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fam __ FACULDADE TEOLOGICA ~ ” Sut AMERICAN, Johan Konings A BIBLIA, sua origem e sua leitura Introdugio ao estudo da Biblia y EDITORA VOZES Petrépolis Dados Internacionais de Catalogacao na Publicagéo (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Konings, Johan A Biblia, sua origem e sua leitura —Introducao ao estudo da Biblia, Johan Konings. 7. ed. atualizada ~ Petr6polis, RJ: Vozes, 2011 Bibliografia, ISBN 978-85-326-4220-2 1. Biblia ~ Hist6ria 2. Biblia ~ Introducdo 3. Biblia ~ leitura 1. Titulo, 97-5493, CDD-220.6 Indices para catélogo sistematico: 1. Biblia: Introdugao 220.6 2. Biblia: Leitura 220.6 9 LER, ESTUDAR E COMPREENDER A BEBLIA A finalidade do estudo biblico é compreender 0 sentido que ela tem para a nossa vida. Para isso é preciso compreendé-la, ou seja, integré-la na totalidade de nosso conhecimento e consciéncia. Ao chamé-la de “palavra de Deus”, indicamos que ela tema ver como sentido tiltimo de nossa vida. Como chegamos a dat-Ihe esse sentido? O que acontece quando lemos a Biblia? O que é intexpreta-la? i Como leitura de fundo recomendamos: © Ex 33,7-L1: protétipo da “inspiragio”: Deus falando com Moisés. # Nm 11,24-30: a inspiragao acontecendo em comunidade (cf. J13,1 © Hb 1,1-2: 0 miiltiplo falar de Deus, nos profetas e em Jesus Cristo. «Jo 1,1-18: Jesus como o “falar” (autocomunicagio) de Deus. © 2Tm3,15; 1Pd 1,21:0 termo “inspirag4o” usado com relagao a Sagrada Escritura, © Ap 1,11; 21,5: autor inspirado por Deus para escrever (21,5: “fidedigno”!). CE. Ex 3427; Dn7,1. * Ap 108-11; Bz 3,3: 0 livro, simbolo da inspiragio profética, Is 55,1-11; 0 ensinamento de Deus (cf. 55,13) e a eficdcia da palavra profética (v. 10-11). At2,1-21), ).1 LEITURA E ESTUDO DA BIBLIA Depois de nos termos deslocado até o mundo da Biblia e, por outro lado, termos percebido como a Biblia veio até nés, podemos refletir sobre algo que provavelmente ja estamos fazendo: a leitura da Biblia. 21.1 Dialogar com a Biblia Em Ex 33,11 lemos que Deus falava com Moisés como quem fala com seu companheiro ou amigo (hebr. réa’). Colocando-nos na légica das co- munidades biblicas, que consideram a Biblia “palavra de Deus”, podemos aplicar a imagem de Ex 33,11 A leitura da Biblia: uma conversa de amigos, cordial e com hombridade. Nada de mistificac6es! E qual seria o assunto W5 dessa conversa de amigos? Moisés falava com Deus, na Tenda da Alianga, sobre os problemas dos hebreus no deserto. Nés, do mesmo jeito, pode- mos falar com a Biblia sobre a nossa vida, Tal seré a leitura relevante: dia- logar com a Biblia sobre a vida. Fomos até a Biblia nas suas origens ea trouxemos até nés, aqui eagora. Aconteceu um encontro. Sem desistir da capacidade critica, sem manipu- Jar suas palavras, deixemos a Biblia falar a nés como quem tem autorida- de, por ser a referéncia de comunidades que representam trés mil anos de histéria e um tergo da humanidade. Ela tem algo anos dizer. EA sua auto- ridade corresponde, de nossa parte, a franqueza amiga, a parresia, a liber- dade de falar e de dialogar. Num didlogo, nada é decidido de antemao. Do encontro surge um novo sentido, As duas palavras contribuem: a do texto ¢ a minha. Sem a minha palavra, aquela que os antigos transmitiram nao consegue se tornar “nossa”, Aqui e agora, eu com o texto, descobrir o sentido que é nosso (= meu e dos antigos), eis a aposta desse didlogo. 9.1.2 O texto ea vida O texto no se apresenta como um fenémeno isolado, como um extra- terrestre. Provindo de “nosso mundo antes de nés”, abre caminho e pro- duz um rastro de referéncias significantes nas mentes e na linguagem. Re- presenta uma comunidade de pessoas que falam mediante as palavras que 0 texto Lhes fornece, que veem o mundo na perspectiva que o texto abriu e quesonham com omundo num(eito para o qual o texto deu as palavras. E, dialogando com 0 texto, eu entro nessa comunidade, nesse didlogo. Desde que Moisés proclamou os Dez Mandamentos, 0 mundo nunca mais foi como antes; a estrutura do mundo foi se modificando num deter- minado sentido, assim como a estrutura econémica do Brasil se modificou a partir da primeira plantac&o de café em Sao Paulo: a vida econémica des- locou-se; criou-se a “capital da café”, que, por sua vez, atraiu outras for- mas de produciio, que fizeram dessa cidade 0 coragao econdmico do pais, mesmo depois que o café deixou de ocupar o primeiro lugar. Cada evento ~e o texto é um evento ~ produz um rastro, e este rastro modifica a Hist6ria. Quando alguém fala uma palavra, essa palavra puxa outras, Surge conversa, surgem novas palavras, que se alastram em novos conceitos, com os quais a conversa pode virtualmente continuar até o infi- nito. Quando entro nessa conversa, assumo a estrutura que ela criou, pois 176 nao quero falar palavras soltas, fora da gramética e da sintaxe, como os sons perdidos e sem sentido de um delirante — notas fora da pauta.. Assim a palavra da Biblia. Cria um “ecossistema” no qual é preciso inte- grar-se para desfrutar seus efeitos. B © que chamamos: sintonizar. Ou tam- bém: entrar na roda, modestamente, escutando qual ¢ a conversa, até perce- bermos de que se trata, para entdo entrar na conversa ¢ fazé-la “nossa”. 9.1.3 O texto e a comunidade Quando a Biblia me encontra, é porque de alguma maneira fui envol- vido em seu Ambito, Na medida em que assumo isso, posso entrar em did- logo com ela como naiome sendo estranha, Encontrarei, entiio, neste diélo- go, novo sentido ¢ missao para minha vida, em solidariedade com os ou- tros seres humanos. A Biblia nasceu da hist6ria de uma comunidade. Foi, com muito cari- nho, gestada no seio de uma comunidade e por ela transmitida as geragdes ulteriores. A primeira condigéo para ler a Biblia, dentro da perspectiva que lhe 6 prépria, 6 sintonizar com seu cardter comunitario, Nao captamos a frequéncia de ondas da Biblia se nao a percebemos como expresso de uma comunidade. Dafa importancia de ler a Biblia a partir de uma comu- nidade, na 6ptica de uma comunidade que tenha sintonia com a palavra biblica. Como entender o mandamento biblico do amor fraterno sem “in- leresse” por uma comunidade, seja ela a familia, o cireulo de amigos ou qualquer outra? Descobrindo o quea comunidade significa em nossa vida, encontramos a pauta na qual podemos decifrar as mensagens centrais da Biblia. Sem esta pauta, ficam como notas fora da pauta. 