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Buenos Aires 2018

ASSEMBLEIA
MUNDIAL
CVX

DOSSIER | DOCUMENTO FINAL, TEXTOS DE APOIO E TESTEMUNHOS

COMUNIDADE DE VIDA CRISTÃ


EM PORTUGAL
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por motivos de impressão
ÍNDICE

Introdução 03
Projects nº170 05
Documento Final 09
Documentos preparatórios da Assembleia Mundial 17
Convocatória da Assembleia Mundial Buenos Aires 2018 17
Projects nº168 21
Projects nª169 27
Conferências e Cartas 33
Carta do Papa Francisco à CVX 33
Carta do Cardeal Farrell à CVX 35
Mensagem do Presidente da CVX Mundial à Assembleia de Buenos Aires
2018 37
Conferência A Opção de Francisco:Evangelizar um Mundo em Fluxo 47
Conferência O Dom dos 50 Anos da CVX 61
Conferência Uma Comunidade Laical de Discernimento ao Serviço da
Reconciliação 71
Dia a Dia de uma Assembleia Mundial 77
Testemunhos Da Assembleia 93
Tanto Bem Recebido da Assembleia 93
A CVX como um Mate nas Mãos de Deus…. 95
Buenos Aires 2018 – A Assembleia do Nós 97
Caí de paraquedas na Assembleia Mundial: Graças a Deus 101

1
2
INTRODUÇÃO

À Comunidade CVX P,

Grata por tanto bem recebido e cheia de tanta alegria pelo que viveu, a delegação enviada
pela CVX Portugal à Assembleia Mundial da CVX considerou que o tesouro aberto e recebido
em Buenos Aires era precioso demais para ficar apenas confinado ao documento final. Por isso,
decidimos traduzir todos os documentos preparatórios da Assembleia (Convocatória e Projects
168/169) bem como a totalidade das cartas que recebemos (uma delas bem especial) e das
conferências que fomos ouvindo ao longo da Assembleia - até porque o documento final lhes
faz referência directa e assim se torna mais fácil a quem não esteve partilhar à distância o
percurso sinuoso mas desafiante que fomos percorrendo ao longo daqueles dias.

Dias muito, muito frios que justificam toda a roupa de Inverno que vão ver nas fotografias mas
dias muito, muito quentes pelas palavras que fomos escutando, pelos bocados de vida que
fomos experimentando, pelos pedaços de Deus que se foram revelando diante dos nossos
olhos e aos quais demos nomes – todos aqueles que irão encontrar espalhados ao longo deste
documento: Señor, Joy, Humanidad, Hearth…

Este é um documento para ser visto a correr – sabe sempre bem descortinar rostos por entre a
brancura das palavras – mas é sobretudo para ser lido devagarinho – são textos densos mas
que nos podem abrir horizontes importantes sobre quem somos e a que somos chamados,
como um nevoeiro que se dissipa pouco a pouco e nos permite subitamente ver mais longe.

Que a sua leitura orante possa permitir a cada membro da nossa Comunidade a experiência de
profunda consolação espiritual que nós delegados pudemos experimentar no ‘fim do mundo’
que é Buenos Aires mas, acima de tudo, que possa permitir um crescendo no seu sentido de
pertença a esta Comunidade que Deus chamou a ser apostólica inaciana laical.

Carla Rebelo
Pela delegação CVX Portugal

Fotografia de grupo dos Delegados à AM 2018

Fotografia de grupo dos Assistentes Eclesiásticos presentes na AM 2018

4
Ligação entre o Conselho
Executivo e a Comunidade
de Vida Cristã Mundial


PROJECTS
De regresso da Assembleia Mundial
Nº 170, Setembro 2018
Original: francês

O documento final da Assembleia Mundial de Buenos Aires não é ... final.


E talvez nem devêssemos falar de um documento mas antes de uma narrativa.
Por isso, há duas excelentes razões para mergulhar na sua leitura com curiosidade.

Acreditamos que a intuição inicial foi uma inspiração


A Assembleia Mundial de 2018 começou a tomar forma, pelo menos na mente dos membros
do ExCo 2013-2018, quando fomos capazes de identificar uma graça digna de ser pedida com
fé e determinação: “Desejamos maior profundidade e integração na forma como vivemos o
nosso carisma CVX no mundo de hoje”.

Aprofundar e integrar o que já foi identificado com força suficiente para ser considerado o
nosso carisma?!? A proposta não deixava de ser algo ousada na medida em que nos poderia
ter exposto a um exercício de repetição oco, quase narcisista. Contudo, decidimos abordar
esta proposta como uma graça a pedir, pressentindo que o Espírito teria algo a dizer neste
momento à CVX sobre a sua identidade, a sua vocação e missão enquanto comunidade
inaciana apostólica laical.

O Espírito trabalhou em nós e nós deixámo-lo actuar... com todas as nossas forças.
Atrevemo-nos a afirmar que a CVX é um dom para a Igreja e para o mundo. Era preciso ainda
encarar com seriedade a questão de saber o que isso significa e, especialmente, o que isso
implica. No contexto dos sucessivos chamamentos do Papa Francisco, sentimo-nos,
obviamente, muito tocados pelo tema do discernimento e, especialmente, do discernimento
comunitário.

Mais do que tratar o "tema", quisemos tentar um discernimento comunitário em tempo real,
com 204 delegados de mais de setenta países. Tínhamos um enquadramento metodológico
claro mas nenhuma rede de segurança.

5
Todos ou quase todos fomos confrontados com resistências, momentos de dúvida e, em
resultado disso, com a tentação de recuperar o controle. Mas a Assembleia enquanto tal fez
um extraordinário ato de fé e manteve-se firme até ao fim, pondo totalmente a sua confiança
em Deus. Vivemos realmente aquilo que rezamos com tanta frequência: "Tomai, Senhor, e
recebei toda a nossa liberdade, toda a nossa memória, toda a nossa inteligência e toda a nossa
vontade".

O "documento final" é atípico, mas coerente com a intuição inicial e o acontecimento


que experimentámos
O documento final de cada Assembleia Mundial abre-nos para o futuro, é evidente. Dito isto, o
documento que nos vai ajudar a aproveitar o élan dado pela Assembleia de Buenos Aires é
menos "final" do que nunca. Se temos razões para acreditar que o Espírito ali soprou, vai ser
preciso tempo para deixar que o texto desabroche. Isso envolverá um esforço de compreensão
tão atípico quanto o próprio documento.

Trata-se de uma narrativa. A narrativa de um caminhar que, antes mesmo de chegar a um


destino, constitui um acontecimento em si próprio, ou seja, uma experiência cheia de sentido.
A palavra "experiência" é mencionada 12 vezes no texto. É por isso que vos convidamos a ler o
texto em comunidade, de preferência ouvindo o testemunho ao vivo dos delegados. Na
verdade, é aconselhável ler o texto propriamente dito mas também as entrelinhas.
Convidamos-vos mesmo a pôr o texto em perspetiva através da releitura da convocatória da
Assembleia e dos Projects 168 e 169. Estes documentos preparatórios lançam claridade sobre
todo o processo, tanto pela sua continuidade intrínseca como pelos ajustes feitos entretanto.

Outras ferramentas virão


Para apoiar o necessário exercício de releitura, o recém-eleito ExCo publicará um Suplemento
Progressio (nº 74), que incluirá não apenas as conferências dos oradores convidados, mas
também uma releitura fundamental do processo e elementos da metodologia seguida no
discernimento comunitário.

Além disso, como preparação para o Dia Mundial de 25 de Março 2019, a próxima edição da
Projects (nº 171) irá convidar toda a comunidade a participar ativamente no esforço de
compreensão do chamamento escutado durante a Assembleia Mundial. Trata-se de ser capaz
de assumir um chamamento universal e, ao mesmo tempo, comprometer-se concretamente
num contexto particular.

Um novo Conselho Executivo ao serviço da comunidade mundial


Para vos apresentar o novo ExCo, permito-me citar livremente um delegado: "Pedimos àqueles
que vão ser eleitos que formem um Conselho Executivo capaz de discernir." Esperemos bem
que a equipa seja capaz de discernimento. Vós o julgareis em tempo útil. Mas, para quem tem

6
algum sentido de humor e quer tentar já um prognóstico olhando só para as caras, eis o ExCo
completo.


A partir da esquerda:

Alwin & Rojean


Macalalad (secretários
executivos), Diego
Pereira (consultor),
Fernando Vidal
(consultor), Najat Sayegh
(consultora), Daphne Ho
(consultora), Catherine
Waiyaki (secretária), Ann
Marie Brennan (Vice-
presidente), Aeraele
Macalalad, Denis
Dobbelstein (Presidente),
Herminio Rico SJ (Vice-
assistente eclesiástico).

*ausente da fotografia: Arturo Sosa SJ (Assistente eclesiástico)

Com todo o ExCo,




Denis Dobbelstein
Presidente da CVX Mundial

8
XVII Assembleia Mundial
da Comunidade de Vida
Cristã
Buenos Aires, Argentina 2018



CVX, um dom para a Igreja e para o mundo
"Quantos pães tendes? Ide ver" (Mc 6,38)

DOCUMENTO FINAL

Caminhámos juntos desejando maior profundidade e integração
na vivência do nosso carisma CVX no mundo de hoje
e o Senhor chamou-nos a APROFUNDAR, PARTILHAR e SAIR.

1. Caminhámos até ao "fim do mundo", Buenos Aires, em busca do espírito missionário e zelo
que transformou o Papa Francisco e tem animado a nossa Igreja. O nosso caminho levou-nos a
seguir os passos de Bergoglio, até ao Colégio Máximo de S. José, onde a sua visão pastoral foi
originalmente testada e desenvolvida entre a gente popular nas paróquias do Barrio de San
Miguel.

2. Fomos também introduzidos numa experiência vivencial da Igreja na América Latina, que
nos oferece um modelo de evangelização num mundo cada vez mais secular, mostrando
possibilidades de libertar as pessoas para escolher Cristo. Vimos o Espírito em acção a renovar,
energizar e missionar os fiéis leigos.

3. Reunimo-nos como uma única comunidade mundial. Desejávamos crescer em gratidão pelo
dom da nossa comunidade e modo de vida e desejávamos aprofundar a nossa
responsabilidade por ajudar o Senhor a multiplicar os pães que recebemos e assim dilatar o
nosso impacto no nosso mundo. Descobrimos o significado apostólico da nosso modo de
proceder enquanto comunidade laical inaciana e os dons que temos para oferecer a um
mundo que geme com dores de parto1 por mais espiritualidade e mais transcendência.

PREPARANDO A ASSEMBLEIA
4. [Três Realidades Contextuais] A nossa Assembleia foi convocada na convergência de três
realidades contextuais: o 50º aniversário da renovação que levou à (re)fundação da CVX, um
papado que tem vindo a renovar a Igreja e o renovado chamamento aos leigos no nosso
mundo de hoje2. Esses contextos revelaram um momento ‘Kairos’, que nos convida a reflectir


1
cf. Romanos 8, 22.
2
Ver Projects 168 e Carta do Presidente #4. Ver também Evangelium Gaudium.

9
mais profundamente sobre a nossa identidade e a nossa missão como corpo apostólico
inaciano laical, através dos pães que somos convidados a oferecer para serem multiplicados.

5. [História de Missão e Identidade] Caminhámos até à Assembleia conscientes da nossa


história de missão e tendo em mente as nossas prioridades. A mais recente Assembleia
Mundial no Líbano em 2013 clarificou as nossas orientações para a acção nas quatro fronteiras
discernidas de Família, Globalização e Pobreza, Ecologia e Juventude. O elo entre missão e
identidade ficou evidente em Nairobi em 2003, quando confirmámos o nosso chamamento a
ser um corpo apostólico inaciano laical, tendo a dinâmica DEAA (Discernir, Enviar, Apoiar,
Avaliar) como o nosso modo de proceder.

6. [Sinais dos Tempos] Caminhámos em tempos voláteis e complexos da história do nosso


mundo, caracterizados por uma crescente polarização, uma crise ecológica profunda e uma
relutância de acolher o outro. Essas dificuldades atrasaram alguns delegados e impediram que
outros chegassem de todo. Dói-nos o coração por este nosso mundo mas encontrámos
inspiração na Trindade, na sua Contemplação do mundo na Encarnação, e confiança no
Espírito, que nas trevas pairou sobre as águas do Caos original relatado no Livro do Génesis.
Vimos o Espírito em acção na forma como a CVX Síria caminhou connosco em oração e afecto
fraterno, mesmo quando o visto dos seus delegados apenas foi concedido no final da
Assembleia. Procurámos colocar-nos nas mãos do Espírito, cheios de confiança e esperança de
sermos capazes de buscar o nosso caminho em direcção a um futuro que apenas vagamente
vislumbramos3.

CONSTRUINDO-NOS COMO ASSEMBLEIA


7. [Acolhendo Novas Comunidades] Fomos recebidos calorosamente e com grande
generosidade pela ARUPA, a equipa organizadora de Argentina, Uruguai e Paraguai. As suas
boas-vindas permitiram-nos experimentar a alegria de ser uma única comunidade mundial.
Congratulámo-nos também com a afiliação das comunidades nacionais da Letónia, Ilhas
Maurícias e Vietname à Comunidade Mundial, que fez crescer o dom comunitário que a CVX
oferece ao mundo. Estiveram presentes na Assembleia 63 das 67 comunidades afiliadas e 8
comunidades observadoras. No total, fomos 204 delegados, dos quais 51 jesuítas, o que
reflecte bem os nossos fortes laços espirituais e de colaboração com a Companhia de Jesus. A
Assembleia notou que o ressurgimento da CVX em sociedades altamente secularizadas como a
Holanda e a Suécia confirma que o nosso mundo anseia por experiências comunitárias
profundas que oferecem novas oportunidades de evangelização.

8. [Saudações Papais] A Assembleia recebeu com gratidão e encontrou inspiração na saudação


surpresa do Papa Francisco. Ele recordou-nos que a humilde ação de graças pelos nossos dons
conduz à responsabilidade de sair ao encontro dos outros. No centro da nossa espiritualidade
estão as duas dimensões da contemplação e da acção, “porque só podemos entrar no coração
de Deus através das feridas de Cristo, e sabemos que Cristo está ferido nos famintos, nos


3
cf. 1 Cor. 13, 12.

10
analfabetos, nos descartados, nos velhos, nos doentes, nos presos, em toda a carne humana
vulnerável”.4

9. [Saudações do Dicastério] O Cardeal Kevin Farrell, Prefeito do Dicastério para os Leigos,


Família e Vida, saudou-nos a partir de notas extraídas da Exortação Apostólica Gaudete et
Exsultate. Convidou-nos a reproduzir nas nossas vidas os vários aspectos da vida terrena de
Jesus, a fim de harmonizar toda a nossa vida com a missão que recebemos de Deus. A sua
saudação ecoou a necessidade de equilibrar identidade e missão para todo aquele que deseje
seguir a Cristo e encarnar a Deus no mundo de hoje.

10. [A caminho com uma Igreja Missionária] O momento Kairos na nossa Igreja chama-nos a
ser discípulos missionários no mundo através de um encontro com Jesus que nos abre ao amor
do Pai5. Austen Ivereigh, biógrafo do Papa Francisco, partilhou connosco o que significa entrar
nesse espírito missionário: ser Cristo num mundo ferido, ajudando as pessoas a religarem-se
com a Criação e com o mundo enquanto criaturas de Deus; experienciar a família e a
comunidade como laços de confiança e amor incondicional que ajudam a construir a resiliência,
o caráter e a autoestima; e ajudar as pessoas a encontrar um espaço de santuário. Este
caminho convida-nos a deixar que seja a realidade e o Espírito Santo a guiar-nos na nossa
missão.

