que pesquisado- ras e militantes feministas salientassem a na- tureza eminentemente social (e politica) da subordinacao das mulheres e apontassem, portanto, para sua possivel alterago. “sistema de sexo e género”, criado por Gayle Rubin (1975), propde que a assimetria entre homens e mulheres presente em milti- plas sociedades deveria ser debitada as formas de organizagao social do sexo e da reproducio. Interpelando a teoria sobre a circulagio de mulheres formulada por Lévi-Strauss (1976), Rubin indica que a desigualdade de distribui- ‘do de poder esté na raiz da apropriagio pelos homens da capacidade reprodutiva do sexo feminino. Essas ideias sio centrais no desen- volvimento da Antropologia dedicada ao gé- nero nas décadas de 1970 e 1980. No marco de abordagens que consideram a subordinacéo feminine um aspecto universal da organizagéo social, o conceito de género fot amplamente utilizado como instrumento de critica a cons- trugdo social das diferengas entre homens e mulheres, de forma a compreender as manei- ras como essas conveng6es se relacionavam com as préticas sociais, situando as mulheres em posigoes de desigualdade. Na trajetéria do conceito de género como questionador da naturalizacdo das relagées sociais ¢ da diferenca sexual, desde que foi Publicado, em 1986, no volume 5 da edico 91 da American Historical Review, “Genero - uma categoria ttil de andlise histérica”, da historiadora e tedrica feminista Joan Scott, se tornou a grande referéncia no Brasil para 0 uso do termo no debate sobre hierarquia ou assimetria de género. O texto de Scott muito contribuiu para que pesquisadores da area de ciéncias humanas reconhecessem o valor das relagbes sociais estabelecidas com base nas diferengas percebidas entre homens e mulhe- res. As culturas criam padres associados aos corpos que se distinguem por seu aparato EMBORA NAO SEJA A INICIADORA DO MOVIMENTO FEMINISTA, O FATO E QUE A OBRA DE BEAUVOIR E UM MARCO NA PRODUGAO TEORICA FEMINISTA DO SECULO 20, QUE INFLUENCIOU AS CIENCIAS SOCIAIS E ABRIU DEBATES IMPORTANTES genital e pela capacidade de gerar outros seres (isto 6, pela reproducio humana). Diferenga sexual, sexualidade (heterosexual) e género passam a ser dimensées que se cruzam, mas uma ndo decorre da outra. Scott argumenta que o conceito é uma fer- ramenta de anilise acerca dos diversos modos de interacao social e humana que nos permite {nterrogar como a diferenca sexual funciona nas relagbes sociais. Na medida em que género se integra na metodologia das Cigncias Sociais, cconforme tal categoria torna-se central para re- jeitar explicagées biolégicas para as relagdes. sociais, ¢, sobretudo, quando genero aparece como uma classificacio social que se impoe s0- bre um corpo sexuado, a categoria oferece novas Perspectivas sobre as relagbes de poder e permi- te pensar igualdade politica e social com 0 ob- jetivo de incluir, além da dimensio de género, as questdes de clase eraca que até ali subjaziam em analises cujo ponto de partida era a neutra- lidade do humano. Outras dimens6es, como a (homos)sexualidade, também aparecem como problema teérico no ambito de um novo registro epistemol6gico que incorpora o género como categoria estratégica de andlise, Na Filosofia, coube a Simone de Beauvoir, em 1949, com a publicagio de O segundo sexo, ‘matcar 0 inicio da reflexo sobre a subalterni- dade femninina, que anos depois foi encampado pelos chamados “estudos de género”, Estudos de género que comegaram a investigar cantos ‘obscuros do conhecimento em relagio ao iini- verso dito feminino, mas que nos anos 1990 vio orientar toda a investigagio social sobre => Ne2i9 BM 37 DOSSIE | A GUARTA'ONDA DO FEMINISMO. A DISTINCAO SEXO/ GENERO FO! SE CONSTITUINDO: COMO FERRAMENTA NCEITUAL E POLITICA E REPRESENTOU UM ARGUMENTO DECISIVO NAS LUTAS EM TORNO DOS DIREITOS DAS MULHERES ‘masculinidades, sejam elas hegemdnicas ou subalternas, Beauvoir parte da premissa de que a hierarquia entre masculino e ferinino esté dada pela mesma oposicio cultura/natureza, estando o masculino e a cultura na parte pr vilegiada dessa hierarquia, e o feminino ea natureza na parte inferior. A pensadora fran- cesa se opde diretamente a0 pensamento de Rousseau, cujo projeto era educar as mulheres em diregdo a uma passividade tida