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FERREIRA, Marieta de Moraes. Desafios e demas da histéria oral nos anos 90: a caso do Brasil, Historie Oral, Séo Paulo, n° 1, p.19-30, jun. 1998, DESAFIOS E DILEMAS DA HISTORIA ORAL NOS ANOS 90: O CASO DO BRASIL* Marieta de Moraes Ferreira 1-INTRODUCAO Como é sabido, a historia oral, desde seu surgimento nos anos 50, desenvolveu- se de forma significativa nos paises da Europa Ocidental e nos Estados Unidos. A reatizagdo de encontros internacionais sempre sediadas na Europa e nos Estados Unidos, © a pequena participaciio de pesquisadores da Asia, da Africa ¢ da América Latina nesses enconttos apenas confirmam a que acabo de dizer. Como é sabido, também, a histéria oral enraizou-se, nesses paises, no apenas no meio académico, mas principalmente no seio dos movimentos sociais. Seu compromisso inicial, como ja se assinalou tantas vezes, foi o de "dar voz aos excluidos € marginalizados". Ora, os chamados paises em desenvolvimento caracterizam-se exatamente pela exchisio das suas grandes massas trabalhadoras. Seriam um campo privilegiado para o desenvolvimento dessa histéria oral dos excluidos, mas a afirmagao a historia oral foi ai mais tardia, resultado de um proceso fento e descontinuo. ‘© que explica essas dificuldades de expansio da histéria oral em paises que potencialmente dispunham de condigbes propieias ao seu desenvolvimento? Vamos ‘tentar responder a esta pergunta tomando como referéncia o caso do Brasil AS primeiras experiéncias sisteméticas no campo da histéria oral no Brasil datam de 1975, a partir de cursos fornecidos por especialistas norte-americanos e mexicanos patrocinados pela Fundacdo Ford. Esses cursos foram ministrados na Fundagao Getulio Vargas, no Rio de Janeiro, e voltavam-se para um piiblico de professores e pesquisadores de histéria e ciéncias sociais oriundos de diferentes instituigdes. Pretendia-se difimdir 0 uso da metodologia de maneira a implantar programas de histéria oral em diferentes universidades e centros de pesquisa por todo 0 pais, privilegiando a investigagao de temas de interesse local. Pretendia-se também * Confeséacia promunciada na abertura da IX Inlemnational Oral History Conference, realizado na Suécia, em junho de 1996, Este texto foi pubblicado na Revista Historia Oral n® 1, Sd0 Paulo, Associagio Brasileira de Histéria Oral-ABHO, eslabelecer eanais regulares de interedmbio entre esses pesquisadores através da eriagao de uma associagao de hist6ria oral Um balango dos resultados dessas iniciativas pioneitas, passados quase vinte anos, revela um saldo positive, mas muito aquém das pretensdes expressadas naquela ‘epoca. E verdade que a pritica da histéria oral pouco a pouco ganhou novos adeptos, ‘mas de forma precéria e desorganizada. A desejada montagem de uma rede de programas de histéria oral nas diferentes instituigdes e estados, ¢ 0 imeredmbio regular entre os pesquisadores da area através da criaco de uma associagdo nao se concretizaram. De toda forma, nos anos 80, especialmente no periodo da abertura politica (ou seja, quando, _apés vinte anos de dominacdo, o regime militar instaurado em 1964 comecou a sair de cena), um numero crescente de programas foi criado, em universidades ou em diferentes instituicées voltadas para a preservacio da meméria, Igualmente, o nimero de pesquisadores que usavam a metodologia da historia oral na elaboragio de suas teses de mestrado e doutorado foi se tomando expressivo, embora seja dificil fazer uma avaliagio dos resultados obtidos nesses trabalhos, pois n&io_eram trabathos que lidassem ‘exclusivamente com fontes orais. _ ‘© desempenho dos programas institucionais mostrou-se ainda assim bastante irregular. Se alguns conseguiram se firmar, construindo acervos importantes produzindo pesquisas significativas, muitos nfo passaram de um amontoado de fitas -guardadas de forma desorganizada num depésito qualquer, sem um projeto de pesquisa que Ihes servisse de espinha dorsal. Também foi problematica a admissio da histéria oral no campo académico, onde se percebiam resisténcias ou indiferengas. Na area de historia podia-se notar uma resisténcia forte, enquanto antropdlogos e socidlogos