11. [O Caminho é a Experiência] Fomos convidados a fazer uma experiência concreta de igreja
missionária através de um encontro com as famílias e membros da comunidade paroquial no
Barrio de San Miguel. Tivemos a oportunidade de partilhar as nossas vidas uns com os outros.
A Assembleia foi tocada pela alegria das boas-vindas que recebemos e inspirada pelo espírito
generoso que animava a vida da comunidade, apesar das realidades difíceis que também
connosco partilharam. Fomos recordados de que "o caminho é a experiência".

12. [História de Graça] Maria Magdalena Palencia Gomez, da CVX México, partilhou o caminho
feito pela CVX enquanto comunidade apostólica inaciana laical, desde o momento em que Pio
XII lançou às Congregações Marianas o desafio de passar por um processo de renovação até ao
presente. A sua estória da nossa história relembrou-nos como o Espírito foi estando
consistentemente presente no meio de nós, guiando-nos pacientemente e inspirando-nos à
medida que Deus foi trabalhando para nos moldar e transformar numa comunidade ao serviço
do Reino de Deus.

13. [O Nosso Nome como Identidade e Missão] Além da nossa História de Graça, Magdalena
partilhou também várias histórias-chave e reflexões que nos recordaram a nossa identidade
como Comunidade de Vida Cristã, que o P. Arrupe uma vez disse ser o nome conferido pelo
Senhor à CVX que continha nele mesmo a missão destas comunidades. O Pe. Arrupe fez ainda
a ligação ao chamamento de Abraão, cuja aliança e missão foram estabelecidas através do
nome que Deus lhe deu. Fomos recordados de que a nossa identidade e a nossa missão são
um dom a nós confiado por Deus. Temos vindo a clarificar e a responder a essa graça ao longo
dos anos, navegando sempre a tensão entre os sussurros do Bom Espírito e os obstáculos e
divisões que o mau espírito vai semeando.


4
Carta do Papa Francisco a Mauricio Lopez Oropeza, Presidente do Comité Executivo Mundial da CVX.
5
Austen Ivereigh, “A Opção de Francisco: Evangelizar um Mundo em Fluxo”.

11
14. [Ser uma Comunidade de Discernimento ao Serviço da Reconciliação] O nosso Assistente
Eclesiástico Mundial, Pe. Arturo Sosa, S.J., convidou-nos a entender a nossa identidade
enquanto comunidade de discernimento como um dom para o desenvolvimento de um laicado
capaz de discernimento individual e comunitário. Esse discernimento pode ser partilhado com
a Igreja e tornar-se um instrumento de sabedoria para a acção no mundo. Formar os nossos
membros em oração constante e serviço generoso facilitará o vínculo entre a reconciliação
individual e a nossa capacidade de nos tornarmos agentes de reconciliação.

15. [o Magis como o viver em permanente tensão] O Pe. Sosa tocou também na tensão que
tende a emergir quando aprofundamos as nossas relações dentro da comunidade e referiu-se
ao Magis como sendo o viver na tensão permanente de ser puxado para Deus e para o mundo
ao mesmo tempo 6 . Precisaremos de saber navegar esta tensão nos nossos processos de
discernimento comunitário, ao mesmo tempo que deveremos estar muito atentos ao
comportamento do mau espírito, que pode facilmente transformar tensão em conflito.

16. [Partilhando para criar Comunidade] A tapeçaria tecida pelos vários contributos que
recebemos ajudou-nos a crescer em espírito comunitário e a ser re-energizados na consciência
de quão importante é sermos comunidade. Abrimo-nos mais profundamente ao dom do nosso
modo de vida, partilhando abertamente em pequenos grupos ao longo do processo de
discernimento da Assembleia. Fomos despertados para a beleza de discernir juntos como um
corpo apostólico inaciano laical.

DISCERNINDO COMO CORPO APOSTÓLICO


17. [Conversação Espiritual e Discernimento Apostólico] Os delegados foram convidados a
fazer parte de um processo formal de discernimento comunitário em chave de Exercícios
Espirituais, com recurso à ferramenta da conversação espiritual. Durante cinco dias, todas as
manhãs e tardes, seguimos uma sequência de três etapas: oração individual, partilha em
pequenos grupos (em três rondas, permitindo-nos ser movidos e dar eco ao que ouvimos dos
outros) e plenário. Se, por um lado, a dinâmica dos Exercícios Espirituais deu estrutura a todo
o processo, a conversação espiritual, por outro, trouxe-nos docemente à memória as partilhas
de vida que costumamos fazer nos nossos pequenos grupos de pertença. O processo foi
facilitado pela equipa ESDAC7, que nos deu as pistas de oração e nos foi criativamente guiando
na forma como cada grupo oferecia as suas percepções em plenário a toda a Assembleia.

18. [Confiança de Abraão em Deus] À medida que a Assembleia se envolvia no processo de


discernimento, Abraão ressurgiu como referência. Quando Deus o chama, Abrão não vê
apenas o seu nome mudado para Abraão mas é conduzido por Deus para fora da sua zona de
conforto sem saber para onde ia. Única garantia de Abraão: a sua fé em Deus. Como Abraão,
começámos o processo apenas com a nossa confiança no Espírito, que sempre nos ajuda a
encontrar sentido no meio do caos. Assim, da mesma forma que cada um de nós confia no
Espírito sempre que faz Exercícios Espirituais, a Assembleia como um todo sentiu-se chamada
a respeitar o processo e a confiar na direcção do Espírito.


6
Cf. Companhia de Jesus - Congregação Geral XXXV, 8.
7
Exercices Spirituels pour un Discernement Apostolique Communautaire, http://www.esdac.net/.

12
19. [Alegrias e Lutas] Com o passar dos dias, começámos a perceber que o processo de
discernimento comunitário é desafiador: requer paciência e abertura de coração. Enfrentámos
obstáculos, resistências e dores, mas percebemos que eles são parte integrante do processo e
só podem ser compreendidos à luz da Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo. Como
peregrinos que caminham em direcção a territórios desconhecidos, sentimo-nos chamados a
partilhar humildemente com os nossos companheiros CVX a nossa própria experiência e os
frutos que recebemos:

a. Aprendemos que é difícil crescer em indiferença. Durante o processo de


discernimento, deparámo-nos com várias dificuldades, nomeadamente dúvidas sobre
o funcionamento do processo ou sobre aquilo que nos estava especificamente a ser
pedido; às vezes, parecia não haver clareza suficiente. Isso deu origem a frustração,
falta de sentido e desolação. Percebemos que é doloroso pôr os nossos afectos de lado
e focar os nossos corações no bem maior que muito lentamente vai surgindo na
partilha do grupo. Nesse processo, aprendemos uns com os outros a ser humildes e
pacientes.

b. Experimentámos um sentido crescente de íntima ligação espiritual entre nós, à


medida que a nossa partilha ia cada vez mais fundo, transcendendo os nossos
antecedentes pessoais, as nossas realidades locais e dificuldades de linguagem.
Embora, às vezes, resistíssemos a dar um cariz mais pessoal à nossa partilha, fomos
capazes de gradualmente abrir os nossos corações uns aos outros; rimos, chorámos e
sonhámos juntos. Nesse processo, tornámo-nos numa comunidade de amigos no
Senhor.

c. Sentimo-nos libertos por reconhecer as nossas fragilidades e imperfeições. A dado


momento, percebemos que, para caminharmos verdadeiramente juntos, teríamos que
ser honestos sobre tudo aquilo que impede o Espírito de fluir livremente nas nossas
comunidades. Encenámos e contemplámos as várias paralisias que inibem a nossa vida
comunitária, reconhecendo como as nossas comunidades se podem facilmente fechar
em si mesmas, tornando-se autocentradas; como podem ser apanhadas numa teia de
interesses próprios, tornando-se vítimas de divisão e conflito; como podem deixar
morrer a paixão pelo anúncio do Reino e assim perder o brilho que atrai outros para o
nosso modo de vida. Nesse processo, aprendemos como o poder da verdade e da
reconciliação vividas em comunidade pode ser profundamente libertador.

d. Passámos do medo e da dúvida para uma união de corações e mentes. Enquanto


os dias se desdobravam, apesar das dificuldades em nos ajustarmos ao processo e dos
surtos ocasionais de desolação, começámos a sentir juntos uma paz genuína. Ao longo
da Assembleia, fomos também sustentados pelas orações da comunidade mundial,
que sentimos especialmente em períodos particularmente difíceis. Esta corrente
invisível, mas poderosa, acabou por irromper em profunda gratidão, consolação,
alegria, esperança e desejo de futuro. Nesse processo, saboreámos por breves
instantes a paz que somente Cristo ressuscitado nos pode dar.

e. Percebemos que podemos tomar decisões juntos. À medida que os membros do


pequeno grupo se começaram a familiarizar entre si, tornou-se mais fácil identificar

13
pontos de convergência nas nossas partilhas e assim encontrar uma resposta comum
para as questões que nos eram propostas para discernimento. Nesse processo,
aprendemos a fundir a nossa diversidade em algo mais do que apenas a soma das
partes.

20. [Tesouro do Discernimento Comunitário] No computo global, os delegados à Assembleia


experimentaram o discernimento comunitário como o meio para aprofundar a nossa vocação
enquanto corpo apostólico inaciano laical. Enquanto o Princípio Geral 8 nos incita a não
conhecer limites no nosso chamamento apostólico, o Princípio Geral 2 é muito claro na
necessidade de respeitar "a singularidade de cada vocação pessoal [que] nos permite sermos
abertos e livres, sempre à disposição de Deus". O discernimento comum em ambiente de
oração em rondas sucessivas permite que as nossas moções espirituais convirjam
gradualmente ao longo do processo. Isso permite-nos crescer em confiança e responsabilidade
pelas nossas decisões colectivas. É um processo que exige humildade e perseverança, porque
as resistências podem parecer difíceis de superar. No entanto, os frutos - laços comunitários
mais fortes, maior clareza sobre o caminho a seguir - são preciosos demais para não serem
colhidos. Abrimo-nos gradualmente à graça implicada no nosso caminhar juntos. Caímos na
conta de que o processo em si é já uma graça – o caminho é realmente parte da experiência.

FRUTOS DO NOSSO DISCERNIMENTO APOSTÓLICO


21. [O que recebemos] Chegámos a Buenos Aires desejando maior profundidade e integração
na forma como vivemos o nosso carisma CVX no mundo de hoje. Deixamos a Assembleia
sentindo-nos profundamente gratos e consolados por tanto bem recebido. Sentimos tristeza
pelas nossas paralisias. Foi-nos oferecido um caminho para uma profunda conversão interior.
Ao reconciliarmo-nos uns com os outros e com a nossa história, o nosso coração encheu-se de
imensa alegria; tornámo-nos verdadeiros amigos no Senhor, companheiros de viagem, fomos
re-energizados para a Missão. Sentimo-nos confirmados no nosso chamamento a ser um corpo
apostólico inaciano laical na Igreja.

22. [Onde nos sentimos chamados] À medida que o nosso discernimento avançava, fomos
levados a reflectir sobre a questão: "Como comunidade CVX, somos hoje chamados a...?".
Entre as muitas respostas oferecidas, três grandes janelas se abriram:

i. Sentimo-nos chamados a APROFUNDAR a nossa identidade, através de uma


conversão interior que nos permita ser mais fiéis e cuidar melhor do nosso carisma em
todas as suas dimensões;

ii. Sentimo-nos chamados a PARTILHAR humildemente com outros o dom da


espiritualidade inaciana tal como é vivido na nossa vocação laical. Vemos o
discernimento e as ferramentas e métodos inacianos como dons preciosos que não
podemos guardar para nós mesmos;

iii. Sentimo-nos chamados a SAIR para servir os mais necessitados e semear as


sementes da misericórdia, da alegria e da esperança no mundo, a fim de seguir a Jesus
mais de perto e trabalhar com ele na construção do Reino.

14

23. [Como viveremos o nosso chamamento] O processo de discernimento comunitário
realizado em Buenos Aires deu-nos uma nova compreensão da CVX como corpo apostólico
inaciano laical e inspirou-nos a assumir a nossa coresponsabilidade financeira de maneira mais
proactiva. À medida que for sendo alargado às nossas comunidades nacionais, o processo de
discernimento comunitário pode revelar-se uma ferramenta poderosa para melhorar a
qualidade do nosso chamamento apostólico ao Reino. Poderá ser também a semente que nos
ajudará a compreender se existe um certo modo de viver o chamamento à Missão que é
específico - e profético - da nossa vocação laical. A Assembleia recomenda, portanto, que o
ExCo Mundial expanda, desenvolva e aprofunde este processo para utilização nos vários níveis
da nossa comunidade mundial. Convidamos também as comunidades nacionais, através dos
seus delegados presentes nesta Assembleia, a partilhar os métodos e frutos deste processo
para facilitar uma maior profundidade e integração do nosso carisma na vida apostólica das
nossas comunidades.

15

16
Documentos preparatórios da
Assembleia Mundial


CHRISTIAN LIFE COMMUNITY
COMMUNAUTÉ DE VIE CHRÉTIENNE
COMUNIDAD DE VIDA CRISTIANA

Quito, Ecuador | Maio 2017

4ª Carta do Presidente da CVX Mundial. 2017


Convocatória da Assembleia Mundial Buenos Aires 2018

A alegria do Evangelho é tal que nada e ninguém no-la poderá tirar (cf. Jo 16, 22). Os males do
nosso mundo – e os da Igreja – não deveriam servir como desculpa para reduzir a nossa entrega e
o nosso ardor. Vejamo-los como desafios para crescer. Além disso, o olhar crente é capaz de
reconhecer a luz que o Espírito Santo sempre irradia no meio da escuridão, sem esquecer que,
«onde abundou o pecado, superabundou a graça» (Rm 5, 20). A nossa fé é desafiada a entrever o
vinho em que a água pode ser transformada, e a descobrir o trigo que cresce no meio do joio. (…)
Na ordem presente das coisas, a misericordiosa Providência está-nos levantando para uma ordem
de relações humanas que, por obra dos homens e a maior parte das vezes para além do que eles
esperam, se encaminham para o cumprimento dos seus desígnios superiores e inesperados, e
1
tudo, mesmo as adversidades humanas, converge para o bem da Igreja».

(Evangelii Gaudium, 84)

A nossa Comunidade de Vida Cristã (CVX) vive um verdadeiro tempo de graça. Estamos a
experimentar um "kairós" genuíno, isto é, o tempo propício em que Deus se faz presente para
iluminar ainda mais o nosso caminhar. Este tempo especial vai muito além dos nossos feitos ou
bons ofícios, e ultrapassa inclusive as nossas limitações e fraquezas. De facto, este "kairós" é
um movimento interior constante que se relaciona coma experiência profunda do Reino de
Deus como graça presente nas nossas vidas e como uma disposição exterior para nos
deixarmos tocar mais pela realidade e responder-lhe com o que somos e temos. Não tem nada
a ver com os aspetos cronológicos das nossas vidas, que são sempre limitados. Trata-se antes
de responder à pergunta: reconheço a passagem de Deus pela nossa vida pessoal e
comunitária como graça profunda? E consigo descobrir o chamamento particular que o nosso


1
San JUAN XXIII, Discurso de apertura del Concilio Ecuménico Vaticano II (11 octubre 1962), 4, 2-4: AAS 54 (1962),
789.

17
Pai-Mãe nos faz como CVX para responder com o melhor que temos neste momento da vida
da Igreja e do mundo hoje?

Na "Contemplação da Encarnação" (EE 106-108), elemento central dos Exercícios Espirituais e


porta de entrada para entender a nossa identidade CVX no Preâmbulo dos nossos Princípios
Gerais (PG 1 a 3), reconhecemos essa expectativa da plenitude dos tempos e, ao mesmo
tempo, abraçamos o chamamento do Deus Trindade para nos unirmos na redenção do género
humano como resposta aos nossos tempos. A comemoração dos 50 anos da Comunidade de
Vida Cristã (CVX) é um reflexo deste tempo especial e também um convite a adentrar-nos
ainda mais no chamamento essencial da nossa espiritualidade, contemplando o mundo,
amando-o e adentrando-nos nele: " O que fiz, o que faço e o que farei por Cristo? ” (EE 53).

