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Educação e identidade nacional brasileira

Elomar Tambara*

Resumo
Este trabalho tem como objetivo analisar alguns aspectos relacionados à peculiar relação que
se estabelece entre o sistema escolar brasileiro e a constituição da identidade nacional. A ideia
motriz é demonstrar que tanto um como outro estão vinculados aos processos constitutivos
originários de sua formação, marcadamente o século XIX. Tais “cicatrizes” constituem os
elementos fundamentais da identidade brasileira que hodiernamente ainda está se consoli-
dando.

Palavras-chave: Identidade nacional. História da educação. Sistema escolar.

1 Introdução

Apreender qual é a identidade nacional brasileira é uma tarefa


bastante difícil de ser executada. Em verdade, particularmente no caso
do Brasil, pode-se observar que esta, ainda hoje, não apresenta uma se-
dimentação tal que cristalize determinadas características tornando-a
peculiar. Em verdade, o desenvolvimento da formação socioeconômica
brasileira tem se distinguido por uma mutabilidade bastante intensa e
talvez seja este, contraditoriamente, a único elemento permanente – isto
é a transformação.
Neste sentido evidencia-se uma relação tensa entre o processo de
desenvolvimento da forças produtivas da sociedade e as demandas po-
líticas oriundas de segmentos vinculados a frações de classes específicas
que buscam construir processos de dominação hegemônicos.
Um ponto difícil de equacionar é o de definir qual é efetiva e re-
almente o papel dos elementos ideológicos na constituição do real, de
modo que, determinar qual é a função do aparelho escolar no processo
de constituição de qualquer estrutura social se torna de per si uma tarefa
bastante difícil e, mesmo, inexequível. Isso decorre, fundamentalmente,
do fato de que a escola não é a protagonista, mas sim um resultado do
processo de constituição do sistema produtivo.

* Doutor em Educação. Professor titular de História da Fae/UFPel/PPGE.


(E-mail: tambara@ufpel.tche.br).
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Evidentemente que não se está advogando que a escola seja única
e exclusivamente um fenômeno caudatário daquele, pois, é importante ter
presente que, numa percepção de totalidade e de cunho dialético, apre-
endem-se as relações sociais e os mecanismos ideológicos que lhes dão
sustentação fática de forma integral e substancialmente com configurações
contraditórias.
Assim, o que se observa é que houve a tentativa reiterada de utili-
zar-se da escola para impregnar as cosmovisões dos indivíduos com uma
dada percepção da realidade que é conveniente a uma específica classe
social como se fosse a representação da consciência coletiva.

2 A escola e a formação da identidade brasileira

No caso da formação da identidade nacional brasileira, embora se


possa generalizar esse fenômeno, pode-se observar como se pretendeu
utilizar-se a estrutura escolar para modelar uma pretensa identidade que
atendesse a determinadas perspectivas ideológicas e mesmo doutrinárias
com parcos resultados, quiçá pífios.
Em verdade, o processo histórico contém inerentemente um ele-
mento dialético que faz com ele se apresente como a luta entre elementos
antagônicos representativos de interesses bem localizados na arena mate-
rial da sociedade, em outros termos, representativos dos conflitos ineren-
tes ao processo de desenvolvimento das forças produtivas.
Nesse sentido, é fundamental compreender que a história da edu-
cação não é puramente a história das ideias, mas, fundamentalmente, é a
história da base econômica, que não somente propiciou o aparecimento
destas ideias, mas que, de maneira determinante, ocasionou a modificação
de uma superestrutura ideológica que não mais coadunava com o proces-
so de desenvolvimento econômico.
Essas alterações no sistema produtivo, que implicariam a estrutu-
ração de uma nova organização produtiva, subentendem um avanço no
grau de conhecimento das pessoas que vivenciam o sistema. Há uma rela-
ção dialética entre o conhecer os fatos e os fatos propriamente ditos. Isso
ocorre de maneira tal que essa interação funciona como mola propulsora
do desenvolvimento.
A análise do processo de estruturação do sistema educacional pre-
cisa não somente estar correlacionada com a estrutura ideológica em que
está inserido, mas fundamentalmente deve estar baseada e decorrer das re-
lações materiais da sociedade. Essa vinculação não implica, naturalmente,
assumir o papel da educação apenas como um reflexo da infraestrutura
econômica, mas, de modo especial, significa reconhecer o papel importan-
te daquela numa típica relação dialética. O fenômeno educacional não se
explica por si só. Ele é uma resposta a uma dada necessidade, a qual, por
sua vez, se modifica a partir da ação do ideológico.
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Portanto, uma prioritária questão é compreender o processo de for-
mação socioeconômica do Brasil. É apreender suas nuances, suas parti-
cularidades, seus vínculos com a economia global, e, de modo especial,
associá-la com a configuração de uma forma específica, em circunstâncias
espaciais típicas, e em época também característica.
Somente a partir dessa compreensão é que é possível vislumbrar
o espectro explicativo da construção da especificidade da identidade na-
cional brasileira e sua particular relação com a estrutura educacional.
Obviamente, um aspecto que precisa ser caracterizado é a singular
formação da sociedade brasileira até a Proclamação da República e seus
reflexos na formação social e econômica.
Em termos gerais, a economia brasileira, tanto no período colo-
nial quanto no imperial, caracterizou-se por apresentar uma estrutura
patrimonialista baseada fundamentalmente na utilização da mão de obra
escrava e dedicada, de modo especial, a uma atividade econômica de ex-
portação. Assim, as grandes crises da sociedade giraram em torno das
alterações que realidades específicas, normalmente de cunho interna-
cional, geraram nesse modelo. Toda a estrutura caracterizava-se por um
processo de exclusão da maioria da população dos benefícios gerados
pelo sistema produtivo e particularmente por uma submissão aos inte-
resses externos.
Nessas circunstâncias, a educação apresentou um caráter de su-
bordinação às conveniências coloniais portuguesas, que, diferentemente
das dos espanhóis e ingleses, inibiram a constituição de um sistema de
ensino autônomo nas colônias.
Em seu mais alto grau de liberalidade, Portugal admitiu a cons-
tituição de uma base educacional cujo aprimoramento era efetuado na
Universidade de Coimbra. O sistema colonial português baseava-se num
rígido controle dos aparelhos vinculados à superestrutura ideológica
entre os quais se destacavam o aparelho escolar e o religioso. De certa
forma, interligados esses aparelhos nesse período, o poder real se fazia
presente, mormente, no sentido de inibir qualquer processo de autono-
mia nesses aparelhos e, a rigor, configurando-os de uma forma arcaica,
isto é, refratários a qualquer ideia de modernidade.
É bastante discutível entender que, no longo período colonial, te-
nhamos tido no Brasil a formação de uma identidade nacional brasileira,
pois o sistema colonial apenas reproduzia os mecanismos sociais oriun-
dos das diretrizes da matriz lusitana:

Em que pese a pluralidade étnica e social, o imaginário


temporal, espacial e cultural que prevaleceu foi o da con-
tinuidade portuguesa. Assim é controverso afirmar que o
período colonial se caracterizou por uma educação brasi-
leira. O modelo era lusitano e expressava valores e conte-
údos vigentes em Portugal, ainda que aplicados no Brasil.
(VEIGA, 2007, p. 51).

