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Um berg¢o de perguntas: Amar um Cao | Joao Barrento — Quem me chama?, imagina ela, a crianga, dentro de um bergo de perguntas que a embala. Maria Gabriela Llansol Preludio Os dois ensaios que se seguem (“Um bergo de perguntas” e “A fraternidade do impar”) pretendem prolongar, pela reflexao, um dos mais breves e mais intensos textos de Maria Gabriela Llansol: Amar um Cao. Estamos apenas nascendo para este Texto. O nosso pensamento, tal como o do cao Jade, é ainda “um pensamento de leite”, 0 lugar a partir do qual fazemos perguntas é “um bergo”. As perguntas, que ire- mos fazendo sempre de mao dada com o texto, sao perguntas sobre o nascimento e a morte, sobre © crescimento e a mudanga. Sao perguntas que um texto-a-escrever-se partilha com um ser sendo em relagao impar. Nesta primeira parte, 0 texto desenvolve-se segundo um metodo cine- matografico: parte de um “grande plano”, avanga para dois plongés em que procura captar os nds do texto, e fecha com close-ups, amplificando pormenores, reincidindo sobre momentos anteriores, para des-nodar alguns desses nés. Livro de asas - para Maria Gabriela Llansol Primeiro andamento: A forma e a mudanga houve uma breve hesitagao da parte de quem transpor- tava o recém-nascido o meu cao Jade, h4 muito tempo; muito, ¢ com grande intensidade, aconteceu durante esse tempo breve em que Jade foi deixado suspenso sobre um medronheiro, sem mie visivel, num bergo nem celeste, nem terrestre. No lugar que toda a planta acolhe, ¢ que o entregara ao medronheiro, sentia sobre si uma incidéncia animal alada, que nem era verdadeiramente passaro, nem verdadeiramente quadnipede.’ Dois sragos vazios instabilizam a entrada no Texto, ¢ deixam-nos cair num ante-texto duplo, 0 do duplo nascimento de um ser-de-vida que, por enquanto, é ser-do-texto. Para o primeiro nascimento, o do “porto de nascer” de Jade, escolhemos como lugar provavel a Serra da Arrabida, perto de Lisboa. Para o segundo, o do “cao do futuro”, o ‘Texto dé como lugar o Jardim da Estrela, esse jardim, também de Lisboa, que em crianga servia 4 narradora/autora de “lugar que o pensamento permite”. Aqui, ele nao é mais que metonimia de um mais amplo espago edénico, que nao tem de se situar “na origem do universo”,” ¢ que pode ser qualquer outro lugar onde se “brinque ao pensamento”.’ A cada lugar podem ser atribuidas as suas imagens (afinal, entramos em “luga- res imaginantes” — cf. entrevista); a cada lugar pode ser dada a sua muisica (no livro, a mata tem “corpo musical”, sobre o Jardim paira um siléncio loquaz com 0 qual se brinca). 1 LLANSOL. Amar um Cao [1990]. In: LLANSOL. Cantileno. p. 39. A partir daqui todas as citagdes referentes a esta obra virdo assinaladas no texto, entre parénte- ses, pelas iniciais AC, seguidas dos nimeros das paginas a que se referem 2 LLANSOL. Wa Casa de Julho e Agosto, p. 138-168. 3 LLANSOL. Um Beijo Dado Mais Tarde, p. 77. 20 ASA 00 TEXTO: LUGAR QUE VIAJA Mas nao se trata aqui de festejar um nascimento. Um co que nasce sem forma definida, em lugares tao “improvaveis’, para tornar visfveis as fontes da alegria, nao pode ser objecto de homenagens, como o foram, por exemplo, o quadrado (na série “Hommage to the square”, do pintor Josef Albers) ou 0 circulo (para Kasimir Malevich, “Black circle”). Qua- drado e circulo sao pares ¢ perfeitos (fechados), o movimento que os gera, de teor abstraccionista, busca uma “esséncia” na forma, que ¢ sempre 0 resultado de uma depuragao do vivo, com vista & sua fixagao. O texto de M. G. Llansol, que ¢ uma superficie instavel, busca nao qualquer esséncia, mas trazer & linguagem os principios da mutagéio — ¢ o estado de mutacio, “mudando, nao pode ser surpreendido sob nenhu- ma forma”.* A nogao de real presente nos textos de Maria Gabriela Llansol nao é balizada, nem por uma nogio estatica de forma, nem sequer por nascimento ¢ morte, Nisto (¢ em muitos outros aspectos), ela opera um salto de milénios, por cima de todas as formalizacées légicas do pensar, € encontra-se com os pré-socriticos gregos. Por exemplo, no que se refere 4 negacao dos conceitos correntes de nascimento e morte. Nos fragmentos de Empédocles, fala-se insistentemente da “mistura [dos elementos, das coisas, dos seres] que produz mudangas”, chama-se “lou- cos” aqueles “que imaginam que aquilo que propriamente nao existia pode nascer, ou que uma coisa pode morrer ¢ ser totalmente destruida. Pois é inconcebfvel a geracao a partir daquilo que de modo algum existe, e é impossivel e inaudito que aquilo que existe deva ser destrufdo. Pois permanecerd I4, para onde quer que se continue a empurrd-lo”.> Nem o nascimento é um comego absoluto, nem a morte é um fim. Também o texto de Maria Gabriela Llansol é um continuo: nele nao ha fim, “as figuras sabem que nao ha tiltima viagem”,’ vida e morte sao apenas “dois rios concorrentes a disputar o melhor acesso ao mar”, a morte é 0 lugar luminescente onde “tudo se degrada para brilhar mais tarde” ¢ “ler, ler é nunca chegar ao fim de um livro” (AC, p. 45). Por # LLANSOL. Um Beijo Dado Mais Tarde, p. 84. = KIRK: RAVEN, Os filésofos pré-socréticos, p. 334. ® LLANSOL. Ardente Texto Joshua, p. 18 7 LLANSOL. Ardente Texto Joshua. p. 103, 105. Liveo de asas - para Maria Gabriela Llansol isso, podemos desde jd ligar comego e fim de Amar um Cio, 0 apareci- mento € a despedida de um ser que faz a sua entrada no texto como aparicao ¢ sombra, o atravessa como “ser sendo” — sendo em expectan- cia, em jubilo solar, em transfiguracao angélica, em declinio —, para dele sair num sonho (“sonhei, esta noite, que Jade tinha deixado a casa”: AC, p. 48) que o traz de volta ao lugar de onde partira, ao Coreto do Jardim da Estrela (AC, p. 49). A “morte”, consumada no gesto de se deitar “num enorme prato de leite” — afinal, um gesto de sentido rege- nerador —, nao ¢ morte, mas mudanga ou regresso. Porque, dizia j4 0 texto antes, “a morte é dar como verdadeiro 0 que é” (AC, p. 47). Ora, a “verdade” da figura central deste texto é que ela nunca 6, esté sempre sendo, como adiante entenderemos melhor. Sendo o seu ritmo interno um movimento em tensao € em aberto, 0 préprio Texto serd um tecido de relagées vivas, erotizadas, corpo de fruicao. O texte de jouissance (texto de fruigao, ou, para falar com M.G. Llansol, texto de sedugao), diz Barthes, distinguindo-o do texte de plaisir (texto de prazer, ou, para falar com M. G. Llansol, texto de fascénio) ¢ um anagrama do nosso corpo erotizado, o “corpo certo” de que falavam os eruditos drabes a propésito dos textos, corpo “feito unicamente de relacGes eréticas”.* O texto — este texto de Amar um Cao — busca a tensao da relagéo impar, nao a “forma” que o faria cristalizar. A relagdo do amor impar — aqui, entre mulher ¢ cio — ¢ uma prova e um combate, deixa-nos & beira do abismo, do perigo do pogo, d“o que ainda nao sei”, do presente. E 0 presente assusta, porque reclama um modo de ser que é 0 do ser sendo, ¢ perturba o leitor, se ele estiver viciado na cangao de embalar que € 0 texto narrativo escrito em pretérito perfeito. Mas com Jade, diz. a menina, figura de um entresser humano em O Ensaio de Musica, com Jade “eu sei o que ¢ presente”.” O legente, esse chegard a entender que a fruicao do texto implica perturbago, um “pacto de inconforto” — e deslumbramento (a crianga, a de Amar um Cio, ou outra, sempre a mesma, sabe disso). 