Queremos celebrar a graça jubilar dos primeiros 50 anos do nosso caminhar como CVX (1967-
2017), juntando este festejo ao convite para nos prepararmos como UMA comunidade para a
nossa Assembleia Mundial que se realizará em Buenos Aires, Argentina, em julho de 2018. Que
todos na CVX nos adentremos no mistério do Deus que se revela no meio do mundo. Mistério
presente nos nossos 50 anos de caminho CVX, sabendo que ainda há muito por escrever e
muitas dúvidas por resolver, mas deixando-nos guiar por esse chamamento a unificarmo-nos
dentro deste projeto universal de reino.

Na última reunião do Conselho Executivo Mundial, unidos em oração a todo a CVX mundial, e
como resultado de dois anos de um profundo e pausado processo de discernimento,
recebemos frutos que propomos a todos os membros da CVX como preparação para a nossa
Assembleia Mundial 2018, através do "Tema", que dá cor e um apelo especial à nossa
Assembleia; da "passagem da Escritura" que ilumina o nosso caminho e encontro como corpo
mundial; e da "Graça" que pedimos a Deus como fruto desta celebração e deste kairós. São
elementos tecidos conjuntamente. De facto, só podem ser entendidos de maneira conjunta e
por isso os oferecemos a todos para que nos possamos ir dispondo interiormente (EE 1) para a
nossa Assembleia Mundial 2018.

O tema: "CVX, um dom para a Igreja e para o mundo"


O momento especial da Igreja e da CVX hoje levam-nos a integrar os primeiros 50 anos da
nossa vida comunitária com o espírito renovador do Concílio Vaticano II, que nos impulsionou
a assumir com mais abertura e valentia os sinais dos tempos atuais, para uma nova maneira de
ser Igreja no mundo. Da mesma forma, não podemos deixar de reconhecer a esperança
especial que o Papa Francisco trouxe a toda a Igreja e ao mundo hoje e é por isso que
queremos propor a um discernimento profundo sobre como levar a graça integradora, curativa,
apostólica e renovadora da nossa Espiritualidade ao coração da Igreja e aos desafios e
fronteiras do mundo de hoje. Ser uma verdadeira Igreja e CVX em saída, no espírito do
Vaticano II e da Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, que chama a uma CONVERSÃO
PASTORAL.

18
A passagem da Escritura: "Quantos pães tendes? Ide ver "(Mc 6, 38)
Convidamos todos a ler o contexto da passagem bíblica que nos fala de um processo de
conversão e de resposta, acolhendo a graça de Deus recebida.

1. Há um momento especial em que os apóstolos experimentam a amizade profunda com


Cristo e se encontram com Ele para partilhar tudo o que temos caminhado, tudo o que tem
sido graça e a necessidade de descansar Nele (Mc 6, 30-32);

2. As outras pessoas reconhecem Jesus e Ele sente compaixão por elas, isto é, é o próprio
Cristo que experimenta a busca de sentido por parte das pessoas que parecem perdidas; que
assume o vazio nos seus corações e se dispõe a partilhar a sua vida e a sua graça. (Mc 6, 33-34);

3. Os apóstolos, preocupados com as questões deste mundo, sentem-se inseguros porque é


tarde e se sentem angustiados pelo facto de não serem capazes de oferecer alimento a tantas
pessoas. Apesar de o Pão Vivo estar entre eles, parece que ainda não o entenderam (Mc 6, 35-
36).

4. Jesus confirma-os com o seu chamamento, compromete-os com a dor do mundo e move-os
a reconhecer em si mesmos a graça recebida, ao dizer "Dai-lhes vós de comer" (Mc 6, 37); e
embora a dúvida e o temor persistam nos apóstolos (tal como em nós), Ele faz a afirmação que
transformará a fé e as certezas dos seus seguidores e que é a que agora nos encoraja como
CVX a reconhecer a graça que já recebemos para a partilhar com coragem na Igreja e no
mundo: "Quantos pães tendes? Ide ver"(Mc 6, 38).

A Graça que pedimos ao Senhor na nossa Assembleia: "Desejamos maior


profundidade e integração na vivência do nosso carisma CVX no mundo de hoje".
Confiar em tudo o que já nos foi dado, vivê-lo em plenitude integrada a partir da nossa
comunidade, espiritualidade e vocação apostólica e dá-lo ao mundo. A quem muito foi dado,
muito lhe será pedido. E a CVX recebeu muito... muitíssimo. É hora de levar tudo isso ao
mundo com mais coragem e valentia.

Através deste comunicado, CONVOCAMOS FORMALMENTE a nossa Assembleia Mundial CVX


para Buenos Aires, de 22 a 31 de julho de 2018 (chegada a 21 de julho e partida no dia 1 de
agosto).

Que o Deus da vida nos ilumine em cada passo e nos dê um coração generoso e atento a
escutar as moções do Bom Espírito para olharmos o horizonte dos próximos 50 anos que
queremos deixar àqueles que virão depois de nós, e honrando ao mesmo tempo a vida
daqueles que passaram antes pela CVX para fazê-la o que ela é hoje.

Abaixo compartilhamos detalhes e orientações mais específicos sobre a nossa Assembleia.


Mauricio López Oropeza
Presidente CVX mundial

19

20
Ligação entre o Conselho
Executivo e a Comunidade
de Vida Cristã Mundial


PROJECTS
Nossa próxima Assembleia Mundial CVX
“Celebração, Consolidação e Renovação da CVX”
Nº. 168, Setembro de 2017
Original: inglês

Queridos amigos no Senhor,
1. Saudações da parte do Exco Mundial CVX.
Daqui a aproximadamente 10 meses,
celebraremos a nossa Assembleia Mundial; é
tempo de nos prepararmos para este grande
acontecimento na vida da CVX.1
2. As nossas Escrituras e a Liturgia estão cheias de
exemplos de "tempos de preparação", como a
Quaresma, o Advento e outros. Também nós
estamos agora a entrar num tempo de
preparação especial, ao iniciarmos o caminho
rumo à nossa próxima Assembleia Mundial.
Neste sentido, a nossa Assembleia já começou.
Portanto, devemos deter-nos, fazer uma pausa e olhar ao nosso redor; por outras palavras,
buscamos fazer-nos “sensíveis aos sinais dos tempos e aos movimentos do Espírito Santo"
(PG6).
3. Recordamos, em primeiro lugar, a imagem desenhada por Santo Inácio na "Contemplação
da Encarnação", cujos ecos encontramos no Preâmbulo dos nossos Princípios Gerais.
Vemos as Três Pessoas Divinas que nos olham, se condoem da situação do mundo e
decidem operar a redenção do género humano. Observamos também o grande desejo de
Deus de se comprometer intimamente connosco como objetos da Sua Grande Missão e
também colaboradores nela.
4. Em segundo lugar, sentimo-nos confrontados por uma série de realidades contextuais do
nosso tempo presente que, parece-nos, encontrarão eco na nossa Comunidade Mundial.
Estas realidades, coletivamente, parecem conter as sementes de uma renovação mais
profunda da nossa comunidade mundial CVX, das nossas vocações pessoais vitais e
fortalecerão a nossa presença apostólica no mundo.


1
Ver carta nº 4 do Presidente da CVX – Convocatória da Assembleia Mundial da CVX, Buenos Aires, 2018

21
Primeira realidade contextual – O nosso 50º aniversário
5. A primeira realidade é a celebração do 50º aniversário da CVX desde a sua renovação em
1967; um marco significativo e um tempo de gratidão, celebração e, no sentido inaciano,
de revisão e avaliação. Encorajados pelos nossos Princípios Gerais (PG.2), desejamos
cooperar com o Espírito Santo inscrito nos nossos corações, que se expressa sempre de
um modo novo em cada tempo e em cada situação.
6. Os temas mais profundos de celebração refletem-se nas graças tão significativas que a
CVX recebeu durante os últimos 50 anos. Estas graças têm que ver especialmente com o
crescimento da CVX em termos de identidade, comunidade, missão e processos de
discernimento. Tomemos todos tempo suficiente para refletir sobre o seu significado
especial para nós, a todos os níveis da CVX, e sobre o modo como os vivemos nas nossas
próprias circunstâncias.
7. Além disso, um tempo de celebração das graças passadas é também um bom momento
para fazer uma avaliação honesta do modo como temos vindo a caminhar. Olhemos,
portanto, para a nossa história de graça para melhor poder discernir o nosso futuro e
assim avançar mais seguramente na companhia e na missão do Senhor.

Segunda realidade contextual - um papado que renova a Igreja


8. O pontificado do Papa Francisco convida-nos a uma nova visão, profundidade e
experiência do catolicismo contemporâneo, chamando a uma verdadeira conversão na
forma como nós, a Igreja, estamos presentes para nós mesmos e para o mundo. As suas
diversas mensagens papais advogam reformas significativas na teologia, na eclesiologia e,
especialmente, na prática pastoral. Desejamos, com alegria e esperança, unir-nos ao Papa
Francisco e à Igreja nestas reformas profundas.
9. Ouvimos especialmente o Papa Francisco quando ele nos fala de colegialidade e de uma
perspetiva missionária mais visível no mundo que se aventure às periferias onde nós, os
leigos, estamos especialmente presentes. Ele convoca-nos, como igreja, a desempenhar
um papel semelhante a um "hospital de campanha" e a viver a "opção pelos pobres". Fala
frequentemente da misericórdia, da alegria, da inclusão, de cuidar da terra e de viver vidas
de discernimento e de conversão permanentes.
10. O Papa Francisco renovou também de modo substantivo o chamamento dos leigos,
retomando os temas do Vaticano II2 (em espírito, mesmo que nem sempre por referência
direta) e acrescentando a sua perspetiva contemporânea. Mais do que nunca, sentimo-
nos chamados a um tempo de "sentir com a Igreja", a um "sensus fidelium"3, para que nós
(CVX) possamos fazer escolhas validamente discernidas segundo a vontade de Deus acerca
da nossa modesta participação para o bem da Igreja e do mundo.

Terceira realidade contextual – o chamamento renovado dos leigos no mundo de
hoje.
(i) Renovação do laicado
11. De especial interesse e inspiração para nós são as opiniões do Papa Francisco sobre o
laicado. O Papa Francisco pede um "novo despertar" enfatizando a forma como nós, leigos,


2
Por exemplo: em "Gaudium et Spes" e o "Decreto sobre o Apostolado dos Leigos"
3
Regras para sentir com a Igreja (Exercícios Espirituais de Santo Inácio 352 e outros)

22
somos também mandatados pelo nosso batismo a participar no ministério sacerdotal,
profético e real de Cristo. Na verdade, os nossos apostolados são-nos atribuídos pelo
próprio Senhor, para levar a Sua salvação e amizade a cada canto do mundo e a cada
aspeto da vida.
12. O Papa tem palavras particularmente fortes para o "pecado do clericalismo" e para a
nossa necessidade coletiva (ie, clerical e laical) de reforma. Quaisquer que sejam as
reformas planeadas para a hierarquia eclesiástica, elas aplicam-se igualmente a nós leigos
que podemos também ser demasiado cúmplices no serviço a uma igreja autorreferencial
em vez de assumirmos uma postura mais missionária no mundo. Como leigos, o nosso
mundo é o das famílias, das escolas, das paróquias, da participação política, da profissão,
do trabalho, da cultura e outros. O chamamento do Papa para nós todos (sacerdotes,
religiosos e leigos) é o chamamento a comprometer-nos mais profunda e humildemente
com espírito de serviço colaborativo nas nossas respetivas vocações e campos
missionários.
13. Como é que nós enquanto leigos vivemos um novo apreço pela nossa vocações laicais CVX?
Como membros CVX, somos particularmente agraciados pelos dons, pelas intuições e
graças dos sempre relevantes Exercícios Espirituais de Santo Inácio. Com estes dons,
sentimo-nos preparados e capacitados de uma maneira particular para responder ao
desafio do Papa Francisco a viver o mais plenamente possível a missão dos leigos no
mundo de hoje, conscientes, ao mesmo tempo, de que, ao longo do caminho, seremos
chamados a uma conversão pessoal cada vez mais profunda.
(ii) O nosso mundo hoje
14. Não é necessário citar aqui a interminável ladainha dos males do mundo. Os nossos meios
de comunicação estão saturados disso. Basta dizer que é improvável que, alguma vez
antes tenhamos sido confrontados coletivamente por situações de guerra, fome, migração
massiva, polarização da riqueza, roturas familiares, desrespeito pelo meio ambiente e de
negação dos direitos humanos básicos, como o estamos a ser agora.
15. Basta um olhar breve aos nossos websites e publicações da CVX mundial para nos darmos
conta de quantos entre os nossos membros CVX estão a viver estas provações nas suas
próprias vidas quotidianas. Apesar de alguns de nós termos a sorte de viver em grande
parte livres de muitas destas dificuldades, todos nós somos chamados a enfrentá-las de
acordo com a nossa Fé – e tal como recomenda o mandato da nossa Assembleia no Líbano.
16. Como poderemos responder a estas grandes necessidades do nosso mundo? Uma vez
mais, vale a pena recordar o quão bem posicionados estamos, por sermos leigos que
vivem um carisma CVX/Inaciano, para levar a mensagem de Cristo e a Sua missão a todas
as partes do mundo. Desejamos cooperar ao máximo com este novo despertar do lugar
central e do papel da vocação laical, e trabalhar em colaboração com toda a Igreja pela
missão global de Cristo.

Um momento de "Kairós"
17. No seu conjunto, as considerações anteriores sugerem que estamos a viver um momento
de "Kairós"4. Tal como propõem as definições do dicionário, um momento de "Kairós"
acontece quando somos confrontados com um tempo que é particularmente adequado,
crítico, oportuno e apropriado, para assumir um programa de ação deliberado com vista a
alcançar um fim desejável. As circunstâncias e a dinâmica do nosso tempo parecem sugerir


4
Veja a carta nº 4 do Presidente da CVX – Convocatória da Assembleia Mundial da CVX, Buenos Aires, 2018

23
que estamos a viver um "momento" assim. Aspiramos, por isso, a responder a este
momento com um espírito de revisão, consolidação e de compromisso mais completo,
tanto no âmbito pessoal como coletivamente como uma comunidade global. A nossa
próxima Assembleia Mundial oferece-nos uma oportunidade muito propícia para isso.

O caminho rumo à nossa Assembleia Mundial - e dois "movimentos"
18. Descrevemos acima três amplas realidades contextuais. Agora, recuperamos, a título de
recordatório e como já foi mencionado na Carta de Convocatória, três luzes que
esperamos ajudem a iluminar o nosso itinerário até à nossa próxima Assembleia e a
experiência dela:
a) O Tema: "CVX, um dom para a Igreja e para o Mundo".
b) O texto da Escritura: "Quantos pães tendes? Ide ver" (Mc 6, 38)
c) A graça: "Desejamos maior profundidade e integração na vivência de nosso carisma
CVX no mundo de hoje".
19. Adicionalmente, e ainda dentro do contexto anterior, voltamos a propor dois
movimentos básicos (veja-se a Carta de Convocatória):
a) 1º Movimento - Revisão e renovação na vivência de nosso Carisma CVX: Ao refletir
e rever as muitas graças recebidas através da nossa vocação CVX e inerentes a ela,
desejamos uma maior profundidade e integração do nosso estilo de vida segundo
o nosso carisma CVX. Ou seja, desejamos uma integração na nossa vivência
pessoal e comunitária dos três pilares da CVX, nomeadamente, os pilares da
Espiritualidade, Comunidade e Missão. Desejamos viver pessoalmente, o mais
plenamente possível, o convite do Papa Francisco a um novo despertar laical e
compromisso pessoal com a missão de Cristo na nossa vida quotidiana – e ao
consequente processo de contínua oração, ação e conversão.
b) 2° Movimento - viver o nosso Carisma CVX no mundo de hoje: Desejamos a maior
profundidade do nosso compromisso no mundo, em termos pessoais e coletivos,
de acordo com o nosso carisma CVX e segundo as nossas circunstâncias de vida.
Ao fazê-lo, respondemos às indicações do Papa Francisco, ao espírito do Vaticano
II e aos nossos próprios Princípios Gerais, que nos recordam que "O espírito...
desafia-nos a tomar consciência das nossas graves responsabilidades, a buscar
constantemente respostas às necessidades dos nossos tempos... "(PG 2).
20. Neste número de Projetos, aprofundaremos um pouco o primeiro movimento. No
próximo (Projetos 169), aprofundaremos o segundo.