como “na- tural” ou bioldgica, e questiona essa natureza quando diz que esse destino Ihe ¢ imposto por seus educadores e pela sociedade. ‘A partir da publicagao de O segundo sexo, esse suposto destino biolégico das mulheres passa a ser questionado e forma-se a ideia de que 0 “sexo” & biolégico e o genero é social- mente construido. Embora nio seja a inicia~ dora do movimento feminista - em varios ‘momentos histéricos anteriores, ocorreram iniciativas politicas de mulheres que busca- ‘vam alterar a posigio subalterna na sociedade, como a luta das suftagistas -, 0 fato é que a obra de Beauvoir é um marco na produao tedrica feminista do século 20, que influenciou as Ciéncias Sociais - 0 jf mencionado trabalho de Rubin étributario das reflexes de Beauvoir ~ e abriu debates importantes. 30 BD N-219 Suas proposigdes sobre a mulher como categoria universal vieram a ser interrogadas pela teoria feminista e pelo pensamento da filésofa norte-americana Judith Butler. Percebida como uma importante continuadora da obra de Michel Foucault, Butler segue atri- Iha do pensador frances para desconstruir 0 corpo “natural” e afirmé-lo tao cultural quan- to ogénero. Butler nao estd sozinha nessa pers- pectiva: 0 também historiador e conterréneo ‘Thomas Laqueur jé mencionava a “invencio do sexo”, Se em Scott a pergunta era “como 0 género funciona nas relagoes sociais?”, em Butler a pergunta se desloca para “como 0 ge- nero funciona na definigo ontolégica de su- jeito2”. Mais do que um problema epistemolé- {gico, uma das questdes que esse deslocamento oe em xeque 60 desafio de pensar as relagdes sociais de género nao mais a partir da distin- fo sexo/género, mas de um trinémio sexo/ genero/desejo no qual a heterossexualidade compulséria possa ser interrogada. Rubin, cuja influéncia sobre o trabalho de Butler é notéria, percebe que a elaboracio acer ca da sexualidade diante do género provida pelo sistema sexo/genero, conceito por ela pro- posto em 1975, néo da conta da especificidade a sexualidade, Segundo a autora, hé uma hie~ rarquia de valores sexuais, na qual a sexualida- de considerada “boa”, “normal” e “natural” seria idealmente heterossexwal, marital, mo- nogimica, reprodutiva e nao comercial, Deve ser concebida por um casa, relacional, ocorrer com pessoas da mesma geracio ¢ dentro de casa. Nao deve envolver pornografia, objetos de fetiche, brinquedos sexuais ou papéis que no o masculino eo feminino. Qualquer sexo que viole este modelo & considerado “mau”, “no natural” e “anormal”. Partindo das contribuigdes de Rubin e de uma critica &influéncia do existencialismo em Beauvoir, Butler estabelece um debate sobre a distingéo sexo/género, para ela ainda inscrita na tradico cartesiana que orientou o pensa- mento ocidental sobre o sujeito. Butler vé na divisio sexo/género a ideia de que pensar 0 sexo como natural ¢ 0 género como social- mente construido mantém um modelo : bindtio. Trata-se, entio, de discutir como e se a nogio de género decorre do sexo, decorrén- cia na qual ela aponte uma forma de afirmacio de uma “unidade metafisica”, Para Butler, acei- tar 0 sexo como um dado natural eo género como um dado construido, determinado cul- turalmente, seria aceitar também que o género expressaria uma esséncia do sujeito. Seu gesto Politico histérico foi afirmar que nao hé a ver- dade do género. Ao indicar que no hi esséncia ou identidade nas caracteristicas corporais, a autora propée trés dimensbes contingentes da corporeidade, escapando, assim, do binarismo de género: sexo anatémico, aquele dado pela biologia; identidade de género, entendida co- ‘mo uma construcio social; e performance de género, sendo 0 elemento do performative aquilo que perturba a associacio sexo/género explicita sua arbitrariedade. A partir do questionamento da verdade do ‘género, Butler sugere que os debates tedricos que dizem respeito a estabelecer uma priorida- de entre os termos género, diferenca sexual ¢ sexualidade estio atravessados por um outro problema: a permanente dificuldade de deter- ‘minar onde comega e termina o biolégico, 0 psiquico, odiscursivo eo social. Butler entende que a diferenca sexual & 0 lugar no qual se co- loca a questio da relacdo entre 0 biolégico € 0 cultural, quando afirma que “género é a parte da diferenga