9.1.4 Leitura e releitura nas comunidades da Biblia a) A mulher infiel Jano antigo judaismo encontramos exemplos admiraveis deste “entrar na conversa”, continuando a frase dos que vieram antes, Tomemos, por exemplo, Os 2,4-25: a parabola da mulher infiel. Quando Oseias pronunciou essa parabola, referia-se ao reino do Norte, Israel, que se entregara ao culto dos outros deuses (os ba‘alim, “maridos” ou “donos”). Cento e vinte anos depois, o profeta Jeremias ouve novamente essas palavras e se pergunta: “Que significa isso para nés hoje, em Jud?” E entra na conversa, continuan- do a parabola de Oseias. Como um ator representando YHWH Deus, Jere- mias fala ao povo de Juda: “Eume lembro [...] do amor de tua juventude [. v7 Que encontraram os vossos pais em mim de injusto, para que se afastassem. de mim e corressem atrés do que é vazio? [...]. Tu, que te prostituiste com intimeros amantes, queres vollar a mim?” (Jr2,2.5; 3,1). E continua a encena- ao, referindo-se ao reino do Norte, Israel, desintegrado ha cento e vinte anos: “E YHWH me disse: a renegada Israel é mais justa do que a infiel Juda. Vai, pois, proclamar estas palavras no Norte ~ tu dirés: Volta, renegada Israel [...]; eu ndo guardo rancor para sempre [...]” (3,11-13). Um quarto de século mais tarde, os dois textos ~ 0 de Oseias e 0 de Jere- mias ~convidam o profeta Ezequiel, no meio do exilio babildnico, a entrar na conversa também. Retomando a parabola de Oseias e lembrando-se de que Jeremias falou de duas mulheres, Judé ¢ Israel, elabora a famosa ale- goria hist6rica das duas irmas Oolé e Ooliba, que nao precisa de muita ex- plicagao (leia Ez 23). B assim que Ezequiel responde & pergunta: “O que significa a pardbola de Oseias para nés hoje, exilados na Babilénia?” Pouco depois, o Segundo Isafas anuncia que YHWH retomard sua es- posa repudiada (Is 54,1-8), e o Terceiro Isaias, invertendo as palavras de Os 2,25, proclama: “Jé nao te chamario ‘abandonada’ [...]. Como a alegria do noivo pela sua noiva, tal seré a alegria que o teu Deus sentir por ti” (Is. 62,4-5). Imagem que anuncia as “ntipcias messianicas”. A hist6ria nao termina af. Seis séculos depois, 0 “profeta e mestre” Je- sus de Nazaré é criticado por nao ensinar o jejum. Com misteriosa referén- cia As “nipcias”, ele responde: “Podem os amigos do esposo jejuar en- quanto 0 esposo esta com eles?” (Mc 2,19). Mais tarde, um discfpulo de Je- sus contaré como percebe, a distincia, a atuagao desse Mestre que ele con- sidera ser o Mesias. Conta que Jesus realizou seu primeiro sinal profético em Cané da Galileia, tornando-se presente numa festa nupcial e fornecen- do misteriosamente vinho bom e abundante, assumindo assim 0 papel do esposo e granjeando a equivocada admiragao do encarregado da festa (Jo 21-11). Para quem sabe ler a pauta tragada por Oseias, Jeremias, Ezequiel, pelo Segundo e pelo Terceiro Isafas, é claro que Jesus ¢ 0 verdadeiro espo- so, que veio celebrar as ntipcias da restauragiio messianica do povo. Assim, Paulo pode escrever aos cristios de Corinto: “Empenho-me por vés com o zelo de Deus, pois desposei-vos com um s6 esposo, querendo apresentar-vos a Cristo como virgem intacta” (2Cor 11,2). b) Leitura é releitura Poderfamos multiplicar as centenas tais exemplos de “continuacao da conversa”: 0 fixodo, o mana, o Mar Vermelho, Ado, Abel, a Alianca... 178 Estes e tantos outros temas tornaram-se, jd dentro da Biblia, objeto de con- tinua “releitura”, leitura interpretativa para diversas épocas e, também, “para nés hoje”. O ensinamento de Jesus 6 permeado de tais releituras. A primeira parte do Serméao da Montanha, Mt 5,21-48, é uma releitura dos Dez Mandamentos. Era 0 método de leitura e explicagao biblica dos rabi- nos daquele tempo. Estudavam a Lei para indagar (derash, de onde midrash {4.5.2}) 0 que significariam, no atual momento, as palavras antigas que es- truturaram a vida e a percepgio do povo. Que significava 0 “repouso” (shabbat)? Em Dt 5,15, interpretando a formulagado mais antiga de Ex 298-11, 0 repouso dos escravos é relacionado com a escravidao no Egito. Quem é 0 “préximo” ao qual se deve “amar” conforme a Tord, em Lv 19,18? Jesus d4 uma nova interpretagao a isso em Le 10,29-37. Que signifi- cava comer 0 cordeiro pascal? Por que no quebrar-Ihe os ossos? (cf. Ex 12,46). Os cristéos viram nisso a prefiguragéo da morte de Jesus (Jo 1932-96). E assim por diante. Leitura biblica ¢ releitura. f. fazer reviver a palavra antiga a partir da tra- dicao que ela criou para chegar até nés, na nova situagao em que hoje nos encontramos. Assim, citando e reinterpretando, os autores biblicos tardios liam os textos de seus predecessores, Assim Jesus ¢ os rabinos de seu tem- po liam a Lei € os Profetas, e assim as primeiras geragées cristas liam o Antigo eo Novo Testamento, Origenes, seguido por Agostinho e pela exe- gese medieval, distinguia entre o sentido “somatico” (= corporal: a narra- cio exterior e verbal dos fatos) e 0 sentido “pneumatico” (= espiritual, in~ terior, escondido). Esse sentido espiritual é produzido pelo “Espirito” de Jesus Cristo, ativo na comunidade dos fiéis quando 1é os textos que conser vam a sua memoria. 9.2 OS METODOS CIENTIFICOS DA CRITICA LITERARIA E HISTORICA 9.2.1 Leitura inocente, leitura problemitica, leitura critica Talvez a leitura dos exegetas antigos possa chamar-se “inocente”. Pre- sumiam que os fatos e as palavras estavam narrados com realismo, embo- ra com muita liberdade quanto aos detalhes. Assim, Paulo nfo se perde em detalhes acerca da corporeidade da ressurreigéo, 86 aponta para 0 “corpo espiritual” (Cor 15,44-49) e para a certeza de que Jesus ressusci- tou, pois ele vive, até no proprio Paulo (GI 2,20). O que mais interessava aos antigos era ver o que a palavra da Biblia significava para a atualidade que eles estavam vivendo. 