21. Sugestão para a reflexão sobre o "primeiro movimento". Como parte do nosso caminho
rumo à nossa próxima Assembleia Mundial, podemos considerar:
a) A nossa história: Passemos em revista a nossa experiência das graças recebidas ao
longo dos nossos 50 anos de história, tal como as vivemos nos diferentes níveis da
CVX, ou seja, a nível mundial, nacional, na comunidade local, nos grupos e a nível
pessoal. Embora partilhemos algumas perceções comuns no âmbito global, pode
haver variações consideráveis nos outros âmbitos, já que as graças são recebidas e
vividas segundo o contexto, seja nacional, local, cultural ou outro. Desta maneira,
podemos contemplar a rica diversidade de vida e ação da CVX em todo o mundo.
b) Uma apreciação renovada pelo nosso Carisma: Conforme as reflexões anteriores,
respondamos à pergunta que Cristo nos fez: "Quantos pães tendes? Ide ver".
Buscamos a graça de uma renovada apreciação pessoal pelo nosso Carisma.

24
c) Vivência renovada do nosso Carisma: Como podemos viver pessoalmente com mais
profundidade a nossa vocação e a nossa missão na nossa vida quotidiana? (Esta
reflexão é um preâmbulo ao Projetos 169).
22. Esperamos que as reflexões anteriores e as que se seguirão no Projetos 169 nos ajudem a
preparar-nos para a nossa próxima Assembleia Mundial e para qualquer outro
discernimento sobre direções para a CVX. Convidamos-vos a um compromisso total com
o caminho que temos por diante. Os preparativos para a Assembleia Mundial continuam;
por isso, dar-nos-á muita alegria que nos façam chegar quaisquer ideias ou inspirações.
Por favor, enviem os vossos comentários ao cuidado do nosso Secretario Executivo, Alwin
Macalalad5 até 30 de novembro de 2017.

Aguardamos com grande confiança o que nos espera e inspiramo-nos nas palavras de São
Paulo: "Glória Àquele que pode fazer imensamente mais do que pedimos ou imaginamos, de
acordo com o poder que eficazmente exerce em nós " (Efésios 3, 20).

Unidos na oração e na ação,


Chris Hogan, Consultor & Mauricio López, Presidente


Com e em representação do Conselho Executivo Mundial CVX




5
exsec@cvx-clc.net

25

Fotografia de Jesus Cristo composta pelas fotos de rosto de todos os Delegados à AM 2018

26
Ligação entre o Conselho
Executivo e a Comunidade
de Vida Cristã Mundial


PROJECTS
Dia Mundial da CVX 2018:
“Cuidar do nosso dom, oferecê-lo mais generosamente na alegria”
N.º 169, Dezembro 2017
Original: Inglês

Queridos amigos no Senhor,

1. O tema da nossa próxima Assembleia Mundial


convida-nos a olhar a CVX como um dom. Um
dom é algo que se pode receber ou se pode
dar, ou, como no caso da nossa experiência
de graça na CVX, recebe-se para ser dado:
“Receberam de graça, dai de graça” (Mt 10,
8). Na preparação para a Assembleia, é-nos
pedido que reconheçamos com maior
profundidade e gratidão o que nos foi dado e
que cresçamos na nossa prontidão a
compartilhá-lo através do serviço, na Igreja e no mundo.
A nossa atenção é orientada para duas direções: para a nossa história, um olhar que nos
recorda quem somos e nos ajuda a fortalecer os nossos fundamentos, para o futuro,
seguindo a visão do Papa Francisco, abertos aos desafios de ser testemunhas e nos darmos
a nós mesmos de uma forma mais generosa e eficaz apostolicamente.

I. Cuidar do dom da CVX


2. O nosso dom foi sendo recebido pouco a pouco, através de uma já longa e abençoada
história de 50 anos. Chegou à forma que tem hoje passo a passo, através da experiência
refletida de tantos membros CVX, num lento descobrir de riquezas e revelar de
implicações. Podemos agora olhar para trás e ver como se foi encontrando gradualmente
o equilíbrio dos elementos principais do nosso carisma. Recordemos alguns dos pontos
mais importantes desse desenvolvimento. Olhemos para alguns dos “pães que temos”,
para nos referirmos à passagem da Escritura que nos inspira para Buenos Aires 2018:

27
• Nova identidade, respondendo ao chamamento do Vaticano II: fortalecimento do
carácter laical, com um novo nome e novos Princípios Gerais.

• Retorno aos Exercícios Espirituais (Manila, 1976), como inspiração e como prática
vivida pessoalmente e nos nossos pequenos grupos, mas também propostos a
outros no apostolado. Os Exercícios tornaram-se “na fonte específica e no
instrumento característico de nossa espiritualidade” (PG 5).

• Afirmação do valor testemunhal da Comunidade, quando decidimos passar do


modelo federativo à aceitação e confirmação do chamamento a ser Uma
Comunidade Mundial (Providence, 1982).

• Descoberta da dimensão intrinsecamente missionária da CVX (Hong Kong, 1994),


para ser vivida principalmente nas nossas vidas quotidianas. Esse chamamento foi
depois desenvolvido no discernimento de uma Missão Comum (Itaici, 1998) e no
receção do chamamento a nos tornarmos um Corpo Apostólico Inaciano Laical,
que partilha a responsabilidade pela missão, pratica o método do DEAA (Nairobi,
2003) e deseja estar presente no mundo como uma comunidade profética
(Fátima, 2008). A última Assembleia Mundial (Líbano, 2013) elegeu algumas
fronteiras prioritárias como critérios para o discernimento apostólico de toda a
Comunidade.

3. Ser depositário de uma história tão cheia de dons como a nossa exige responsabilidade e
fidelidade criativa. Somos responsáveis por manter a nossa tradição, por continuar a
cultivá-la explorando os seus elementos sempre em maior profundidade e por transmiti-la,
em toda a sua plenitude, aos novos membros da nossa Comunidade. Temos o dever de dar
a conhecer esta forma de viver, para que possa ser reconhecida por aqueles que buscam
esta maneira de seguir a Cristo e que se identificam com esta vocação.
4. Hoje em dia, referimo-nos com frequência aos “três pilares” (Espiritualidade, Comunidade
e Missão) para sintetizar as dimensões fundamentais do nosso carisma, forjado ao longo
da nossa história. Precisamos de avaliar se cada um destes pilares, assim como todos em
conjunto, está profundamente integrado e continua vivo e forte em toda a CVX. Queremos
evitar leituras superficiais da nossa história, que possam considerar os pilares
simplesmente como passos numa sequência cronológica ou uma justaposição de níveis
numa hierarquia que atribui mais valor a um que aos outros. Esta tríade deve formar um
círculo dinâmico, que se reforça contínua e reciprocamente, e cujo poder integrador se
expressa tangivelmente na vida de cada membro da CVX, de cada comunidade e de todo o
Corpo. Esta é “a maior profundidade e integração na vivência do carisma CVX” que
estabelecemos como a graça desejada para a nossa próxima Assembleia Mundial.


5. Perguntas para avaliação

a. Este dom completo e compreensivo – os documentos principais, a história – é bem


conhecido por todos na CVX hoje? Têm todos os membros CVX pleno conhecimento deste
dom vasto e integral, composto pelos principais documentos e pela história da CVX?
Estas fontes do nosso carisma continuam a ser estudadas, assimiladas e valorizadas
como um tesouro de sabedoria e inspiração?

28
b. O compromisso com a CVX expressa-se bem na vida quotidiana de todos os membros e
continua a fundar-se e a alimentar-se por uma experiência regular dos Exercícios
Espirituais?
c. Estes três pilares estão a ser vividos com profundidade e mútua integração a todos os
níveis?
Como preparação para a nossa próxima Assembleia Mundial, uma das tarefas dos
delegados será avaliar a forma como a sua Comunidade Nacional está a cuidar deste dom
da CVX e trazer essa informação com eles para Buenos Aires, como base para o
discernimento comunitário em que serão convidados a participar na Assembleia.

II. Preparar-nos para oferecer o nosso dom mais generosamente na alegria


6. A fidelidade criativa pede que façamos algo mais que simplesmente preservar o dom.
Convida-nos a usar a imaginação e generosidade para o desenvolver, para o tornar ainda
mais valioso e frutífero, seguindo o exemplo do “servidor bom e fiel” da parábola dos
talentos (Mt 25, 21-23). Requer também que estejamos atentos aos sinais dos tempos,
buscando sempre com prontidão e indiferença, desejando e elegendo “somente o que
mais conduz” (EE 23) a que o dom do nosso carisma dê o maior fruto, concretamente, em
cada lugar e a cada momento.
7. Hoje em dia vivemos um momento especial, um momento “Kairós”, pelo modo como o
Papa Francisco está a impulsionar uma renovação da Igreja, como já se descreveu no
Projetos 168 (especialmente os números 8-17), para o qual aqui referimos. A CVX sente-se
desafiada, de muitas formas, pela visão e pela ação do Papa Francisco. Basta relembrar os
incentivos constantes do Papa para que usemos o discernimento, para que aprendamos a
discernir, para que ensinemos a discernir, os quais é difícil escutar sem nos sentirmos
convocados a agir. A escolha de Buenos Aires teve muito a ver com o desejo de responder
ao Papa Francisco, de encontrar no lugar das suas raízes pastorais o mesmo Espírito e a
mesma luz que possam guiar a CVX a colocar o seu dom ao serviço do projeto de
renovação do Papa.
8. A inspiração do Papa Francisco deve, portanto, guiar-nos na preparação para a Assembleia.
As suas ações são eloquentes. As suas palavras são ricas em profundidade. Lemo-las
novamente com atenção, deixando que nos confrontem e desafiem, guiados por
perguntas como estas:

a) Como devem estas sugestões e apelos ser escutados e acolhidos pela CVX, uma
Comunidade Apostólica Inaciana Laical ?
b) Como nos sentimos desafiados pelo sonho do Papa Francisco para a Igreja?
Propomos quatro textos principais do magistério de Francisco, até agora, e oferecemos
para cada um uma sugestão de ligação com um aspeto central do carisma CVX, como ele é
proposto no Princípio Geral 4.

9. Evangelização e renovação – Evangelium Gaudium1. Esta Exortação desafia a Igreja a sair de


si mesma, a “sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias


1
http://bit.ly/EvangeliiGaudium-sp

29
que precisam da luz do Evangelho” (EG 20). E, para a sua missão evangelizadora, o Papa
Francisco deseja que todos possam encontrar “na Igreja uma espiritualidade que os cure,
liberte, encha de vida e de paz, ao mesmo tempo que os chame à comunhão solidária e à
fecundidade missionária,” (EG 89), uma frase na qual vemos facilmente ressoar os nossos
três pilares. Testemunho apostólico e serviço eficazes e integração da vida cristã com as
diferentes dimensões da vida é precisamente o que a CVX deseja para seus membros: “Para
preparar mais eficazmente os nossos membros para o testemunho e o serviço apostólico,
especialmente nos ambientes quotidianos, reunimos em comunidade pessoas que sentem
uma necessidade mais premente de unir a sua vida humana em todas as suas dimensões
com a plenitude da sua fé cristã de acordo com o nosso carisma” (PG 4).

10. Ecologia, justiça e pobreza – Laudato Si2. Esta Encíclica propõe uma nova “ecologia integral”,
que responde de uma forma coerente aos dois maiores desafios do nosso mundo de hoje:
“Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa
crise sócio-ambiental” (LS 139). Por isso, “não podemos deixar de reconhecer que uma
verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar
a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o
clamor dos pobres.” (LS 49). O cuidado da criação, a opção pelos pobres e um estilo de vida
simples são elementos fundamentais do estilo de vida CVX: “O nosso objectivo é tornarmo-
nos cristãos comprometidos, dando testemunho, dentro da Igreja e da sociedade, dos
valores humanos e evangélicos que afectam a dignidade da pessoa, o bem-estar da família
e a integridade da criação. Estamos particularmente conscientes da necessidade premente
de trabalhar pela justiça através de uma opção preferencial pelos pobres e de um estilo de
vida simples, que expresse a nossa liberdade e solidariedade com eles” (PG 4).

11. Família – Amoris Laetitia 3 . Esta Exortação desafia as famílias CVX a aprofundar a sua
experiência de amor na família mas também convida a CVX a ser agente desta nova
pastoral familiar. Como associação de fiéis leigos, o bem-estar das “diversas realidades
familiares” (Documento Final do Líbano) deve estar sempre no centro das nossas
preocupações. “O nosso objectivo é tornarmo-nos cristãos comprometidos, dando
testemunho, dentro da Igreja e da sociedade, dos valores humanos e evangélicos que
afectam…o bem-estar da família” (PG 4).

12. Jovens – Documento preparatório para o Sínodo dos Bispos 20184 (não é diretamente do
próprio Papa Francisco mas está de acordo com as suas ideias). A solicitude pelos jovens e a
importância do discernimento vocacional sério, para todas as vocações, são também
elementos constitutivos da CVX: “a nossa Comunidade é formada por cristãos homens e
mulheres, adultos e jovens… que reconheceram na Comunidade de Vida Cristã a sua
particular vocação na Igreja” (PG 4).

13. Há uma palavra que tem estado sempre presente nos títulos de todos os documentos mais
importantes do Papa Francisco: Alegria! (“Laudato si” é em si mesmo um grito de alegria.)
Isto certamente não aconteceu por acaso. Há uma ênfase intencional desta ideia, como um
resumo dos seus sonhos e do seu estilo. É como uma palavra código para esta novidade

2
http://bit.ly/LaudatoSi-sp
3
http://bit.ly/AmorisLaetitia-sp
4
http://bit.ly/YouthSynodPrepDoc-sp

30
que o Papa está a tentar fazer nascer na Igreja. Exprime muito mais que simplesmente estar
contente; significa plenitude de vida e liberdade, tudo aquilo que “enche o coração e a vida
inteira daqueles que se encontram com Jesus” (EG 1). É uma palavra que pode servir para
nós como um critério de discernimento:

a. Fazer parte da CVX é para mim uma experiência que traz alegria?
b. Encontramos e partilhamos alegria na nossa Comunidade CVX, a todos os níveis?
c. A CVX é um testemunho vivo de alegria?
d. Por último, uma pergunta vinculada mais diretamente com a nossa preparação para a
Assembleia Mundial: Como é que a alegria proposta pelo Papa Francisco desafia a CVX?
Não pode haver nenhum dom verdadeiro - dado ou recebido - sem alegria!

14.Sugestões para a celebração do Dia Mundial CVX 2018

a. O Dia Mundial da CVX 2018 acontece a meio da celebração nossa celebração jubilar dos
50 anos. Pode ser a oportunidade de celebrar as muitas formas através das quais a
nossa Comunidade (nacional ou local) foi abençoada. No entanto, propomos-vos que
seja uma oportunidade de concentrar a atenção da Comunidade na próxima Assembleia
Mundial em Buenos Aires e na resposta da CVX aos convites do Papa Francisco.

b. Encorajar os nossos membros e pequenos a assimilar os documentos do Papa Francisco


anteriormente citados. Por exemplo, fazer uma apresentação criativa de cada um, ou de
alguns deles, para gerar o desejo de os ler e discutir com mais profundidade, seguindo
as questões orientativas que sugerimos.

c. Esta celebração é também a ocasião perfeita para apresentar a toda a Comunidade


Nacional os delegados à Assembleia Mundial, para que possam ser enviados em missão
pela Comunidade em que se encontram. Espera-se que os delegados recolham as
reações da Comunidade às diferentes propostas preparatórias e toda a informação
relevante para a Assembleia. Também se poderá aproveitar a ocasião para anunciar os
candidatos ao Novo Conselho Executivo Mundial.

d. E, evidentemente, é também uma excelente oportunidade para rezar pelos trabalhos da


nossa Assembleia Mundial 2018 e para motivar todos os membros a segui-los e na
forma que for possível a cada um, a participar, neste evento tão importante para toda a
Comunidade.