sexual que aparece como social”, ‘© que se articula com os debates que surgiréo na emergencia do debate sobre a desconstrucéo do conceito de género, ‘Tendo emergido nos Estados Unidos no f- nal da década de 1980, a teoria queer tem com 1s estudos de genero uma relacio de afinidade ede tenslo, Afinidade por compartilhar da per- cepgdo da sexualidade como construgio social, ponto no qual o conceito de género tanto con ‘tribui para afirmar. Jé.a tensdo decorre da per- cepgio de que os estudos de género, inadverti- damente, reiteravam a norma heterossexual. Esse € um dos argumentos de Butler em sua critica a Beauvoir. A fildsofa norte-americana, de notério compromisso com pensamento 1pés-estruturalista francés, denuncia que os tra- Aicionais pares opositivos sio principalmente hierdrquicos e reguladores de diferencas, tema carissimo a teoria queer bem expresso no exemplo de Miskolci, a heterossexualidade precisa da homossexualidade para sua propria definigio”, Os estudos queer articulam-se com o pés-estruturalismo também na medida em que questionam a ontologia de um sujeito ~ masculino, heterossexual, europeu, branco, senhor e normal ~ em prol da percep¢io deste sujeito como uma categoria de poder e opressio em relacio a0 ‘modelo heterosexual, mas ndo apenas. Se as tens6es sio de ficil identi- ficacio, as afinidades com os estudos de género ainda mais. Nos dois campos, a sexualidade é percebida como construgao social, sendo os estudos de género mais voltados para a diferenca sexual e suas formas de opressio na sociedade, ea teoria queer mais voltada para a heteronor- ‘matividade e também suas formas de opressio na sociedade, Este breve percurso historico aponta para o fazer e 0 desfazer do conceito de géneto, seus usos em campos como as Ciéncias Sociais, a Antropologia, a Filosofia e teoria queer, e, sobretudo, sua mobilizacio politica no debate sobre diferencas sociais baseadas na sexualidade e na corporalidade, Género, para além de uma dimenséo da pessoa, aspecto crucial na alta modernidade, constitui-se em um eixo de classificacio que organiza as relagdes sociais, Destaca-se a importincia das possibi- lidades de pensar 0 corpo como uma superficie regulada, com desdo- bramentos na obra de Butler e em suas reflexes sobre género e identi- dade, Nesse sentido, o conceito de género pode mobilizar um debate politico necessario e atual sobre como diferencas sexuais se materiali- 2am em corpos biolégicos, porque o processo de discussio - ou de des- construcio ~ da heterossexualidade normativa passa pela critica as identidades de género e suas consequéncias nas relagdes sociais. Uma das consequéncias dessa reflexio ¢ pensar na impossibilidade de sepa- ragdo e de contraste de campos pretensainente opostos, como naturezal cultura e masculino/feminino, para ficar com os mais embleméticos no que diz respeito ao debate sobre os estudos de género e os estudos queer: Sendo assim, gostaria de concluir indicando a impossibilidade de pensar como, em determinados contextos, a tenslo entre preservar e superar ‘© conceito de género parece a forma mais estratégica de continuar en- frentando as discriminagées sexuais e sociais.@ N21 ES 39 DOSSIE | A QUARTA ONDA DO FEMINISMO dos Margarida, organized om 2015, em Brasilia Marcha das Margardas; acim, Mac por entidedessindeais da sgriulturs, amon rea 1.2006, a revista Veja publicou um nimero intitulado “O que sobrou do femninismo”, em que afirma que o movimento teria fracassado em acabar com as grandes desigualdades de género €, por isso, estaria em crise, se nio morto. Quase dez anos depois, a revista Epoca langa o mimeo “A primavera das mulheres”, «em que descreve a “onda” de protestos feministas que “varreu’ as ruas © internet no ano passado no pais. O que aconteceu? O feminismo ‘morreu e ressuscitou? Como esté o movimento hoje no Brasil? Nenhum movimento social foi tantas vezes declarado morto como feminismo, Desde a década de 1970 até hoje, narrativas de enterro do feminismo tém sido recorrentes nos meios de comunicagio em virias partes do mundo (Hawkessworth, 2006), No Brasil, na dltima década, a ‘nidia vem apontando causas de morte variadas e mesmo opostas qgse.pusa alguns a.