demonstravam uma certa indiferenga, ja que a pesquisa com depoimentos orais era uma experiéncia antiga em seus respectivos campos disciplinares. Até 0 comeg dos anos 90, portanto, tinha-se o seguinte quadro no Brasil: a historia oral nflo merecia figurar nos curriculos dos cursos universitirios, implicava Pouca reflexiio e no constava das programagies de seminsrios e simpésios. Creio que varias ordens de fatores podem explicar essas dificuldades para a Tegitimagdo da historia oral no Brasil: de um lado, questées de ordem politica ¢ econdmica, e de outro, as caracteristicas da pripria concepgdio de historia dominante nos meios académicos brasileiros. Para iniciar poderiamos dizer que a vigéncia de um regime ditatorial militar durante mais de duas décadas funcionou como um forte elemento de inibigdo para a abertura e consolidagio de programas de entrevistas. © emor de dar depoimentos, especialmente quando se tratava de opositores do regime, era um obsticulo concreto ¢ central. Um segundo aspecto a ser considerado & que a histéria dominante nas tiltimas décadas — como também ja foi fartamente assinalado, pois este no é um fenémeno apenas brasifeiro — tinha como referéneia 0 paradigma estraturalista. On seja, sustentava que_o importante era identificar as estruturas que, independentemente das percepcdes e das intengdes dos individuos, comandavam os mecanismos econdmicos, organizavam as relagdes sociais, engendravam as formas de discurso. Esta maneira de fazer histéria, a0 valorizar 0 estudo dos processos de longa duracdo, atribuia as fontes seriais e as téenicas de quantificagio uma importéncia dlise_do papel do individuo, da icos, desqualificava 0 uso dos relatos pessoais, das historias de vida ¢ das biografias. Condenava a sua subjetividade, levantava dividas sobre as visdes distoreidas que apresentavam, enfatizava a dificuldade de se obter relatos fidedignos. Alegava-se que os depoimentos pessoais no podiam ser considerados representativos de uma época ou de um grupo, pois a experiéncia individual expressava ‘uma visto particular que néo permitia generalizagdes, Nao é preciso dizer que estavam excluldas as possibilidades de incorporacao das fomtes orais a0 campo de investigagio do historiador. fundamental. Em contrapartida, ao desvalori conjuntura, dos aspectos culturais e pol Este modelo de historia estabelecia ainda uma desconfianga em relagio a0 estudo dos periodos recentes, definido por alguns historiadores como a histéria do tempo presente, A historia do tempo presente tem forgosamente de lidar com testemunhas vivas, que podem vigiar © contestar o pesquisador, afirmando sua vantagem por terem presenciado © desenrolar dos futos. Mas 0 que se sustemtava era a necessidade do distanciamento temporal do pesquisador frente a0 seu objeto, através daquilo que os historiadores costumam chamar de visdo retrospectiva. Debrugando-se apenas sobre processos historicos cujo desfecho jé se conhecia, a histéria eriava limitagdes para o trabalho com a proximidade temporal, por temer que a objetividade da pesquisa pudesse ficar comprometida Esta forma de conceber a histéria era também dominante entre as universidades © 08 pesquisadores brasileiros, ¢ isto evidentemente criava resisténcias profundas & aceitagdo do uso das fontes orais ¢, mais ainda, ao desenvolvimento da metodologia da historia oral, Trabalhar com historia otal significava enfrentar todo tipo de criticas ¢ questionamentos, especialmente se o tema estudado se relacionasse com classes dominantes ou elites politicas, No inicio dos anos 90 este quadro softeu transformagdes profundas que possibilitaram um verdadeiro boom da histéria oral. Este boom pode ser explicado a partir de mudangas no préprio campo da histéria, com o rompimento do paradigma estruturalista, mas também a partir de transformages mais gerais na sociedade brasileira, (© que aconteceu no campo da pesquisa hist6rica? Em linhas gerais, revalorizou- se a anilise qualitativa, resgatou-se a importineia das experiéncias individuais, ou seja, deslocou-se o interesse das estruturas para as redes, dos sistemas de posigdes para as situagdes vividas, das normas cofetivas para as situagdes singulares. Paralelamente, a