8 BARTHES. Le plaisir du texte, p. 29-30. % LLANSOL. Lisboa/eipzig 2—O Ensaio de Misica, p. 162. ASA DO TEXTO: LUGAR QUE VIAJA Para nés, que comegamos por acompanhar o duplo nascimento de Jade no texto, os lugares desse vir-d-luz estao, como se disse, na Serra da Arrabida e no Jardim da Estrela, espacos que 0 texto transformou em Lugares: o da pujanga arcaica de uma vegetago de principio de mundo — maquis rasteiro, bosques encantados, ervas comuns e mais raras —, ¢ um desses jardins que permite “pensar livremente sobre”. O que fazemos € transformar os Vivos do texto — medronheiro, mata, gotas de chuva, murta, aderno, aroeira, a Serra e 0 mar, canteiros Coreto — em interlocutores, tragando 0 caminho inverso ao do texto realista: nao é um real pretensamente vivo que vem ao texto, para ai morrer na representagao, si0 os reais-ndo-existentes do Texto que nos conduzem as coisas para falar com elas, nesses dois lugares de nascimento. Lugares de hibridagéo, onde um cio pode nascer numa drvore (¢ dela), ou onde pode vir a terreiro de jogo uma meméria do futuro, através de uma infincia sonhante que recusa os jogos para descer ao pogo e fazer nascer 0 cio do futuro. Observemos de perto esta dupla partenogénese. Segundo andamento: “O porto de nascer” @ palavra que falta é a vossa palavra, € vossa esta também sob 0 trago vazio. Maria Gabriela Uanso! Sobre o traco do texto, chega um Alguém-a-nascer, trans- portado por alguém que hesita quanto ao lugar onde o faré aparecer. Esse Alguém é um cao — Jade, nome que desde logo o cruza com a pedra e com a cor —, ¢ o lugar do seu nascimento ser4 uma drvore, um medronheiro. Nao tem “mie visivel”. Nem precisa de ter, porque nao se nasce s6 de mie, a estirpe dos Vivos ¢ intensos tece-se também de outras linhas ¢ linhagens, ¢ as linhagens nao tém propriamente 23 Llansol “origem”, encontram-se simplesmente nos mesmos “vortices vibratérios” (cf. entrevista). Nasce-se “no decurso da leitura silenciosa de um poe- ma’, nasce-se “na sequéncia de um ritmo”, ¢ quando isso acontece é possivel “parar a contemplar 0 espago sem tempo”,'° se 0 espago se transmudou em Lugar. Por exemplo, o lugar que entrega 0 cao ao medronheiro, ¢ assim 0 faz. nascer hibrido, nem passaro nem quadripede, “sobre as bagas pur- puireas dos medronhos” (AC, p. 40). Jade nasce também do corpo musi- cal que compunha a mata, o seu fio de voz tem a mesma altura dessa miisica, 0 seu choro confunde-se com as gotas de chuva, 0 seu corpo com o verde da planta lenhosa. Mas nao tarda muito ¢ ganha rismo proprio, imprevistveis faculdades que lhe permitem transformar a atmosfera a sua volta. Jade nasce ¢ logo pensa, tem “um pensamento de leite” que sobe nos “sitios pedregosos”, ¢ assinalaré também a hora da sua morte. E fala, mas com os olhos, que medem 05 astros. Se o ar nao tivesse uma densidade leve, teria quebrado Jade. Jade, que acabara de nascer sobre as bagas purptireas dos medronhos, € 0 ruido dos ramos partidos, _j4 pensava. Um pensamento de leite subia nos sitios pedregosos, fora do local da casa, e da cerca com cerros ¢ penhascos. Ele trazia nos olhos um instrumento azul para medir 0 diametro do sol, ¢ dos astros; lia-se neles uma lingua- gem que s6 mais tarde, muito mais tarde, encontraria equivalente na boca: “o meu Pai nao existe fora da descrigao do Sol; caminho através da murta, do aderno, da aroeira, ¢ avistei esta serra em que a memoria vé primeiro 0 porto de nascer, mal nasci, situei-me, em vida interi- ‘or, em face do mar; ergo para a minha dona os meus olhos frégeis, opondo-me a uma adversdria que, de certeza, me ama: fago-lhe pedidos luta comigo; da-me a sensacio de ter saido vencido, mas com rebeldia.” (AC, p. 40) 10 LLANSOL. Onde Vais, Drama-Poesia?, p. 11 ASA DO TEXTO: LUGAR QUE VIAJA Nasce-se da meméria, neste lugar entre serra e mar, que é escolhido como “porto de nascer”, lugar de onde zarpard, para um percurso de vida, 0 c4o que seré amado de forma impar — e que ja era antes de encarnar, porque sobre ele a sua dona péde “pensar livremente” entre j©go € pogo, em mais um “jardim que o pensamento permite”, o Jardim da Estrela da infancia. Esta serd a “cena primitiva” do nascimento do amor impar com uma dona que ¢ adversdria e ama, que luta e vence, mas concede a rebeldia. A cena, como tantas outras, é regida pela dupla lei de eros ¢ polemos, da energia libidinal e do combate que permitirao a cada um encontrar-se. Terceiro andamento: O jogo e 0 pogo viver é ir 8 procura do conhecer. E isto € tanto verdade para o ser humano, como para aqueles seres 20s quais nao atribuimos gran- de capacidade de conhecimento. Mas a verdade é que todos tém, como presenga, o sentimento de que fazem parte do universo. Eu vejo esta presenga como uma espécie de espiral luminosa que per- mite a cada um reconhecer-se direito. Maria Gabriela Llansol O Texto diz e mostra como se pode pensar livremente sobre: 0 \e- gente segue-o e dé asas & liberdade do pensar. A liberdade do pensar é a que permite trazer ao “dia simples as questes filosdficas” (AC, p. 40). Ou: juntar os prazeres do jogo a perigosidade do poco. Nos jogos do Jardim da Estrela, a narradora-crianga brinca s6, “com os brinquedos do siléncio” (AC, p. 41), para poder descer ao pogo de uma meméria do futuro que lhe permite ver 0 céo ainda nao encarnado, e falar com ele. Com a sua voz e 0 sopro que 0 anima, ainda que nao com o seu corpo. E isto o pensar livremente, o realizar a travessia da lingua que é verdadei- ramente a lingua sem impostura, a das vozes livres da crianga e do bicho ali mesmo ao lado da casa onde nao se sabia administrar a Justiga da lingua (ver: Unt Beijo Dado Mais Tarde, p. 7). O cdo que nasce no Jardim da Estrela ¢ ainda sé desejo (“Eu apago-me no cao que 25 Livro de asas - para Maria Gabriela Liansol desejo”: AC, p. 41), mas tao intenso que se sobrepde ao “campo de jogos” das outras criangas, que nao atrai. A conversa recorre a uma lin- guagem especial, a “palavras que anunciam a realidade” (AC, p. 41), palavras que sao pesadas, desenhadas, pensadas hoje, talvez possamos dizer que essa lingua é a das palavras-parasceve, Linguagem que antecipa ¢ linguagem que liga, linguagem-promessa (“Linguagem 86 presente, € que nunca se entristece”, lemos j4 em Um Beijo Dado Mais Tarde). Um dos seus sinais é“o traco de uniao” que ligaré a narradora- infancia ao mundo (ao “reino”) do seu cio do futuro (no momento em que deixa de ser futuro, uma outra dupla ligacao se estabelece: pela trela ¢ pela /etrz, sob a forma da aprendizagem da leitura). O telos tiltimo dessa linguagem da relacao é 0 do encontro (com o universo desse amigo futuro, “verdadeiro interlocutor”: AC, p. 42), aqui antecipado pela for- a do pensamento livre. A estética desta cena é a de uma maiéutica (arte da parteira, a que traz a luz) que fez nascer — nascer duplamente, nestas duas primeiras cenas — um objecto de desejo, De desejo que se concreti- za na experiéncia presente, e nao é fantasia nem mero wishful thinking. Como a utopia concreta do filésofo Ernst Bloch, em Espfrito da Utopia (1918-23): Eu sou. Nés somos. E quanto basta. Agora temos de comegar... [...] Tao fundo comega por nos levar 0 caminho interior, também chamado encontro com nés préprios, a preparagao da palavra inte- rior, sem a qual é nada todo o olhar para fora. [...] Mas por fim, depois desta vertical interior, vird a amplitude, o mundo da alma, a fungao exterior, césmica, da utopia [...]. Invocamos aquilo que nao é, damos asas & fantasia, projectamo-nos a nés préprios para af ¢ buscamos aio verdadeiro, o real, fazendo desaparecer o que é me- ramente factual — incipit vita nova.'' Resta agora ver, mais de perto ainda, os modos como o Texto da a ver este duplo nascimento de um ser-de-desejo, com nome, pensante, mas ainda sem corpo formado. 