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Por outro lado, parece também importante salientar que o locus
brasílico interferiu decisivamente na composição simbólica e imagética da
população que vivia na colônia e que tinha interesses econômicos antagô-
nicos aos da elite comercial e industrial que vivia em Portugal.
Essa contradição manifesta-se nas ações da coroa, que procurou, de
todas as formas, evitar a emergência de uma perspectiva de mundo não
lusitana no Brasil. Isso ocorreu, entre outras iniciativas, pela proibição da
indústria tipográfica na colônia, com o intuito de evitar que ideias “perni-
ciosas” circulassem na colônia.
Além disso, a constituição de um sistema escolar tutelado pelo Es-
tado e sob a direção da Companhia de Jesus corroborou para a criação de
uma estrutura legitimadora de um status quo lusitano. Entretanto, a reali-
dade dos fatos se mostra muito mais forte que a capacidade de elaboração
de mecanismos ideológicos que pretendem enquadrá-los – aspecto esse
que se revela, por exemplo, nos frequentes confrontos entre os interesses
da classe dominante no Brasil e a perspectiva dos Jesuítas.
Tal conflito, que também se estabelecia em Portugal, levou à expul-
são dos Jesuítas e, indiretamente, à conclamação da atuação do sistema es-
colar, então revitalizado, para elaborar o processo civilizador que os novos
tempos exigiam. Esse aspecto desemboca no sistema de Aulas Régias com
os resultados de todos conhecidos.
O importante a destacar é que o clero, detendo o controle ideológico
dos egressos ao magistério, podia exercer um poder de manutenção do
sistema nos termos que lhe convinha. Entretanto, também em decorrência
do sistema de padroado, a Igreja, como instituição centralizada nos termos
preconizados pela concepção regalista de igreja, não tinha muita ingerên-
cia no processo de qualificação e principalmente seleção de seus quadros.
Nesse sentido, muitas vezes o interesse político do estado se sobrepunha
aos teológicos da Igreja e em decorrência, frequentemente, os presbíteros
não possuíam as condições intelectuais, e mesmo morais, teoricamente
exigidas para o cargo. Mesmo processo ocorria com o sistema de prepara-
ção e seleção de professores.
Tal estrutura estava eivada de contradições, mas, seguramente,
atendia com acuidade os interesses da classe dominante e contribuía com
perfeição para construir perfis sociais consentâneos com uma estrutura so-
cial caracterizada por uma extremada assimetria e que precisava de meca-
nismos de legitimação com ação eficaz.
Essa contradição se manifestava em diversas instâncias, mas pode
ser facilmente apreendida em manifestações do poder legislativo. Assim,
por exemplo, em 1870, Francisco Xavier da Cunha (apud PICCOLO, 1998,
p. 90-91) então deputado pelo Partido Liberal e um dos fundadores do
Partido Republicano no Rio Grande do Sul, apontava com veemência a
situação catastrófica que apresentava a educação no Império sob uma
ideologia, segundo ele, tipicamente elitizante, clerical, bacharelesca e es-
peculativa:
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A ignorância e a rotina imperam nas massas.
Qual é a nossa instrução pública? Quanto a elementar ou
primária, é o estudo do catecismo. O menino que sai da
escola está preparado para um bom sacristão e leva em si as
primeiras e indeléveis impressões da infância que o farão
mais tarde um instrumento cego da influência, um cidadão
indiferente e baldo de patriotismo, um ente ignorante
e limitado, ignorante de seus direitos e deveres sociais,
limitado nas suas aspirações, no conhecimento de seu valor
intrínseco como homem livre e como cidadão.
[...] o homem formado por nossas escolas não sabe
o que há de fazer dos conhecimentos de pura especulação
com que lhe enchem o intelecto. Na vida prática, quando ele
começa a apalpar as necessidades dela, quando lhe seriam
de inapreciável valor algumas tinturas de conhecimentos
positivos, como os rudimentos do direito, da mecânica,
da fisica, dos fenômenos astronômicos, da agricultura, etc.
rudimentos que cabem perfeitamente na esfera do ensino
primário, acha-se ele com a cabeça recheada de algumas
incongruências da complicada e abstrusa estrutura
teológica.

Ainda segundo o relatório:

O único meio de se remediar o mal feito é a pronta exe-


cução da lei que institui a instrução obrigatória. O poder
público, que tem o dever de criar escolas tem o direito de
exigir que elas sejam freqüentadas. O Estado, que tem a
responsabilidade da direção política para o bem e para o
justo, compete-lhe intervir na educação pública, como con-
dição de ordem e grandeza moral do país, para segurança e
prosperidade futura da sociedade. Não é possível respeitar,
por mais tempo, sem risco da nossa grandeza moral, pro-
gresso material, a liberdade da ignorância. (CUNHA apud
PICCOLO, 1998, p. 91).