79 Autores como Origenes e Agostinho eram eminentes conhecedores do texto bfblico e até escreveram obras cientifico-analiticas sobre ele. Conhe- ciam bem o significado original dos textos, mas procuravam consciente- mente um sentido novo e atual, que se convencionou chamar de sentido “pleno”, ou seja, desenvolvido a partir de sua potencialidade escondida, sua “reserva de sentido”!, Ora, depois das grandes discussdes teolégicas, na época dos grandes concilios dos 4° e 5° séculos dC, essa atitude de ver o que o texto significa para a atualidade desvirtuou-se e levou a uma dogmatizacao da leitura. Em vez de reconhecerem, na trilha aberta pela Palavra, a pratica da vida e da comunidade, os teélogos comegavam a procurar nas palavras, tiradas fora de seu contexto, argumentos para condenar os adversdrios. Ao mes- mo tempo, a crescente inclinagao juridica do pensamento cristao fazia com que a ética biblica fosse interpretada no quadro de um legalismo seme- Ihante aquele que Jesus de Nazaré combatera ao prego de sua vida. Assim, aleitura biblica tornou-se problematizada e problematica, sempre mais re- clusa no estreito cfrculo dos clérigos. Junto com o conhecimento das lin- guas originais perdeu-se a referencia original, o sentido primeiro do texto. Lia-se na Biblia o que jé se tinha na cabeca, fruto de discussées escolésticas e de moralismo casuista. Forgava-se o texto a dizer 0 que se desejava que dissesse... ¢ isso, nem sempre para iluminar os desafios da vida, mas para acender a fogueira para algum adversirio. Diante dessa situagio, que chega ao auge no fim da Idade Média, sur- giram reagdes em todos os niveis, desde a piedade evangélica popular, di- vulgada por Francisco de Assis, e a mistica dos simples, representada por ‘Tomds a Kempis, Ludolfo de Saxénia e Inacio de Loyola nas contempla- gdes da vida de Cristo, até o humanismo erudito de Erasmo e Thomas More ea tentativa de reforma de Joao Hus... Era preciso libertar a Biblia da leitura problematical $6 que j4 nao era mais possivel pelo jeito inocente. Precisava-se de inteligéncia, método critico, 9.2.2 O texto original e seu sentido literal Contra a leitura dogmatizada ou justificadora de praticas eclesiésticas esptirias, sujeita a manipulacdo e atribuindo aos textos aquilo que nao di- zem, surgiu uma atitude questionadora, compardvel A reagao de alguém 1.Na terminologia do filésofo Paul Ricoeur. Cf. CROATTO, J. Severino. Hermentutica bfblt- cx para uma teoria da leitura como produgio de significado. Sao Leopoldo: Sinodal, 1986. 180 que recebeu informagao errada do caminho: desconfia que as pessoas no sabem e decide consultar a planta da cidade. Tal atitude convencionou-se chamar de “critica”, em oposicao a atitude ingénua da explicacao biblica corriqueira, sem estatuto epistemolégico definido. A atitude critica ndo nega o que esté na Biblia, mas examina a Biblia e os proprios presstipostos do conhecimento biblico. Nos métodos da investigagao critica da Biblia convém observar 0 obje- tivo, a pergunta a qual se pretende responder e os critérios que se usam, internos ou externos. Os critérios internos so os que se podem descobrir dentro do préprio texto, os externos sao os encontrados fora do texto. @) Critica textual, ou documental 1) Objetivo: reconstituigdo do texto ou documento no estado original do momento da publicagio. - Nao temos nenhum manuscrito original da Biblia, os textos vieram até nés através de cépias transcritas de cépias. Nas sucessivas transcricdes introduziram-se modificagées, intencionais ou nao. Por isso, ao compararmos as antigas cépias manuscritas, descobrimos di- ferengas, chamadas “variantes textuais”. A critica textual (que por razaio de clareza melhor se chamatia critica documental)? nao procura de imediato osentido do texto, nem a andlise literaria ou coisa semelhante, apenas busca verificar até que ponto os documentos que chegaram até nds sio confidveis e, em caso de dtivida, como reconstituir o texto na forma mais confidvel. 2) Pergunta: “Nos documentos que temos hoje encontra-se o texto que oautor escreveu originalmente? Qual é 0 grau de confiabilidade de nossos documentos (cépias)? Que constava materialmente no texto original?” 3) Critérios para julgar qual das “lig6es variantes”? de determinado texto é a mais provavel: externos: * comparar o texto que temos diante dos olhos com o dos antigos ma- nuscritos biblicos, lecionarios littirgicos, citagGes em outras obras anti- gas (te6logos dos primeiros séculos) etc; ° regras elementares desta comparacao: ver o valor global de determi- nado manuscrito (existem manuscritos simplesmente mal copiados); ver que variante é seguida pela maioria dos manuscritos reconhecidos 2. Pois refere-se meramente aos vocébulos registrados no documento, néo ao texto como texto no sentido de estrutura literaria, 3.Por “igo” entendle-se, aqui, o que esté, materialmente, grafado no documento. 18) como confidveis, sobretudo se pertencem a diferentes “familias” ou “recens6es” {8.2.5b}, levando em conta o valor diferenciado destas til- timas etc. internos: * entre diversas variantes apresentadas nos antigos manuscritos, es- tando os outros argumentos em pé de igualdade, deve-se escolher (desde que nao seja absurda) a que é mais dificil de compreender, pois os copiadores tendem a facilitar o texto ao copiarem; © a variante mais breve é preferivel 4 mais longa, pois os copiadores e recenseadores tendem a acrescentar coisas ao texto; * ver se a variante oposta pode ser aceita ou, pelo contrério, mostra-se inaceitavel (confirmando-se, neste caso, a outra variante); * desconfiar de variantes tendenciosas, por exemplo, as que procuram tornar o texto bfblico mais parecido com os dogmas proclamados ulte- riormente; * desconfiar de variantes que procuram harmonizar, isto é, tornar mais semelhantes textos biblicos compardveis. b) Critica histérica 1) Objetivo: reconstituir, na medida do possivel, os fatos e ditos relata~ dos conforme sua objetividade histérica. — Procura-se saber 0 que aconté- ceu exatamente em relacaio ao que os textos contam. No inicio da Moderni- dade, esta preocupagao servia quer para denegrir o valor da