11 BLOCH, Geist der Utopie. p. 11-13. ASA DO TEXTO: LUGAR QUE VIAJA Quarto andamento: Soletrando as imagens deste texto Nunca olhes os bordos de um texto. Tens que comecar numa palavra. Numa palavra qualquer se conta. Mas, no ponto-voraz, sur- gem fugazes as imagens. Também hes chamo figuras. Nao ligues excessivamente ao sentido. A maior parte das vezes, é impostura da lingua. Vou, finalmente, soletrarte as imagens deste texto, an- tes que meus olhos se fatiguem. Maria Gabriela Llansol Aparigao No momento em que “o meu céo Jade” (AC, p. 39) aporta ao seu porto de nascer — ¢ este nascimento é, na verdade, mais uma aparigao —, 0 texto fornece desde logo os elementos substantivos essenciais (cio € respectivo nome), ¢ também a palavra adjectiva que deixa claro 0 elo, o anel de ligacao: “meu”. Na sequéncia Eu-Cao-Nome, 0 nome e 0 pronome “possessivo” singularizam a relacao entre dois “impares”. Mas prefiro dizer atributivo, e nao possessive, porque nao hd posse, hd relagao livre com este cao (também em O Encontro Inesperado do Diverso se diz: “(a minha lingua perder4 definitivamente o possessivo. Porque inutil. A lingua que se tornaria l4 [em Herbais] transparente e verde, nao esta- ria mais presa a um territério”*). © nascimento-aparigo & um acontecer que se insere num espago- tempo (estas duas dimensdes sao sempre essenciais, embora nao do mes- mo modo que na ficgao realista). Aqui, o tempo é dado primeiro como distante ¢ indefinido (“ha muito tempo”: AC, p. 39) — e, com isso, anulado em termos de qualquer cronologia precisa —, mas ao mesmo tempo, no instante desse nascimento-aparigao, ¢ breve ¢ intenso (“com grande intensidade... durante esse tempo breve”: AC, p. 39). Sé sendo 12 LLANSOL. Lisboaleipzig 1— O Encontro Inesperado do Diverso, p. 29. Livro de asas - para Maria Gabriela Llansol breve ¢ intenso, o tempo foge ao tempo como res extensa, que € 0 da narrativa. O mesmo se passa com 0 nunc, 0 Agora, da experiéncia mis- tica, com o “nome especial do instante” em Kierkegaard (Migalhas filo- séificas), que é 0 de “plenitude do tempo”, ou com o Presente absoluto nas Confissoes de Santo Agostinho: O que agora claramente transparece é que nem hd tempos futuros nem pretéritos. E impréprio afirmar: os tempos sto «és, pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse proprio dizer que os tempos sao trés: presente das coisas passadas, presente das coisas presentes, presente das coisas futuras [...] — lembranga presente das coisas passadas, visdo presente das coisas presentes ¢ esperanca presente das coisas futuras (Livro XI, 20). No texto de Maria Gabriela Llansol, onde nao se nasce nem se morre, aprendemos igualmente a viver 0 presente no presente, “no centro do Ha”." Ai, viver € uma arte (“Para que nos serve 0 amor sem uma arte de viver?”'*), ‘Também o espago se transmuta logo em Lugar. O lugar é um espaco de possibilidades, nao uma dimensio fisica. E 0 espago do acontecer, que € 0 modo dinamico do ser. Llansol dird, em Finita: “nada foi, tudo estd sendo”, e aqui, em Amar um Cio, fala-se de “um ser sendo” (AC, p. 42). E num lugar “inverosimil” (0 “lugar que toda a planta acolhe” (AC, p. 39): € 0 espago branco a seguir a “lugar” abre, de facto, no texto, um espaco imprevisivel de possibilidades), é ai que se tornard possivel a hibridagao do novo ser e, logo depois, a sua abertura ao outro (o Eu que fala): “Jade foi deixado suspenso sobre um medronheiro, sem mie visi- vel...” (AC, p. 39); ¢ “ergo para a minha dona os meus olhos frageis, opondo-me a uma adversdria que, de certeza, me ama...” (AC, p. 40). Este novo ser que nasce ndo tem forma: é um cruzamento de imagens e impress6es: “incidéncia animal alada”, nem pdssaro nem quadripede, “um choro”, “um sentimento ténue”, um “ritmo novo", uma energia 13 LLANSOL. Ardente Texto Joshua, p. 120. '¢ LLANSOL. Ardente Texto Joshua, p. 105. ASA DO TEXTO: LUGAR QUE VIAJA que produz transformagées (atmosféricas, na drvore-bergo, no proprio tempo, agora “activo”, e em si proprio, uma vez que “jé pensava’). O ser que nasce Mal acabara de nascer “sobre as bagas purpuireas dos medronhos”, © novo ser jd pensava. Mas o seu “pensamento de leite” (AC, p. 40), um pensamento nascente ¢ imaginante, nao tem objecto. E apenas a mani- festagao do seu conhecimento do lugar e da sua integracao nele: por isso ele “subia nos sitios pedregosos”, ¢ logo a seguir ira percorrer, sob a luz do Sol-Pai, fonte da sua energia, os lugares ¢ as plantas da serra, e olhar o mar com os olhos interiores da sua mem6ria do futuro. Jade nasce e 0 mundo, nasce e fala, Fala, nao com a linguagem da boca — essa adquire-se, “mais tarde, muito mais tarde” (AC, p. 40), num processo de socializagao, inevitavel ¢ inexordvel, até na relagao bi-unfvoca entre dois fmpares —, mas com potencialidades expressivas que lhe permitem ler ou medir o mundo com o olhar, com um “fulgor dos olhos” que ainda nao € rotina, e por isso vé muito longe. Ou entao: fala naquela “linguagem s6 presente, ¢ que nunca se entristece”,' que talvez seja a lingua sem impostura. Jade observa ¢ aprende, nao vigia. Agora, interessam-lhe os objectos, nao as relagdes. O seu olhar é 0 do fenomendlogo, nao o do socidlogo, que ele nunca poderd ser. Michel Serres escreve, lucidamente, em Os cinco sentidos. “A cultura refina-se quando os olhares se deslocam das relages entre os homens para os objectos inocentes”.'° A linguagem, a das palavras-de-realidade que aprisionam o real, nao serve a quem “traz nos olhos um instrumento azul para medir o didmetro do sol, ¢ dos astros” (AC, p. 40). “A pobreza” — éainda Michel Serres — “nao é medida apenas pelo pao, mas pela palavra; nao sé pela falta de pao, mas pelo excesso, pela exclusividade, 15 Cf LLANSOL. Um Beijo Dado Mais Tarde, p. 44 18 SERRES. Os cinco sentidos, p. 34. Livro de asas - para Maria Gabriela Llansol pela prisdo das palavras. A Ifngua cresce quando falta o pao [i. é a verborreia aumenta quando falta a substancia, 0 jogo ¢ rei, a convengao ¢ a impostura tomam conta de nds, quando nao se arrisca a descida ao pogo, como acontecerd na cena fulgor seguinte. J.B.]. Quando 0 pao [aqui, 0 “pensamento de leite”. J.B.) chega, a boca, por muito tempo faminta, tem trabalho demais para ainda se ocupar de falar. Aprende- mos a amar os objectos”. O parto mental de um real-nao-existente, ou: “pensar livremente sobre” é criar seres futuros 30 — Por que ter uma vergonha nodosa de pensar livremente sobre ti? — respondi-lhe. Olhar, num dia simples, as questées filosdficas. Dois planos se apresen- tam imediatamente: o do jogo e 0 do pogo. Estou sé, a brincar no Jardim da Estrela, com o rosto da criada olhando ao fundo, principalmente para mim. Eu posso, na realidade, perder-me a brincar com os brinquedos do siléncio, ¢ com 0 meu co Jade, que ainda nem sequer encarnou. Palavra contra palavra, a falta de um ser humano, surge a sua sombra fora do campo de jogos onde ha areia, uma piscina, baldes e pas. Eu digo sempre & minha criada “Eu af nao entro.” Ela vé tal determinagao em mim, que obedece. As outras criangas brincam entre si, evoluem & volta umas das outras, ou seguindo os contornos da piscina. Eu apago-me no cao que desejo, ¢ vejo-o mais longe, ao fundo do Coreto, dirigindo-se para mim mesma, com 0 seu andar de levantar nuvens, ¢ conhecer-me. (AC, p. 40-41) 17 SERRES. Os cinco sentidos, p. 35. ASA DO TEXTO: LUGAR QUE VIAJA A cena seguinte é a de um lugar de brincar: 0 