histéria cultural ganhou novo impulso, 0 estudo do politico experimentou um renascimento, ¢ finalmente foi aceito o estudo do contemporineo. aprofundamento das discussdes acerca das relagdes entre passado e presente na histéria, e 0 rompimento com a idéia que identificava objeto histérico e passado, definido como algo totalmente morto e incapaz de ser reinterpretado em funeo do presente, abriram novos caminhos para o estudo da historia do século XX. Nesse movimento, foi exiremamente significativa a expanstio dos debates acerca da meméria de suas relagdes com a hisiéria, Essas discussdes estimularam 0 abandono de uma visio determinista que limita a liberdade dos homens, e levaram ao reconhecimento de que os atores constroem sua propria identidade, Demonstraram também de forma inequivoca que 0 passado é construido segundo as necessidades do presente, e que portanto se pode fazer usos politicos do passado. Estas novas perspectivas evidentemente alargaram os horizontes da historia oral: estavam neutralizadas as criticas tradicionais, ja que a subjetividade, as distoredes dos depoimentos ea falta de veracidade a eles imputadas podiam ser encaradas de uma nova maneira, no como uma desqualifica¢ao, mas como uma fonte adicional de significados para 0 pesquisador. Estas transformagdes ocorridas no campo da pesquisa histérica (em especial na Franca) provocaram um grande dinamismo que se traduzin numa grande vitalidade do ‘movimento editorial, numa renovagio dos cursos de pés-graduago, mum aumento expressivo do nimero de pesquisadores e professores, e num interesse crescente da sociedade em geral pelos temas histéricos. No caso brasileiro, estas alteragdes tiveram reflexos importantes no perfil dos cursos de historia, que ampliaram suas linhas de pesquisa, incomporaram de forma definitiva o estudo do tempo presente, ¢ abriram espago para a hist6ria oral. E preciso nflo esquecer também que a sociedade brasileira nos anos 90 reforgou sua pritica democritica, J4 iam Ionge os anos em que se considerava arriscado falar, passara a época em que toda modalidade de historia que nao a das estruturas econdmicas era vista coni maus olhos, As curiosidades se ampliaram, ¢ aflorou o interesse da sociedade pela recuperagdo da meméria coletiva e individual Il- TENDENCIAS DA HISTORIA ORAL NO BRASIL Nesse movimento de expansio da histéria oral no Brasil nos anos 90 pode-se detectar desde ji és grandes linhas de trabalho: a histéria oral feita na academia, a histéria oral comunitéria ¢ histéria oral empresariai, Nossa proposta & mapear essas trés tendéncias, apontando os desafios ¢ dilemas que caracterizam cada uma delas. 1A histori oral feita na academia: quem faz.e para quem faz? Como ji foi exposto aqui, a introdugdo da histéria oral no Brasil ocorreu essencialmente através dos meios académicos, dos centros de pesquisa e das niversidades. Os programas de hhistéria oral implantados a partir dos anos 70 procuraram formar acervos de depoimentos orais de diferentes grupos da sociedade brasileira, com 0 objetivo de ampliar o eonhecimento sobre a vida politica do pais ¢ apontar os entraves que impediam 0 acesso da grande maioria da populago aos beneficios da cidadania. Paralelamente aos programas institucionais, a histéria oral difundiu-se também entre pesquisadores individuais que preparavam teses de mestrado e doutorado. Jovens pesquisadores auténomos passaram a utilizar entrevistas de historia oral em suas pesquisas de ciéncias sociais ou de histéria, explorando temiticas como classe trabalhadora, minorias © grupos discriminados (como negros ¢ mulheres), fabricas, bairros ete. © boom da histéria oral nos anos 90, a que nos referimos hé pouco, traduziu-se nia ineorporagdo, pelos programas de pés-graduagio em histéria, de cursos vyoltados para a discussao da histéria oral, mas pela multiplicagdo de semindrios. Por ‘outro lado, © estabelecimento © aprofundamento de contatos com pesquisadores aio si estrangeiros e com programas de reconhecido mérito internacional, propiciados por esses encontros, criaram canais importantes para o debate e a troca de experiéncias. Por iniciativa de institigdes académicas ¢ da Associagao Brasileira de Historia