“cxise” do movimento ¢ explicada por seu su- Ea aaeiee ivos almejados, para outros, é 0 seu i natiaagora dispensivel, Também muitas fe utas das geragies dos anos 1970 ue os/asjovens, ao crescerem em EG Gros emp vam pare oe 4 €514g que surgem as narrativas de res- ea lados de surpresa, descrevem as ifsc }e¥enlos pontuaise sibitos, como surtos oitaneas ge 4 momentos criticos. A “primavera feminista”é descrita nos canais de comunicacio como um “novo” mo- vimento, que “explodiu” a partir da indignacio de mulheres atomizadas ~ uma “onda” sem passado, e que provavelmente sera declarada morta na proxima estagio. FEMINISTAS EM TODA PARTE Tanto as narrativas de morte como as de res- suscitamento se baseiam em definigdes estreitas e anacrOnicas do movimento. Nas décadas de 1970 € 1980, 0 incipiente feminismo brasileiro era caracterizado por coletivos auto-organize- dos de mulheres que, embora inseridas no cam- po mais amplo de resistencia & ditadura; busca- ‘vam definir uma identidade propria. Na década de 1990, com a redemocratizacio, o movimento se institucionaliza e adentra partidos, governo c principalmente ONGs, que se tornam as prin- cipais articuladoras do feminismo no Brasil e nna América Latina, com o objetivo de promover a “transversalidade” do género nas politicas locais. Ao longo da primeira década do novo ‘milénio, a maioria dos paises da América Latina desenvolve mecanismos institucionais para 0 avango das mulheres dentro da burocracia es- tatal, com a criagdo de ministérios, conselhos € outras figuras, Com base nesse passado recente, ‘muitos analistas (eativistas) do movimento fe- ‘minista se acostumaram a identificd-lo com ‘uma forma muito especifica de atores ~ orga- nizagdes bem delimitadas ~ realizando uma gama restrita de atividades, como a promocio de politicas publicas, e com visibilidade piblica ‘em nivel nacional. Quando néo detectam esses repertérios amplamente conhecidos de ago feminista, declaram a morte do movimento; quando vislumbram alguma movimentagéo piiblica, anunciam sua ressurreicio, Entretanto, se compreendermos o feminis- ‘mo ¢ os movimentos sociais em geral como configuragdes historices mutaveis, seu carter processual e heterogéneo emerge. Considero muito elucidativa a formulagao epistemolégica de Sonia Alvarer, para quem o movimento fe- ‘injsta é um “campo discursive de ago”, cons- tituido por uma vasta gama de atores coletivos ¢ individuais alocados em diferentes lugares sociais, compartilhando e disputando visoes de mundo, De acordo com 0 contexto historico, ¢ sua particular configuracao de oportunidades, constrangimentos eforcas politicas, certos ato- res e formas de agdo ganham maior projecio que outros no campo. Produto de disputas in- ternas ¢ externas, o campo feminista esté sem- preem fiuxo e nunca foi homogéneo. > Ne219 BD at DOSSIE | A QUARTA ONDA 00 FEMINISMO Se no passado recente a atuagéo mais visi- vel das feministas se deu nas organizagies € junto ao Estado/politicas, isso nao significa que essas eram as tinicas expresses do movi- ‘mento, mas apenas as mais dominantes em uma dada conjuntura, Do mesmo modo, se atualmente ONGs e mecanismos estatais pa- recem nao ter 0 mesmo protagonismo de ou- trora, isso ndo deve ser pretexto para “matar” 6 feminismo mais uma vez. Muito pelo con- trério, o campo feminista vem se expandindo para outros espagos. Percebendo tendéncia semelhante nos Estados Unidos, Jo Reger ar- gumenta que o feminismo est 20 mesmo tempo “em toda parte” e “em lugar nenhum”: asnovas geragdes de ativistas vivem num con- texto em que a igualdade de género é tomada como dada, mas os rastros da transformacéo hist6rica das relagbes de género nao estdo apa- rentes, dada a auséncia de grandes liderangas e organizagdes nacionais. Embora a nogio de “ondas” seja muito uti- lizada pela literatura feminista para caracte- rizar sucessivas configuragées do campo, considero, junto com Claire Hemmings, que seu uso torna visivel justamente as expresses dominantes, enquanto exclui muitas outras e obscurece as disputas internas entre elas por legitimidade, Assim, enquanto alguns anun- ciam a “quarta” onda, ou ainda “o novo” fe- ‘minismo, prefiro seguir as sugestdes das au- toras e pensar 0 momento atual como de difusdo e diversificagao de campos feministas. Neste cendrio, as novas geragSes passam por ‘um processo gradual de se tornarem feminis- tas a partir das relagoes de diferenca e seme- Thanca com as geracbes mais velhas e entre 0s diversos grupos, e das oportunidades coloca- das pelo contexto local. 