Jardim da Estrela e, nele, o “campo de jogos” normal das criangas, o parque infantil e a caixa de areia. Mas o “parto mental”, segundo nascimento ou “encarnagao” de Jade, nao pode dar-se af, como é dbvio (as criangas nao reconhecem a imagem de um cao entre elas), Jade s6 pode nascer (por enquanto apenas como “imagem”, “sombra”, léncio”) num lugar-outro, preci- samente 0 dos “brinquedos do siléncio”, “lugar obscuro e luminoso”, “lugar imaginante” (cf, entrevista) de onde 0 cio emerge jf como uma “alma crescendo” (AC, p. 45). E, sendo, como é, ainda sé fruto do pensamento, ele, Jade, que jd tem nome, mas ainda nao corpo, ird ganhar aqui contornos de objecto de desejo: 0 “cdo do futuro”, com 0 qual a narradora dialoga, com a intengao de entrar no seu reino, com palavras futurantes, e numa situagao de fruicao ¢ risco, entre os prazeres do jogo e os perigos do pogo. Na sua inocéncia pensante, 0 cao propicia j4.a aproximagao dessa zona de risco que é a “metanoite” (em entrevista a Joao Mendes, em 1995, diz-se: “O ser humano ¢ 0 tinico que pode arriscar a sua identidade. Ao lugar desse risco eu chamo a metanoite”). O Eu da crianga-desejo abre-se a essa situagao (sabendo que arriscard uma identidade social), ¢ por isso se “apaga”, para que possa ouvir-se 0 som grave das “fontes da alegria”, que Jade conhece, mas ela nao. O jogo que aqui se esboga é um “jogo de linguagem” — diria Wittgenstein —, um jogo, jd arriscado, entre linguagens, diremos nés: a crianga quer des- cobrir vias de acesso a esse reino onde se é cio, tal como antes, na figura de outra crianga (em Um Beijo Dado Mais Tarde), foi descobrindo os caminhos do sexo de ler ¢ escrever (a que Jade também aspirard neste texto), na convivéncia com a imagem de Ana ensinando Myriam — e também por ai anda ja “Jade, 0 meu cao”.'* O cio, esse nao precisa de ensaiar 0 movimento inverso, de descoberta da linguagem da dona: os ‘us “olhos frégeis” sabem, conhecem o “Aberto” ¢ ignoram a “Forma”, tal como a criatura, o bicho da Oitava Elegia de Rilke: Com todos os olhos vé a criatura o Aberto [...] 18 LLANSOL. Um Beijo Dado Mais Tarde, p. 13. Livro de asas - para Maria Gabriela Llansol O que fora de nés ¢, s6 © sabemos pela face do animal: desde pequena levamos a ccrianga a olhar para trds ¢ obrigamo-la aver a Forma, nao o Aberto, tao fundamente inscrito na face do animal. Livre da morte. S6 nés @ vemos; 0 animal livre tem sempre o seu fim atrds de si... O conhecimento da menina que fez nascer 0 cAo, esse passa pelo reconhecimento, pela aprendizagem — e aqui, o mestre é 0 cio — de um triplo modo de usar a palavra, que a tribo nao conhece: € preciso pesd-la (para lhe determinar a densidade semantica), desenhd-la (para lhe perceber 0 corpo, o perfil do significante) e pensd-la (para que a realidade que ainda nao é passe a ser, no plano de um pensamento que nao ¢ conceptual ¢ formal, mas figural ¢ livre). A palavra serd também, neste reino do cao, um “objecto inocente” — ¢ de alto risco (Hélderlin dissera jé: “o mais perigoso dos bens”). Palavra ¢ imagem avangam, de facto, “por entre os canteiros”, sao langadas “para o meio das outras criangas” (AG, p. 41). Principio a recorrer as palavras que anunciam a realidade: — Por que brincas? Por que nao brincas? Por que brincas sozinha? — Por necessidade de conhecer. De conhecer-te — respondo. — Enwaste no reino onde eu sou cao. Pesa a palavra. — Eu peso. — Desenha a palavra. — Eu desenho. — Pensa a palavra. — Eu penso. — Entio entraste no reino onde eu sou cio — concluiu ele. (AC, p- 41) A partir de agora, a narradora-crianga entrou no “reino”: melhor, pereebeu que o caminho para esse reino nao ¢ o das palavras da tribo 32 Livro de asas - para Ma Referéncias 34 BARTHES, Roland. Le plaisir du texte. Paris: Seuil, 1973. BLOCH, Ernst. Geist der Utopie. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1973. KIRK, Geoffrey Stephen; RAVEN, John Earle. Os Filésofos pré-socrdticos. 3. ed. Lisboa: Fundagao Calouste Gulbenkian, 1990. LLANSOL. Maria Gabriela. Amar um Céo [1990). In: LLANSOL. Maria Gabriela Cantiieno. Lisboa: Relégio d’Agua, 2000. LLANSOL, Maria Gabriela. Cantileno. Lisboa: Relégio d’Agua, 2000. LLANSOL. Maria Gabriela. Ardente Texto Joshua. Lisboa: Reldgio d’Agua, 1998. LLANSOL, Maria Gabriela. Lisboaleipzig 1—O Encontro inesperado do Diverso. Lis- boa: Rolim, 1994, LLANSOL, Maria Gabriela, Lisboaleipzig 2—O Ensaio de Musica. Lisboa: Rolim, 1994. LLANSOL, Maria Gabriela. Onde Vais, Drama-Poesia? Lisboa: Relégio d’Agua, 2000. LLANSOL, Maria Gabriela. Um Beijo Dado Mais Tarde. Lisboa: Rolim, 1990. LLANSOL, Maria Gabriela. O Espaco Edénico. Na Casa de Julho e Agosto. Lisboa Relégio d’Agua, 2003. SERRES, Michel. Os cinco sentidos. Filosofia dos Corpos Misturados |. Rio de Janei- ro: Bertrand Brasil, 2001. ASA D0 TEXTO: LUGAR QUE VIAJA A fraternidade do impar: Amar um Cao II Maria Etelvina Santos Compreender um texto é como compreender um cio, uma previsio do tempo, ou seja, € aceitar que nao se fala, que se ndo compreende, excepto pela companhia (LLANSOL. Ardente Texto Joshua, p. 74) “Numa das extremidades, estou eu; na outra estd 0 ruivo Jade”. No “Aberto”, que os seus olhos véem, estou eu a olhd-lo, pensando que sé a circunstancia estabeleceré 0 tipo de ligacao a acontecer. Para Jade, este pode ser mais um daqueles instantes em que ele “me tem confundido com 0 arvoredo”. O lugar do encontro com Jade cruza-se com o lugar d’“as fontes da alegria”. No lugar da luz, mas fora da “luz comum” — simétrica e cegante —, nesse lugar aberto & “troca verdadeira”, um ser-no-mundo pode forjar-se como “wm ser sendo”. O encontro inesperado (e da ordem do diverso, porque com Jade e também com a alegria) chama a atengao do pensamento, que ird crescendo e derramando-se neste texto, para uma nova ordem nos modos de ler. Jade “pediu-me que eu lhe falasse ininterruptamente para ele aprender a ler”, porque sabe que “o sopro de vida é leitura’, 0 que ird aproximar (pelo dom da troca) a sua voz da minha — em mim, memoria de um ruah, ¢ nele o seu perpetuar. S6 ensinando Jade a ler, a escrita pode seguir 0 caminho do Texto, Ensinar Jade a ler é escolher 0 caminho do fulgor ¢ nao o da verosimilhanga. E aceitar que “ler é ser chamado a um combate, a um drama”, ¢ desejar 1 LLANSOL. Onde Vais, Drama-Poesia?, p. 18. 35 Livro de asas - para Mai Uansol esse combate. E, ainda, por-se fora da luz comum; também sentar-se fora da sua natureza, ¢ com-preender a frase “a vida nao ¢ essencialmente nem principalmente humana’.? E ser mae do nascimento de Jade, respon- sdvel por ele porque lhe responde: “aprendemos a trocar de presenga,/ em mim é humana,| nele sou cao, {...)/ uma parte da minha humanidade movimentar-se-d, veloz, em/ Jade,/ uma parte do seu ser-cao ficard retida na minha sensibilidade”.* Ensinar Jade a ler é aprender a escrever. Assim aprendeu Teresa, no Ardente Texto Joshua’ : mas no sei como escrever — Escreve simplesmente — sugere 0 caderno Pego-lhe na mao — Assim. Agarro-lhe firmemente nos dedos — Coloca-te do lado do texto Teresa co- loca-se do lado do texto — Serve-te do lapis como de uma espada Tere- sa dispe-se a combater — Afasta todas as histérias Teresa vé: to- das as hist6rias, as criveis, as verosimeis, as efabuladas, as impossiveis sio apenas os medos atheios no territério do seu préprio caderno — Nao mais dirds, Mae. Teresa, o caderno, Jade, ou a crianga que vé, no Jardim da Estrela, a sombra do seu “cio do fituro” sao seres diversos e impares, mas conju- gaveis; no “leal combate corpo a corpo” tragam o principio daquilo a que chamo a fraternidade do impar, porque “fraternizar” também signi- fica “fazer alianca” ¢ é na figura do anel que estabelecem a sua ligagao. Diz-se em Amar um Cao: “fago uma alianga com o Sol, e a sua grandeza 2 LLANSOL. Onde Vais, Drama-Poesia?, p. 190. 