Unidos em deleite e gratidão pelo nosso dom,


Herminio Rico SJ, Vice-assistente Eclesiástico, Ann Marie Brennan, Consultora, & Najat
Sayegh, Secretária
Com e em representação do Conselho Executivo Mundial da CVX

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Fotografia de grupo dos Delegados da Região da América Latina

Fotografia de grupo dos Delegados da Região Ásia-Pacifico

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Conferências e Cartas

CARTA
PAPA FRANCISCO
9 de Junho 2018


Att: Mauricio Lopez Oropeza
Presidente da Comunidade de Vida Cristã
Vaticano, 9 Junho 2018

Querido irmão,

Recebi a tua cuidada carta dando conta da próxima celebração da Assembleia Mundial 2018,
que coincide com o 50º aniversário da vossa jornada como Comunidade da Vida Cristã. Por
esta razão, a vossa comunidade quer rezar e reflectir em conjunto para que o Senhor vos
conceda uma maior profundidade na vivência do vosso carisma, para que, assim,
aprofundando o carisma recebido, possam continuar a ser um dom para a Igreja e para o
mundo.

Notem que o reconhecimento do dom e da graça que o Senhor vos concedeu nestes anos vos
deverá conduzir, em primeiro lugar, a um humilde acto de ação de graças, porque Jesus olhou
para vós para além das vossas qualidades e virtudes. Ao mesmo tempo, isso implica um
chamamento à responsabilidade de sair de vós mesmos e de ir ao encontro de outros, para
alimentá-los com o único pão capaz de satisfazer o coração humano: o amor de Cristo. Que a
"ilusão gnóstica" não vos desoriente.

No centro da vossa espiritualidade inaciana está o desejo de ser contemplativo em ação.


Contemplação e ação, as duas dimensões juntas: porque só podemos entrar no coração de
Deus através das feridas de Cristo, e sabemos que Cristo está ferido nos famintos, nos
analfabetos, nos descartados, nos velhos, nos doentes, nos presos, em toda a carne humana
vulnerável.

Orientar-se por um modo de vida cristão, com uma intensa vida espiritual e de trabalho pelo
Reino, significa deixar-se moldar pelo amor de Jesus, tendo os mesmos sentimentos (Fil 2, 5),
perguntando a si próprio continuamente: Que fiz por Cristo? Que faço por Cristo? Que farei
por Cristo? (EE 53).

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Agradeço a vossa dedicação e amor à Igreja e aos nossos irmãos e encorajo-vos a continuar a
tornar Cristo presente nos vossos ambientes, dando significado apostólico a todas as vossas
ocupações.

E, por favor, não deixem de rezar por mim.

Que Jesus vos abençoe e que a Santíssima Virgem cuide de vós.


Fraternalmente,
Francisco

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CARTA
Cardeal Kevin Farrell
2 de Julho 2018


Prot. n. 2018/374-II/20
Cidade do Vaticano, 2 de Julho de 2018
Comunidade da Vida Cristã - 17ª Assembleia Mundial Buenos Aires, 22-31 de julho de 2018
Mensagem do Cardeal Kevin Farrell Prefeito do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida

Estimados amigos,

Saudações cordiais a todos vós que estais reunidos em Buenos Aires para a Décima Sétima
Assembleia Mundial da Comunidade de Vida Cristã. Esta assembleia também põe fim a um ano
de celebrações no âmbito do quinquagésimo aniversário da Quarta Assembleia Mundial. Essa
foi a ocasião em que a vossa associação assumiu o seu nome atual e, portanto, foi como um
novo começo para vós naquele momento.

Ao seguirdes o carisma de Santo Inácio de Loyola e com a orientação dos Exercícios Espirituais,
procurais unificar a fé com a vida quotidiana, colocando-vos ao serviço das necessidades
pastorais, sociais e culturais mais urgentes onde quer que vivais. Por isso, gostaria de vos
lembrar duas recomendações simples que o Papa Francisco nos deu na sua Exortação
Apostólica Gaudete et Exsultate.

O Papa lembra-nos que todo o cristão é chamado a viver em união com Cristo e que isso "pode
implicar reproduzir na sua própria existência diferentes aspetos da vida terrena de Jesus" (GE,
20).

Nenhum de nós pode reproduzir por si mesmo a infinita riqueza que emanou da pessoa divina
do Filho de Deus, mas cada um de nós é chamado a tornar presente, onde quer que viva,
algum aspeto particular da vida de Jesus como as suas palavras cheias de verdade, a sua
oração discreta, a sua proximidade aos pobres e aos que sofrem, o seu apostolado itinerante,
etc.

Portanto, cada um de vós deve perguntar-se que aspeto da vida de Cristo pode tornar
presente no mundo de hoje.

Será que o Senhor me chama a "encarnar Cristo" na minha vida, levantando a minha voz e
sendo uma testemunha da Verdade? Sou chamado a fazê-lo através do ensino e da catequese;
ajudando os pobres; através da ação política; com uma vida de oração e sacrifício; com a
maneira como eu educo os meus filhos e permaneço fiel à minha vocação de casamento? A
cada um de nós, Deus deu dons particulares e atribuiu lugares específicos. As circunstâncias
concretas em que vivemos guiam-nos para entender a nossa missão.

A oração desempenha um papel fundamental neste processo de discernimento. O Papa refere-


se ao fundador dos jesuítas quando nos diz que "a contemplação desses mistérios, como

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assinalou Santo Inácio de Loyola, leva-nos a encarná-los nas nossas escolhas e atitudes" (ibid.).
É por isso que vós também deveis ser guiados pela “contemplação dos mistérios de Cristo" na
vossa oração pessoal e comunitária de modo a compreender a missão que o Senhor vos confia
na vida.

Uma segunda indicação que nos faz o Papa é a harmonização de toda a nossa vida com a
missão que Deus nos confiou. Diz o Papa: "Pergunta sempre ao Espírito o que Jesus espera de
ti em cada momento da tua existência e em cada opção que deves tomar, de modo que possas
discernir o lugar que isso ocupa na tua própria missão" (GE, 23).

Assim, devemos sempre ouvir o Espírito para que toda a atitude, toda a decisão, toda a nossa
atividade faça parte do quadro da "missão de vida" que nos foi atribuída.

Por vezes, a nossa vida apresenta-se fragmentada, dividida e sofremos de uma certa
desintegração interna. Isso acontece porque algumas das nossas atitudes e escolhas não estão
alinhadas com a nossa identidade batismal ou com o chamamento específico que recebemos
de Deus.

Todos somos afetados pela mentalidade dominante, instável, superficial e relativista.

Às vezes, nalguns contextos em que vivemos, estamos plenamente em harmonia com a nossa
missão, mas noutros, a nossa identidade cristã e o nosso chamamento à santidade parecem
ser deixados de lado. Isso afeta a nossa vida espiritual e enfraquece o nosso testemunho
cristão na sua essência.

Aos poucos tornamo-nos indiferentes, formais, desprovidos de paixão e da verdadeira


motivação interior.

As palavras do Papa são muito úteis e convidam-nos a fazer duas perguntas simples: "O que
espera Jesus de mim a cada momento?" e "Que lugar têm as minhas escolhas no contexto da
minha missão?" Essas são perguntas simples, mas importantes.

Desafiam-nos a não vivermos ausentes ou com um coração dividido, mas com consciência e
honestidade interiores.

Nosso Pai que está no Céu quer que vivamos essa simplicidade, transparência e profunda
unidade interior que emanou da pessoa de seu Filho, porque isso é uma fonte de grande
alegria e paz interior também para nós

Caros amigos, espero sinceramente que a vossa jornada de aprendizagem, testemunho, ação e
contemplação na pequena Comunidade da Vida Cristã à qual pertenceis, vos esteja a ajudar a
fazer da vossa vida um caminho para a santidade. Possais ser "uma mensagem da qual o
Espírito Santo se apropria a partir da riqueza de Jesus Cristo para presentear o seu povo" (GE,
21).

Confio à intercessão maternal de Nossa Senhora os trabalhos da vossa Assembleia e o


apostolado da Comunidade de Vida Cristã, e tenho-vos na oração e na minha bênção.

Kevin Card. Farrell


Prefeito

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MENSAGEM DO
PRESIDENTE DA CVX
MUNDIAL À
ASSEMBLEIA DE BUENOS
AIRES 2018
Mauricio López Oropeza
Dia 1 - 22 julho 2018


“Não tenho medo do novo mundo que nasce. Temo mais que a CVX tenha pouco ou nada a oferecer a
esse mundo , pouco ou nada a dizer ou a fazer, que possa justificar a nossa existência. Não pretendemos
defender os nossos erros, mas também não queremos cometer o maior de todos: o de esperar de braços
cruzados e não fazer nada com medo de errar”.
Pedro Arrupe, s.j. (adaptado para a CVX)

I. A porta de entrada: Contemplação da Encarnação
Quis começar a minha partilha com esta reflexão do Padre Arrupe, pois considero ser uma das
frases que mais me marcaram em serviço e missão no bonito caminho da CVX. Uma frase
clara, poderosa e profética que nos questiona sobre nós mesmos, nos coloca no meio do
mundo e nos chama a responder com o melhor que recebemos como graça através da CVX.

Somos um bonito mosaico de diversidade, tal como está plasmado no coração e tatuado na
palma da mão do Deus da vida que tanto nos ama. Ama a nossa amplitude de cores, formas,
tradições, idades, experiências, identidades culturais, etapas espirituais, e assim, tal como
somos, Ele nos escolhe para fazermos parte do seu projeto de encarnação.

Sem dúvida, o centro da nossa identidade e a fonte da nossa vocação no mundo está na
CONTEMPLAÇÃO DA ENCARNAÇÃO. A nossa opção como CVX é fruto de um chamamento do
Espírito a caminharmos no projeto de Deus, um projeto para o qual somos convocados, mas
que não nos pertence. Por isso, devemos tirar as sandálias e pisar esta terra sagrada (Ex. 3, 5).
Na nossa identidade CVX, o centro da nossa existência é este reconhecimento de um Deus
que, por puro amor, encarna e nos convida a participar no Seu projeto (PG1).

Convido-vos a que nos disponhamos internamente a abraçar este belíssimo e desafiante
processo que hoje começa, ainda que seja uma continuação do processo de revelação
progressiva de Deus à CVX nos últimos 50 anos, em coerência com os 450 anos das
comunidades laicais inacianas, e no enquadramento dos últimos 5 anos em que caminhámos
desde o Líbano até Buenos Aires. Fechemos os olhos por uns momentos enquanto pedimos o
conhecimento interno da graça da encarnação de Deus na CVX e façamos por trazer à
memoria os rostos concretos que dão sentido ao nosso ser CVX hoje. Oremos juntos
enquanto entramos pela porta dos nossos Princípios Gerais para esta Assembleia Mundial:

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“As Três Pessoas Divinas, contemplando toda a Humanidade, em tantas divisões pecaminosas,
decidem dar-se completamente a todos os homens e mulheres e libertá-los de todas as suas
cadeias... Inserido entre os pobres e partilhando com eles a sua condição, Jesus convida-nos a
todos a entregarmo-nos continuamente a Deus e a instaurar a unidade no seio da nossa
família humana… (Deus) Desafia-nos a tomar consciência das nossas graves
responsabilidades, a buscar constantemente respostas às necessidades dos nossos tempos e a
trabalhar juntos com todo o Povo de Deus e todas as pessoas de boa vontade para o
progresso e a paz, a justiça e a caridade, a liberdade e a dignidade de todos” (Fragmentos do
Preâmbulo dos PG 1 e 2).

A única e essencial razão de ser da nossa comunidade, tal como a de todo o crente que
aprofunda a sua fé, é a de viver plenamente para que possamos percorrer esse caminho de
seguimento de Cristo e com Ele colaborar na redenção da humanidade.

II. Um sinal profundo de gratidão
Que graça maravilhosa é podermos estar aqui juntos, em comunidade, ansiando e confiando
que o bom Espírito irrompa com força nos nossos corações durante os próximos dias. Para tal
é necessário começar por dar GRAÇAS. Porque são muitas as mãos e corações que têm
trabalhado incansavelmente para permitir este encontro e dispor dos meios para que tudo
seja propício a esta Assembleia e ao nosso discernimento.

O nosso mais profundo reconhecimento à comunidade ARUPÁ (Argentina, Uruguai e Paraguai)
por tudo, não há palavras para agradecer o que têm feito e farão pela comunidade nestes dias. Os
preparativos tem sido intensos. O trabalho complexo de preparar, antecipar, dispor e sobretudo
darem-se de si mesmos, tem sido muito. Quero pedir neste momento um reconhecimento
especial para a equipa ARUPÁ, por parte de toda a comunidade mundial aqui reunida. Que a
nossa gratidão vos dê forças para, nos próximos dias, nos acompanharem em missão. O facto de a
equipa ser tri-nacional é já um símbolo da força de sermos comunidade.

Agradeço também à Província Jesuíta Argentina-Uruguai por se juntar a nós nesta tarefa,
assumindo-a também como sua própria e acompanhando a cada passo, e em especial um
reconhecimento ao P. Rafa Velasco e à equipa da paróquia que nos acolhe aqui em São Miguel,
com quem caminharemos ao encontro dos rostos concretos de uma “Igreja em Saída” aqui no
bairro. O nosso reconhecimento também a todos os que aqui no Centro Loyola nos têm apoiado e
facilitado cada detalhe necessário para realizar esta nossa Assembleia.

Quero aproveitar esta ocasião para agradecer a Deus a vida de Cecilia Roselli (nossa querida
Checha), que foi chamada à casa do Pai de forma inesperada. Ainda que a sua partida tenha
causado dor profunda aos seus familiares e amigos, aos irmãos da comunidade CVX Uruguai, e em
todos os que na equipa ARUPÁ e EXCO tivemos a graça de com ela colaborar na preparação da
Assembleia, permanecemos com a sua alegria profunda e com o seu olhar que tanta luz nos deu.
Teremos uma presença especial ao lado de Deus Pai e Mãe amoroso, que nos acompanha nesta
Assembleia Mundial, conjuntamente com tantos irmãos e irmãs da nossa comunidade que
partiram para a casa do Pai cumprindo a sua missão entre nós e que viveram em plenitude o que
significa ser CVX. Que todos sejam mestres da vida neste nosso itinerário como comunidade.

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Um agradecimento especial também ao Secretariado da CVX mundial que tem trabalhado dia
após dia (e várias noites também) para acompanhar este processo de preparação com todo o
detalhe, servindo de ponte para que se possa unir o diverso; mesmo por entre as barreiras
culturais e linguísticas, foi o sentirmo-nos UMA ÚNICA COMUNIDADE que nos permitiu
responder a um tremendo desafio. Agradeço a todos os membros do EXCO por ser cada um e
cada uma parte essencial deste mosaico diverso e belo que tem trabalhado para esta
Assembleia Mundial; como membro deste EXCO agradecemos ao nosso Assistente Eclesiástico
Mundial, o P. Arturo Sosa, que nos acompanhará nos próximos dias.