Nota-se que esse discurso revela a compreensão da elite e desvenda


os elementos contraditórios de sua compreensão de mundo e sua inserção
em uma sociedade escravocrata e dependente da economia internacional.
É preciso ter claro que aos escravos e mesmo aos libertos era dificul-
tado ou mesmo vedado o acesso à escola pública; portanto, aumentando
em muito o índice de analfabetismo. No Rio Grande do Sul, por exem-
plo, pela legislação de ensino promulgada em 1837, havia duas hipóteses
que proibiam a criança de frequentar a escola pública: “São proibidos de
frequentar as escolas públicas: 1ª as pessoas que padecerem de moléstias
contagiosas; e 2ª os escravos e pretos ainda que sejam livres ou libertos.”
O que deve ser lembrado é que, mesmo após a libertação dos escravos, os
negros, na prática, passaram a viver como marginais sociais, e principal-
mente como marginais economicamente falando. Em sua grande maioria,
não tendo tido acesso à educação, e vivendo constantemente sob a tutela
e a direção do “senhor”, não possuíam discernimento para apresentar um
comportamento consentâneo com o livre mercado de mão de obra típico
do sistema capitalista.
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Nesse sentido, o processo de exclusão continuou, pois havia sido
introjetado no próprio negro uma clara significação ideológica de inferio-
ridade contra a qual ele tem lutado por décadas para superar e segundo
a qual o sistema escolar é algo marginal em suas vidas. Essa é uma das
explicações para o alto índice de analfabetismo em determinadas regiões,
pois se combinavam dois elementos inibidores do processo educacional: a
estrutura fundiária típica do sistema latifundiário e o processo de exclusão
do pobre, particularmente, do pobre negro.
Essa base material da sociedade propiciou a sustentação de uma
superestrutura ideológica senão “negadora” da necessidade de uma estru-
tura formal de educação para a maioria da população, pelo menos com um
típico carater negligenciador a respeito.
Esse processo instalou-se principalmente através de mecanismos de
legitimação que incutiam na população concepções a respeito de educação
que contribuíam para caracterizá-la com um caráter perfunctório e que
pouco contribuía para a constituição do indivíduo – isso, obviamente, nos
parâmetros da formação social vigente a época.
Em decorrência, estrutura-se o principal elemento ideológico desse
imaginário social, e que, de certa forma, permanece até hoje: a caracteri-
zação da atividade pecuária como uma estrutura em que se produz valor
sem trabalho. Nesse processo está embutida a ideia de desvalorização do
trabalho manual associada a uma fetichização dos trabalho intelectual.
Concomitantemente ocorre o desenvolvimento de um processo excluden-
te, no qual se marginaliza socialmente a maioria da população, principal-
mente ao associar o trabalho braçal como serviço de escravo – mais pre-
cisamente com uma corruptela racista, isto é, “como serviço de negro”,
ao restringir a atividade da mulher ao âmbito doméstico e ao associar a
carreira do magistério como uma extensão de tal atividade; em conseqüên-
cia, “contaminando” o exercício profissional também como algo que não
produz valor de troca.
Os deslocamentos entre o discurso e o exercício prático da cidada-
nia podem ser observados desde os primórdios da constituição do Brasil
como nação. Na Constituição do Império do Brasil, de 25 de março de
1824, artigo 1º, titulo 1, “O Império do Brasil é a associação política de to-
dos os cidadãos brasileiros. Eles formam uma nação livre e independente,
que não admite, com qualquer outra, laço algum de união ou federação,
que se oponha a sua independência.” A questão que desde logo aflorou foi
a identificação de quem era o cidadão brasileiro, e o caminho mais fácil foi
o do aparecimento de um antilusitanismo, mas que não se consubstanciou
em um projeto nacional autônomo.
A lei de 1827 representou a primeira tentativa de modelar a inter-
venção do Estado no processo de regularização do sistema escolar na sua
função de introjeção de uma dada concepção de mundo. Isso pode ser ob-
servado facilmente pela determinação do conteúdo programático elabora-
do para as escolas de primeiras letras.
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Nesse diapasão, o ato adicional de 1834 é outro marco regulatório
que identifica a consolidação de um modelo caracterizado pela descentra-
lização, na medida em que desloca para as províncias o papel de organizar
a estrutura de ensino. Tal aspecto contribuiu, a priori, para caracterizar o
papel secundário do sistema escolar no processo de consolidação da iden-
tidade nacional e plasmar uma organização de ensino caracterizada pela
exclusão e elitização.
É preciso ter em mente que as primeiras décadas do Brasil como
independente distinguem-se pela emergência de vários movimentos so-
ciais que visavam tornar hegemônicas suas ideias sobre a constituição da
identidade nacional e ou regional.
São exemplos conhecidos a “Confederação do Equador”, em Per-
nambuco (1824); a “Revolta da Carrancas”, em Minas Gerais (1833); a
“Revolta dos Malês”, na Bahia, (1835); a “Revolução Farroupilha”, no Rio
Grande do Sul (1835-1840); a “Cabanagem”, no Pará (1835-1840); a “Sabi-
nada”, na Bahia (1837-38); e a “Balaiada”, no Nordeste do país (1838).
Esses movimentos sociais indicam a fragilidade do processo de con-
cretização de uma identidade nacional e a dificuldade em consolidar pers-
pectivas as mais diversas. “O enfrentamento de todos esses movimentos
produziu estratégias diferenciadas para a manutenção do difícil equilíbrio
entre a meta de coesão nacional e os interesses localistas.” (VEIGA, 2007,
p. 147).
De qualquer modo, o que se observa é a emergência da ideia de edu-
cação pública como um instrumento para a construção de uma identidade
brasileira. Na prática, a escola pública destinava-se, de modo especial, à
população pobre e que precisava passar por um processo civilizatório que
eliminasse os traços não consentâneos com a identidade nacional que a eli-
te propugnava para o Brasil. E nesse sentido, a escola é chamada a cumprir
um papel de domesticação da população no sentido de transformá-la física
e mentalmente.
Tal aspecto consolida-se na reforma Couto Ferraz, quando a dua-
lidade centralização versus descentralização é celebrada de forma contra-
ditória, mormente com a consolidação do papel de colégio de D. Pedro
II como o locus privilegiado de formação da elite nacional. Tal aspecto
revestia-se de significativa importância, pois a passagem por esse estabe-
lecimento de ensino ou por outro a ele equiparado ou ainda pela aprova-
ção nos exames de parcelados (cujas disciplinas estavam condicionadas ao
currículo do D. Pedro II) consistiam em rito de passagem para o ensino su-
perior, caracterizando, assim, a existência de uma relação assimétrica entre
a elite identificada com uma formação bacharelesca e a massa caracteriza-
da com uma educação provincial de primeiras letras bastante deficiente.
Outro marco da tentativa de intervenção do sistema escolar na
constituição de um padrão de ser do brasileiro foi a “Reforma Leôncio
de Carvalho”, de 1879, que, entre outras medidas, preconizou e referen-
dou o sistema de ensino livre no Brasil. Sob certo aspecto, essa medida
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aprofundou os mecanismos de segregação da população, caracterizando o
processo de elitização da sociedade brasileira. Resultado disso é a Reforma
Saraiva, de 1881, que, ao referendar a alfabetização como elemento funda-
mental para o exercício da cidadania, eliminou parcelas significativas das
elites brasileiras do exercício da cidadania, pois apesar de abastadas não
atendiam ao novo requisito.
Disso tudo importa perguntar quais eram as principais concepções
teóricas que influenciaram as mudanças ou manutenções em termos de
constituição da identidade nacional brasileira no século XIX. A resposta,
sem dúvida, passa pela assunção de certo ecletismo teórico-ideológico que
contém elementos tanto da perspectiva conservadora como da liberal.
Entretanto, com uma perspectiva mais aguda, detectam-se dois
movimentos que paulatinamente vão ocupando espaço e tornam-se
hegemônicos ao final do período imperial no sentido de consolidarem
padrões de comportamento da população brasileira na direção de suas
perspectivas doutrinárias: o ultramontano e o positivista.
Em termos práticos, não se pode caracterizar essas duas ideolo-
gias como competidoras em busca da hegemonia ideológica. O que se
pode depreender é que ambas buscaram a afirmação em campos distin-
tos e que apenas eventualmente se cruzaram provocando tanto pontos de
comunhão como de antagonismo.
Em verdade, o processo de competição ocorria dentro do mesmo
campo epistemológico onde se expressavam antagonismos que precisa-
vam ser superados e que, obviamente, respondiam aos elementos evo-
lutivos do processo de formação socioeconômico do Segundo Império.
Assim, em relação à Igreja Católica, ocorre, em termos estrutural-
burocráticos a passagem de uma comunidade eclesial de cunho nitida-
mente regalista e galicana – que o Brasil recepcionou de Portugal e que
era hegemônica no período colonial e início do Império – para outra com
características predominantemente ultramontanas ao final do período
imperial.
Sem dúvida, esse longo e conflituoso processo deixou marcas in-
deléveis nas relações sociais existentes na sociedade brasileira, de manei-
ra que, até hoje, há aspectos residuais no comportamento e nas atitudes
dos brasileiros com clara conotação regalista.
Da mesma forma, o positivismo no Brasil consolidou-se, hege-
monizando-se em relação ao liberalismo e ao conservadorismo. O que
se observa é que o positivismo conseguiu reunir na peculiar construção
brasileira um “positivismo moreno” que alcançou agregar aspectos ti-
picamente conservadores, como é o seu viés autoritário, com aspectos
liberais, como, por exemplo, seu viés republicano.
De qualquer forma, percebe-se que no final do II Império duas
ideologias tornam-se hegemônicas em termos de concepção sócio-políti-
ca: a positivista e a ultramontana.
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Não restam dúvidas, apesar das concepções liberais, as quais, pau-
latinamente, foram ocupando maior espaço em muitas áreas, particular-
mente em termos políticos em muitos países da América Latina e, mesmo
no resto do mundo, que no Brasil estas possuíam muito mais um pose
retórica do que de resultado prático.
Nesse aspecto, é importante notar que as transformações de vulto
que ocorreram no Brasil, no século XIX, com espírito tipicamente liberal,
aconteceram em gabinetes, sob a direção do Partido Conservador. Temas
como a abolição do tráfico, a reforma eleitoral, etc. foram equacionados no
sentido de uma mudança que na prática mantinha tudo igual. Desses temas
resulta a construção de um imaginário que molda a percepção de uma dada
tipologia do brasileiro e, particularmente, a partir desta, a tentativa de pro-
por políticas públicas que visavam alterar esse perfil e adequá-lo à ideia de
civilização que melhor atendia aos interesses da elite nacional. E saliente-se
que é justamente nesse aspecto que a escola é eventualmente convocada a
contribuir.
Penso que é preciso ter presente um elemento que frequentemente
se apresenta de forma invertida, isto é, a ação determinante do litoral sobre
o interior do Brasil. Não são poucos os autores que definem a colonização
portuguesa no Brasil como tipicamente litorânea, feito caranguejo.
Entretanto, em uma análise mais profunda, particularmente em seu
aspecto ideológico e político, conclui-se que as matrizes ideológicas dos
segmentos dominantes no período imperial eram típica e autenticamente
interioranas, de modo que podemos deduzir que a instalação do sistema de
ensino no Brasil neste período está vinculada às necessidades do “Senhoria-
to rural”:

O Poder político de senhoriato se desdobra, porém, sem


sair, entretanto, de suas mãos. Se antes, o senhoriato man-
dava em suas terras, impondo aos elos de sua influencia e
poder econômico todas uma população que volteava, em
seus degraus sucessivos, em torno da propriedade senho-
rial, mando tanto mais forte quanto se fundava na disso-
ciação dessa sociedade dividida em núcleos fechados ele,
apenas, era chamado a continuar esse mando e poder nas
esferas e redutos do Estado. (DUARTE, 1939, p. 181).

Destaca-se o exercício desse poder de aristocracia rural, em termos


de estruturar o poder estatal a sua feição, isto é, o senhoriato arquiteta um
poder de Estado comprometido com a ordem privada, cuja base históri-
co-social é a propriedade senhorial da terra, que compõe o monopólio de
mando, ou seja, a classe política do Império.
Por quase todo o Império essa classe ocupava o aparelho ideológico
de Estado com a partilha com um pequeno grupo de letrados representados
por padres e alguns doutores e intelectuais, o que não alterava substancial-
mente a estrutura de poder. Tratava-se de uma política conservadora ba-
seada no senhoriato territorial, que era a forma econômica e o poder mate-
rial do Estado.
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Estruturava-se esse Estado sob “uma casta familial de elo parental
feudalizado” e que obstaculizava, em princípio, toda injunção político-
administrativa que visasse a transformação social.

Se o senhoriato, ao encontrar-se com as influencias do


litoral, participa, no terreno abstrato. Do jogo das ideias
deste, quando reflui à sua base, ao seu “habitat”, continua
a manter os elos tradicionais e orgânicos de sua índole
e natureza, para impedir, já agora que o Estado penetre
essa população e lhe dê outro sentido social. Ao exercer
o papel de classe política, deformando, conforme lhe
é próprio, o fenômeno político, o senhor de engenho, o
fazendeiro, barão do Império, coronel da República. Ao
substituir o Estado nesse pais rural e agreste, impediu até
agora a aproximação do mesmo dessa população. (DUAR-
TE, 1939, p. 200-201).

A extensão territorial do Brasil, com uma população derramada,


extremamente de pouca densidade e com uma organização econômica
feudalizada constituem modos peculiares do meio brasileiro no processo
de enfraquecimento do Estado e, particularmente, num arrefecimento na
demanda por um sistema de ensino público e universal.
Em todo o caso, a par do sistema econômico, vicejava uma série
de cosmovisões decorrentes de peculiares conformações históricas que
esse sistema ia assumindo em seu processo de estruturação. Nesse sen-
tido, o século XIX foi marcado pelo aparecimento de muitas doutrinas
ideológicas. No Brasil, destacam-se, principalmente, de meados ao final
daquele período, o positivismo de Teixeira Mendes e Miguel Lemos, o
evolucionismo de Silvio Romero, o liberalismo de Rui Barbosa, que re-
presentavam, sob certo aspecto, a tentativa de superar o arcaico sistema
monárquico-escravocrata adequando a nação aos parâmetros capitalistas
que se consolidavam na Europa e nos Estados Unidos, de modo que,
estas concepções foram resultado de um processo de transformação so-
cioeconômico em termos mundiais, que irradiavam as ideias de progres-
so, liberdade e fraternidade, decorrentes ainda dos ideais da Revolução
Francesa, mas que somente com a consolidação do modo de produção
capitalista puderam aflorar como recurso de legitimação do mesmo. Em
outros termos, pode-se deduzir que a maioria destas doutrinas são “fru-
tos de árvores exóticas” importadas para o Brasil, e, quando muito, adap-
tadas às circunstâncias e à natureza dessa nova realidade.
Entretanto, as novas ideias que desembarcaram no Brasil defron-
tavam-se com aquelas perspectivas que, embora em crise e metamor-
foseando-se, constituíram-se em elementos fundantes da sociogênese
brasileira. Referimo-nos, precipuamente, às formas de pensamento de-
correntes da peculiar relação Estado e Igreja estabelecida no Brasil e que,
direta ou indiretamente, condicionaram as maneiras de agir e compor-
tar-se do povo e, particularmente, das elites brasileiras.

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De meados ao final do século XIX, há uma forte tentativa de plas-
mar uma identidade nacional tipicamente europeia, cujos parâmetros
eram a França e a Alemanha. Isso pode ser facilmente comprovado pela
análise dos textos escolares utilizados em sala de aula, que alijaram em
grande parte os manuais tipicamente lusitanos.
Como bem aponta Nascimento (1999, p. 30):

[...] não há como deixar de levar em consideração o fato de


que o Brasil do século XIX buscou na Europa dois impor-
tantes espelhos, nos quais procurou moldar a sua imagem:
a França e a Alemanha. Uma releitura do que foi o período
do Segundo Império pode contribuir para que percebamos
todo o processo de representação dos seus antecedentes
feito pelos intelectuais que pensaram o Estado Republi-
cano Brasileiro e que trabalharam firmemente no sentido
da construção de uma imagem segundo a qual durante o
século XIX o Brasil estava, digamos, desprovido de qual-
quer projeto de Estado Nacional. Somente assim o Estado
Republicano teve condições de colocar-se como sendo uma
utopia de inspiração francesa que se propunha a oferecer
toda a sorte de políticas públicas que faziam falta ao status
político anterior.