3 LLANSOL. Onde Vais, Drama-Poesia?, p. 299. 4 LLANSOL. Ardente Texto Joshua, p. 80 36 ASA DO TEXTO: LUGAR QUE VIAJA luminosa, sé separada deste cao por uma divisdo natural”. E, em Ardente Texto Joshua, um caderno pode ser um irmao: “a doenga e a inteligéncia e a escolha de amor que Ela fez, ¢ es-/creveu em ti, tornaram- nos, a mim ea ti, meu irmao caderno,/ partes de uma mesma amicicia,/ partes, nessa parte, do mesmo texto ardente// pena seria que nao nos mantivéssemos unidos”. Unido, mas nao fusao. Porque cada um € ser no exterior do outro; porque se continua a existir no plural. A pergunta que desejam nao é “Quem sou?”, mas “Quem me chama?”. A identidade que os acompanha forja-se sob o olhar do outro, mas na ligagao livre, o que permite falar de uma linhagem que os une enquanto seres impares ¢ livres, fora da “lei do habito de servir”. Sabem que “esperar por alguém é ser esperado”,” res- ponder ao outro ¢ também ser responsdvel por ele, mas tudo acontecendo no reino de uma liberdade livre. Nao ha intengao de trazer a mim, ou de transportar para 0 outro, as “qualidades” de cada um. Sao seres que se respeitam no préprio do préprio. O drama — a luta voluntéria — a que sao chamados é 0 da mtitua nao-anulacao. Por isso, nao pode haver violéncia: estes seres impares pertencem a espécie dos que sao “vindouros por mansa insisténcia”, dos que dizem “H4 muito que estamos nascen- do”.® “Jade, o manso, cortou os ares — [...] estava a ser chamado de muito alto”; “o meu cao Jade, hé muito tempo” (AC, p. 43; 39). Este é um texto de sedugao. De pedidos como “luta comigo”, mas de onde se sai “vencido, mas com rebeldia” (AC, p. 40). De desejos de “aprender a ler sobre um texto” (AC, p. 42), mas um texto que se ponha aarder. Deslocando o nosso olhar, habituado a “luz comum” ¢ a “lei do habito de servir”, para 0 mundo dos impares, dos hibridos, dos fulgori- zAveis, onde escrita, plantas, animais e letras (trelas de partir) coabitam, este texto dé a ver 0 lugar e 0 tempo da fraternidade do impar — um lugar entre eum tempo em devir: “Através do outro, e em face do outro, sob 8 LLANSOL. Amar um Cao [1990]. In: LLANSOL. Cantileno. p. 42. ® LLANSOL. Ardente Texto Joshua, p. 107 7 LLANSOL. Ardente Texto Joshua, p. 106. 8 LLANSOL. Onde Vais, Drama-Poesia?, p. 211 © seu olhar, wn ser sendo forja a sua identidade” (AC, p. 42). Texto de seducao, mas porque se ausenta da posse como Poder, nao ¢ tanto eres que a ele preside — a sua incidéncia desvela-se sob a luz do luar libidinal. “Em busca da troca verdadeira” Um othar trocado com alguém que viera, como eu. da aspera matéria do enigma, @ 0 texto comegou, legente, © mundo esta prometide ao Drama-Poesia. Maria Gabriela Llansol O lugar entre O nascimento de Jade traz para o texto uma cumplicidade entre este € o legente; a cumplicidade de um compromisso nao possessivo, reflexo do compromisso entre 0 cao ¢ a sua dona, que é da ordem da “compaciéncia”: vai-se caminhando, vai-se dizendo, vao-se forjando identidades. A tela (como a letra na sua relagao com a palavra) surge para ser elemento de ligacdo, mas pode, posteriormente, advir fragmento inteiro (Jade partird a trela — des-ligando esta do seu significado — como partird a palavra “obediente” em trés pedagos iguais, originando uma nova palavra, com elementos da outra, mas de significado diferen- te). A tela, como a letra, é um espaco-fronteira que tanto pode unir como separar. “A letra é a aresta que simultaneamente junta e separa os lados, tal como o que diferencia os deuses ¢ os homens permite ao narrador de Holder, de Hilderlin viver”? 8 MOURAO. Figuras da Metamorfose na Obra de Maria Gabriela Llansol, p. 81 38 ASA D0 TEXTO: LUGAR QUE VIAJA Entre deuses ¢ homens, como entre humanos e animais, 0 lugar de ligagao & o que permite a relacao. A trela seré um lugar entre, o elemento transitério (no sentido espacial): enquanto lugar entre, é um elemento de ligagao entre 0 cao e a sua dona, permitindo transitar entre os dife- rentes reinos (o humano e o animal); nao elemento transitério no sen- tido de uma necessidade temporaria — apenas enquanto fosse necessario aprender o caminho de um reino a outro; esta ligagao faz-se na durabi- lidade e no no tempo (no sentido em que Bergson definia a durée), é um continuum. A tela, neste texto, € um espago transformado em lugar de Acon- tecer, nao é 0 espago onde acontece um co ter uma dona (este seria um espaco de posse como Poder). E um espago de crescimento: “A ideia de crescimento (devir) estd ligada a ideia de nao perder 0 anel — entenda-se © contrato fiducidrio, a alianga, a linhagem.”"” A identidade vai-se for- jando “através do outro”, “em face do outro” e “sob o seu olhar”. Como a leitura. Em devir: A trela pode ser o lugar do legente — o lugar entre o escrevente € 0 texto. Todos eles seres sendo. Dois seres que se enfrentam, olham-se no rosto. Nesse olhar se joga a escolha entre o Poder e a possibilidade da muitua nao-anulacao. Se a minha escolha estiver do lado do Poder, a minha atengao ao outro nao passard de um meio para o vencer, desejando o fim desse combate; se, por outro lado, existir em mim a possibilidade de o ver como um ser “através de” e “em face de” quem eu vou forjando a minha identidade, esse rosto fala-me e eu respondo-lhe, num discurso que marca a nossa responsabilidade, ou seja, constrdi uma relagao auténtica — entramos no espago da mutua nao-anulacao. Neste espago, o drama é um combate desejavel. Quando neste texto se parece querer resolver 0 combate de dois seres que estdo frente a frente, e criar a figura de um vencedor — “E-me dito, finalmente: — Ou tu me vences a mim; ou cu te vengo a ti.” (AC, p. 42) —, é0 préprio texto que anula essa hipétese, abrindo o combate a uma outra luz, pela introdugao de um novo elemento — 0 Sol ¢ a sua grandeza luminosa: “Através do Sol que ha nessa palavra, 10 MOURAO. Figuras da Metamorfose na Obra de Maria Gabriela Llansol, p. 84. 39 Livro de asas - para Maria Gabriela Liensol fago uma alianga com o Sol” (AC, p. 42). Este ¢ mais um ser impar, s6 separado do co “por uma divisao natural”, e com o qual vai ser possivel fazer uma alianca, 0 que permite sair do reino do Poder e entrar no reino da liberdade livre: ter uma “dona”, que é minha “adversdria”, mas que “me ama’, a quem se pode pedir “luta comigo” e donde se pode sair “vencido, mas com rebeldia” (AC, p. 40). O lugar entre é o lugar onde se estabelece o “pacto afectivo”, que permite a fraternidade do impar, é também o lugar onde, pela presenga do outro, o sujeito se altera, Da identidade a ipseidade Neste processo de mutagdo, que se forja sempre em face de um outro, poderemos tentar perceber como interagem estas trés figuras — c4o-dona-texto —, para além de uma leitura de caracter hermenéutico, procurando avangar por um caminho que nos permita ler a frase “1 ser sendo forja a sua identidade” na sua relagao com o “leal combate corpo a corpo”, que escolhem e desejam porque sabem que “o mundo est4 prometido ao Drama-Poesia”. Esses serves sendo forjam uma identi- dade swi generis, a que prefiro chamar ipseidade, para distinguir 0 mesmo (idem) do si-mesmo (ipse), considerando 0 si-mesmo como um “soi-méme comme un autre”.'' Parto de trés premissas que Levinas refere ao carac- terizar o Eu: 1.