Biblia (se os relatos nao estivessem historicamente exatos, a Biblia nao seria fidedigna), quer para defendé-la (demonstrando a exatidao histérica). Hoje, porém, sabe-se que a Biblia, embora contendo histéria, nao é “livro de histéria”, mas depoimento de uma experiéncia religiosa expressa nos mais diversos géneros literarios. Para que a mensagem da Biblia seja “verdadeira” nao é preciso que tudo o que ela narra seja histérico no sentido cientifico-critico, 2) Pergunta: ”O que a Escritura aqui conta aconteceu mesmo? As pala- vras que ela relata foram realmente faladas? Correspondem a realidade hist6rica?” 3) Critérios: externos: * testemunhos arqueolégicos; * documentos de tipo administrativo (contas, arquivos etc.) ou litera- rio (historias, descrigées etc.); 182 internos: as contradig6es internas, a maior ou menor probabilidade do fato ou discurso narrado ete. (critério um tanto subjetivo: para um raciona- lista fandtico qualquer milagre ¢ nao apenas improvavel, mas imposstvel e, portanto, inveridico). ¢) Critica literdria 1) Objetivo: descobrir 0 que o texto quis dizer para seus destinatatios primeiros, levando em consideracao as circunstancias e modalidades da producao do texto, o estilo etc. ~ Este tipo de pesquisa permitiu descobrir que, na Biblia, muitos textos so “compostos” (obra de diversas méos), produzidos em diversas fases, até com pensamentos internamente opos- tos etc. Demonstrou também que, por vezes, o rétulo nao corresponde ao contetido: a pseudepigrafe ou atribuicao ficticia generalizada (8.1-1b). 2) Perguntas: “Por quem, onde, quando, como, para que, para quem, em que género e estilo [...] foi escrito este texto?” -“O que o texto quis comuni- car, a partir de que situago, em que ambiente, com que meios etc.?”— “Quais sto o género, a estrutura e a composic&o do texto para que o entendamos melhor?” ~ “Em que posigao se coloca 0 autor, como concebe o seu leitor?” 3) Critérios: externos: testemunhos em que outra instncia que nao o autor nos in- forma a respeito de sua obra, sua intencao etc. Assim, Pedro avaliando os escritos de Paulo (2Pd 3,15-16). internos: * indicios internos na obra a respeito do autor, sua intengao ete.: por exemplo, o prélogo de Lucas e Atos (Lc 1,1-4e At 1,1-2); aautoapresen- tagdo do autor no inicio das cartas de Paulo, Pedro, Tiago, Judas, em Ap 19 etc; *0 “perfil literério” do autor; * a unidade de estilo, vocabuldrio e pensamento; a observagao atenta “destes elementos pode levar a confirmar ou a negar que‘tal obra é es- crita por um s6 atitor, como uma s6 obra ete.; * a coeréncia com o contexto (1Cor 13,33b-35 nao 6 coerente com 0 con- texto imediato) ete. d) Ciéncias auxiliares © que acabamos de mencionar so apenas os prinefpios gerais da pes- quisa hist6rico-literéria. O verdadeiro perito neste campo necessita, além 183 de exaustivo conhecimento dos textos, de “ciéncias auxiliares”, como se- jam: a histéria, a arqueologia, a paleografia (ciéncia das antigas formas de escrita, confecgio de documentos etc.), a cronologia (ciéncia de calendé- rios, datas etc.), a filologia (ciéncia dos idiomas e suas literaturas), a lin- guistica (ciéncia da linguagem como fenémeno universal), a geografia, a ciéncia comparativa das religides... E mesmo, conforme 0 caso, a biologia, a medicina, a botnica... Até a quimica, para pesquisar as tintas dos anti- gos manuscritos; ¢ a fisica nuclear, para estabelecer, mediante 0 teste do carbono 14, a antiguidade do material em que foram escritos... Isso explica que a investigacao critica da Biblia se tenha tornado muito complexa. Em vez de querer verificar tudo por conta propria, énecess4rio confiar nas pesquisas de especialistas. Por isso as igrejas tem seus especia- listas “credenciados”... 9.2.3 A génese do texto No escapa ao observador que 0 supramencionado tipo de “critica” (= pesquisa ou investigagSo) leva a marca do historicismo: quer reconstituir his- toricamente o manuscrito original, os fatos, 0 projeto original do texto segun- do a suposta inteng&o do autor “auténtico”... Ora, com o passar do tempo, percebeu-se que estas reconstituicdes histéricas nao levavam a resultados sa- tisfatorios, nem ajudavam de modo decisivo a compreender os escritos. Por volta de 1920, porém, nascem, na esteira da critica hist6rico-literé- ria, métodos com uma 6ptica diferente. Procura-se, agora, acompanhar 0 processo de releitura e reinterpretagao que se deu no proprio surgimento dos textos biblicos até sua redagao final. Por isso, chamamos estes mé- todos de “genéticos” (de génese, surgimento). Consideram o desdobra- mento do sentido dos textos desde as suas raizes, na tradigdo anterior a re~ dacao, até a redagao final, como testemunho da fé viva da comunidade. a) Estudo da tradigiio Se encontramos, na Biblia, a meméria de uma comunidade, é impor- tante saber como essa meméria se formou, qual sua tendéncia, seu interes- se, a que ela referia sua identidade, que grupos transmitiram o qué, se houve grupos concorrentes, rivais etc. Chama-se a isso: estudo da “tradi- aio”, ou seja, da transmissao das narrativas e palavras subjacentes ao texto biblico antes de sua redagio definitiva. Este tipo de pesquisa nos ajuda a dar um rosto as matérias que a Biblia acumulou. Descobrimos que Israel transmitiu uma multidao de prescri- 184 (g®es, nao para encher as horas do dia com ritos a observar, mas para se lem- brar de suas origens e ter modelos em novas circunstncias (p. ex., depois do exilio). Descobrimos que uma tradigao vem do Norte, outra do Sul, uma do Templo, de Jerusalém, outra de grupos campestres. Descobrimos que nem todas elas foram observadas simultaneamente por todos. Descobrimos que sobretudo as tracligées em volta do Deuterondmio falam em “alianca” e ensinam Israel a “ler” sua hist6ria como uma Alianga com Deus. b) Estudo dos generos ¢ formas literdrias originais Em conexéio com isso, cresceu a sensibilidade pelas formas em que os textos biblicos se cristalizaram, j4 antes de serem colocados por escrito. Conforme a fungio que determinado elemento da meméria exerce, sua “cristalizagdo”, oral ou por escrito, vai ser diferente: surgem diversos gé- neros literarios, que devem ser “decodificados” com chaves diferentes, adequadas a cada género. Ogénero das “leis”, desenvolvido ao longo de muitos séculos, pretende dar continuidade A organizagao e estruturagao inicial do povo como “povo de YHWH” desde o tempo do fixodo. Faz parte deste género a atti- buigao da legislagao a Moisés, “fundador” de Israel, mesmo se 0 preceito em questo é bem posterior a Moisés (4.2.1¢}. Outro género sao as etiologias, ou explicagdes de costumes, nomes, ri- tos antigos etc. (4.2.2b). Sua funcao é cravar esses nomes e costumes na me- mGria mediante uma explicagao que, na medida do possfvel, contenha al- guma licao religiosa ou moral; que tal explicagao seja cientifica é uma preocupacao menor, sendo ausente. Um género que foi muitas vezes mal-entendido é o das narragdes teol6- gico-didaticas encontradas, por exemplo, nas primeiras paginas da Biblia: Adio e Eva, Caim e Abel, o diliivio, a Torre de Babel... (4.2.2a}. Antiga- mente, eram entendidas de modo ingénuo, sem questionamento, pois mais que a “ciéncia” interessava a licao edificante, a moral da histéria. As criangas no primeiro catecismo nao perguntam se’essas narracées sio cientificas ou ficticias, mas aprendem a ligdo: o orgulho de Adio, a inveja de Caim ete, Todavia, o historicismo positivista produziu um “rufdo” na comunicagao, tornando a mensagem incompreensivel. Queria-se saber se “foi assim mesmo” , para poder declinar a fé caso nao se verificassem os fa~ tos. Mas, quem diz que essas tradicdes quiséram ensinar que “foi assim mesmo”? Que naquela plantcie foi de fato iniciada uma torre para chegar até 0 céu? Que naquela montanha parou a arca de Noé...? Os narradores 185 originais admitiriam de bom grado que poderia ter sido numa outra mon- tanha, insistindo, todavia, em que a humanidade é orgulhosa e, de vez em quando, leva uma surra por causa disso! O Huminismo ¢ 0 historicismo positivista intitularam tais narrativas de “mitos”, por causa da semelhan- ga. com 0s mitos de outros povos. Nao ha diivida de que os antigos israeli- fas conheceram mitos, exatamente como seus primos da Fenfcia, Aram ¢ Babil6nia. Porém, sabiam que tais mitos sao simbélicos e apontam para uma mensagem e verdade que se trata de perceber, mediante a interpreta- &o, como veremos no proximo capitulo {10}. Hoje em dia, 0 termo “mito” nao é mais entendo como sinénimo de ilusao ou inverdade, como no Ilu- minismo, mas como uma narrativa simbélica que “faz pensar”, Um género que exige atencao especial e muita prudéncia é o género sa- piencial. O livro dos Provérbios, por exemplo, coleciona sabencas do povo, que no primam pelo cuidado teol6gico. As vezes parecem menosprezara mulher, especialmente a mulher cananeia morando no territério de Israel, capaz de desviar osisraelitas para caminhos pagaos (Pr 5); ou revelam dis- criminagao para com o doente mental, com 0 pobre etc. E isso, em contra- digéo com as leis do Deuteronémio, que precisamente ensinam a protecao dos fracos e indefesos, dos nao israelitas, dos desprotegidos, Além disso, as sabengas recolhidas na literatura sapiencial sio contraditérias entre si. Mas tudo isso faz parte do género do provérbio, que quer ensinar de forma sucinta e contundente uma observacao empirica. Tenha-se, portanto, 0 cuidado de nao transformar um provérbio, mesmo biblico, em dogma! Respeite-se o género literério! No caso do Novo Testamento surgiu um tipo peculiar de investigagao das formas literérias, a assim chamada “critica (ou historia) das formas” — como se traduz de modo servil o alemao Formkritik ou Formgeschichte. O estudo das formas literdrias pretende nao apenas catalogar as diferentes formas em que as tradigGes dos fatos e ditos de Jesus foram cristalizadas, mas ainda pesquisar 0 contexto vital das comunidades, que se reflete na propria forma literdria. Me 12,13-34, por exemplo, mostra Jesus discutindo com as diversas categorias do judaismo: fariseus, herodianos, saduceus, escribas. Ora, esse tipo de discussao era de atualidade para as geracbes de- pois de Jesus: a meméria acerca de Jesus foi moldada em forma de argu- mentos para as discusses que os cristios deviam travar com os mestres judeus. Esse tipo de pesquisa nos permite ver que as primeiras geragées 4,Cf, sobretudo as contribuigdes de Paul Ricoeur. 186 cristas “continuaram a conversa” de Jesus, levando em consideracao 0 novo “contexto vital” (alem. Sitz-im-Leben) em que viviam e atuavam. c) Estudo da redagiio Na mesma l6gica, tomou-se preciso dedicar ateng4o ao momento da re- dacdo, quando os textos foram definitivamente colocados por escrito pelos tedlogos das comunidades biblicas. Vimos, neste sentido, o grandioso tra- balho realizado pela escola deuteronomista, no Deuterondmio e nos Profe- tas Anteriores {3.9}, ¢ pela escola sacerdotal, no Pentateuco (4.2). Sao duas verdadeiras sinteses teolégicas, embora em géneros literérios diferentes. Importa estudar a relagao entre tradicao eredacao, ou seja, entrea formaem que o material (narragdes, sentencas etc.) foi transmitido (“tradicionado”) até os “redatores” biblicos e a forma em que o passaram adiante, realizando uma releitura da tradi¢ao, continuando a conversa em nova circunstancia, para novo ptiblico enova finalidade. Af é que a comunicacao entre o autor e opuiblico se torna palpavel. O estudo da redagao nos colocana proximidade do efeito comunicativo que aconteceu na hora da redagao do livro e de sua entrega aos primeiros destinatérios, ajudando-nos, hoje, a inserir nossa (re)leitura na continuidade dese momento fundacional. 