2G 29 CAMPOS E REDES FEMINISTAS Bem antes da tltima primavera ja era possivel notar sinais de expansio e diversificagao de campos feministas no Brasil. Por exemplo, a trajetdria de participagao de feministas em organizagées sindicais, que comeca de forma marginal na década de 1980, se consolida nos ltimos anos com a proliferagao de secreta- ras, departamentos e coletivos de mulheres, pressionando pela igualdade de oportunidades xno mercado de trabalho e no sindicalismo. Entre os sindicatos rurais, também é notivel a difusio do ideério feminista, Em sua quinta edigdo em 2015, a Marcha das Margeridas, organizada por entidades sindicais da agricul- tura, reuniu em Brasilia mais de cem mil tra- balhadoras. Embora o caréter feminista da Marcha seja objeto de disputa, dada a centra- lidade das questdes trabalhistas em sua agen- da, um de seus principais objetivos politicos é “fortalecer e ampliar a organizacio, mobiliza~ 40 e formacio sindical e feminista das mu- Iheres trabalhadoras rarais’ Dentro dos movimentos de esquerda que ‘mais mobilizam a juventude, como 0 Levante Popular, as Brigadas Populares, o movimento cstudantil eos grupos anarquistas, vém se con- solidando espagos feministas auto-organizs dos, em que mulheres buscam incrementar a participacdo feminina nas instancias decisé- rias, bem como incluir peutas de género nos programas politicos desses espagos. Importante mencionar também a Marcha Mundial de ‘Malheres, organizagao que vem atuando como importante articuladora do chamado “fem nismo popular”, ao promover nicleos ferninis- tas dentro de sindicatos, partidos e movimen- tos populares. As relagées entre feministas alocadas nesses espacos mistos ¢ as chamadas feministas “autonomas” sempre foram e con- ‘inuam marcadas por disputas que, grosso modo, giram em torno da énfase dada as questdes de classe ou género/sexualidade. (Os grupos auténomos também se multipli- cam em toda parte. Dos incontaveis coletivos de mulheres negras ~ sobre os quais vocé pode saber mais no texto de Djamila Ribeiro neste aximero ~ a0s grupos de lésbicas e bissexuais; das mulheres “periféricas” e “faveladas” aos coletivos de maes e de estudantes universitarias e secundaristas; dos grupos de jovens grafitei- ras, MC's, funkeiras skatistas as mulheres do teatro popular ligados aos movimentos de es- querda; das poetas, blogueiras e atrizes as coo- Perativas de mulheres e pequenas empresérias, e até blocos de carnaval exclusivamente femi- nninos. Esta miriade de atores se organiza e se expressa tanto nos espacos fisicos, como tam: ‘bém na internet, onde a polifonia de blogs ¢ portais denoticias, anais no Youtube e paginas do Facebook € quase ensurdecedora. Mais do (que uma ferramenta de organizacio, a internet € uma extensio do campo feminista. Meu esforco de enumerar aqui virias ex- pressbes recentes do feminismo brasileiro nao faz jus diversidade e complexidade do cam- po. Séo intimeros os espagos onde mulheres claboram suas atividades em torno de discur- 80s feministas, criando redes cada vez mais, extensas de atores institucionalizados ou néo, articulados em maior ou menor grau entre Seno inicio dos anos 1980 o campo feminista era bastante circunscrito, hoje ele permeia ou- tros movimentos sociais, a sociedade civil e as instituig6es politicas, além de cenas culturais e artisticas e o mercado, AS NOVAS GERACOES PASSAM POR UM PROCESSO GRADUAL DE SE TORNAREM FEMINISTAS A PARTIR DAS RELACOES DE DIFERENCA E SEMELHANGA COM AS GERAGOES MAIS VELHAS E ENTRE OS DIVERSOS GRUPOS, E DAS OPORTUNIDADES COLOCADAS PELO CONTEXTO LOCAL CORPOS-BANDEIRA Pelo que se organizam todas essas feministas? F. como expressam suas demandas? Obviamente, qualquer tentativa de resposta breve serd sim- plista e homogeneizante, Assim, gostaria de me concentrar em um aspecto que vem ganhando relevancia recentemente: 0 uso politico do corpo pelas ativistas. No movimento feminista brasileiro atual, o corpo esté presente de varias formas. HA muito que as demandas por direito a0 aborto, satide da mulher e “parto humanizado” tém sido enquadradas como uma demanda por “autonomia das mulheres sobre seus corpos”, além de ‘uma questio de “sate piiblica’. Mas também fora do eixo dos direitos, sexuais ¢ reprodutivos 0 corpo tem sido uma chave importante de organizacio dos discursos. Na tiltima aco internacional da Marcha ‘Mundial das Mulheres em 2015, que teve como eixo “o direito ao nosso corpo, trabalho e territério”, as ativistas dos meios rurais definiram o agronegécio nio apenas como uma violagdo aos territ6rios e comuni- dades, mas também aos corpos das mulheres. Entre as femninistas ne- gras, a construgio de identidades politicas passa muitas vezes pela incorporacio de certos atributos de “negritude”, em especial a transi- ‘40 dos cabelos quimicamente tratados pare cabelos “naturais”, Além disso, os corpos so cada vez mais explicitamente utilizados como recursos em protestos feministas. Desnudados ou encobertos, para- mentados e pintados, movimentados ou imobilizados, performando dor, poténcia, transgressZo ou luto, os corpos sio usados por ativistas para comunicar mensagens e produair efeitos desejados. O corpo é, assim, um articulador central dos repertérios das ativistas; é um “coxpo-bandeira”. As feministas, portanto, politizam o corpo e incorporam a politica. Eo fazem de maneiras muito diferentes entre si, Na Marcha das Vadias, por exemplo, as participantes usam sutiis ou exibem seios nus para questionar 0s discursos que legitimam a violéncia contra as mulheres € para expressar projetos de “autonomia” ¢ “liberdade sexual”. Este pProtesto comegou no Canadé, em 2011, em reacao & fala de um policial que declarou que “as mulheres deveriam evitar se vestir como vadias [sluts] para néo serem vitimizadas”. Na Marcha das Margaridas, usando chapéus e flores, as ativistas colocam 0 corpo trabalhador, ao mesmo tempo forte ¢ sensivel, no centro das suas narrativas. Na Marcha das Mulheres Negras, em 2015, elas adornaram seus corpos com roupas turbantes étnicos que visavam conectar cada pessoa a uma “heranga” afro-brasileira comum. As diferentes performances corporais frequen- temente expressam visdes conflitantes acerca de como raga, géneto, sexualidade, idade e classe devem ser mobilizados nas agendas politicas. Occorpo é, assim, um lugar discursivo onde feministas depositam uma multiplicidade de significados e projetos, constituindo uma gramética compartilhada, ainda que disputada. Se inserindo em cada vez mais espacos, com variadas agendas, mo- dos de organizagao interna e repertérios, construidos por meio de ar- ticulacées e disputas, aliangas ¢ conflitos, o movimento feminista se ‘mostra muito, muito vivo. Neary 8 c alar sobre diferentes momentos do feminismo negro exige uma leitura para além do que encontramos em compéndios e obras sobre feminism. Primeiro, porque em muitos destes ignora-se a contribuigdo das mulheres negras para a luta feminista. Segundo, porque é preciso também transcender 0 que se entende por um discurso legitimado. Explico: no periodo da escravidao no Brasil, ‘mulheres negras eram empreendedoras, quitu- teiras, por exemplo, e utilizavam o dinheiro para comprar a alforria de pessoas negras es- cravizadas. Do mesmo modo, muitas contribu- {ram para a organizagio de levantes contra a escravidéo, assim como para as estratégias de manutengéo de quilombos. Hé registros de mu- Iheres negras que praticavam abortos como forma de luta porque no queriam ver seus fi- hos nascerem escravizados. Se olharmos com mais atengo para a hist6ria das mulheres ne gras no Brasil e em outros paises onde houve escravido negra, podemos constatar que elas j@ desempenhavam um papel importante de luta e sobrevivencia do povo negro. Importante também ressaltar 0 papel de destaque de mulheres negras de terreiro, os saberes produzidos nesse espao e a figura de lideranga que ocupam historicamente na re- sisténcia e manutengio cultural. £ importante pontuar de que feminismos falamos quando ‘ignoramos ou tornamos invisiveis essas hist6- ras e narrativas. Nesse sentido, podemos dizer que essas mulheres negras, que eram tratadas e vistas como mera mercadoria e que lutavam pela libertagio de todo um povo, formaram ‘uma espécie de primeira onda. Em 1851, Sojourner Truth, nome adotado a partir de 1843 por Isabella Baumtree, foi uma abolicionista afro-americana e ativista