“Ser eu é [...] possuir a identidade como contetido. O eu nao é um ser que se mantém sempre 0 mesmo, mas 0 ser cujo existir consiste em identificar-se, em reencontrar a sua identidade através de tudo o que lhe acontece.”; 2.“O Eu éidéntico mesmo nas suas alteragbes: representa-as ¢ pensa- as para si.”; 1 RICOEUR, So/-méme comme un autre. 40 ASA DO TEXTO: LUGAR QUE VIAJA 3.“O Eu é idéntico mesmo nas suas alterag6es, num outro sentido ainda. Com efeito, o eu que pensa da por sia pensar ou espanta-se com as suas profundidades e, em si, é um outro. O Eu como ser sendo (também para Heidegger 0 ser s6 € em devir; € 0 que est sendo) é wm ser em relagao, que passa de um idem a um ipse quando toma consciéncia de si como diferente — nao como outro (alter), nao como 0 mesmo (idem), mas como 0 si-mesmo (ipse). Talvez, ainda com Ricoeur, pudéssemos falar de uma identidade-idem e de uma identidade-jpse. De qualquer modo, 0 que me parece importante ¢ a necessidade de pér em evidéncia a singular identidade das figuras de Maria Gabriela Llansol. Em Arar wm Cio, a ligacdo que estabelecem permite a passagem de um reino a outro — “entraste no reino onde eu sou cao” (AC, p. 41), “o ado do futuro é 0 meu verdadeiro interlocutor” (AC, p. 42) — através de um combate que desejam sem fim e que se dé a ver na escrita/leitura do texto: “Jade, partindo a trela, pediu-me que cu Ihe falasse ininterruptamente para ele aprender a ler;” (AC, p. 42). No Texto, estas figuras, e a propria linguagem (que como “escrita” também ¢ uma figura, um “vivo”), mudam de corpo ¢ de lugar, por isso so os mesmos sendo outros, num processo que pode chegar a hibri- dacao. E 0 desejo e a necessidade de “vir a parecer-me com outro, seme- lhantea mim. A drvore tem 0 mesmo desejo nostalgico, e é essa mudanga, que hd-de fazer-se pela sensibilidade, a que se chama leitura”.'* Mudando de lugar, a linguagem obriga a uma nova ordem nos modos de ler — nao pelo sentido, mas pelo “lugar de sentido”. Ler sobre 6 lugar da troca verdadeira, 0 lugar do dom poético (que sé habita a lingua que reconhece o “vivo”), serd talvez 0 modo de ler sobre os textos de Maria Gabriela Llansol. E a troca verdadeira “ha que a procurar no fulgor,/ e no pensamento que esse permite vislumbrar”.'* Esse “lugar de sentido” € o lugar da troca verdadeira. E. nesse lugar que o legente se deve situar, para que o seu pensamento acompanhe 0 modo como um 12 LEVINAS. Totalidade e infinito, p. 24 13 LLANSOL. Um Beijo Dado Mais Tarde. p. 112. 14 LLANSOL. Onde Vais, Drama-Poesia?. p. 136. Livro de ases - para Maria Gabriela Liansol didlogo com um cao pode ecoar um outro com uma drvore, um anun- ciando veladamente 0 outro, como acontece entre Amar um Cio e Um Beijo Dado Mais Tarde: Foi entao que a drvore, partindo do arvoredo, veio ’ minha casa falar comigo, ou seja, pediu-me que eu a acolhesse ininterrup- tamente para aprender a ler; nao lhe disse que era imposstvel esta- belecer uma relacdo entre nés duas porque eu nao sou arvore. Ela diz que nos tem confundido com o arvoredo, a mim e as som- bras ligeiras que eu emito. Ela viu, no pinhal, uma dessas sombras a soprar vida sobre um animal desta casa que est4 doente. Ela afirma que um sopro de vida ¢ leitura. Eu sei que, pouco a pouco, passaremos a viver noutro fundo de livro e de linguagem e teremos, entio, uma inquietagao mais simples."® “Ler € ser chamado a um combate, a um drama” Como é meu hébito, pus a mo sobre a frase que acabara de escrever Maria Gabriela Llansol Ler sobre Jade “quer aprender a ler sobre um texto que cu porei a arder por ele”, “mas eu digo-lhe que sé a tarde principiarei a escrever, com esse designio, sobre a viagem que acaba de nos conduzir aqui” (AC, p. 42- 43). Dois seres, dois lugares (donde se veio e onde se esta), dois niveis 78 LLANSOL. Um Beijo Dado Mais Tarde, p. 111-112. Cf. com o excerto de Amar um Cio, p. 42 ASA DO TEXTO: LUGAR QUE VIAJA no plano do texto — o da leitura ¢ o da escrita. Jade ird aprender a ler sobre wm texto-fururo (um texto que nascerd para a escrita como Jade nascerd para a leitura, e para que este possa nascer para a leitura). Jade ird ler sobre um texto onde ele vai entrar duplamente: lendo, e sendo uma das figuras — texto, portanto, do qual ele pode ser legente. Jade iré ler sobre um texto que serd posto “a arder por ele” — texto, portanto, donde se liberta a energia tensiva que permite a aprendizagem da leitura (na ordem do in-tensivo e nao do ex-tensivo). Nao serd esta a leitura feita & luz do “luar libidinal”? Ser figura do texto, lé-lo com energia tensiva, copid-lo (fazendo uso da sua linguagem mudando-a de texto para texto, vendo como se processa o sentido adentro dessa mutagio, em busca de um “lugar de sentido”), sio os modos de nos posicionar- mos perante um texto que nos pede uma leitura com 0 corpo ou, para usar uma expresso de Maria Gabriela Llansol, que se leia com “o sexo de ler”. Deste ponto de vista, ler um texto nao é 9 mesmo que ler sobre um texto. Como escrever sobre no é 0 mesmo que escrever com. Quando leio um texto, escrevo sobre ele; mas quando /eio sobre um texto, escrevo com ele. Este aparente jogo de palavras tenta mostrar um possfvel cami- nho para a leitura da textualidade \lansoliana, caminho j sugerido no inicio d’O Livro das Comunidades pela expressio “um corp a’ screver”. Ler sobre & deixar incidir no texto a luz do luar libidinal. E estar aberto a troca ¢ 4 mutagao; deixar-se entrar no combate “corpo a corpo” com 0 texto, ¢ nio desejar o seu fim. E a uta como “Causa Amante”, num processo em que tudo se joga, mas donde nao se sai vencido nem vencedor. E um dar-se em corpo ao texto. Nao hd qualquer intenc4o de uso metaférico na expressio “ler sobre um texto”. Também nao me parece ser essa a intengao de Maria Gabriela Llansol ao dizer “pus a mio sobre a frase” (ou, noutro lugar, “meter a mo no pensamento”). Se esté em causa um processo de envol- vimento fisico com o texto, a sua escrita e a sua leitura, esse processo pode aproximar-se daquilo que Barthes sintetizou numa frase (depois de uma vivéncia que o fez entender uma célebre pagina de Proust) — “Nao restam duividas de que ¢ isto a leitura: reescrever 0 texto da obra dentro do texto de nossas vidas.”"° 16 BARTHES apud SCHOLES. Protocolos de /eitura, p. 17 3 Livro de asas - para Maria Gal Lansol Mas, no texto llansoliano, esse processo prolonga-se para além da relagao vida/texto porque faz apelo a uma ligacao mais intima, clamando pelo corpo do texto, entrando nele. O exemplo de Jade a aprender a ler, atrds evocado, mostra o que significa entrar no texto — quando escrevente e legente tém o mesmo desejo ¢ interagem nesse combate, nao para que este acabe, mas para que eles e 0 texto perdurem na leitura e na escrita de um texto-futuro. Talvez seja este um caminho que permita dar res- posta as questées que Antoine Compagnon considera cruciais no pro- cesso de leitura: “Que faz do texto o leitor quando lé? E 0 que é que o texto lhe faz? [...] A imagem de um leitor em /berdade vigiada, contro- lado pelo texto, seriaa melhor?”"” A esta imagem acrescento a do “leitor a ler sobre”, porque o leitor deve possuir essa forma de liberdade atenta ¢ desperta, mas estando atento com o texto — nao se trata de estar atento ao texto, mas de estar atento com ele. Estar com 0 texto nao significa ser controlado por ele, mas antes set livre por poder estar com ele, acompanhando-o e projectando-o num texto futuro. Os textos sobre os quais lemos sao, quase sempre, textos-futuros, no sentido em que “quando o legente entende, sem se dar conta esta a entender algo de muito longe, no seu futuro”,'* ¢ também porque o “texto por vir” é 0 texto-de-desejo (como na relagao que a mulher do “Lugar 1___” d’O Livro das Comunidades estabelece com os homens que recebe em sua casa: “Os homens ficavam contentes porque ela dizia todas as vezes nao és tu que me importas, ¢ 0 seguinte. Certificavam-se, portanto, de que, no momento antes, haviam sido o préximo.”"”). Esta relagao que o legente estabelece com o “texto-futuro” ¢ uma relagao que remonta aos “esponsais de Myriam com a leitura’.”” No conhecido quadro de La Tour (como através das suas muiltiplas variantes), Maria pode estar a ler — no Livro — a sua vida furura como mae de Jesus, “jd lendo nas paginas um texto desconhecido”: 17 “Que fait du texte le lecteur quand il lit? Et que lui fait le texte? |...