9.2.4 O texto em si e os métodos semidtico-semanticos A preocupagao hist6rico-literria procura conhecer 0 que colaborou para que 0 texto nascesse. Mas pode-se também adotar a dptica do texto ja nascido e levando vida auténoma. O autor morreu, no esta mais af para explicar 0 que quis dizer. Qual é capacidade de sentido do texto: eis a per- gunta feita pelos atuais métodos semanticos (i.6, que analisam a compe- téncia significativa do texto em si). Os métodos hist6rico-literarios classicos {9.2.2} nos ajudam a verificar os elementos enunciados no texto. Os métodos literdrio-genéticos {9.2.3} nos fazem perceber 0 sentido que nasce no processo de transmissio até 0 mo- mento da redagio. Mas agora, 0 texto esté ai, revelando sua capacidade de significar. O autor esta morto, mas 0 texto esta vivo! Esté af e nos diz alguma coisa, porque esté inscrito na estrutura que chamamos linguagem, a qual produz significagbes para ndés quando entramos em contato com ela. Entéo devemos olhar nao s6 0 passado do texto—como e com que intengao ele sur- giu~, mas também sua presenca no universo da linguagem. Nao apenas o que 0 autor quis dizer, mas o que o lexlo estd dizendo, gragas as leis da signifi- cAncia linguistica, descortinadas pela semidtica (= ciéncia dos signos). 187 Em determinado mundo cultural, o sinal vermelho significando peri- 20 € 0 verde significando passagem produzem sua significagao indepen- dentemente daquilo que alguém por conta propria queira significar por eles, Imaginemos 66 que um guarda, encarregado de controlar os sinais, queira significar perigo com o verde e passagem com o vermelho! Vai ha- ver um enorme conflito entre o que ele quer expressar e aquilo que os si- nais de fato estao comunicando aos motoristas! Com o texto biblico acon- tece coisa semelhante: produz uma significagio conforme as leis semidti- cas, sem que 0 autor esteja presente. De fato, foi escrito para isso mesmo: para que o autor possa descansar em paz! Existem, na linguagem, estruturas universais, por exemplo, a lei dos opostos. Confirmar uma coisa é negar 0 oposto. A confirmagio de uma coi- sa produz necessariamente a negagio do significado oposto etc. A semidti- ca analisa estas leis, e a leitura semantico-estrutural aplica isso 4 Biblia, como a qualquer outra literatura. Chega a resultados interessantes. Um as- pecto importante é que a conexao dos conceitos no texto independe da perfeicao estilistica e, até, do idioma. Constata-se que uma narragao apa- rentemente primitiva, ingénua ou mal-escrita pode transmitir muito bem seu efeito de sentido (é 0 caso do Apocalipse). Nao podemos entrar aqui nos detalhes deste método, bastante dificil, sobretudo por causa de seu carater formal, quase matemético, mas cabe apontar sua proximidade com a racionalidade da era do computador e da anélise légico-linguistica. Este método traz a luz a “competéncia” de transmissao de significados pr6pria dos textos biblicos, mostrando sua ca- pacidade de gerar novas significagdes e evitando que se tire do texto signi- ficagées que de fato nao Ihe competem. fi um método construtivo, aberto. Ele nao leva a dizer: “Este é 0 sentido”, e sim: “O texto é capaz de dizer isto”. Por isso, ajudard a explicitar as virtualmente infinitas possibilidades do texto, de um modo objetivo endo provocado por nossos desejos subjeti- vos, mas pela palavra que esté ai. ‘Além das estruturas universais existem também estruturas linguisti- cas culturais particulares, em primeiro lugar os idiomas, mas também os simbolos que se apresentam no intereambio cultural (no Ocidente, a cor da alegria é branca, no Oriente, vermelha). No seu nfvel proprio, também es- tas estruturas devem ser levadas em conta ao explicitar potencial de sen- tido. A sociologia cultural é um dos instrumentos que podem trazer ajuda neste empenho. 188 9.2.5 Os métodos narrative e retérico” Depois da obsessio pela historicidade (9.2.2), pela génese {9.2.3} e pela estrutura submersa do texto (9.2.4), a exegese voltoua uma “inocéncia reen- contrada”s, Redescobriua capacidade de ler o texto, sem mais; a capacidade de ler o movimento da narrativa ou da argumentagio ret6rica que 0 texto apresenta. O “espitito” desta leitura consiste em situar-se, antes de tudo, dentro do “mundo do texto””, em vez de procurar compreendé-lo a partir de elementos externos ao que é narrado ou retoricamente desdobrado®. Importa distinguir entre a dimensao narrativa ea dimensao rel6rica. A primeira faz o leitor assistir a acontecimentos que revelam um fato e seu sentido, a segunda explica ou induz um novo sentido por conceitos e argu- mentos. Nos textos, as duas dimens6es andam misturadas, como, fre- quentemente, no drama eno romance: 0s atores realizam 0 acontecimento, mas, a9 mesmo tempo, revelam por didlogos, raciocinios ou reflexdes 0 sentido que nasce. a) Andlise narrativa O método da anilise narration verifica a maneira como 0 narrador cons- truiu a narracdo, observando as estratégias usadas no ato de produzi-la, tendo em vista os leitores implicitos ou reais. O foco da atengao concentra-se na triadenarrador-texto-leitor. As perguntas de fundo sao; como o narrador trabalhou para produzir o texto oferecido aos leitores? Que recursos literd- rios utilizou para transmitir a mensagem? Como arquitetou o texto que o leitor tem em maos? A preocupacdo de fundo é a de verificar 0 efeito produ- zido pelo texto sobre o leitor, considerando os expedientes de que se serviu o narrador. O narrador é 0 autor implicito, identificével nas entrelinhas do texto pelas escolhas feitas no proceso de criagao literéria. O autor real care ce de importancia, Por outro lado, o leitor é o leitor implicito que o narrador teve em mente no ato de narrar; 0 leitor real carece de importancia. 5, Esta segdo é da autoria de Jaldemir Vit6rio. 6. A “segunda ingenuidade” de que falam Ricoeur e outros, 17. A expressiio vem de Ricoeur. Cf. RICOEUR, Paul. Tempo e narration. Campinas: Papirus, 1997, 8, Tais a critica literdria hist6rica, que privilegia o conhecimento das fontes ¢ da atividade redacional sobre aquilo que 0 texto narra, Este tipo de abordagem oferece ajuda A compre- ensio s6 em segunda instancia. Coisa andloga se deve dizer dos conhecimentos hist6ricos, arqueolégicos, sociolégicos, que oferecem informagées titeis, mas nao a compreensio do texto propriamente. 