O Livro de Hans Staden PDF

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ILUSTRAÇÃO DO LIVRO “DUAS VIAGENS AO BRASIL” DE HANS STADEN (1557)

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LITERATURA

O relato feito pelo alemão Hans Staden, em 1557, sobre o período em que foi prisioneiro dos
tupinambás em terras brasileiras, não deve ser visto apenas como um livro de aventuras. Uma
análise do contexto da elaboração e publicação da edição original e de variados aspectos da
narrativa sugere que, além de um retrato minucioso dos conflitos entre colonizadores e nativos
e do cotidiano de um grupo indígena do século 16, o livro contém informações que permitem
novas e instigantes leituras sobre o período inicial da colonização.

LUCIANA VILLAS BÔAS


Departamento de Letras Anglo-Germânicas,
Universidade Federal do Rio de Janeiro

O LIVRO DE
HANS STADEN
E A HISTÓRIA DO
BRASIL COLONIAL
ausa surpresa saber que o primeiro livro impresso sobre o Brasil foi publica-
do em Marburg, na Alemanha, em 1557. Mas as políticas monopolísticas de Por-
tugal ditavam sigilo sobre sua nova colônia e, enquanto isso, as primeiras notícias
sobre o Novo Mundo saíam das prensas italianas e alemãs. O livro de Hans Staden
ecoa os lugares-comuns propagados por impressos na primeira metade do século 16
sobre a América. O título estampado em vermelho anuncia a “história verda-
deira” de uma gente “nua, feroz e canibal”, vivida e narrada pelo próprio via-
jante “Hans Staden von Homberg” e divulgada de forma inédita pela imprensa.
Se hoje basta dar um clique no mouse ou no controle remoto para acessar lugares
desconhecidos, no século 16 o livro impresso era o principal, senão o único, veículo à disposição dos
curiosos. O livro de Staden, rapidamente disseminado pela imprensa em sucessivas edições e tra-
duções, teve um papel destacado na formação de um imaginário sobre o “Novo Mundo também
chamado América” e seus antigos habitantes. >>>

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ESPÍRITO AVENTUREIRO
Hans Staden nasceu em 1525 em Homburg, vila da região de Héssia,
no centro da atual Alemanha. O desejo de conhecer a Índia, como
conta em seu livro, o levou a Portugal. No final de 1547, em Lisboa,
foi incluído na tripulação de um navio encarregado de coletar
pau-brasil e combater navios franceses na grande colônia na Amé-
rica do Sul. Chegando à capitania de Pernambuco, no início de 1548,
o navio ajudou o governador, Duarte da Costa, a combater uma
rebelião indígena e voltou a Lisboa em outubro do mesmo ano.
Em 1549, Staden embarcou na esquadra espanhola que
levaria ao rio da Prata e à cidade de Assunção o novo ‘governador’
da região, Diogo de Sanabria, mas o navio que o levava naufragou
perto do litoral do atual estado de São Paulo. A tripulação alcançou

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a terra e, depois de viver algum tempo na região, dividiu-se: um
grupo decidiu seguir para Assunção, por terra, e outros náufragos,
entre eles Staden, foram para São Vicente. Nesse povoado
português, o alemão foi contratado para a guarnição do forte de
Bertioga, recém-construído para proteger São Vicente dos ataques
dos tupinambás.
No início de 1553, os índios o aprisionaram, e seu convívio com
a tribo durou cerca de nove meses. Foi trocado por mercadorias
com o navio corsário francês Catherine de Vetteville. Staden
retornou à Alemanha em 1555 e, dois anos depois, publicou o
relato de suas viagens. Morreu em 1579, em seu país.