| image d'un lecteur en liberté surveiliée, contrbié par le texte, estelle la meilleure?” COMPAGNON, Le démon de la théorie, p. 156. (Traducao de Cleonice P 8. Mourdo e Consuelo F Santiago: COMPAGNON. O deménio da teoria, p. 146.) 1 LLANSOL. Onde Vais, Drama-Poesia?. p. 36. 19 LLANSOL. O Livro das Comunidades, p. 11 20 LLANSOL. Um Beijo Dado Mais Tarde, p. 19. 4 ASA DO TEXTO: LUGAR QUE VIAJA Vé-se na escuridao, ou na sua luz, um manuscrito em que Ana esta ensinando a ler a Myriam, Ana sentada numa cadeira, com 0 livro aberto no colo, Myriam de pé, a olhar um dos primeiros textos, recebendo os seus beijos na boca. Se a leitura, segundo Ana, for realizada na visao, ela tirard da estante ardente a chave de leitura, ¢ oferecé-la-4 a Myriam.?! A leitura realizada “na visio” pode ser a leitura sobre, no sentido ja atrés referido, mas também a leitura que, neste caso, se faz fisicamente com o livro sobre os joelhos de Ana, a que ensina. Nessa leitura sobre poder sair de uma “estante ardente a chave de leitura” que todos desejamos e em busca da qual continuamos 0 nosso caminho de leitores-degentes. O“acto permanente de ler” Comega-se por “obedecer ao livro aberto nos joelhos”.*? Que “obe- diéncia” é essa? Jade, que faz toda uma viagem até ao seu lugar de nasci- mento, traz na boca a palavra “obediente”, que nao lhe serve, e que terd de partir em pedagos, reconstituindo-lhe depois os fragmentos de modo a que 0 significado se altere. Através dessa mutacao lingufstica, Jade tera a possibilidade de nao ficar sujeito a0 poder da sua dona “por temor” (AC, p. 43). Ser “dono”, aqui, significa “estar com”; nao estabelece uma relacao de Poder. A “minha dona” (como “o meu cao”) é a que me faz companhia, que luta comigo para que eu me (re)conhega, que dialoga, que aprende ¢ ensina, que (me) escreve e (me) lé. De OB — EDI — ENTE (ser — que ouve — e se submete), Jade cria OBEDESCENTE (ser que sai vencido, mas com rebeldia). O contrato que estabelecem, como afirmei no inicio, é o da muitua ndo-anulacio. Para isso, 6 preci- sam de ser rebeldes face ao Poder — Jade afirma: “nao posso/ ser bom 21 LLANSOL. Um Beijo Dado Mais Tarde, p. 25; @ p. 57 (para a citagao seguinte) 22 LLANSOL. Um Beijo Dado Mais Tarde, p. 25. 45 Livro de asas - para Maria Gabriela Liansol ser/ se nao estiver na perpendicular do ceptro.” (AC, p. 43). Essa linha horizontal, que quebra a verticalidade do ceptro, é a marca da “geografia de rebeldes”. Jade j4 ver de muito longe. Se “compreender um texto é como compreender um cao” e se nao se compreende “excepto pela com- panhia”, Jade lew deste modo a estdtua policroma em madeira “em que Sant’Ana ensina a ler a uma jovem”, em Um Beijo Dado Mais Tarde. Ai aprendeu Jade a “terna reciprocidade feminina de companhia que tinha origem na origem de ler”; af viu “Ana e Myriam a lerem uma & outra o amor que reciprocamente se dedicam”; ai descobriu Infausta ¢ Aossé “centrados num grande afecto tal como Ana e Myriam, sem 0 qual nao poderiam sequer segurar 0 livro nos joelhos”; af, olhan- do “a pequena estdtua de leitura’, também Jade poderia dizer: “vim glorificar o lago que une Ana e Myriam na sua estétua”.”> Jade “foi deixado suspenso sobre um medronheiro” e nasceu “sobre as bagas purptireas/ dos medronhos, / ¢ o ruido dos ramos partidos” (AC, p» 39-40). O nascimento de Jade numa drvore ¢ 0 seu desejo de aprender a ler, ecoam o nascimento-criagio da estétua policroma: “O Ana/ eu que- ria ir ao interior da madeira para saber,/ finalmente,/ qual é a tua relagao com a pequena estétua onde/ ensinas a ler.”; “encontrei-me numa grande clareira, de maos unidas, sob a drvore frondosa em que tinham sido talha- dos os vossos [de Ana e Myriam] corpos de carvalho.”** Hé uma relagao directa entre a aprendizagem da leitura, 0 nascimento e a criagao: Témia, a rapariga que temia a impostura da lingua, ¢ a figura da “aprendizagem da leitura”; “O conjunto de Sant’Ana e da aprendizagem de leitura, é a imagem do seu nascimento [de Témia], a meu lado.””* Jade nasce, mas nao morre. Ainda que, um dia, parta “seguindo o itinerdrio da geografia do seu corpo” (AC, p. 48), continuard a viver na cena fulgor de um livro — pela trela e pela letra, na leitura e na escrita de uma lingua sem impostura, porque do reino da mtitua nao-anulacao. Como “Felizmente, havia a trela” (AC, p. 49) — o lugar enire, que 23 LLANSOL. Um Beijo Dado Mais Tarde, p. 24-25-89-102. 24 LLANSOL. Um Beijo Dado Mais Tarde, p. 81-82. 25 LLANSOL. Um Beijo Dado Mais Tarde, p. 28 46 ASA DO TEXTO: LUGAR QUE VIAJA continua a estabelecer a ligacao livre —, poder voltar ao lugar donde haviam partido, o Jardim da Estrela. Ininterruptamente, como na apren- dizagem da leitura. Quando me pediu que falasse para ele aprender a ler, pediu que “falasse ininterruptamente” (AC, p. 42). E foi deste modo que o fiz: dei Nome a todas as plantas que lhe mostrei, para que elas nascessem para ele; li alto para as plantas, e segun- do Hippon, para acrescentar alguma “qualidade” ao Nome que, inevi- tavelmente, perdeu na Palavra a sua ligacao directa e evidente com a Coisa. Coisas a ler, sempre de novo, almas crescendo fora da “luz co- mum”: “Um decote de vestido, trés pregas de saia, uma nuvem que protege, e o esforco ininterrupto de ler. Ler, lendo, antes de ler, a ler, depois de ler, lembrando que estava a ler, lembrando a leitura, lem- brando o pequeno tapete, ou quadro, em que pousamos os pés.””° “O principio da luz” Hé entre nds um lago, um suspiro de fidelidade. noi: tes e noites em que eles, no jardim, iluminam de liberdade a casa Maria Gabriela Llansol “Ideia da luz” Jade é, na sua singularidade, um princfpio de luz. Para iluminar de literdade uma casa, é preciso estar “fora da luz comum” (AC, p. 45) — a que, ao reger-se por hierarquias, nao pode conceder a rebeldia. A relagao de Jade com a sua dona assenta num principio “contrério a luz comum” — o da fraternidade do impar. 28 LLANSOL. Um Beijo Dado Mais Tarde. p. 117. 