Agradecemos aos convidados especiais que nos acompanham nestes dias, partilhando o seu
testemunho e sabedoria, e muito particularmente à inspiradora e competente equipa ESDAC
(Françoise, José e Graziano) por aceitarem o desafio de servirem como guias deste processo
de discernimento, abraçando a nossa identidade e momento comunitário. Mais à frente irão
conhecê-los melhor, já que caminharemos de mãos dadas durante momentos-chave da nossa
Assembleia.

III. O bonito e desafiante momento de um verdadeiro KAIRÓS na nossa Igreja
Experimentamos atualmente um genuíno momento de “kairós” como Igreja e como CVX, ou
seja, um tempo propício em que Deus se faz presente de uma maneira especial e indubitável
para iluminar mais o nosso caminhar. Este tempo especial vai para além das nossas conquistas
ou sucessos, mais além até das nossas limitações e fragilidades. De facto, este “kairós” é um
convite a deixarmo-nos tocar pela realidade e responder-lhe com o que somos e temos; que
seja como um presente para a Igreja e para o mundo com o melhor da nossa Identidade Laical
Inaciana. Este “kairós” não está relacionado com os aspectos cronológicos da nossa vida que
são sempre limitados, e por isso devemos libertar-nos desses afetos desordenados que fazem,
tantas vezes, com que queiramos controlar tudo, medir tudo, dirigir tudo. Vamos dar espaço
ao Espírito para que sopre como quiser no meio de nós.

Este momento especial que vivemos como Igreja e como humanidade só pode ser entendido
a partir dos olhos de esperança do crente; pode ser uma oportunidade para a CVX ou pode
ser mais um evento que se perde entre os dedos das mãos se o tentarmos controlar para lhe
dar a nossa própria imagem, interpretando-o unicamente a partir das nossas próprias
categorias autorreferenciais.

Em certa ocasião, depois de partilhar de forma apaixonada sobre este “kairós” de Deus,
pediram-me maior clarificação, maior detalhe, uma explicação quase académica. E para
responder a esta pergunta tão importante, que eu pessoalmente não posso desenvolver com
palavras, falei com a melhor teóloga que conheço a quem pedi que nos fizesse chegar um
vídeo com uma explicação clara e sistemática, doutrinal e escatológica para apresentar de
maneira evidente o que significa este “kairós”. Estou certo que, com esta apresentação, não
vos restará dúvidas. Prestemos, então, muita atenção à riqueza desta catedrática “kairótica".
(Ver vídeo em: https://youtu.be/vj70bcPdGiQ).

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Esta é a melhor maneira de lhes explicar o que é este tempo de “kairós”. É mistério, é
experiência de Deus, é não encontrar palavras para poder expressar o que nos move por
dentro, e ao mesmo tempo expressar tudo com um olhar. É sentir pela primeira vez a força
imparável de Deus a sacudir todo o nosso interior, é experimentar beleza no que é simples, é
querer abraçar tudo e sentir que não há mais espaço no coração. É sentir um fogo interno
que nos move para mais. Esta teóloga faz uma eloquente exposição do “magis” para os que
vivem e vibram com a espiritualidade inaciana. É experimentar Deus de uma maneira tal que
só em amor ansiamos viver. É a experiência de sair dos Exercícios Espirituais vendo tudo com
olhos novos, ainda que aparentemente permaneça tudo igual. É a capacidade interior de
sintonizar com a voz de Deus.

Se não virmos o que está a acontecer no mundo, na Igreja e na própria CVX como sínal deste
“kairós”, então devemos rever o nosso olhar de fé. Há que ser crente apesar de toda a
desesperança porque é o inconformismo esperançado que nos leva a trabalhar pelo Reino que
já aqui está mas ainda não completamente. É amar a CVX por ser fonte de vida que nos
impulsiona a sair ao encontro da realidade para partilhar o melhor da nossa espiritualidade nas
periferias, sejam estas quais forem. É vibrar com a esperança que a que o Papa Francisco nos
convida hoje, reconhecendo porém que é nossa tarefa trabalhar todos os dias para que seja
uma realidade.

É tornarmo-nos conscientes de que a semente semeada há 50 anos pelo Espírito no Concílio
Vaticano II, e que tem sido fonte de vida para a nossa própria história de 50 anos como CVX, está
hoje a dar frutos concretos que vão no sentido de nos pôr em ‘modo de saída’, pois toda a água
viva que se estanca acaba por perder a sua pureza. É tempo de discernir como comunidade
mundial, neste “kairós” que está em linha de continuidade com o nosso caminhar CVX; e é
para isso que aqui estamos hoje.

IV. Purificar a intenção: A CVX um dom para a Igreja e para o mundo?
A CVX é uma graça nas nossas vidas e por isso sentimo-la como dom recebido de Deus. Isto
deve ajudar-nos a confirmar algo que é muito importante explicitar e de que nos podemos
esquecer um pouco: a CVX é um meio e não um fim em si mesma. É um meio propício, lindo,
que representa múltiplas esperanças e alegrias, mesmo em tempos de escuridão ou
dificuldade, mas é um meio.

Nas circunstâncias do nosso mundo atual, cheio de feridas materiais e existenciais, não é
estranho que, devido à força e riqueza da vida comunitária e espiritual da CVX, algumas
pessoas tenham a necessidade de acreditar numa ideia errónea de que a comunidade é o
oásis que as resgata da realidade e que aí termina o caminho. A CVX, fiel à sua tradição
inaciana nos Exercícios (EE.EE), procura que as pessoas se libertem das afeições
desordenadas para buscar e fazer da sua vida a vontade de Deus. Este caminho culmina no
conhecimento interno do Senhor Jesus, do Seu projeto, para mais O amar, O servir, e O seguir
no seu itinerário até às periferias, até àqueles que são excluídos.

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- Permitam-me apresentar-lhes QUATRO TRIPÉS que nos podem ajudar a responder ao
chamamento a ser um dom para a Igreja e para o mundo

1º Tripé: Três enganos que devemos ser capazes de enfrentar enquanto CVX

A. AUTO-REFERÊNCIA. Definir a nossa identidade como comunidade


unicamente em função das nossas interpretações, meramente a partir da
nossa experiência particular, ainda que esta seja muito valiosa, pode
impedir-nos de olhar o nosso chamamento maior a construir o Reino, a
Sentir com a Igreja, a responder aos gritos da realidade. A nossa experiência
comunitária é reflexo da revelação de Deus e deve convidar-nos a olhar a
novidade que nos é apresentada sempre a partir do Evangelho. E, por isso,
usar os nossos documentos e ferramentas como meios tanto quanto nos
conduzam ao fim maior.
B. AUTO-SUFICIÊNCIA. Acreditar que o que já temos e fazemos é suficiente e é
tudo o que podemos alcançar. Pensar que a nossa maneira de viver o
itinerário Cristo-cêntrico se resume ao crescer individualmente ou apenas
no meu pequeno grupo, com o objectivo de ter uma fé mais profunda que
nos torne mais plenos mas que é feita de maneira isolada e individualista.
Devemos superar a tentação de ser comunidades que se deixam ficar presas
na lógica da 1ª semana dos EE. É necessário ir mais além e entrar em
discernimento de 2ª semana partindo do conhecimento interno de Cristo, e
em saída “entregue” no Seu seguimento de 3ª semana em que as suas
opções O levaram à cruz. Sem este itinerário completo não podemos viver
plenamente o nosso chamamento a alcançar a 4ª semana, ou seja, a
Contemplação para Alcançar Amor.
C. AUTOCOMPLACÊNCIA. Sentir que nos bastamos a nós mesmos e que não há
nada mais além da nossa própria comunidade. Esta é a grande tentação,
uma vez que nos impedirá de olhar nos olhos o rosto de Cristo presente e
crucificado no mundo que nos pede que saiamos de nós próprios para ir ao
Seu encontro. A nossa espiritualidade é fundamentalmente uma
espiritualidade de encarnação.

2º Tripé: Três atitudes a partir do ‘Sentir com a Igreja’
A. COLEGIALIDADE. Saber dialogar, a sério, para identificar juntos os aspetos
essenciais da nossa missão. Identificar juntos os NÃO NEGOCIÁVEIS.
Respeitar a diversidade de vozes, abraçar posições distintas que enriquecem,
mas afirmar o discernimento comunitário como o único caminho adequado
para definir a rota comum.
B. SINODALIDADE. Caminhar juntos e na mesma direção. Encontrar os meios
necessários para, respeitando a enorme diversidade de realidades,
encontrar um ritmo que seja propício e nos permita avançar de forma
estável até ao nosso maior fim, até aquilo que Deus sonha para nós.
C. COMUNHÃO. Viver profundamente a experiência de Deus em comunidade.
Apenas se pode dialogar e caminhar juntos com um sentido, quando

41
experimentamos a presença do divino como elemento que nos une, nos
mantém juntos e nos permite superar todas as dificuldades próprias de uma
comunidade tão diversa como a nossa.

3º Tripé: Três Disposições face ao mundo
A. METANOIA. Conversão radical de coração. Apenas quem se transforma por
dentro pode assumir plenamente o chamamento de Deus. É ir ao mais íntimo e
interior e deixar-se transformar inteira e profundamente para dispor-se ao que
seja a vontade de Deus. No mundo de hoje precisamos muito voltar à raiz,
encontrar sentido, abraçar o Princípio e Fundamento para que tudo o resto
encontre o seu rumo.
B. ALTERIDADE. Reconhecer que o mistério da vida e a presença concreta de
Deus apenas se experimentam através dos olhos do outro/a. Descobrir que
a minha vocação à plenitude apenas tem sentido acompanhado, nunca
sozinho. O sentido mais profundo de ser comunidade encontra-se nesta
verdade de que podemos experimentar Deus individualmente mas só O
podemos viver plenamente no mundo pela partilha.
C. PARRESIA. É o dom da profecia, de transmitir a Palavra de forma clara e
contundente, e sobretudo a capacidade de sair de nós mesmos para responder
de modo corajoso ao que o próprio Deus nos chama a realizar. É o seguimento
profundo de Cristo que se transforma num amor que se coloca mais em obras
que em palavras.

4º Tripé: Três Chaves para abraçar os chamamentos essenciais do Papa Francisco
A. MISERICÓRDIA. Ter um coração que se deixa tocar e moldar pela
experiência de dor dos outros. É a essência da CULTURA DO ENCONTRO que
apenas ocorre a partir de um sentir profundamente e de modo completo
aquele sofrimento que aflige o outro e assumir uma atitude que abraça,
acolhe e cria um laço profundo. Bula “Misericordiae Vultus”.
B. CONVERSÃO PASTORAL. É o chamamento a uma verdadeira saída
missionária, a sair de nós mesmos para experimentar a alegria do Evangelho
que muda aqueles que se encontram com Jesus. É deixar que com Cristo
nasça e renasça a alegria de dar rosto a uma Igreja missionáriarenovada que
segue esta exortação para sair de si mesma, com a ânsia de ser
evangelizadores com Espírito. Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium”.
C. CONVERSÃO SÓCIO-AMBIENTAL. É a incorporação definitiva do clamor da
Mãe-Terra e o chamamento urgente da Igreja e de todos os que habitamos
este planeta ao cuidado pela casa comum. Não é um elemento
complementar, é um chamamento essencial no contexto da Doutrina Social,
que pede que reconheçamos o fracasso como sociedade no que diz respeito
ao ambiente. Chama a ver a necessidade de reconhecermos uma só crise
social e ambiental e a fazer viva a Ecologia Integral com as dimensões: social,
política, humana, ambiental, cultural, de vida quotidiana, e a espiritualidade
do cuidado. Carta Encíclica “Laudato Si´”.

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Estes três aspetos, vividos cada um deles tendo por pano de fundo o chamamento à Santidade
no quotidiano, muito próprio da nossa identidade laical. Exortação Apostólica “Gaudete et
Exsultate”


V. Sou testemunha da encarnação, vida, morte e ressurreição do Senhor no meio
de nossa comunidade
Um dos mais bonitos dons que recebi como membro da CVX, mas também através da
oportunidade que tive de servir esta comunidade a nível local, nacional, regional e mundial,
foi a possibilidade de ser testemunha. Os meus olhos viram, os meus ouvidos ouviram, as
minhas mãos tocaram e sobretudo, o meu coração bateu com força perante inúmeras
experiências de entrega de vida, de testemunho de construção do reino, e de vivência do Ser
CVX nas mais complexas situações do nosso mundo. Apesar de amanhã irmos escutar a
partilha deste nosso percurso como comunidade mundial ao longo dos últimos cinco anos,
permitam-me partilhar algumas expressões, de entre muitas outras, de vida “entregue” da
comunidade que servem como símbolos do que a nossa CVX é e quer ser.

Senti na carne a presença de Cristo nos abraços da Comunidade CVX no Congo e no Ruanda
às crianças órfãs de pai e mãe que faleceram de HIV-SIDA, aos jovens e adultos portadores
dessa doença terrível. Cada membro da CVX abraçava com todas as suas forças, sendo o
próprio Cristo que abraçava estas vidas, fazendo a diferença nos sítios onde ninguém mais
quer ir, porque estas pessoas são consideradas insignificantes.

Vi a Cristo sentar-se paciente e sorridente na escola da esperança (Hope School) na Coreia do
Sul, ouvindo as histórias de dor de jovens vulneráveis e que muitas vezes são discriminados
em diversos lugares por serem filhos de imigrantes ou por terem mais dificuldades na
aprendizagem por falta de apoio. Também me encontrei com Cristo que assumia a missão
institucional CVX de dirigir uma escola primária e secundária com a maior eficiência possível
em Hong Kong (Marymount School), partilhando os valores do Reino com crianças e jovens e
promovendo o cuidado da Criação.

Vi Cristo deixar todas as suas seguranças para entrar na missão pela Amazónia e permanecer
ali acompanhando os jovens na promoção da espiritualidade inaciana como caminho
alternativo face aos diversos símbolos de morte; vi-O a entrar com a CVX em comunidades
profundamente vulneráveis e violentas, onde assumiu o trabalho pastoral e educativo de
uma paróquia muito frágil. Vi-O navegando em canoa e visitando as comunidades indígenas,
onde descobriu as sementes de Deus nas culturas.

Vi Cristo encarnado na CVX do Chile, Paraguai, México, Espanha, Malta e outros sítios, a
arriscar e falar com valentia a favor de grupos profundamente excluídos, abraçando a
diversidade sexual como expressão da realidade e da vida, e acompanhando com o melhor
das nossas ferramentas muitos corações partidos, vulneráveis e tantas vezes rejeitados pela
própria Igreja. Aqui também foi criticado, na sua própria comunidade, mas continuou firme
na certeza que o Pai O terá enviado a fazer caminho com os que se sentem mais fragilizados e
rejeitados. Continua também a fortalecer os núcleos familiares tradicionais e a pastoral

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familiar em inúmeros lugares mas insiste que é necessário olhar às diversas realidades
familiares com aceitação, compaixão e acolhimento.

Também O vi na Europa deixando de lado as diferenças e a reconhecer a força enorme do ser
Cristo em comunidade, para ir colocar a vida e o coração em Ragusa acolhendo as pessoas que aí
chegam, de África, sem nada. Sem certezas, sem recursos, sem esperanças, sem conhecer
ninguém, às vezes depois de perder os membros da família na travessia; e aí decidiu estar Cristo à
espera destas mulheres e homens, ali está Ele com a CVX abraçando-os e escutando-os, mas
principalmente a desprender-se da sua própria vida e visão perante os que foram “estrangeiros” e
se tornam, hoje, irmãs/ãos.

Ouvi a presença de Cristo na CVX no meio da mais dura situação de guerra, na Síria, onde não
restavam esperanças, e onde, com a ajuda de toda a comunidade mundial e o apoio
comprometido do Líbano, seu país vizinho, decidiu sobreviver, procurar caminhos para
alimentar a sua família e outros, e hoje quer levar a força da espiritualidade inaciana para
conseguir dar sentido a uma guerra que parece não ter fim, para tentar curar as feridas
interiores.