189 A anilise narrativa concentra-se nos seguintes pontos: 1) A intriga. B a organizacaéo dos componentes narratives, garantindo que a trama se desenvolva de forma légica, de facil percepcao pelo leitor. A intriga nao pode ficar incompleta. Por mais que a agao comporte confli- tos e tensdes, afinal, devera encontrar um ponto de fechamento, Caso con- trério deixara o leitor decepcionado. Ou entéo, quando a intriga é confusa eo leitor nao tem como capté-la, o leitor fica desmotivado a continuar. O bom narrador é o que prende a atencao do leitor até o fim: ‘Trés sao as ca~ racteristicas do narrador: onipoténcia (ele pode fazer tudo quanto quer e como quer no proceso de criagao literéria), onisciéncia (conhece tudo que Ihe interessa para produzir o texto) e onipresenga (esta em todos os lugares onde se passa a narragéo). A intriga articula-se em quatro momentos: a introdugiio (a apresentagéo do problema e dos personagens implicados), a agdo (0 desenrolar da trama, onde a relacaio entre os personagens vai se tornando sempre mais compli- cada, a ponto de exigir uma solugao), 0 climax (0 momento em que os nés sao desfeitos; os segredos, revelados; as relagées, encaminhadas, e as. questdes levantadas pelo leitor, esclarecidas) e 0 desfecho. 2) Os personagens. O narrador onipotente cria os personagens necess4~ ios para o desenrolar da intriga; d-lhes nome e identidade; fé-los entrar e sair de cena, quando e como quer; determina-lhes os sentimentos. Caso se sirva de personagens histéricos, trata-os de maneira livre, pois nao Ihe inte- ressa fazer biografia. A andlise perceber como se processa a inter-relagao entre os personagens: amizade-inimizade, confianga-desconfianga, intimi- dade-indiferenga. Ela se dard em diferentes niveis, indo desde a relagéo superficial A profunda, e poderé romper-se, restabelecer-se, entrecru- zar-se.O modo como onarrador se refere aos personagens determina-lhes a importancia na narracéo, indo desde o heréi aos personagens secunda- rios. Os dados a respeito dos personagens sao inseridos de dois modos: servindo-se dos personagens implicados na trama, que falam uns dos ou- tros (enunciados intradiegéticos) ou, entéo, o proprio narrador oferece in- formagées sobre os personagens (enunciados extradiegéticos). Quanto me- thor o narrador, maior seré a capacidade de apresentar os personagens de maneira conveniente e convincente, em consonancia com o papel desem- penhado na intriga. 3) A focalizagiio. B um conceito da arte cinematogréfica aplicada a andli- se narrativa. No processo de leitura, leitor deixa-se guiar pelo narrador, que est4 como que filmando as cenasnarradas. A leitura s6 sera proveitosa 190 seo leitor for suficientemente décil para se deixar conduzir, sem protestar. A sequéncia das cenas corresponde a diferentes focalizagées, que podem ser de trés tipos: focalizagao zero (a tomada com lente grande-angular, com uma visio téo ampla a ponto de abolir os limites exatos de tempo e de es- aco), focalizagio externa (o que o leitor “vé" na narragio, os detalhes da cena, os didlogos entre os personagens e suas reag6es), focalizagio interna (quando o narrador revela o que se passa no intimo do personagem, pen- samentos, sentimentos e desejos). 4) A temporalidade, Toda narracao desenrola-se no tempo e no espaco. Nao existe agao fora destas coordenadas. Alids, a narrag&o consiste, exata- mente, em descrever de maneira légica e plausivel uma série de agées liga das entre si, temporal e espacialmente. A andlise narrativa distingue dois tempos. O tempo da histéria narrada conta-se pelas unidades de tempo: mi- nutos, horas, dias, anos, séculos. O narrador oferece as indicagées cronolé- gicas para situar, no tempo, os personagens e as ages. Ja 0 tempo da narra- ¢io corresponde ao tempo empregado para descrever as cenas. Conta-se pela quantidade de palavras, frases e paginas. Algumas cenas so narra~ das com mais vagar e, outras, de forma répida. Os personagens podem se refetir a fatos do passado — analepse — ou falar de coisas que est4o para acontecer ~ prolepse. Por motivos de economia narrativa o narrador recor- re a elipse. Um pequeno pardgrafo pode abarcar ages sucediclas num vasto periodo de tempo. O suspense acontece quando a narragio caminha muito lentamente, criando expectativas no leitor, 5) O contexto. A andlise narrativa detecta as circunstancias de tempo, lugar e ambiente social, nos quais a intriga se desenrola. O contexto pode ser factual ou metaforico. E factual, quando indicado por dados objetivos de quando, onde, como, com quem, em que circunstdncias se dé a aco. & metaférico quando aponta para algo além da realidade. Uma montanha pode ser um contexto factual ou metaférico. No primeiro caso, trata-se de uma montanha bem localizével; no segundo, simplesmente, significa lu- gar de encontro com Deus. Sao variados os contextos de uma agao. A ané- lise os explicitard. 6) O ponto de vista. Os pressupostos ideolégicos e a hierarquia de valo- res do narrador esto presentes nas entrelinhas da narragao, Antipatias e simpatias revelam-se na forma como os personagens sao criados. Pode acontecer de o leitor ser contaminado com as preferéncias do narrador e rejeitar determinado personagem ou, pelo contrario, ser-Ihe benevolente. O pont de vista pode ser inserido na narracao por meio de um comentario WW explicito, onde 0 narrador diz.com todas as letras seu ponto de vista, ou de um comentario implicito, onde se serve da linguagem simbélica, da ironia ‘ou do mal-entendido®. b) Andlise ret6rica O método da andlise retérica segue uma linha um tanto diferente. Seu in- tento consiste em delinear as estruturas de composigao dos textos, visando mostrar a disposigao das ideias ~ em outras palavras: como 0 texto est or ganizado, As estruturas aparecem sob a duas formas: estruturas paralelas e estruturas concéntricas, A anilise retérica comporta os seguintes passos: 1) Reeserever o texto. Longe de ser uma simples cépia, trata-se de apre- sentar 0 texto numa tal disposigao gréfica que permita visualizar a ret6rica do texto, nos diferentes niveis. Ao olhar o texto assim disposto, quem 0 analisa estaré em condigées de perceber as miiltiplas relagées no nivel das palavras (Jexemas), expressGes ou frases (sintagrns) e das formas (morfe~ mas). E, mais, no nivel das estruturas do texto, estar a ponto de poder re- conhecé-las e identificd-las. O trabalho deverd ser feito a partir do texto original, pois nenhuma