Oral, realizaram-se no Brasil, nos tltimos anos, trés grandes encontros: o II Encontro Nacional de Historia Oral (Rio de Janeiro, 1994), 0 1 Encontro Regional da Regido Sul- Sudeste (Sao Paulo/Londrina, 1995) e o III Encontro Nacional (Campinas, 1996). A primeira reunido, para a qual foi feita uma convocagio ampla — o que exigiv um trabalho érduo em face da desarticulagdo daqueles que trabathavam com hist6ria oral no pais —, contou com a participagao de 250 pesquisadores, dos quais 60 apresentaram papers. Péde-se constatar uma forte presenga da comunidade académica nos projetos de histéria oral em andamento no pais, sendo pouco expressiva a participagio de grupos sindicais, associagdes de moradores, empresas ou mesmo arquivistas, Entre aqueles que apresentaram trabathos, os doutores predominaram amplamente, sendo inexpressiva a presenca de estudantes da pés-graduagao ou da graduacdo. No que diz respeito formagio, diversamente do que se observava na década de 1980, quando os pesquisadores que trabalhavam com hist6ria oral eram majoritariamente cientistas sociais, verificou-se uma maioria de historiadores. Em relagdo ao contetido temitico dos ‘rabalhos apresentados, niio foi registrado um mimero significative de estudos voltados para as camadas populares. Observou-se, na verdade, uma abertura de espago para temas ainda pouco explorados, como movimentos intelectuais, burocratas, militares ¢ instituigdes. No I Encontro Regional da Regio Sul-Sudeste, observou-se mais uma vez a predominancia do meio académico e, dentro dele, dos historiadores. Do ponto de vista do conteiido dos traballios, pOde-se perveber um maior interesse por questées metodaligicas e por temas ligados 4 cultura popular. No conjunto de trabalhos apresentados no UL Encontto Nacional, detecta-se ainda uma vez uma maior participacdo de historiadores ligados a academia. £ importante ressaltar, entretanto, a entrada em cena de pesquisadores vinculados a érgios da administragZo piblica e entidades de classe, além de arquivistas. Nota-se ainda um aumento da patticipagio de estudantes de pés-graduagdo ¢ mesmo graduagdo, 0 que representa ura mudanga em relaggo ao encontro do Rio de Janeiro, dominado por doutores. Diferentemente, também, do encontro de 1994, & consideravelmente maior o niimero de estudos voltados para as camadas populares. Nessa drea, dois temas importantes tém sido objeto de preocupagio de muitos historiadores orais brasileiros: os meninos de mua e © movimento dos trabathadores sem- terra, A estrutura fundidria brasileira, caracterizada pela concentragao de grandes cextensdes de terres nas mios de uma minoria, gera um quadro de injustigas que tem produzido uma forte tensdo social no campo ¢ alimentado 0 movimento dos trabalhadores sem-terra. O problema dos meninos de rua também é um tema explosivo no Brasil e tem mobilizado setores importantes da sociedade na busca de solugies definitivas, Resumindo, portanto, constata-se que, no Brasil, a historia oral & praticada majoritariamente no ambito da academia. Isto nfo quer dizer que outros tipos de experiéneias no possam existir, ou que praticantes da histéria oral desvinculados de centros académicos no possam conviver com seus colegas universitarios. Isto tampouco er dizer quie os trabalhos académicos de histéria oral jé realizados ou em curso no Brasil sejam desconectados das demandas sociais ¢ alheios aos graves problemas que a sociedade brasileira enfrenta na atualidade. 2, Histori ios oral e projetos comu O que explicaria o ritmo lento de crescimento dos projetos comunitarios de histéria oral no Brasil? Primeiramente, é importante esclarecer que o Brasil é um pé com uma fraca tradigdo associativista. Inimeros autores tém-se dedicado a explicar este aspecto da sociedade brasileira associando-o a tradigdes culturais ibéricas, a0 nosso pasado escravista, agravado pela vigéncia de regimes autoritirios, Esses tragos estruturais, associados a uma forte crise econdmica e a mudangas de modelo de desenvolvimento, tém contribuido para o aprofundamento da desigualdade social inibido a consotidagio de associagdes comunitarias. A despeito desses graves problemas, alguns projetos comunitarios de historia