Saber qual a medida das interferências dessas esferas na sociedade


é uma tarefa ainda a ser mais bem dimensionada, a qual, de modo geral,
tem sido apreendida ou de maneira acrítica ou de maneira apaixonada.
De qualquer forma, é crível que essas divergências vão-se acirrando, e,
me parece, com fortes repercussões no sistema de ensino que estava sendo
implantado.
Ademais, apesar das relações tempestuosas existentes entre o
poder do Estado e o eclesiástico, não havia dúvidas entre os políticos e
intelectuais que participavam da luta política no período imperial, que,
a médio ou longo prazo, esses dois poderes dependiam um do outro
para a manutenção de seu status quo. Assim, muitos dos reformadores
sociais desacreditavam da capacidade de rebeldia e de combatividade
de uma instituição como a Igreja Católica em termos de transformação
social.
Tavares Bastos (1976, p. 117), em seu trabalho sobre o partido Li-
beral, caracteriza muito bem essa situação:

Clero… Ai de nós! Quando sentir fugir-lhe o terreno, que


prestimosos auxiliares não descobrirá o poder nesses
curas neocatólicos comandados por bispos ultramonta-
nos, que atualmente desconsidera ou menospreza por-
que de sua influencia não precisa! Sim, quando faltarem
os subdelegados, os recrutadores e os capitães da Guar-
da nacional, o governo atrairá os padres e celebrará o
pacto de intolerância entre o trono e o altar, confiando
ao clero desde logo, como penhor do futuro, a educação
da mocidade.

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O que precisa ficar bem claro é que, principalmente no século XIX,
Igreja e Estado entraram no Brasil a discutir competência, reivindicar ju-
risdição, disputar poderes, com graves danos não somente para o prestígio
da Coroa como também para a Igreja Oficial, o que muito rapidamente
provocou o término dessa concordata de mais de quatro séculos.
O Estado, quando se fortificou de maneira secularizada, vingou-se
da Igreja, e penetrou na câmara eclesiástica para nomear bispos, requestar-
lhe funções próprias de clerezia, subordinando a comunidade eclesial aos
ditames do poder governamental que esteve frequentemente dominado
por elementos nitidamente anticlericais.
Entretanto, o que se nota é que o poder do clero era muito limitado,
tendo por certo muito pouco poder em termos de transformação social,
pois o poder estava localizado de forma privilegiada no proprietário terri-
torial. A religião brasileira foi um culto doméstico. E como tal, respondia
aos interesses do “oikos”, em que havia um preciso ordenamento de po-
der, como aponta Sodré (1939, p. 115-116):

Vivia o clero paralelamente à nobreza agrária. Tinha aco-


lhida nos engenhos e fazendas. Era ouvido no conselho da
família. Opinava. Mas não dirigia, jamais o patriarca. Este
pensava por si e resolvia o que bem lhe vinha no pensa-
mento. A sua fé era íntima. Frequentava as cerimônias do
culto. Auxiliava em dinheiro as obras da religião. Mas não
aceitaria uma submissão ao primado clerical. No Brasil não
havia clericalismo.

Nesse sentido, são perfeitamente compreensíveis as desinteligên-


cias entre esses dois poderes e principalmente a atribuição e a limitação
impostas pelo poder do Estado em relação à Igreja Católica, de maneira
que esta, particularmente em termos educacionais, respondia muito mais
incisamente aos interesses da classe dirigente que os preceitos doutriná-
rios. Como bem apontou o Pe. Julio Maria (1990, p. 98), mais tarde: “Con-
vencido que estou de que este regime foi pérfido à Igreja, inútil à religião,
e de que, por isso mesmo, os partidos políticos apodreceram [...].”
Assim, se, nas bordas da construção do novo sistema de pensamen-
to, havia uma herança portuguesa, representada pela luta, na Igreja bra-
sileira, das facções regalistas com os elementos emergentes da concepção
ultramontana, é crível que, par e passo, esse conflito transfiriu-se para o
âmbito do sistema escolar. Nesse sentido, uma situação, ou, quiçá, um an-
tagonismo que se pode perceber é o posicionamento diferenciado existente
entre o clero secular e o regular em relação à assunção do ato de ensinar.
Historicamente as congregações religiosas sempre tiveram uma
predisposição mais acentuada em assumir o encargo formal de ensinar.
Mesmo porque muitas dessas congregações religiosas, tanto masculinas
como femininas, tinham como múnus justamente a atuação no magistério,
pelo menos de forma preponderante, como eram os casos da Companhia
de Jesus, dos La Sallistas e dos Fransciscanos.
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Obviamente isso não significa afirmar que não havia curas vincu-
lados à ordem secular que não se preocupavam com o ensino; entretanto,
essa não era uma situação corrente.
Creio que é perfeitamente possível identificar uma dualidade na
hierarquia eclesiástica brasileira no período imperial: de um lado o clero
secular, nitidamente regalista e galicano; e, de outro, o clero regular, que
mais rapidamente assumiu o ultramontanismo.
Com certeza a identificação dessa situação implica ação propositi-
va da Coroa no sentido de fazer predominar as ideias que lhe eram mais
convenientes, e, nesse sentido, uma medida que foi tomada foi a de proi-
bir a entrada de noviços nos conventos. Claro que isso teve repercussão
na oferta de ensino por parte da Igreja.
A importância de ter uma compreensão desse processo permite
uma melhor apreensão da necessidade que teve a Igreja Católica, no iní-
cio do período republicano, de lutar por determinados direitos, interpre-
tados por ela como constitutivos da identidade nacional, entre os quais o
caráter católico do povo brasileiro, por ocasião das várias revisões cons-
titucionais, cujo exemplo mais emblemático são “as emendas católicas”,
bastante analisadas na área de educação.
Mas, quando tudo parecia favorecer a criação de um sistema pú-
blico de ensino de cunho estatal, um fator apareceu que inibiu tal deside-
rato – o positivismo.1
Em meados do século XIX, havia todas as condições para estabe-
lecer-se um sistema público de cunho estatal. A Igreja Católica se apre-
sentava bastante fragilizada, e o sistema privado de ensino não era páreo
para o estabelecimento de escolas públicas.
Mas o que é interessante é que a ideologia que foi tomando corpo
ao final do Império, apesar de incorporar muitos aspectos do iluminismo
e, especialmente, das ideias representativas do modernismo patenteado,
por exemplo, pela defesa do republicanismo como sistema político, pela
repulsa ao modelo produtivo baseado na escravidão, pela separação entre
Igreja e Estado, em termos de educação e ensino, no Brasil, ela iria assumir
um posicionamento bastante controvertido, o que, sem dúvida, iria balizar
a constituição do sistema educacional brasileiro até os dias atuais.
Quando todas as condições objetivas pareciam indicar que o Esta-
do detinha todos os elementos para se tornar o principal protagonista na
constituição de um sistema de ensino público de cunho universal sob seu
domínio, o que ocorreu foi justamente o contrário.
Apesar da fragilidade em que foram colocados a Igreja e os
setores privados mantenedores da educação, o Estado enfrentou muitos