tra- dug&o, mesmo a mais literal, daré conta de reportar todos os elementos contidos no original e repetir-lhe, com exatidao, a figura relérica. Se o nao conhecer a lingua em que o texto foi escrito, sera preciso propor uma fra- dugao funcional, que respeitard, o mais posstvel, o texto original, na sua composigao e forma. Tal tradugéo ficaré um tanto capenga, no tocante & gramaticalidade, mas a explicacao ajudaré a polir-lhe a aspereza. Importa, sobretudo, que seja um retrato fiel do texto original O texto deverd ser reescrito integralmente sem nenhuma omissao, pois cada clemento tem sua importancia no texto. Omitir significa mutilar 0 texto. Pode acontecer de o texto dever ser reescrito varias vezes, de acordo com a anéllise que se faz: uma vez para evidenciar os lexemas, outra, 0s morfemas, os sintagmas ou a estrutura. A sobreposicao de andlises, ser- vindo-se do mesmo texto reescrito, pode impedir a percepgio de elemen- tos importantes. Afinal, na base da andlise retorica esté a identificagao, no 9, Em conferéncia recente na Faje, em Belo Horizonte, o exegeta R. Marguerat resurmiu ma gistralmente 0 “instrumental” da andlise natrativa nos seguintes t6picos: 1) o enredo (0 que dé a narrativa sua unidade); 2) a construgio das personagens; 3) 0 ponto de vista (quem vé na narrativa, ¢ com que olhos); 4) a temporalidade (tempo do narradoe tempo da narragao); 5) 0 quadto (cenatios); 6) os comentaios do narrador. 192 texto, das identidades ¢ oposigdes, mediante diferentes cores ou recursos tipograficos. 2) Descrever o texto. Concluida a fase anterior, trata-se de fazer uma lei- tura da dinamica retérica do texto, descrevendo-lhe as caracteristicas for- mais. A descrigao se basearé na estrutura do texto, néo na mera ordem li- near (frase por frase, parégrafo por pardgrafo). Se o texto comporta uma estrutura concéntrica, poder-se-A partir do centro para os extremos ou dos extremos para o centro. O processo de andlise retrica apontara as in- ter-relagdes lexematicas, sintagmaticas ou seménticas e explicard como se processam. A descrig&o deverd se ater ao texto, evitando intromissdes de elementos nao presentes no texto original. 3) Ressituar o texto. Este passo énecessdrio quando o texto faz referencia a outros textos, cuja compreensdo 6 indispensdvel para entendé-lo. No caso do Novo Testamento, trata-se das referéncias aos textos do Antigo Testa- mento. Sem este expediente os textos neotestamentarios com referéncias yeterotestamentérias ficariam incompreensiveis. O texto referido (p.ex., uma citagao do Antigo Testamento no Novo) é parte do texto analisado. 4) Interpretar o texto. Os passos dados até entao sao preparatérios para a interpretagao. Esta consistira em redizer 0 texto, na linguagem do intér- prete e em suas categorias, com o que a andlise ret6rica possibilitou com- preender, Quem interpreta deverd ater-se aos elementos oferecicios pela andlise dos elementos formais do texto. Andlise formal e interpretagao ca- minharao de mos dadas. Tudo dependeré da capacidade de reflexaio do intérprete, no esforgo de fazer emergir a mensagem escondida nas entreli- nhas do texto. As relagdes de identidade e de oposigio, as diferengas e as semelhangas, os sinénimos e os anténimos sao todos carregados de senti- do a ser explicitado pelo intérprete. 9.2.6 Individuo e comunidade, sincronia e diacronia Convém matizar a observagao de que “o autor esta morto” {9.1.4}, ou seja, que ele nao est af para explicar o que quis dizer. Os textos biblicos sio comunitérios. Foram produzidos no.seio de uma comunidade e aju- dam a comunidade a continuar naquilo que os textos, no primeiro mo- mento, Ihe falaram. A comunidade 6, em certo sentido, guardia do signifi- cado original do texto ou, pelo menos, da continuidade entre o sentido ori- ginal e sua interpretagao atualizada, ou “hermenéutica” {10.1}. O ato do autor sobrevive na comunidade. O estruturalismo linguistico realiza uma leitura “sincrénica”, prescindindo da sucesso das diversas fases em que 193 se estabelece o sentido. Esta leitura, porém, deve ser parametrada pela percepciio de um sentido tradicional-evolutivo, transmitido historicamen- te e estudado na sua “diacronia” (= sucessio temporal). Se o autor desapare- ceu, sua comunidade esté af e possui instancias para mostrar o sentido de sua autoexpressio: 0 consenso das comunidades, o “magistério’ ete. Isso pode gerar conflitos entre os que leem o texto no conexto da co- munidade ¢ os que nao o leem assim, talvez projetando significacdes que a comunidade nao reconhega. Porém, mesmo dentro dos limites da signifi- cagao aceitdvel para a comunidade, a leitura construtiva permite o desen- volvimento de varios significados novos, sem contradizer o sentido origi- nal. Portanto, para no matara criatividade das préprias comunidades em dar sempre novo sentido as palavras de sua fé, a fungao do “magistério” deve ser de excluir o que for incompativel, endo de prescrever o que € per- mitido pensar. 9.2.7 O efeito do texto Um modo interessante de verificar qual € a potencialidade significativa do texto é ver o efeito que provocou nos leitores e nos ambientes por ele atingidos, direta ou indiretamente, depois de sua entrada em circulacio. “Pelos frutos se conhece a arvore”. Acima falamos da gestacéo enascimento do texto (tradigao, forma literéria e redagao) {9.1.3}, para mostrar o sentido assumido pelo autor. Agora trata-se dos efeitos de sentido ulteriores (alem. Wirkungsgeschichte), gerados pelo texto j4 publicado e conhecidos por ou- tros indicios: 1) textos que se inspiram no texto (biblico) em questo (p.ex. a literatura dos antigos te6logos cristaos — os Santos Padres ~ comentando ou explicando os escritos bfblicos); 2) comportamentos ou instituigées das comu- nidades judaicas ou cristas; neste caso, a prépria pratica da vida torna-se um indicio do sentido do texto percebido pelas comunidades. 10. Por magistério entende-se 0 servigo de ensino. Na Igreja Catélica 0 termo indica tam- bém 0 minus de ensino dos bispos, responsdveis pela compreenséo da fé de sua comuni- dade.

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