oral puderam desenvolver-se no pais a partir dos anos 80. Foram projetos que abarcaram temas diversificados, como memérias de bairros, da militincia politica de trabalhadores sindicalizados de Sao Pauilo, de operarios aposentados e de processos de trabalho em fabricas. Inaugurados numa conjuntura de abertura politica, quando 0 pais retonava entamente & vida democritica, esses projetos de histéria oral foram implantados com 0 patrocinio das associagdes de moradores, que surgiam naquela época, ou cam o apoio das prefeituras municipais. Um exemplo & 0 Projeto de Histéria Oral do Bairro de Casa Amarela, em Recife, que resultou dos esforgos de uma federago de associagées de moradores ¢ posteriormente passou a constituir um modelo para projetos semelhantes. Muitas vezes, as prefeituras municipais nfo apenas deram apoio a projetos realizados por associagdes de moradores, mas criaram seus prOprios projetos. Foi o caso da prefeitura de Sao Paulo durante a gestio do Partido dos Trabalhadores, que implantou projetos de memérias de fibricas, de aposentados e de baitros. Projetos semelhantes também foram empreendidos por sindicatos de trabalhadores interessados em preservar sia meméria, como foi o caso do Sindicato dos Ferrovidrios do Rio de Janeiro. ‘A despeito dos esforgos efetuados para levar adiante esses projetos comunitiios, uma questo crucial ado pode ser esquecida: a da falta de apoio para garantir a continuidade deste tipo de trabalho. A realizagdo de projetos de historia oral no Brasil € uma atividade cara, considerando-se 0 nivel de renda médio de populagio. A. compra de gravadores e fitas, a transcrigfo, © arquivamento e a preservagiio do material requerem recursos significativos de que as associagdes comunitirias dificilmente dispdem. Assim, quase sempre, a manutengdo desses projetos fica condi nada & obiengdo de apoio de érgaos do governo, e as mudancas politicas, trazidas a cada elei¢ao, muitas vezes interrompem experiéneias em andamento, A escassez de recursos © conseqiiente instabilidade etiam por sua vez outros problemas, dificultando o estabelecimento de contatos regulares entre os grupos ou instituig. es, de maneira a div Igar as realizagdes. Alguns desses projetos realizados por prefeituras de pequenos municipios do interior brasileiro no chegam a ser conhecidos de um piiblico mais amplo, e até mesmo a Associagdo Brasileira Histéria Oral tem dificuldade em atingi-los. Existem ainda os projetos desenvolvidos por instituigdes mais estiveis, como ‘museus ¢ arquivos. Nessa linha merecem destaque os Museus da Imagem e do Som, de Sio Paulo e do Rio de Janeiro, o Instituto Marc Chagal e 0 Arquivo Histérico Judaico Brasileiro. Mesmo essas instituigdes sofrem constantemente mudangas administrativas © cortes de recursos que levam a interrupgao de projetos importantes Mesmo enfrentando essa série de dificuldades, os anos 90 téia aberto algumas novas possibilidades de trabalho. Existem projetos de historia oral sendo desenvolvidos por escalas secundérias e por associagdes de deficientes ou partadares de determinadas enfermidades. Um exemplo do primeiro caso é a criagio do Niicleo de Historia Oral do Colegio Sao Vicente de Paula, escola secundaria do Rio de Janeiro, que tem como objetivo o combate ao uso de drogas. Este programa é filiado a Associagao Brasileira de Histéria Oral, ¢ ainda que tenha sido criado recentemente tem demonstrado grande vitalidade exercido uma intervengaio social importante. Da mesma forma, um grupo de deficientes (Grupo de Apoio a Miclomeningocele) do Rio de Janeiro iniciou um projeto de registro de relatos das experiéneias de seus membros, seus familiares e médieos, visando a constituir um baneo de dados que permita a troca de informages e experiéncias. Ainda que estes sejam projets embriondrios, acreditamos que poderio constituir experiéncias bem-sucedidas. 