1
Esta análise da ideologia positivista, sob certo aspecto, é um complemento do trabalho
“Educação e Positivismo no Brasil” – publicado em Histórias e memórias da educação no Brasil
organizado por Maria Stephanou e Maria Helena Câmara Bastos – e está principalmente
direcionado à identificação da influência paulista na construção desta forma de pensar.
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dificuldades e desafios em criar e, principalmente, expandir sua rede ensino.
A culpa disso se deve, em muito, à ideologia positivista, de modo especial,
ao seu ramo político-religioso mais ortodoxo e, sob certo aspecto, mais mi-
litante.
De meados do século XIX em diante, o positivismo, lenta e gradual-
mente, embora nem sempre de forma homogênea e ortodoxa, espalhou-se
por diversos segmentos da sociedade brasileira.
Há muitos pontos ainda a esclarecer a propósito desse espírito po-
sitivo que animou a cultura brasileira a partir de 1870 e que foi bem mais
relevante que o drama dos positivistas ortodoxos. Em verdade, sob certo
prisma, Miguel Lemos e Teixeira Mendes representaram fatores negativos
no movimento renovador das ideias, por terem querido seguir A. Comte
até as suas últimas consequências, aceitando, com admirável devoção, as
suas ideias socioreligiosas: coube-lhes, assim, o papel paradoxal de continu-
adores da velha tradição dogmática e autoritária, embora sob a roupagem
da revolução científica, enquanto desempenhavam mais um papel de ca-
ráter crítico. Precisamente esse foi o papel desempenhado por Alberto Sa-
les, impregnado de espírito positivo, sem nenhum dogmatismo, aberto e
receptivo, aceitando ora Comte, ora Spencer, contrapondo-os, superando-os
(VITA, 1965, p. 15).
A prática do positivismo em seu aspecto mais ortodoxo revela o en-
tendimento de caráter ideológico que era exigido de seus adeptos, principal-
mente daqueles mais ortodoxos. De modo geral, requerir-se-ia dos proséli-
tos um comportamento que inibia, em muito, o proselitismo. Havia sérias
restrições à participação na esfera política, na jornalística e na acadêmica,
mormente aquela de cunho mais cotidiano e profissional.
Para os positivistas ortodoxos, havia uma série de restrições compor-
tamentais, entre elas:
a) não ocupar cargos políticos durante a fase empírica e de transi-
ção, segundo foi definida por Augusto Comte;
b) não exercer funções acadêmicas, quer no ensino das nossas
faculdades superiores, Instituto Nacional, e estabelecimentos
congêneres, quer como membros de associações científicas ou
literárias;
c) não colaborar no jornalismo, diário ou não, nem auferir lucros
pecuniários dos seus escritos;
d) assinar com o seu nome todas as suas publicações, cuja inteira
responsabilidade moral e legal deveriam assumir.
Essas restrições estavam vinculadas justamente à ideia de que o pró-
cer positivista não podia separar sua função de adepto de uma determinada
concepção de mundo daquela função vinculada a sua atividade profissio-
nal. Evidentemente que esse comportamento mais “puro” esteve associado
ao que comumente se denomina “positivismo ortodoxo”, representado pe-
las figuras emblemáticas de Teixeira Mendes e Miguel Lemos, os grandes
apóstolos do positivismo no Brasil cujo ícone é “o Apostolado Positivista do
Brasil”.
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Contudo, o grande influxo de ideias e concepções positivistas no
Brasil esteve vinculado a matrizes ecléticas que, sob certo aspecto, em-
bora bebessem da fonte comtiana, agregavam em suas concepções outras
tradições teóricas que tornavam suas contribuições de caráter híbrido.
Ademais, é preciso considerar que esse segundo grupo “liberalizou” sig-
nificativamente as concepções de Comte, de modo geral associando ao
totalitarismo deste as concepções liberais de Herbert Spencer.
Houve então uma política de conciliação entre diversas tradições
teóricas, as quais possibilitaram o surgimento de embasamento ideo-
lógico que, mesclando-as, tornaram mais factível a explicação tanto da
realidade vivida pela sociedade brasileira como do modo como se cons-
tituíram em base para os ideais de transformação social e política que
gestaram a gênese do período republicano.
Entretanto, em relação ao ensino, houve questões que indelevel-
mente marcaram comportamentos excludentes entre positivistas e libe-
rais, sendo um deles a questão da liberdade de ensino, particularmente
a questão da participação do Estado na administração do ensino. Nessa
questão, as duas doutrinas, por caminhos diferentes, contribuíram para
inibir a participação governamental na oferta de instrução à população
brasileira:

Na luta contra o “estado-educador” uniram-se liberais e


positivistas, cada um a sua maneira, pois enquanto para
os primeiros o ensino livre é uma de suas reivindicações
constantes, convencidos que estavam de que o Estado ab-
soluto soçobrava entre os escombros da Revolução Fran-
cesa, para os positivistas, como observa Roque Spencer
Maciel de Barros resumindo o pensamento de Teixeira
Mendes, “só o ensino livre, a liberdade de ensino, com a
supressão das escolas superiores e dos privilégios delas
decorrentes permitirá o triunfo da doutrina verdadeira,
do positivismo, que se imporá pela sua verdade mes-
ma, realizando a unidade das crenças”. (VITA, 1965
p. 146-147).

Mas os positivistas, por posicionamentos arraigados contra o ensi-


no obrigatório, acabaram por adotar um comportamento extremamente
conservador no sentido de inibir qualquer ação governamental que signi-
ficasse a possibilidade de interferência nas decisões familiares em relação
à instrução:

Esta situação se agrava pela mentalidade conservadora de


que era presa a escol dirigente, combatendo sem tréguas a
ideia liberal de instrução obrigatória. Um dos integrantes
dessa mentalidade em São Paulo, Sá e Benevides, não terá
nenhum escrúpulo em afirmar: “a instrução e educação
obrigatórias são exorbitantes da missão natural do Estado
e atentatórias ao direito de personalidade e aos direitos da
família (VITA, 1965, p. 140).

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Um dos principais ideólogos do positivismo no Brasil, o paulista
Alberto Sales (1885, p. 131), caracteriza bem o posicionamento doutrinário
desta visão de mundo quanto à interferência do Estado em relação à edu-
cação, quando, em seu livro Política Republicana afirma:

a intervenção do Estado, em relação ao ensino superior, não


deve ser senão indireta. A ciência é uma ideia fundamen-
tal, correspondente a uma das esferas da atividade social, e
como tal necessita de certas condições que assegurem, não
somente a sua completa independência ao lado de outras
esferas da atividade humana, mas também a livre expansão
de toda a sua energia progressiva. Ao Estado, que tem por
fim manter a harmonia de todas as forças progressivas do
organismo social, é que compete fornecer essas condições,
evitando a indébita intervenção da Igreja na direção do en-
sino superior e abstendo-se também de qualquer influencia
que possa prejudica-lo. A ciência deve permanecer sempre
na mais completa independência, girando constantemente
em uma esfera distinta da atividade religiosa ou política, e
nunca subordinada à influencia exclusiva de qualquer ou-
tra esfera da atividade social. A liberdade de ensino deve
ser o corolário da liberdade de aprender.