Tão extensa e variada é a história desse livro que seria e um contexto de publicação não colonial molda a “história
impossível sintetizá-la aqui. Na Europa, a história sensa- verdadeira” do livro. Neste ensaio, tomando como ponto
cional do cativeiro de Staden e as inúmeras ilustrações de partida aspectos materiais da edição original de 1557,
originais renderam ao livro tamanha popularidade que tentaremos responder a essa pergunta. Convidamos o lei-
alguns estudiosos o consideram um dos primeiros best- tor a um exercício de imaginação histórica que lhe permi-
-sellers europeus. Para dar apenas uma ideia de sua re- ta dedicar atenção e cuidado às formas do passado que
percussão no Brasil, basta lembrar que, após ser transfor- chegaram até nós.
mado por Monteiro Lobato (1882-1948) em verdade his-
tórica palatável ao público infantil, em 1927, inspirou Cativeiro como salvação A folha de rosto do li-
Nelson Pereira dos Santos a contestar, no filme Como era vro de Staden – que, como era comum então, era vendido
gostoso o meu francês (de 1970), a autoridade dos primei- antes de ser encadernado – indica como as estratégias de
ros textos coloniais. No âmbito da etnografia e da história credibilização do relato se associam aos novos recursos ti-
dos índios tupinambás, as interpretações da antropofa- pográficos. Ao lado do peso conferido ao nome do viajan-
gia como um ritual de vingança e como distinção pessoal, te, alardeado como testemunha e autor do relato, apare-
introduzidas no livro de Staden, seriam retomadas, res- cem também os nomes de Felipe da Héssia (1504-1567),
pectivamente, nas obras do sociólogo Florestan Fernandes o príncipe protestante a quem o livro é dedicado, e Johann
(1920-1995) e do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Dryander (1500-1560), professor de medicina da univer-
Edições recentes em português e outras línguas atestam sidade de Marburg, que prefacia o livro. O aval do prin-
a atualidade e o fascínio exercido pelo livro, que ao longo cipado e da universidade, ambas instituições estabeleci-
dos séculos acumulou leitores de culturas tão diversas e das no decorrer da reforma protestante, confere ao livro
distantes no tempo e no espaço. É notável, nesse sentido, o caráter de um impresso oficial.
que desde sua publicação a narrativa de Staden se origine Também o lugar de impressão, na folha de rosto, e o
de contextos marcadamente distintos: a Alemanha protes- nome, nas notas finais, do tipógrafo Andreas Kolbe, espe-
tante e o Brasil colonial. Por ser um dos mais importantes cializado em publicações acadêmicas e documentos do
registros documentais sobre o Brasil colonial, é preciso in- governo, deviam reforçar essa impressão entre os leitores.
dagar como a coincidência entre uma experiência colonial Do ponto de vista da autoria, salta aos olhos como a narra-

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tiva em primeira pessoa, fundada na experiência do indi- protestantes. Ao transformar o mercenário a serviço de mo-

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víduo “Hans Staden von Homberg”, depende do favor narcas católicos em súdito fiel do príncipe protestante, a
do príncipe e da aprovação da universidade. publicação do relato sela a readmissão de Staden à Héssia.
Um olhar minucioso sobre os preâmbulos do livro su- A narrativa parece confirmar em muitas passagens essa
gere que o estabelecimento de Staden como autor envolveu interpretação do cativeiro como exemplo de salvação. No
a aplicação de extraordinário controle e sanção. Em seu entanto, a leitura cuidadosa do texto revela que tanto a
longo prefácio, o médico-editor (Dryander) empresta sua captura quanto o resgate são atrelados às condições espe-
autoridade para autenticar o relato, destacando, entre cíficas da experiência de Staden no Brasil colonial e à
outras coisas, que o texto impresso deriva do relato oral situação da recém-fundada capitania de São Vicente.
produzido pelo viajante durante interrogatório conduzido
diante de várias “autoridades”, inclusive o próprio prínci- Visão peculiar da colônia O relato compreende
pe. O ‘exame’ público ao qual, segundo o editor, Staden foi duas viagens. Na primeira (de 1547 a 1548), Staden deixa
submetido contrasta com seu status de integrante da co- Lisboa para participar de conflitos no Nordeste brasileiro.
munidade político-religiosa da Héssia. Na verdade, indica Na segunda (de 1549 a 1555), sai de Sevilha rumo à região
que o soldado mercenário contratado pelas coroas portu- do rio da Prata e naufraga no sul do Brasil. Nos capítulos
guesa e espanhola e indianizado pelo cativeiro entre os que precedem a captura, há descrições preciosas dos pri-
tupinambás tornara-se objeto de suspeita e investigação. meiríssimos engenhos na região de São Vicente, o mais
O ato de narrar oralmente e por escrito suas experiências antigo povoado colonial, e dos ‘mamelucos’ como filhos
de viagem e, em seguida, o ônus de arcar com os custos de de mãe índia e pai português, mas também como “expe-
publicação são os mecanismos que efetuam a reintegração rientes e desenvoltos nas línguas e nos modos de guer-
do viajante. Além disso, a interpretação do retorno de Hans rear cristãos e selvagens”.
Staden à Héssia como salvação miraculosa, apresentada Além de conter referências à mão de obra escrava, o
pelo editor, conforma o relato não apenas à doutrina pro- texto insinua uma ligação entre a escravização indígena e
testante da salvação somente pela fé, mas também à pro- o agravamento dos conflitos entre índios e colonos. Esse
fissão de fé pública exigida para admissão em instituições argumento, ainda corrente na historiografia do período >>>