3. Hist6ria oral come strumento de marketing Uma terceira tendéncia da histéria oral no Brasil hoje ¢ 0 desenvolvimento de projetos solicitados por empresas que desejam registrar sua trajetéria a partir de depoimentos orais. Estes projetos em geral se realizam em datas comemorativas. Nos liltimos anos"esta rea da histéria oral cresceu de maneira intensa, colocando novas questdes para a reflexao, Esta modalidade de trabatho se caracteriza pela relagdo que se estabelece entre 08 participantes do projeto, que & objeto de um contraro: de um lado esta o contratante, ou seja, 0 cliente, que iri pagar por um produto — tivro de depoimentos ou video — destinado a divulgar o papel de sua empresa no mercado, ¢ de outto esté o pesquisador contratado, que iré realizar o trabalho e receber pelos servicos prestados, Este Pesquisador pode ser um pesquisador individual, pode trabalhar para uma empresa de Publicidade, de divulgacdo, de promogaes etc., que entre outras atividades "faz" historia oral, ou ainda estar ligado a um centro de pesquisa de perfil académico. Em geral as empresas interessadas em encomendar projetos de histéria oral preferem contratar os servigos de instituigdes ou pesquisadores com vinculagdes acadé isso que o produto final ganhe maior legitimidade. © que explica esse interesse das empresas em patrocinar iniciativas com fins de propaganda com forte apelo ao passado e & meméria? O historiador francés micas, pretendendo com jierre Nora tem produzida interessantes reflexdes acerca do papel da meméria ¢ das comemoragdes nas sociedades contempordneas. A idéia basica é que essas sociedades, preocupadas com ‘ perda do sentido do passado ¢ com © aprofindamento da capacidade de esquecer, témm procurado recuperar o passado estabelecendo caminhos para uma redefinigdo de identidades. E um elemento importante nesse processo sdo as comemoragées, ceriménias destinadas a trazer de volta a lembranca, espaco propicio para se consolidar uma ligagio entre os homens fundada sobre a meméria, Voltando as empresas, podemos pereeber como, em momentos de redefinigaio de identidade, as comemoragées de aniversirios ganham importéncia e como a historia oral pode se constituir num instrumento til para valorizar e divulgar imagens. Que questées esta modalidade de pritica da histéria oral nos coloca? Quais sfio ‘suas vantagens, seus riscos e dilemas? As respostas para estas questées ndo so simples devem ser discutidas com euidado ¢ atengao. Poderlamos comegar apontando algumas vantagens, Em paises com recursos escassos destinados 4 cultura, com um pequeno numero de agéncias financiadoras, como o Brasil — onde hoje se assiste, além do mais, a uma reducdo do papel do Estado como agente financiador —, a entrada em cena de empresas privadas interessacas em patrocinar o resgate da meméria de uma atividade ow setor econémico pode parecer animadora. Certamente, também, & dos recursos provenientes da empresa privada que se poderd esperar inovagdes tecnolégicas — videos, ‘ed-roms ete. — que enriquecerio a dimensio técnica da pritica da histéria oral, Por outro lado, do ponto de vista de uma instituigao de perfil académico, a venda de projetos de historia oral’ pode significar a possibilidade de transferéncia de recursos para outros projetos de caracteristicas propriamente académicas ou sociais que nio encontrariam financiamemto de outra maneira, ou para a produgio e preservagio de acervos de depoimentos que poderio ser utilizados para outras pesquisas. Por exemplo, um projeto de historia oral encomendado por uma empresa de seguro de sade para comemorar seu aniversirio pode possibilitar a constituico de um acervo sobre o setor que ser de utilidade para pesquisadores futuros que desejarem fazer um estudo critico e analitico sobre 0 tema, E quanto aos riscos desta pritica? Quais sio eles? Primeiramente, a empresa que contrata servigos esta preocupada em criar ou mudar uma imagem ja existente, isto é, ela tem um projeto bem definido. Em geral ela toma a iniciativa de recuperar sua meméria em conjunturas de mudangas importantes, de politica interna ou de politica econémica do pais, quando sua imagem esti sendo alvo de critica, Isto reduz a autonomia dos pesquisadores que executam 0 projeto € coloca os resultados finais da pesquisa sob 0 controle da empresa contratante. Iniimeras vezes o pesquisador se vé envolvido na produgdo de uma imagem positiva de uma empresa que contraria os interesses mais gerais da sociedade, o que, do meu ponto de vista, coloca um problema ético relevante, Qual & 0 compromisso do pesquisador de histéria oral? Atender ao cliente que pagou pelos servigos que contratou, ou manter seus prinefpios éticos de trabalhar por uma maior democratizagio da sociedade? Este dilema, que se coloca para todos os que praticam a hist6ria oral através da venda de projetos, pode ter saidas diferentes. Evidentemente, ninguém ¢ obrigado fazer projeto algum. Aceito 0 projeto, instituigdes culturais ou educacionais com tradigdo académica tém forca suficiente para definir regras ou procedimentos no momento de elaboracio do contrato ¢ estabelecer limites de interferéncia do contratante. Empresas ou entidades privadas sem tradigao nos meios culturais © também sem outras fontes de recursos ficam muito mais vulneriveis a presses. Como suas atividades também nfo estio comprometidas com projeios de pesquisa, elas nao dispdem da possibilidade de num segundo momento produzir anialises criticas sobre © material que foi coletado, pois logo em seguida estardo engajadas em novos projetos de mesma natureza, Por todos essas razées, considero que a pritica da historia oral como instrumento de marketing & no minimo polémica, e se ela nao pode ser simplesmente descartada, deve ser vista com muito cuidado, Ill - CONCLUSOES 10 Por iudo o que fi dito, & possivel perceber a grande diversidade da histaria oral no Brasil, tanto no que diz respeito Aqueles que a praticam como fis concepgdes que a embasam, © que evidentemente gera divergéncias ¢ debates. Ainda assim a vitalidade deste campo ¢ inquestionivel, assim como € inquestiondvel a importancia da Associagao Brasileira de Historia Oral, estimnlando uma discussio imerdisciplinar entre historiadores, antropélogos, sociélogos, lideres comunitiios, eduicadores, psicélogos, ora organizendo seminérios, ora promovendo cursos, preparando publicacdes, divulgando uma vasta bibliografia estrangeira e brasileira Caberia perguntar aqui qual o sentido de apresentar para um piiblico tio diversificado o relato da experiéncia particular de um pais e que no tem uma historia nem tao longa nem tao importante na area da histéria oral. Tenho observado que uma atengio grande tem sido dada ao relato do desenvolvimento da histéria oral em diferentes Paises ¢ regides. Os niimetos 13 ¢ 14 da revista Historia y Fuente Oral publicaram trabalhos de Mercedes Vilanova, Philippe Joutard, Dora Schwarzstein e David K. Dunaway, entre outros, nesta linha. Igualmente, Philippe Joutard, no 18th International Congress of Historical Sciences realizado no Canadé, apresentou um balango da evolugao da histria oral nos iiltimos 25 anos, Alistair Thomson, Michael Frisch e Paula Hamilton sio autores com preocupacées semelhantes, Qual o interesse de tantos balangos? No meu entender, eles abrem a possibilidade de se conhecer as experiéncias dos diferentes paises ¢ garantem o espaco para a diversidade. Assim como a histéria oral Teconhece que as trajetérias dos individuos ou grapos merecem ser ouvidas, também as ‘especificidades de cada sociedade devem ser conhecidas e respeitadas, REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS Bon Meihy, José Carlos Sebe (org.). (ReJintroduzindo a histéria oral no Brasil. Sto Paulo, Xama/USP, 1996. Chartier, Roger. "Le Regard de rhistorien modemiste”, in Eerire histoire du temps présent, Paris, CNRS Editions, 1992. Ferreira, Maricta de Moraes (org,), Entre-vistas: abordagens e usos da histéria oral. Rio de Janeiro, Ed. da Fundagio Getulio Vargas, 1994. — (org.). Histéria oral e interdisciplinaridade, Rio de Janeiro, Diadorim, 1995, u Historia y Fueme Oral, n° 13: Al margen. Barcelona, 1995. Historia y Fuente Oral, n° 14: Por una historia sin adjetivos. Barcelona, 1995. Joutard, Philippe. "L’Histoire orale: bilan d'un quart de siécle de reflexion méthodologique et de travaux", 18th International Congress of Historical Sciences. Montréal, 1995, p. 205-228. ‘Nora, Pierre (org.). Les Liewx de mémoire. 7 vol. Paris, Gallimard, 1984-1993. Thomson, Alistair; Frisch, Michael; Hamilton, Paula. "The Memory and History Debates: ‘Some International Perspectives", Journal of Oral History Society, vol, 22, n° 2, 1995, p. 33-43,

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