dos direitos da mulher que nasceu em um cativeiro em Swartekill, Nova York. Truth, que também foi oradora, fez seu discurso mais conhecido, chamado “E eu ndo sou uma mu- Iher?” — que inspirou o primeiro livro da fe- sinista negra bell hooks, publicado em 1981 ~ na Convengaio dos Direitos da Mulher, na cidade de Akron, em Ohio, nos Estados Unidos. Feito de improviso, 0 discurso foi re- gistrado por Frances Gages, {eminista e uma das autoras de The history of woman suffrage, de 1881, grande compéndio de materiais sobre a primeira onda feminista. Antes disso, no entanto, 0 discurso havia sido registrado por Marcus Robinson na edigdo de 21 de junho de 1851 do jornal abolicionista The Anti-Slavery Bugle. Em um trecho, Truth dizia: “Bem, minha gente, quando existe tama- nha algazarra é que alguma coisa deve estar fora da ordem. Penso que espremidos entre os negros do sul e as mulheres do norte, todos eles falando sobre direitos, os homens brancos, ‘muito em breve, ficardo em apuros. Mas em torno de que € toda essa falagio? Aquele ho- ‘mem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir em uma carruagem, é preciso carregi- -las quando atravessam um lamacal e elas de- vem ocupar sempre os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir em carrua- gem, a passar por cima da lama ou me cede 0 melhor lugat! E ndo sou uma mulher? Olhem ara mim! (..] Pari cinco filhos e a maioria des foi vendida como escravos. Quando ma- nifestei minha dor de mae, ninguém, a nao set Jesus, me ouviu! E nao sou uma mulher?” Esse discurso, ainda no século 19, jé evi- dencia um grande dilema que o feminismo viria a enfrentar:o tema da interseccionalida- de, ou seja, a rentincia de uma suposta estru- tura universal para levar em conta fatores como raca, orientagao sexual, identidade de género ~ algo atribuido mais fortemente a => Neto BE as aun it ne Congscs) Ro aacart id Cee ed ea IBE|GAO.PRETO OSSIE | A QUARTA ONDA DO FEMINISMO terceira onda do movimento, sendo Judith Butler um dos grandes no- ‘mes. O que percebemos com o discurso de Truth e com as feministas negras estadunidenses, como bell hooks e Audre Lorde, é que na década de 1970 elas jé denunciavam a invisibilidade das mulheres negras como sujeitos do feminismo. O debate interseccional ja vinha sendo feito, 0 problema era a sua falta de visibilidade. Por mais que nio a considere- ‘mos feminista na acepcio do termo, Truth & exemplo de que a inter- seccionalidade existiu tanto na primeira quanto na segunda onda do feminismo, apesar de ambas nao serem caracterizadas por este tipo de reivindicagdo. Da mesma forma, varias mulheres negras no movimento sufragista foram apagadas da historia, como explicita Angela Davis no capitulo “Mulheres trabalhadoras, mulheres negras ¢ a histéria do movimento sufragista”, na edicao brasileira de Mulheres, raga e classe, 0 que se pode dizer, afinal, é que nao existem ondas especificas em relagdo ao feminismo negro porque as mulheres negras foram silen- ciadas no interior do movimento, jé que suas lutas néo eram conside- radas feministas mesmo quando produziam e criavam, historicamente, formas de resistencia. O peso de uma voz tinica e o néo reconhecimento de outras vozes criam uma hierarquia de quem pode falar ¢ de qual historia merece ser ouvida e catalogada, ( negro do “feminismo negro” inscrevia uma multiplicidade de experiéncias ainda que articulasse uma posigdo particular de sujeito feminista. Além disso, ao trazer para o primeiro plano uma ampla gama de experincias diespOricas em sua especificidade tanto local quanto global, o feminismo negro representava a vida negra em toda sua plenitude, criatividade e complexidade. 