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colonial, parece ser ilustrado pelo próprio cativeiro do penitencial e, desse modo, também exibem o processo
soldado alemão. Pois, ao deixar o forte de Bertioga para de ‘indianização’ por que passa ao longo do cativeiro.
caçar na companhia de um “escravo” ou “cativo”, Staden O texto reitera a capacidade de Staden de guerrear, fa-
é aprisionado pelos índios como inimigo português. zer profecias ou curar doentes ao “modo dos selvagens”.
Os intricados ritos de captura, segundo o narrador de Há quem atribua a figura de um Staden indianizado
primeira pessoa, contradiziam a expectativa de ser devo- ao uso da capacidade de imitar os tupinambás ou de assi-
rado prontamente, assentada na visão de um canibalismo milar elementos da cultura indígena, entendidas como
alimentar, então emblemática do Novo Mundo. A narra- estratégias de manipulação e, portanto, de dominação
tiva como um todo se distingue pela oposição recorrente colonial. No entanto, o livro de Staden complica as pre-
entre expectativas prévias e o conhecimento adquirido missas dessa interpretação. Sobretudo nos diálogos in-
durante o cativeiro. As imagens também são marcadas pela cluídos na narrativa, os tupinambás expressam dúvidas,
transformação do viajante. Repletas de reminiscências hesitam e, principalmente, discordam do prisioneiro,
católicas, as ilustrações da captura trazem para o primeiro cujas afirmações muitas vezes apagam a distinção entre
plano o corpo do prisioneiro, inteiramente nu e em pose seu ponto de vista e o de seus captores.
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Capaz de falar a língua de seus captores e discernir as (1560-1592) – participa, após ser preso e escravizado
alianças entre nativos e europeus – tupiniquins e portu- pelos portugueses, de inúmeras expedições para escravi-
gueses, de um lado; tupinambás e franceses, de outro –, zar índios nos sertões.
Staden tenta se desfazer de sua condição de inimigo por- A análise do relato de Staden seria incompleta se não
tuguês afirmando ser francês. Confrontado com um amigo levássemos em conta uma parte do livro que, separada da
francês de seus captores, chamado Karwattuware, Staden narrativa pessoal de cativeiro, é apresentada como “des-
só compreende seu presumido aliado cristão quando este crição” impessoal dos costumes dos tupinambás. Essa
se dirige aos índios em tupi para dizer que se trata de um descrição é um dos primeiros textos em que são usadas,
prisioneiro português. A cena é notável por duas razões: de modo sistemático, categorias etnográficas clássicas, o
derruba a presunção de identidade única dos europeus que revela a participação de Dryander, médico humanista.
cristãos, em contraposição a selvagens americanos, e con- Mas ela também inclui categorias novas, adaptadas à
diciona a definição de novas identidades (como tentou descrição particular dos tupinambás, o que reflete a cola-
fazer o prisioneiro) às perspectivas dos diferentes atores boração estreita entre o médico-editor e o viajante, e a
que se confrontavam no espaço colonial. prática editorial de outros médicos que divulgaram relatos
A partir desse momento, Staden procura se afastar da do Novo Mundo.
condição de inimigo de seus captores: tenta traduzir o poder Por um lado, a descrição impessoal que apresenta os
de seu deus, revela informações sobre o forte de Bertioga tupinambás como estranhos e notáveis, mas verdadeiros
e participa, “de acordo com os costumes” dos tupinambás, e classificáveis, parece compensar a narrativa dramática
da guerra contra seus antigos aliados. Reconhecido por do cativeiro, na qual a diferença entre o cativo e seus cap-
prisioneiros “mamelucos cristãos”, busca confortá-los, mas tores se atenua progressivamente. Por outro, o preâmbu-