Continua o autor:

Uma vez reconhecido o fato de que a escola faz parte inte-


grante da estrutura política geral, a primeira conseqüência
que daí naturalmente decorre é que, na organização do apa-
relho escolar, deve-se proceder do mesmo modo que em
relação aos outros, limitando-se o Estado a traçar simples-
mente as linhas gerais de sua constituição, a definir e carac-
terizar as diferentes ordens ou categorias de instituições de
ensino, a regular as suas mútuas relações, a estabelecer , em
relação aos diplomas, as garantias necessárias à vida e ao in-
teresse, tanto do individuo, como da própria sociedade, mas
concedendo-lhe inteira liberdade e independência no exer-
cício de suas funções. A difusão do ensino, que é a função
característica deste aparelho, como a distribuição da justiça
é a do aparelho judiciário, é um dever social que incumbe ao
próprio professor e do qual ele tem que se desempenhar, de
acordo com a sua competência intelectual e moral e com os
nobres e elevados interesses da ciência. Quer isto dizer que a
organização do ensino em seus diferentes graus, dos progra-
mas das diversas instituições escolares; da extensão, duração
e especialização dos cursos, bem como da disciplina escolar;
tudo, enfim, que afeta direta ou indiretamente o ensino em
si, deve ficar a cargo exclusivo das congregações, dos grupos
de professores ou das associações particulares, que para esse
fim se organizarem ou se constituírem com a autorização do
Estado (SALES, 1885, p. 149).

Quando trata do papel do Estado em relação à educação, Alberto


Sales (1885, p. 180-181), sem dúvida um dos principais ideólogos do Brasil
Republicano, é enfático em negar o papel do estado e restringir seu papel
de mantenedor, como se pode facilmente deduzir deste excerto do “Cate-
cismo Republicano”:
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Tratando-se do ensino superior, é fora de dúvida que o
melhor regime a seguir-se é o da não intervenção, deixan-
do que a iniciativa particular se desenvolva e se manifeste
em toda sua plenitude, subordinada apenas à lei geral da
concorrência. A ação oficial, que se exerce ainda em alguns
países, sob a forma do chamado ensino universitário, só
pode ser prejudicial ao livre desenvolvimento da ciência.
È preciso que, neste ponto, se acabe de uma vez com a ins-
peção tutelar do Estado e que se limite a sua competência
unicamente a garantir uma independência completa, para
que nunca venha a ficar, como atualmente ainda se acha,
subordinada às imposições da Igreja. O ensino deve ser
leigo e secular. Tratando-se, porém, do ensino inferior, a
intervenção do Estado é mais justificável, desde que traga
como resultado a gratuidade; entretanto, é força confessar
que, tanto em um como em outro caso, o verdadeiro ideal
consiste na completa e perfeita descentralização do ensino.

Quando Alberto Sales (1885, p. 181) pergunta-se sobre a situação


existente à época do período imperial, ele caracteriza os elementos nefas-
tos decorrentes da ação do Estado em relação à área educacional. Pergunta
ele, o que temos nós a respeito?

Coisa muito diferente. É verdade que a constituição ga-


rante a instrução primaria e gratuita a todos os cidadãos,
bem como colégios e universidades, onde serão ensinados
os elementos das ciências, belas-letras e artes; mas também
não é menos verdade que tão centralizado se acha o ensino
nas mãos do Estado, que é hoje um verdadeiro monopólio
do governo. O que tem resultado daí não precisamos dizer,
que todos o sabem. A influência oficial tem introduzido no
ensino superior um charlatanismo verdadeiramente cala-
mitoso. O magistério tornou-se um simples meio de vida
mais cômodo, o que se pode obter do governo por uma
simples promessa de fidelidade e obediência à suas ordens,
ou pela renúncia às convicções políticas. O empenho e a
proteção dos amigos anulam os concursos e decidem em
última instancia do grau de capacidade dos pretendentes.
O ensino baixou à esfera de uma mera palestra superficial e
metafísica; o exame tornou-se uma pura formalidade, sem
proveito e sem significação; o discípulo perdeu a sua inde-
pendência, a sua dignidade, e arvorou-se em fiel repetidor
das banalidades catedráticas; e a aprovação passou a ser
considerada como um simples ato de generosidade dos
lentes. Quanto ao ensino primário é bastante analisar-se
com algum cuidado o estado de nossas escolas públicas, a
maneira extremamente defeituosa por que se acham orga-
nizadas, a insuficiencia de recursos de que dispõe e a inca-
pacidade das pessoas que as dirigem, para chegar-se a con-
clusão de que, na economia social do país, não representam
senão uma quantidade de valor inteiramente negativo.

Contudo, um aspecto que precisa ficar muito claro é que, apesar de


importantes, os elementos superestruturais não são determinantes; ao con-
trário, subordinam-se a interesses que lhe escapam ao controle. Isso pode
ser apreendido facilmente em todas as ideologias que, embora pretendam
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ter uma visão de totalidade, não são capazes de fazer valer suas concep-
ções de mundo e, frequentemente, são utilizadas apenas como elementos
legitimadores de situação pré-existentes.
Assim, por exemplo, apesar da posição extremamente reacionária
em relação à participação da mulher na vida pública, o positivismo, mes-
mo forte em termos de sociedade política, não conseguiu frear o aumento
da participação feminina em ambientes alheios à esfera doméstica e ao
âmbito da Igreja, onde tradicionalmente ela desempenhava suas funções
e seu papel social.
E, sob certo aspecto, o reduto escolar foi o locus que a sociedade
propiciou como brecha para que a mulher utilizasse como cunha para
abrir espaço à participação em outros ambientes e ocupasse outros pos-
tos de trabalho.
Essa contradição entre o domínio ideológico e as “necessidades”
decorrentes do sistema produtivo demonstra como as consciências são
determinadas pela existência.
A passagem de uma situação caracterizada pelo predomínio mas-
culino nos postos de trabalho do magistério para outra, caracterizada
pela feminilização tem merecido a atenção de inúmeros investigadores
sem chegar a conclusões definitivas. Provavelmente há causas multiface-
tadas, e de difícil dimensionamento no sentido de aquilatar quais seriam
as determinantes. Mesmo assim, a questão que persistiu é que, se houve
uma forte reação da ideologia dominante à participação da mulher no
mercado profissional da educação, por que esta conseguiu se impor com
relativa facilidade.
Mas o que nos interessa compreender é como a estruturação e con-
solidação do sistema educacional brasileiro, particularmente no Segundo
Império, estiveram vinculadas a essas duas cosmovisões.
Em principio a atuação das mesmas obedece a objetivos logísticos
bem distintos. Enquanto o ultramontanismo procurou no sistema de ensi-
no um meio de consolidar uma hegemonia extrínseca ao próprio sistema
escolar – isso é uma concepção de Igreja consentânea com os interesses do
Vaticano –, o positivismo procurou criar uma linha de atuação dedicada a
formatar um sistema de ensino identificado com suas concepções – parti-
cularmente no Brasil, a alienação do Estado como entidade mantenedora.
Uma questão de difícil resposta é a de perceber qual é a efetiva
importância do aparelho ideológico escolar na construção da cosmovisão
da população no período imperial no Brasil.
Parece fora de questão que, à época colonial, o sistema social, ba-
seado em um sistema produtivo de cunho escravocrata e em um contexto
político de dependência e subordinação extrema a Portugal, os parâme-
tros educacionais estivessem reduzidos ao mínimo e, salvo raras ilhas
onde se ensinava a ler, escrever e contar, praticamente não havia um
sistema de ensino mais elaborado que se destinasse à população.