'Nos Estados Unidos, o feminismo negto ganha forca a partir da dé- cada de 1970 com a produgio intelectual de ferinistas negras que de- ‘nunciam a invisibilidade das mulheres negras como sujeitos do feminis- mo. De acordo com hooks, mulheres negras e brancas compartilham a lta contra o sexismo. O pessoal nao se sobrepde ao politico, como muitos interpretam a méxima “o pessoal & politico”, mas o pessoal é ponto de partida para conectar politizacdo e transformagio da consciéncia, isto 6 ler criticamente a experiéncia de opressio das mulheres. A conexio entre teoria e pritica é uma das dimensdes importantes do feminismo ‘negro; considera que o aprofandamento do pensamento também é me- diado pela militéncia, e que a inter-relagdo entre ambas é parte impor- tante no desenvolvimento do pensamento feminista negro, além de também pontuar a sua propria condigdo de mulher negra como elemento importante para o desenvolvimento de suas ideias. ‘Segundo Ana Claudia Jaquetto Pereira, a0 incorporar a interseccio- nalidade como principio normativo de seu projeto politico, o feminismo negro molda uma visio de democracia que se demanda nao apenas de instancias representativas, mas também requer a permeabilidade do Estado aos grupos subordinados para que eles participem de iniciativas da sociedade que visam redistribuicao dos participativos para decisio daalocagéo de recursos simbélicos e materiais. Além disso, quando usado como recurso descritivo, a interseccionalidade do feminismo negro amplia © campo de viséo com base no qual oestudo das relages raciais tem se firmado, permitindo ‘compreender como a opressio racial é depen- dente e combinada com opressdes de genero, heteronormatividade e exploracao econdmica. No Brasil, ele comega a ganhar forga nos anos 1980, Segundo Nubia Moreira, “a relacdo das mulheres negras com o movimento femi- nista se estabelece a partir do 3° Encontro Feminista Latino-Americano ocorrido em Bertioga em 1985, de onde emerge a organiza- so atual de mulheres negras com expressio coletiva com o intuito de adquiri visibilidade politica no campo feminista, A partir daf, sur- gem os primeiros coletivos de mulheres negras, época em que aconteceram alguns encontros estaduais e nacionais de mulheres negras. Em momentos anteriores, porém, hd vesti- gios de participagdo de mulheres negras no Encontro Nacional de Mulheres, realizado em © QUE PERCEBEMOS COM © DISCURSO DE TRUTH E COM AS FEMINISTAS NEGRAS ESTADUNIDENSES, COMO BELL HOOKS E AUDRE LORDE, € QUE NA DECADA DE 1970 ELAS JA DENUNCIAVAM A INVISIBILIDADE DAS MULHERES NEGRAS COMO SUJEITOS DO FEMINISMO. O DEBATE INTERSECCIONAL JA VINHA SENDO FEITO, © PROBLEMA ERA A SUA FALTA DE VISIBILIDADE ‘margo de 1979.No entanto, a nossa compreensio é que, a partir do encontro ocorrido em Bertioga, se consolida entre as mulheres negeas um dis- curso feminista, uma ver.que em décadas ante- totes havia uma rejeigdo por parte de algumas ‘mulheres negras em aceitar a identidade femi- nista’ isso acontecia devido ao fato de no se identificarem com um movimento até entio ‘majritariamente branco e de classe médiae pela falta de empatia em perceber que mulheres ne- ‘gfas possuem pontos de partidas diferentes, es- pecficidades que precisam ser priorizadas. -Emesmo entre as feministas negras é pre- ciso reconhecer a grande diversidade que exis- te, de acordo com Angela Davis. Algumas se referer a si mesmas como mulheristas - usan- do 0 termo de Alice Walker -, outras sio fe- ministas, mas fazem um trabalho mais pritico contra a violéncia sexual, outras sao académi- 2s, como Patricia Hills Collins. O desafio, diz Angela, é saber como trabalhar com as dife- rengas e contradigées: "Nés nao precisamos de homogeneidade nem de mesmice. Nio preci- ssamos forgar todas as pessoas a concordar com ‘uma determinada forma de pensar. Isso signi- fica que precisamos aprender a respeitar as diferencas de cada pensar, usando todas as diferengas como uma ‘fagulha criativa’,o que nos auxiliaria a criar pontes de comunicagio ‘com pessoas de outros campos.” Sobre as movimentacées em relagio as mi: litantes do feminismo negro, Avtar Brah ar- gumenta que 0 sujeito politico do feminismo negro descentra o sujeito unitério e masculi- nista do discurso eurocéntrico, e também a versio masculinista do “negro” como cor po- litica, 20 mesmo tempo em que perturba se- riamente qualquer nogao de “mulher” como categoria unitiria, Isso quer dizer que, embora constitufdo em torno da problemética da “raca’, feminismo negro desafia performativamente ites de sua constituigao, Importante notar que, 20 pensar a inter- seccionalidade, as mulheres negras nio estio pensando somente nas opressdes que as afli gem, o que transcende o discurso de uma luta ‘meramente identitéria: elas esto pensando ‘um novo modelo de sociedade. & Neate SO a7

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