estes afirmam que ele “endureceu” entre os “selvagens”. lo do médico-editor não atribui explicitamente à etnogra-
O chefe Cunhambebe, imortalizado nos Retratos verdadei- fia qualquer função teológica ou didático-moral. Antes,
ros e vida de homens ilustres, do frade francês André Thevet parece ilustrar a curiosidade etnográfica e as formas de
(1502-1590), como grande “monarca tupinambá”, convida sistematizar conhecimento empírico próprias do huma-
o cativo alemão, seu novo aliado, para comemorar o desfe- nismo renascentista.
cho da batalha contra os portugueses. Festejando ao lado O livro de Staden também é pioneiro no uso de ima-
dos índios, Staden repreende a execução e o sacrifício das gens como evidências visuais. A força de suas imagens e
vítimas e propõe, em vez disso, que sejam vendidas como do texto que as acompanha não se exauriu: elas conti-
escravos. Nesse diálogo cristalizam-se duas visões e funções nuam a ser estampadas em livros didáticos e acadêmicos.
antagônicas da guerra na colônia: a guerra para a venda de Devemos nos perguntar no que reside seu apelo, a que
escravos e a guerra para o sacrifício ritual das vítimas. repertórios de imagens são associadas, a que estratégias
À luz da historiografia sobre o século 16, é possível si- de credibilização. O estudo da materialidade do texto,
tuar o confronto encenado no texto de Staden no perío- do livro como um artefato cultural complexo, pode trazer
do anterior a 1570, quando os índios ainda não tinham à tona – a exemplo de nossa análise da edição original
perdido a guerra contra os colonizadores. Isso porque, – contextos que permitam reavaliar as narrativas histó-
como já indicamos antes, os eventos narrados iluminam o ricas estabelecidas. Ao questionar o seu lugar em narra-
processo que os historiadores denominaram “do escambo tivas sobre a Reforma protestante, o século 16 e a literatu-
à escravização” e à colonização propriamente dita. No pri- ra de viagem, o livro de Staden abre novas possibilidades
meiro momento desse processo, teriam predominado de se imaginar e reescrever a história colonial.
as trocas pacíficas e recíprocas entre índios e colonos, no
segundo, o uso da força e o agravamento dos conflitos.
Pode-se argumentar que a narrativa de Staden docu-
menta o início de um projeto colonizador e a mudança na
condução da guerra, mas também a série de rebeliões Sugestões para leitura
indígenas.
No relato, não cabe a ninguém a palavra final. É fasci- STADEN, H. Duas viagens ao Brasil. São Paulo, Edusp, 1974 e Belo Horizonte,
nante como o conflito em torno da identidade do viajante Itatiaia, 2002.
nunca se resolve inteiramente. Mesmo após guerrear ao ABREU, M. ‘Da fé em Deus à brasilidade: uma história do livro e da leitura
em Duas viagens ao Brasil, de Hans Staden’, em MARI, H.; WALTY, I.;
lado dos tupinambás, ainda há entre os índios quem veja VERSIANI, Z. (Orgs.). Ensaios sobre leitura. Belo Horizonte, Editora Puc-Minas,
nele um inimigo. Para outros, é um português cujo deus é v. 1, p. 206, 2005.
mais poderoso, ou um parente dos franceses. No final, seus WHITEHEAD, N. L. e HARBSMEIER, M. ‘Introduction’, em STADEN, H, Hans
captores permitem que embarque em um navio francês, Staden’s true history. An account of cannibal captivity. Londres,
em troca de algumas mercadorias. É notável que Staden Duke University Press, p. XV, 2008.
ZIEBELL, Z. ‘Hans Staden. Homo ludens.’, em Terra de canibais.
tenha sido resgatado pela prática do escambo. Já em con- Porto Alegre: Editora UFRGS, p. 237, 2002.
texto bem diferente, Anthony Knivet – náufrago inglês
da expedição, em 1591, do pirata Thomas Cavendish

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