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É digno de nota que parcela significativa da população e, em algu-
mas regiões, a sua maioria, estava explicita e legalmente excluída do sis-
tema de ensino, na medida em que os regulamentos de instrução pública
proibiam o acesso dos negros à escola pública.
De qualquer forma, com a Independência e, particularmente, com
a Lei de 1827, o Brasil passou a apresentar um novo status, e, sob certo
aspecto, a participar de um novo patamar no rol das nações, de modo que
se observa a construção de um sistema de ensino que gradualmente se ia
generalizando em todos os rincões do território nacional.
O que evidenciamos é que, no século XIX, ocorreu no Brasil o pro-
cesso de consolidação de um imaginário em relação a sua população com
claro viés de violência simbólica que consolidou um dualismo estrutural
que se fazia percebido de todos: a existência de duas sociedades – a elite,
caracterizada pelas “boas maneiras”, e a massa, em que predominavam
traços de “barbárie”.
Esta cosmovisão foi construída lenta e gradualmente por todo o pe-
ríodo, e, sob certo aspecto, perpassa a percepção viesada de identidade
nacional até os dias atuais.
No século XIX, essa concepção pode ser apreendida no trabalho de
José Ricardo de Almeida (1889, p. 93-94), História da instrução pública no
Brasil:

Nas cidades em geral e no Rio de Janeiro em particular,


há dois elementos presentes: uma classe média inteligente
e, em geral, voltada para o bem e classes inferiores muito
miscigenadas, beirando em alguns pontos a classe média,
mas quase todas possuindo um fundo hereditário de de-
pravação de depravação que transparecerá nas ocasiões de
faltas e maus exemplos [...] As classes ocupadas com tra-
balhos manuais ou degradadas pelos hábitos ociosos ou
viciosos parecem, em muitos casos, comprazer-se com a ig-
norância. A escola é para os pais desta categoria apenas um
meio de ficarem desobrigados da vigilância de seus filhos.
Já se conhece como são os filhos destes pais: pálidos, fracos,
mal nutridos; trazem em seu rosto um descaramento pre-
coce; instintos perversos já se apropriam do coração destes
pequenos seres, que fumam como adultos e não hesitam
diante de um copo de pinga. Essas crianças saem muitas
vezes da escola tão logo entram, sem qualquer instrução,
nem mais moralizados, nem menos turbulentos.

Com esse diapasão de apreensão, não foi difícil para os republica-


nos criarem um discurso que visava justamente desconstruir essa realida-
de, reconstruindo o novo cidadão brasileiro. E esse processo visava fun-
damentalmente criar uma nova identidade nacional, baseada em novos
patamares e tendo como fulcro principal extirpar as características tidas
como arcaicas e oriundas da sociedade monárquica.
Neste sentido, as campanhas cívicas e eugenistas das primeiras dé-
cadas do período republicano são emblemáticas:

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Nos primeiros anos do século XX, a constituição homogê-
nea do povo brasileiro passou a ser o pilar fundamental
de um projeto de humanidade centrado na eliminação das
anatomias disformes; ou melhor: disformes a um modelo
estético e moral eleito como representativo de uma nação
em desenvolvimento cuja centralidade assentava-se no cor-
po branco, vigoroso, fortalecido pela atividade física – um
corpo de gestos comedidos e educados consoante às prer-
rogativas científicas daquele tempo. (GOELLNER, 2005, p.
329).

Assim, o período republicano até hoje se tem utilizado da escola


para incrementar mecanismos que se destinam a remodelar as caracterís-
ticas de uma identidade nacional plasmada no século XIX e que visam
solucionar, a rigor, os problemas decorrentes de elementos estruturais da
pirâmide social que estão constantemente obliterados pela ideologia do-
minante, mas que, teimosamente, de modo constante, vêm à tona. Esses
são casos típicos das questões de gênero, étnicas, religiosas e de outras
parcelas da população que buscam na escola mecanismos de cunho prático
e efetivo que pelo menos os tornem componentes da identidade nacional
anunciada.
Vemos que, direta ou indiretamente, a escola é constantemente con-
vocada para moldar os indivíduos e consequentemente conformar novos
processos de construção da identidade nacional.
No final do século XIX e início do século XX uma das grandes ques-
tões que persiste ainda é a de cunho étnico. Há particularmente um traba-
lho de equacionamento da questão da mestiçagem que era vista constan-
temente como um dos quesitos que nodoava a constituição de um padrão
de brasilidade de cunho europeu como era preconizado.
Sem dúvida, esse é um “problema” ainda mal equacionado no Bra-
sil. Os dados revelam que o processo de exclusão dos “pardos” no sistema
escolar é muito intenso. Mas é um fenômeno que é constantemente esca-
moteado na discussão étnica.
Das décadas de 1930 em diante, no século XX, se observa o papel
que é atribuído à educação para erradicar da identidade nacional um de
seus elementos mais expressivos, que é o indivíduo que vive na zona ru-
ral, particularmente o pequeno proprietário, que é identificado como um
ser não consentâneo com os novos parâmetros de modernização da so-
ciedade, caracterizada então pelo insipiente processo de substituição de
importações e pelo de modernização no campo. O exemplo mais típico
desse processo é o trabalho de caracterização do caipira como um “zeca
tatu”, com traços e comportamentos que precisavam ser modificados para
acompanharem a nova identidade que se procurava criar.
Identidade esta, que nas décadas de 30 e 40 foi forjada a força pelo
governo que procurou se utilizar da escola para plasmar um processo de
centralização política e social utilizando-se de todos os mecanismos pos-
síveis.

40 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 49, p. 21-42, jan./jun. 2011


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Um exemplo emblemático foi o processo de nacionalização das es-
colas de cunho étnico, particularmente as alemãs, e que destruiu um siste-
ma de ensino dos mais vigorosos sob a acusação que o mesmo contribuía
para a criação de sujeitos não identificados com a identidade nacional bra-
sileira.

3 Conclusão

Desde a constituição deste perfil social no século XIX, a socieda-


de brasileira tem lutado para alterar, ou mesmo erigir, sua identidade
nacional tentando trazer para seu bojo elementos que tradicionalmente
foram excluídos, particularmente o negro, a mulher, a criança e o indíge-
na e neste sentido o sistema educacional tem sido convocado a dar sua
contribuição com participação propositiva como é o caso das cotas para
negros nas universidades e ainda de forma semelhante para o aumento
de percentual de mulheres nas cotas de candidaturas no sistema político.
Tais mecanismos ou, principalmente, tais necessidades revelam
como a identidade brasileira está eivada de contradições e que mascaram
as apreensões ingênuas que os interesses da classe dominante impingem
na cosmovisão dos cidadãos em geral.

Recebido em abril de 2011.


Aprovado em abril de 2011.

Brazilian Education and National Identity

Abstract
This paper aims to analyze some aspects related to the peculiar relationship established
between the Brazilian school system and the constitution of the national identity. The driving
idea is to show that either one or the other are bound to the constitutive processes, originating
from its formation, markedly in the nineteenth century. Such “scars” are the key elements of
the Brazilian identity that is still consolidating.

Keywords: National identity. History of education. School system.

Referências

ALMEIDA, José Ricardo Pires de. História da Instrução Pública no Brasil


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