Também O encontrei nos Estados Unidos e no Canadá tentando inspirar um verdadeiro amor
por tudo o que foi criado, por uma vocação genuína pelo cuidado pela Casa Comum. Embora
não acreditem, encontrei um Cristo que se identificava com a CVX nas Nações Unidas,
lutando para que se ouçam os gritos das realidades mais dolorosas e procurando mudanças
estruturais nos governos mais insensíveis deste mundo.

Sei que caminha em muitíssimos lugares promovendo a vida comunitária, a formação e a
espiritualidade, a reflexão sociopolítica, crescendo em experiência de fé, assumindo missões
paroquiais, servindo a Igreja de tantas formas, e acima de tudo presente em cada expressão da
vida quotidiana laical como CVX. Peço muito que, quando O encontrarmos, sejamos capazes de O
reconhecer e nos deixemos arrastar por Ele para O seguir e deixemos que seja sempre O mais
importante na nossa comunidade. E perante a pergunta “Quantos pães têm? Ide ver” (Mc 6, 38),
confiemos que ELE, como sempre, se fará propicio no meio da nossa Assembleia de Buenos Aires
2018 para nos indicar onde somos necessários e onde quer que estejamos a responder ao seu
chamamento.

Algumas pistas para caminhar neste KAIRÓS e oferecer o nosso dom como presente
Nas minhas viagens pela Amazónia, área onde passo a minha vida como parte da minha
missão CVX e como crente, visitamos as diversas comunidades indígenas a que muitas vezes
chegamos com as expectativas daqueles que vêm de fora, ou seja, temos todo um plano de
trabalho, objetivos planificados, e um horário detalhado que responde à nossa própria
necessidade de resultados segundo os nossos critérios. Quanto estamos errados! O que estes
irmãos e irmãs nos ensinam é que o essencial é o encontro, o diálogo profundo, a partilha de
vida que cada um tem para oferecer. Apesar do nosso desejo de controlar o tempo, a partir
do relógio, e de querermos começar as sessões formais sem demora, ao perguntarmos se
podíamos começar, recebemos a seguinte resposta: começaremos quando o tempo seja

44
propício. Ou seja, quando deixe de chover, quando tenhamos terminado de ouvir a partilha
de vida, depois de ter comido o que há para oferecer, ou quando cheguem os parentes de
outras comunidades... e isso pode ser uma hora, ou cinco, ou talvez só amanhã. Quanto nos
ensinam sobre o “kairós” os que definem e tecem a sua vida segundo os parâmetros do
espírito e do desejo de viver o essencial em plenitude.

Este é o meu convite de hoje, que deixemos que a presença do Espírito de Deus nos inunde e
nos transborde, que esta presença determine tudo, que sejamos capazes de abandonar as
nossas expectativas predominantemente racionais e os nossos preconceitos, para deixar que
o mistério de Deus vá marcando o ritmo. Que sejamos capazes, se necessário, de vender tudo
porque encontrámos o tesouro mais bonito para a CVX. Este tesouro maior que é trabalhar
com Ele pelo Seu Reino de justiça e dignidade. Esta é a nossa graça mais profunda, o nosso
dom para oferecer à Igreja e ao mundo. Trata-se de:

“o amor consiste na comunicação reciproca, a saber, em dar e comunicar a pessoa


que ama à pessoa amada o que tem ou do que tem ou pode... e assim em tudo
reciprocamente (...) pedir conhecimento interno de tanto bem recebido, para que eu,
reconhecendo-o inteiramente, possa, em tudo, amar e servir a sua divina majestade
(...)trazer à memória os benefícios recebidos de criação, redenção e os dons
particulares, ponderando, com muito afecto, quanto tem feito Deus nosso Senhor
por mim.” (EE.EE Nº 231-234).

Entremos nesta Assembleia reconhecendo que:


- A questão de fundo é mais importante do que a forma;
- Construir ativamente o Reino de maneira quotidiana, no simples e no complexo, é
mais importante do que falar, mesmo que eloquentemente, do Reino; ou seja, trata-
se de viver a plenitude da nossa vocação no mundo e tirar proveito da experiência da
nossa vida em comunidade;
- Somos chamados a ser CVX em saída, reconhecendo e cuidando da nossa essência,
mas com a convicção de que Cristo nos chama a partir da sua presença irrevogável
nos rostos concretos que estão para lá de nós mesmos. Um Cristo que habita nas
periferias materiais e existenciais.

É assim, com esta reflexão, que quero convidar cada participante desta Assembleia a dispor-
se com firmeza e liberdade interior, e a deixar de ser membro delegado de uma comunidade
nacional, para nos podermos reconhecer plenamente como um só Corpo CVX, para que,
dessa forma, o Senhor da Vida e o Bom Espírito nos sejam propícios nos próximos dias aqui
em Buenos Aires. Queremos que esta Assembleia seja um momento genuíno de
discernimento comunitário, com o firme propósito de procurar juntos o que o Espírito nos
quer revelar para o futuro da nossa comunidade mundial. Permitam-me invocar algumas
orientações da nossa fonte de identidade, os Exercícios Espirituais, para que nos ajudem a
dispormo-nos:
1. Para poder buscar e encontrar a vontade de Deus no discernimento é
imprescindível tirar do nosso interior as afeições desordenadas, ou seja,
tudo aquilo que distrai, nos afaste ou interrompa a nossa capacidade de
escutar com claridade o que Deus nos quer pedir (EE.EE1);

45
2. Pede-se uma atitude de profunda disposição interior e exterior, de viver a
plenitude deste bonito e desafiante momento. Entrar na Assembleia com
grande ânimo e liberdade (EE.EE5);
3. Que no discernimento deixemos o Espírito atuar, ou seja, que seja o Criador
a ter a primeira e última palavra para a CVX. Não estarmos mais inclinados a
um resultado que a outro, não pressionar o discernimento para um
interesse particular por mais genuíno que este seja (EE.EE 15).

Termino a minha intervenção exatamente com as mesmas palavras com que iniciei este
bonito, complexo e agridoce serviço de Presidente da CVX mundial no Líbano, em 2013:

“Não há nada mais prático do que encontrar Deus. Ou seja, enamorar-se
completamente e sem olhar para trás. Aquele por quem te enamores, que te
arrebate a tua imaginação, afectará tudo. Determinará o que te faz levantar
pela manhã, o que vais fazer nos entardeceres, como passas os teus fins de
semana, o que lês, quem conheces, o que despedaça o teu coração e o que o
enche de assombro com alegria e agradecimento. Enamora-te, permanece
enamorado, e isso decidirá TUDO.”
P. Pedro Arrupe sj.

46
Conferência
A OPÇÃO DE FRANCISCO:
EVANGELIZAR UM
MUNDO EM FLUXO
Dr Austen Ivereigh
Dia 3 – 24 de julho de 2018

Queridos amigos,
Que maravilhoso é poder celebrar o 50º aniversário da CVX reunidos aqui em assembleia,
neste mesmo sítio que acolheu Francisco durante a sua vida como jesuíta. Durante o meu
retiro, aqui realizado na última semana, rezei muito para que as palavras que vou partilhar
convosco vos possam ajudar na vossa missão neste mundo turbulento de hoje e,
especificamente, na Igreja agora conduzida por Francisco, que está convencido de que aquilo
que o Senhor nos pede em particular, neste momento, é que evangelizemos. É este o tema da
minha palestra. Como é que o Papa nos está a chamar para evangelizar nestes tempos de fluxo,
de desenraizamento, de exculturação do cristianismo?

A primeira metade da minha palestra será em espanhol, a segunda em inglês. Obrigado à


equipa de tradução pela sua paciência e profissionalismo. Alguns de vocês perguntaram-me
porque é que eu falo espanhol com um sotaque papal. Eu sou britânico, sem ligações ou
sangue argentinos, mas, há mais de 25 anos que tenho vindo aqui várias vezes para realizar
pesquisas no âmbito do meu mestrado e, mais tarde, para o meu doutoramento em Oxford,
tendo como tema a Igreja e a política na Argentina do início do século XX. Aprendi a gostar de
mate e a perceber porque é que as vacas felizes produzem o melhor doce de leite. Eu sou a
prova de que, às vezes, os doutorados até podem ser úteis; e que Deus, na Sua providência,
pode mais tarde vir a fazer uso das coisas que nós vamos construindo nas nossas vidas. Aos 30
e poucos anos, fui durante algum tempo noviço jesuíta em Inglaterra, tempo suficiente para
fazer o retiro de mês e ser transformado por essa experiência para, finalmente, abraçar um
chamamento como jornalista e escritor. E esses dois dons do meu passado – o meu
conhecimento da Argentina e a minha experiência de espiritualidade inaciana – deram-me a
confiança para que, em 2013, pudesse ousar, como jornalista católico e comentador da
realidade da Igreja, escrever uma biografia de Francisco.

Nos últimos dois ou três anos, tenho trabalhado num novo livro sobre Francisco, uma
continuação do ‘The Great Reformer’, que será lançado no ano que vem. Parte da minha
pesquisa passou por entender o pensamento da Igreja Latino-Americana que está por trás
deste pontificado. Foi assim que conheci o Maurício, um dia, em Quito. Um tema forte do novo
livro é a convicção de Francisco de que aquilo que o Senhor quer neste momento é que a
Igreja evangelize; e, para isso, a Igreja tem que mudar, uma mudança para a qual o Concílio
Vaticano II nos preparou mas que ainda não abraçámos totalmente.

Com os cardeais antes do conclave, Francisco imaginou Jesus não do lado de fora batendo para
entrar, mas do lado de dentro, pedindo para ser libertado. Francisco falou de como a Igreja se
deixa paralisar pela introversão quando vive da sua própria luz, acabando por ficar doente e

47
autorreferencial, curvada como a mulher em Lucas 13:10. Francisco apresentou essa imagem
por oposição a uma Igreja evangelizadora que coloca Cristo no centro e sai de si mesma para
as periferias, para lugares em que há necessidades. O próximo papa, disse Bergoglio aos
cardeais, deve ajudar a Igreja a ser uma mãe fecunda que vive da alegria de evangelizar; deve
deixar de ser um paralítico aleijado virado para si próprio para passar a ser uma mãe fecunda,
evangelizando alegremente – este é o sentido da jornada resumida na frase “uma conversão
pastoral e missionária”.

A minha comunicação terá três partes. Na primeira, quero explicar as origens do


discernimento de Francisco sobre os sinais dos tempos que o levaram àquele diagnóstico: qual
é a causa da paralisia?

Em segundo lugar, vou resumir o que implica a conversão pastoral: o que significa ser uma
mãe fecunda. Na parte final, tenho quatro sugestões concretas para nos ajudar a movermo-
nos nessa direção.

I. Missão em resposta a uma mudança de época
O discernimento subjacente ao pontificado de Francisco não é apenas dele, mas sim o fruto do
discernimento da Igreja Latino-América nos anos que precederam o Encontro Continental do
Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM) em Aparecida, Brasil, em Maio de 2007. Foi a
primeira destas reuniões em 25 anos, que acabou com um documento cujo principal autor foi
o homem que agora é Papa.

Quando falamos de discernimento, podemos falar de dois tipos: o discernimento dos espíritos
na tradição inaciana mas também o ‘discernimento dos sinais dos tempos’ que nos pede a
Gaudium et Spes. A Igreja do hemisfério norte nunca foi muito bem sucedida nesse esforço
mas esse discernimento foi muito bem desenvolvido na América Latina. Aparecida foi o fruto
do mais sofisticado de todos os discernimentos sobre os sinais dos tempos alguma vez feito na
história da Igreja. Em muitos estudos e reuniões realizadas antes da reunião de Aparecida, o
discernimento do CELAM mostrou como as forças da tecnocracia e da globalização estão a
destruir o fraco nível de pertença do Cristianismo cultural, ao mesmo tempo que induzem
novos pluralismos em conjunto com novas formas de exclusão económica e social e de
concentração de riqueza. Esse discernimento demonstrou a necessidade de voltar ‘às raízes da
fé Cristã.1

Aparecida descreveu esta tendência como uma ‘mudança de época’ em vez de uma ‘época de
mudança’ – um tempo de nova turbulência que traz novas oportunidades para aqueles com
mais literacia e mobilidade, mas cujo efeito global produz grande angústia na medida em que
são dissolvidos os laços de pertença. O CELAM anteviu o crescimento das desigualdades, o
declínio dos Estados, as migrações em massa, os desastres ecológicos, uma veneração neo-
Darwinista do poder, tecnocracia – realidades que nos são todas muito familiares.

A mudança de época, juntamente com a opção pelos pobres, exigia que a Igreja Latino-
americana se colocasse ao lado dos crucificados da nova economia global, abraçando não


1
Carlos Aguiar Retes, ‘Globalización y nueva evangelización en América Latina y el Caribe’, Reflexiones del CELAM
1999-2003, Secretaría General, Doc CELAM no. 165., 3 Março 2003.

48
apenas aqueles que são pobres em termos materiais, mas também as vítimas de exclusão e
solidão nas suas diversas formas – os migrantes, os mais velhos, e outros. Entretanto, o novo
contexto de pluralismo cultural e religioso exigia também que o Corpo de Cristo trabalhasse
para construir unidade a partir de uma diversidade reconciliada no diálogo e no testemunho
partilhado.

Mas a mudança de época também tem implicações para a evangelização, na medida em que a
dissolução dos vínculos de pertença estava a destruir os mecanismos de transmissão da fé de
geração para geração.2 O Evangelho estava a ser exculturado – expulso – da cultura e os meios
tradicionais de evangelização estavam a ser varridos por essas mesmas forças de ‘liquidez’.

O Cardeal Bergoglio disse aos seus padres que “o que acontece numa ‘mudança de época’ é
que as coisas já não estão no seu lugar. O que nos pareceria normal sobre a família, a Igreja, a
sociedade e o mundo, já não será aparentemente assim”. O Catolicismo cultural – um conjunto
de regras e proibições, práticas de devoção ocasionais, etc – não irá sobreviver. A Fé católica
do futuro vai depender muito mais de um encontro pessoal com Jesus Cristo e da experiência
transformadora da misericórdia de Deus.

Aquilo que Aparecida expressou foi o desejo de regressar “àquela atitude que semeou a fé nos
primórdios da Igreja”. O que era preciso agora seria não tanto abraçar a ideia de missão como
uma actividade ou um programa mas muito mais como um modo de ser: “em permanência” e
“paradigmático”. Não apenas sendo ‘ad extra’ mas também ‘ad intra’ ao mesmo tempo. Ao
sair para fora, a Igreja é convertida e evangelizada. O desafio passava a ser criar condições
para “um encontro pessoal e comunitário com Jesus Cristo que gera discípulos e missionários”,
aquilo que Bergoglio descreve como o “encontro fundante da nossa fé”. Bergoglio disse que
isto requereria reformas espirituais, pastorais e também institucionais para “tornar a Igreja
visivelmente presente como uma mãe que sai para fora, uma casa acolhedora, uma escola de
comunhão missionária em permanência”.3

Aquilo que Aparecida mostrou é que a tradicional distinção entre países cristãos e territórios
de missão deixou de fazer sentido. É este aspecto que a Evangelii Gaudium quer que nós
apreendamos. Se a Igreja não é missionária, não pode evangelizar; e se não evangeliza, então
deixa de existir. É esse o desafio; é também esse o convite, o kairós. Daí a famosa frase de
Francisco: ‘Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os
costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal
proporcionado mais à evangelização do mundo actual que à auto-preservação.”4

Gostaria que notassem uma coisa importante nesta história: confrontada com a tribulação da
secularização, a resposta da Igreja Latino-americana não é lamentar-se e condenar, mas
discernir e reformar. A questão não era tanto como devemos resistir ou combater este ataque
ao nosso estilo de vida e valores, mas sim: O que está o Espírito Santo a pedir-nos nestes
tempos de rápidas mudanças e liquidez? Em quê devemos mudar para conseguirmos
evangelizar?