47 Livro de asas - para Maria Gabriela Liansol Jade conhecera diferentes tipos de luz, mas talvez nao na acepg40 em que os humanos os distinguem. Por isso perguntaré: “o que é a luz comum? Eu sou da luz comum, ou uma primeira alteracao dessa luz clara?” (AC, p. 45). Jade conhece, como principio de luz, a do Sol. Quando nasceu, “trazia nos olhos um instrumento azul para medir 0 diametro do Sol, ¢ dos astros”, ¢ afirmou: “o meu Pai nao existe fora da descrigao do Sol” (AC, p. 40). Por isso, o Sol ¢ a sua grandeza luminosa sé esté “separada deste cio por uma divisio natural” (AC, p. 42). E ele diz: “Eu fui o primeiro que afirmei que sou iluminado por ti.” (AC, p. 44). Foi, entao, possivel fazer uma alianga com o Sol. E Jade teve o seu crescimento. Convém lembrar que “A ideia de crescimento (devir) esta ligada a ideia de nao perder 0 anel — entenda-se 0 contrato fiducidrio, aalianga, a linhagem.” (cf. nota 10). E no “leal combate corpo a corpo” que estes seres estabelecem o principio dessa alianga, princ{pio da mui- tua nao-anulac4o — cao-dona-sol, seres impares na mesma linhagem. Ainda que 0 Sol os venga, ao “meio-dia’, com todos os seus invisiveis, estes so “adversdrios” desejéveis para que o combate prossiga, para que as “grandes distancias” se correspondam (“em miniaturas de fogo ao sol”), como no processo da leitura (pelo fulgor) “Uma frase, lida desta- cadamente”, se aproxima de “outra, que talvez jd lhe correspondesse em siléncio” (AC, p. 45). “Nao desejar o fim do combate” (AC, p. 44) é aceitar a mobilidade ¢ a mutagao como condigao de vida, opondo-lhe uma lei, “a lei do hdbito de servir”, a que rege os que sio iluminados pela “luz comum”, os que no buscam outro “lugar 4 mesa” fora daquele que lhes foi, previamente, determinado. Sob essa luz, 0 espago nunca poderé ser um lugar de possibilidades, os rostos s4o coisas inertes, nao fulgori- zAveis, parecem estar sossegados, mas so desassossegantes porque en- cerram a quietude da morte ¢ nao escolhem o “sossego de sair, a alegria de nao interceptar as vozes que me falam, e o sentimento de ter um movimento idéntico ao de Jade” (AC, p. 43). Esses rostos “do quieto” sao os que habitam a impostura da lingua, os que nao aspiram a uma “relagao de nao hipocrisia com a palavra”.”” Porque sao do dominio do inerte, eles 27 LLANSOL. Um Beijo Dado Mais Tarde. p. 19. ASA DO TEXTO: LUGAR QUE VIAJA “nao aparecem de maneira sistematica, com os seus lugares marcados pela meméria” (AC, p. 45). Outro serd 0 caminho dos que se afastam da “luz comum”: “Vou por um caminho, longe dali, e sinto-me retida pelo né do verbo onde 0s rostos, tao préximos uns dos outros, sao o horizonte da palavra fe- chada; meu olhar nao se levanta para 0 contorno do inerte.”* Por isso se foge dessa luz que nao ilumina verdadeiramente, porque paralisa, encandeia, torna inerte — permite que se durma “tranquilamente a comer 0 amor”, numa tranquilidade ausente de apetico. Nesse espago, nem mesmo dizendo bruscamente (aos que se situam dentro de uma visio mecanicista do universo) “a abébada celeste acaba de ruir” (AC, p. 44), nem assim se alteraria a ordem dos lugares & mesa. Qualquer que- bra da simetria levava a que esta fosse imediatamente reposta — o ele- mento “quebrado” seria substituido por um igual, nado por um equivalente — nao havendo, portanto, espago para uma “troca verda- deira’, uma troca poética. De que luz fala Maria Gabriela Llansol quando afirma que “Sem a luz, nao se distingue o que se ve”? Segundo Levinas, “A visio, como disse Platao, supde, além do olho € da coisa, a luz. O olho nao vé a luz, mas 0 objecto na luz. A visao é, portanto, uma relagao com um ‘qual- quer coisa’ que se estabelece no Ambito de uma relac4o com 0 que nao é um ‘qualquer coisa’. Estamos na luz na medida em que encontramos a coisa no nada. A luz faz aparecer a coisa afastando as trevas, esvazia 0 espaco. Faz surgir precisamente 0 espago como um vazio.”” Podere- mos dizer que, na visio humana, esse vazio gerado pela luz é 0 que origina a vibragao que cria a imagem da coisa? O humano vé 0 objecto na luz e sé com esta vé 0 vazio. Ainda neste caso, “E preciso uma luz para ver a luz”.*' E 0 que acontece com a visao do animal? O animal no precisa de luz para ver o vazio. Jade pode ver o Aberto. Logo, também 28 LLANSOL. Um Beijo Dado Mais Tarde, p. 16. 29 LLANSOL. Um Beijo Dado Mais Tarde, p. 103 30 LEVINAS, Totalidade e infinito, p. 169. 31 LEVINAS. Totalidade e infinito, p. 171 49 Livro de asas - para Maria Gabriela Llansol nao precisa de luz para ver a luz. Ele préprio é fonte de luz. Luz e objecto, que no humano aparecem separados, no animal fundem-se num s6, No animal, a luz que lhe ¢ exterior perturba-o. E um excedente da sua visio natural. Jade nao vé do mesmo modo que a sua dona; embora possa ver as mesmas coisas, nio vé o mesmo. © homem reco- nhece-se na “Ideia da luz”; 0 animal é “um princfpio de luz”. Da “Ideia da luz” nos fala Agamben: Ideia da luz Acendo a luz num quarto escuro; é um facto que 0 quarto iluminado ja nao é 0 quarto escuro, que perdi para sempre. E no entanto: nao serd ainda o mesmo quarto? Nao serd o quarto escuro 0 tinico conteudo do quarto iluminado? Aquilo que nao posso ter, aquilo que, a0 mesmo tempo, recua até ao infinito e me empurra para diante, nao é mais que uma representacio da linguagem, 0 escuro que pressupée a luz; mas se renuncio a captar esse pressu- posto, se volto a atengao para a prépria luz, se a recebo — entio aquilo que a luz me da ¢ 0 mesmo quarto, 0 escuro nao hipotético. O tinico contetido da revelagao é aquilo que é fechado em si, o que é velado — a luz é apenas a chegada do escuro a si préprio.” Sob a luz do luar libidinal Dirijo-me ao meu cao: “o que me impele, Jade, a olhar diferente- mente os habitos do mundo, sao vultos de frases, plantas tao originais, que nem sao plantas, vasos que deitaste por terra, de onde estas almas se desprendem.” (AC, p. 45). Leio agora por um processo de hibridagao; quebrando a simetria para poder mudar de vida, como num livro futuro. Fago uma enxertia entre mim € 0 texto — nesse lugar entre (lugar da trela, da letra, da vela 32 AGAMBEN. /déia da prosa, p. 117. ASA DO TEXTO: LUGAR QUE VIAJA acesa) (re)nasceu Jade. Mostrou-me a possibilidade de entrar no seu reino para que eu possa, no meu, estabelecer relagdes de muitua ndo- anulacao. O amor iluminado pela “luz comum” talvez seja 0 mais re- correntemente humano, mas se o abrirmos ao amor {mpar, “para além do individual e do humano”, ainda que pelo desassossego de um en- contro inesperado, entraremos no reino da Causa Amante. Assim me disse Jade — o de inteligéncia sensivel. Foi “ininterruptamente” que falei a Jade, para que ele aprendesse a ler, Ele sabia que é essa a natureza da luz de ler. Por isso, “quando a tarde cai, reacendo as luzes que ficaram quase acesas da outra noite”,*> velando para que nao se extinga a luz que j4 comegara a iluminar os objectos anteriormente apagados, os que nasceram sob a luz do luar libidinal. 33 LLANSOL. Um Bejjo Dado Mais Tarde, p. 117 Livro de asas - para Maria Gabriela Liansol Referéncias AGAMBEN, Giorgio. /déia da prosa [1985]. Lisboa: Cotovia, 1999. BARTHES, Roland. apud. SCHOLES, Robert. Protocolos de leitura [1989]. Lisboa: Edi- gbes 70, 1991 COMPAGNON, Antoine. Le démon de la théorie - Littérature et sens commun. Paris: Seuil, 1998. COMPAGNON, Antoine. O deménio da teoria — Literatura e senso comum. Tradugao de Cleonice PB. Mourdo e Consuelo F Santiago. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001 Titulo original: Le démon de théorie ~ Littérature et sens commun. LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito |1980]. Lisboa: Edigdes 70, 1988, LLANSOL, Maria Gabriela. Amar um Céo [1990]. In: LLANSOL. Maria Gabriela. Cantileno. Lisboa: Relégio D’Agua, 2000. LLANSOL, Maria Gabriela. Ardente Texto Joshua. Lisboa: Relégio D’Agua, 1998, LLANSOL, Maria Gabriela. 0 Livro das Comunidades |1977). Lisboa: Relogio D’Agua, 1999, LLANSOL, Maria Gabriela. Um Beijo Dado Mais Tarde. Lisboa: Rolim, 1990, LLANSOL, Maria Gabriela. Onde Vais, Drama-Poesia?. Lisboa: Reldgio D’Agua, 2000. MOURAO, José Augusto. Figuras da Metamorfose na Obra de Maria Gabriela Llansol. 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