2
Documento de Aparecida [DA] 37.
3
Ver referências em JMB, in A. Spadaro (ed.) En Tus Ojos Está Mi Palabra: Homilías y Discursos de Buenos Aires,
1999-2013 (Madrid: Claretianas, 2018) esp ‘Volver a las raíces de la fe: la misión como propuesta y desafío’ (2008),
‘El mensaje de Aparecida a los presbíteros’ (2008) & ‘La misión de los discípulos al servicio de la vida plena’ (2009).
4
EG 27.

49
Nota-se aqui uma pedagogia de reforma em nome da Missão como resposta à secularização,
muito diferente da resposta do mundo católico do hemisfério norte, com as suas várias
reacções à modernidade: uma resposta defensiva assente na ética; um recuo para a nostalgia e
para o tradicionalismo; uma busca por novos Constantinos – Putin, Trump, Salvini – ou uma
resignação à moda de avestruz, quase cinismo.

Quando vistas através da lente dos Exercícios Espirituais, Bergoglio percepcionou estas
reacções defensivas como sinais de tentação característicos dos momentos de desolação, uma
desolação espoletada pelo relativismo pós-1968 e pelo secularismo. A sua fina percepção
desta realidade foi moldada por uma série de escritos seus nos anos 80 sobre congregações
religiosas em tempos de tribulação. Estas tentações5 explicavam basicamente as razões pelas
quais a visão missionária e evangelizadora do Concílio Vaticano II não tinha sido concretizada.
Em vez de se focar em Cristo, a Igreja, tal como Pedro que sai do barco a convite de Jesus,
focou-se nas ondas. Em vez de discernir o que o Espírito Santo estava a dizer à Igreja, a Igreja
focou-se em defender-se a si própria. Esta era uma forma de paralisia.

Desta opção da Igreja em se focar na defesa dos seus espaços ameaçados, em vez de atender
primariamente às necessidades do Povo de Deus, resultou o reforço da noção jurídica, pré-
conciliar, da fé como um código moral. Em vez de ser uma fonte de vida e amor, uma
especialista em humanidade, um oásis de misericórdia identificada pela sua compaixão e
cuidado pelos pobres, a Igreja passou a ser vista como uma corporação focada em si própria,
um lobby político, severa, moralista, dogmática, etc. É a visão da Igreja e do Cristianismo com a
qual nós, como Católicos no mundo de hoje, nos confrontamos todos os dias.

Bento XVI comungava deste discernimento sobre o que correu mal com o Cristianismo
contemporâneo, razão pela qual começou a sua primeira encíclica, Deus Caritas Est, com a
nota de que “Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o
encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta
forma, o rumo decisivo.” Esta citação aparece no texto de Aparecida e, novamente, na
Evangelii Gaudium, onde Francisco não se cansa de repetir estas palavras “que nos levam até
ao coração do Evangelho”. A verdade absoluta, diz Francisco noutro sítio, é o amor de Deus
por nós em Jesus Cristo. Quando evangelizamos, comunicamos essa relação – a relação ‘Abba’
que Jesus tem com o Pai.6

Reduzir a oferta do Cristianismo a algum tipo de conhecimento – ético ou espiritual – é uma


particular tentação para Católicos com formação elevada. Na sua mensagem para esta
Assembleia, Francisco avisa-nos sobre a ‘ilusão gnóstica’. (Poderá valer a pena ler o segundo
capítulo da exortação apostólica Gaudete et Exsultate para perceber o que ele nos está a dizer
quando se refere a uma “espiritualidade desencarnada”. Haverá aqui alguma tentação que, se
for devidamente resistida, se pode converter em fonte de graça?). Quando oferecemos algo
que é verdadeiro e bom, temos também que recordar o terceiro transcendente – a beleza. Só
a beleza de Deus pode atrair; quando somos atraídos, fascinados por essa beleza, queremos


5
Os três textos são: ‘Sobre la Acusación de sí mismo’ (1984), ‘Prologue to Las Cartas de la Tribulación’ (1987) e
‘Silencio y Palabra’ in Reflexiones en Esperanza (1992). Ver Diego Fares SJ, ‘Contro lo spirito del ‘Accanimento’’, La
Civiltà Cattolica 2018 II 216-230, #4029 (5/19 maggio 2018).
6
Francisco, “Lettera a chi non crede. Papa Francesco risponde al giornalista Eugenio Scalfari”, La Repubblica, 4
Setembro 2013.

50
que outros partilhem dessa beleza, que façam essa experiência. Por isso – tal como Francisco
disse aos bispos brasileiros, relembrando Aparecida, - “a Missão começa precisamente nesse
divino encantamento, no espanto do encontro”. A Igreja começa a perder fiéis quando
introduz uma racionalidade que é estranha às pessoas, quando esquece a ‘gramática da
simplicidade’7. Em resumo: a beleza de Deus é a experiência da Sua graça e misericórdia,
encarnada na pessoa de Cristo, disponível para todos, e de forma especial para os mais pobres.

Isto é especialmente verdade quando falamos de moral e ética. Numa conferência em 2004 no
aniversário da encíclica Veritatis Splendor, Bergoglio disse que Jesus não nos dá simplesmente
um código moral ou uma série de regras e rituais segundo os quais devemos viver; viver o
amor ao qual Cristo nos chama é impossível pelos nossos próprios esforços, mas apenas se
torna possível, dizia Bergoglio citando a Encíclica, “pela virtude de um dom recebido’ – isto é, a
Sua graça. Citando Santo Agostinho, Francisco notou como não é o facto de guardarmos os
mandamentos que nos torna merecedores do amor de Deus mas o contrário: são a
misericórdia e o amor de Deus que nos tornam morais e santos, também misericordiosos e
capazes de amar8 (Ele tinha feito esta simples nota num retiro em 2012: o Evangelho não nos
diz se a mulher adúltera a quem Jesus perdoou em João 8 voltou ao seu estilo de vida
pecaminoso e promíscuo, mas poderíamos ter a certeza de que não “porque quem quer que
se encontre com tamanha misericórdia não pode fugir da lei; é o que daí resulta”9).

Bergoglio fez uma pergunta importante: será que foi o facto de a moral Cristã ter sido tantas
vezes reduzida a um preceito tão elevado nas nações ocidentais que levou a humanidade
contemporânea a sucumbir ao relativismo? Se a moral é uma forma de código legal, imposto
de fora, em vez de uma resposta livre do coração diante da misericórdia de Deus, torna-se
uma ideologia vulnerável à manipulação em serviço de interesses políticos ou outros. Nesse
caso, o relativismo torna-se uma asserção de liberdade, uma afirmação de autonomia contra
uma imposição.

Daí surge a sua crítica, na Evangelii Gaudium, aos eticismos sem bondade10. Por eticismo,
Francisco entende reduzir tudo à ética. O documento critica as “doutrinas que são mais
filosóficas do que evangélicas”, aqueles que falam mais de lei do que de graça, mais da Igreja
do que de Cristo; ou aqueles que inferem o Cristianismo como uma forma de estoicismo ou
abnegação ou um código moral. Antes de tudo o resto, diz-nos Francisco, o Evangelho convida-
nos a responder ao amor de Deus que nos salva, a ver Deus nos outros e a sair de nós mesmos
para buscarmos o bem de outros. Se este convite não irradia com força e de forma atractiva, o
edifício dos ensinamentos morais da Igreja corre o risco de se tornar um castelo de cartas e
este é o nosso maior risco”11.

Bergoglio terá dito aos seus catequistas que a grande perspicácia de Aparecida foi ter
percebido que o maior perigo para a Igreja não vem de fora mas de dentro, “da eterna e subtil
tentação de nos fecharmos em nós mesmos e pormos uma armadura [abroquelarnos] para

7
Almoço com os Cardeais do Brasil, a Presidência CNBB e os bispos da Região, Palácio arcebispal São Joaquim, Rio
de Janeiro, 27 Julho 2103.
8
‘Es posible ser santos’, in Spadaro (ed) En Tus Ojos … pp 406-413.
9
Ver Ivereigh, The Great Reformer, cap. 6.
10
Mal traduzido na versão inglesa oficial por “sistemas éticos desprovidos de bondade”. Francisco não se refere a
sistemas mas sim a uma ideologia.
11
EG 39.

51
nos protegermos e nos sentirmos seguros”12. A palavra usada por Francisco – abroquelamiento
– é a mesma que ele usou recentemente numa carta aos bispos do Chile na qual ele os
convocava a Roma para discutir a terrível crise de abusos sexuais do país. Francisco escreveu
como, em tempos de tribulação, quando nos sentimos “assustados e blindados pelos nossos
confortáveis palácios de inverno”, o amor de Deus vem até nós e purifica as nossas intenções
para que possamos amar como homens livres, maduros e críticos13. Esta é uma descrição
poderosa de uma Igreja medrosa e defensiva que não evangeliza: ‘blindada nos seus
confortáveis palácios de inverno’. E é uma razão para ter esperança de que, através da
tribulação e do falhanço – pelos quais a Igreja está a sofrer – Deus esteja a sair para vir ao
nosso encontro, para que possamos mudar, para que possamos também nós experimentar
uma conversão missionária e pastoral. Tal como nas nossas vidas, os momentos de derrota são
oportunidades para conversão e crescimento.

II. Uma evangelização missionária é próxima e concreta
Portanto: a que deve a nossa evangelização missionária assemelhar-se? Até certo ponto, é
impossível responder a esta questão, porque, à medida que saímos dos nossos palácios de
inverno, temos que abandonar as nossas ideias pré-concebidas e deixarmo-nos guiar pelo
Espírito, como disse o Maurício no Domingo14. Mas existe claramente aqui uma pedagogia de
reforma.

Bergoglio notou depois de Aparecida que uma Igreja com audácia evangelizadora, que ofereça
um encontro com a misericórdia de Cristo, precisa de mudanças concretas e uma
transformação de mentalidades. Ele chegou a definir, para os seus padres e catequistas, uma
lista das atitudes que considerava necessárias e que viria a desenvolver mais tarde na Evangelii
Gaudium. É uma lista interessante, que vos deixo para reflexão15.

Uma destas atitudes passava por adoptar uma ‘acção pastoral com um coração de samaritano’.
Tal como, nos Exercícios Espirituais, a Santíssima Trindade responde com amor a um mundo
pecador mas necessitado, Bergoglio viu a necessidade de a Igreja responder à angústia
causada pela modernidade líquida. O símbolo dessa angústia é o migrante – seja o refugiado, a
pessoa traficada ou a família que foge da guerra e da pobreza – que é, para Francisco, o ícone
do Cristo sofredor no mundo de hoje: ao abraçar o migrante, criamos um novo futuro.

Em 2001, Francisco propôs uma meditação na qual convidava as pessoas a imaginarem-se


como um migrante acabado de chegar a Buenos Aires vindo do interior. Só teríamos uma coisa
em mente: estarei seguro, serei bem-acolhido, encontrarei abrigo e calor? Encontrarei
hospitalidade? É a questão colocada por todos os seres humanos contemporâneos que sofrem
na pele a des-socialização e o desenraizamento. Esta pergunta é feita de três formas:
afectivamente, no sentido de que a dissolução dos vínculos de pertença à família, a
comunidades, a instituições, está a produzir uma profunda angústia emocional e psicológica;
existencialmente, no sentido de que é mais difícil ter uma identidade clara, consciência de si

12
‘Él llama a cada una por su nombre y las hace salir’, in Spadaro (ed) En Tus Ojos … pp 691-696.
13
Carta do Papa Francisco aos bispos do Chile na sequência do relatório de S.E. Monsenhor Charles J. Scicluna, 8
Abril 2018, publicado pelo Vaticano a 11 de Abril.
14
Mauricio López Oropeza, ‘Mensaje del presidente de la CVX Mundial a la Asamblea de Buenos Aires 2018’.
15
Anexo 1. ’Volver a las raíces de la fe: la misión como propuesta y desafío’ (2008) in Spadaro, En Tus Ojos … 745-
754.

52
próprio, fazer planos e construir um futuro; e espiritualmente, na perda de transcendência, de
sinais e símbolos capazes de conectar o presente com o eterno que a secularização está a
provocar16.

Tal como o bom Samaritano, a resposta da Igreja a esta ferida deve ser também concretizada a
três níveis: o primeiro, ajudar as pessoas a religarem-se com a criação e com o mundo como
criaturas de Deus, que ‘trabalha continuamente’ por elas; o segundo, experienciar a família e a
comunidade como laços de confiança e amor incondicional que ajudam a construir a resiliência,
o caráter e a autoestima; e por último ajudar as pessoas a encontrar um espaço de santuário –
espaços de paz, privacidade e oração, livres das pressões implacáveis do paradigma
tecnocrático, espaços onde as pessoas possam reconhecer o seu valor intrínseco e descobrir a
santidade. Podemos ver aqui as bases para as prioridades que Francisco definiu como Papa:
reconstruir e restaurar o ambiente humano destruído pela tecnocracia, tal como reflectido nas
suas exortações apostólicas – Evangeli Gaudium, Amoris Laetitia, Gaudete et Exsultate – e,
claro, a Laudato Si. A palavra oikos – a nossa casa partilhada – é a raiz da palavra ‘ecologia’.
Francisco é um papa ecológico, apostado em reconstruir os nossos ambientes – natural,
eclesial, familiar – para que eles reflictam a hospitalidade e a misericórdia de Deus.

Esta capacidade de acolher é chave para a evangelização. Em Assunção, Paraguai, em Julho de


2015, Francisco disse que o Cristão é alguém que aprendeu a acolher outros, a mostrar
hospitalidade. “Quantas vezes vemos a evangelização como algo que envolve várias
estratégias, tácticas, manobras, técnicas, como se pudéssemos converter as pessoas com base
nos nossos próprios argumentos. Hoje, o Senhor diz-nos muito claramente: de acordo com a
mentalidade do Evangelho, não convences as pessoas com base em argumentos, estratégias
ou tácticas. Convences as pessoas aprendendo a acolhê-las”17.

Isto é a hospitalidade e o acolhimento missionários. Temos de sair e acolher. Francisco insiste


constantemente que a Igreja tem de ser próxima e concreta, porque é desse modo que Deus
salva a humanidade. A Encarnação é próxima e concreta. Numa sociedade líquida e
tecnocrática, as tentações da Igreja – o problema com todas as instituições – é tornar-se
abstracta e remota, é recuar e refugiar-se em ideias (gnose) ou no funcionalismo
(pelagianismo). Se as pessoas estão hoje zangadas com os seus líderes e instituições, é porque
a ‘liquidez’ os tornou distantes e despreocupados.

A Igreja deve ir na direcção oposta. Tem de imitar a synktàkabasis de Deus, a sua humilhação;
tem de mostrar um Deus que atende ao particular, à pessoa, às realidades mais do que às
ideias. Atenção é sinónimo de misericórdia. É o tempo que passamos com as pessoas, uma a
uma. Confrontado com falta de esperança, o Senhor deixa-se tocar, desce até nós, torna-se
próximo. A nossa tarefa, diz Francisco, é redescobrir o Seu modo de se tornar próximo para
que possamos então evangelizar. A palavra chave é ‘proximidade’. Tal como ele mencionou
num dos sínodos em que participou enquanto bispo: “Encontro, conversão, comunhão e
solidariedade são as categorias que melhor expressam a proximidade…que abre o caminho à
esperança”18.


16
‘Acerquémonos a las diferencias’ (2001), in Spadaro (ed) En Tus Ojos… pp 165 et seq.
17
Homilia, Campo grande de Ñu Guazú, Asunción, 12 Julho 2015.
18
Referência a publicar.

53
A mudança do ‘abstracto’ para o ‘próximo’ e ‘concreto’ da conversão pastoral é capturado de
forma muito bela no capítulo 2 da Amoris Laetitia. Tal como diz Francisco: “Durante muito
tempo pensámos que, com a simples insistência em questões doutrinais, bioéticas e morais,
sem a necessária abertura à graça, já apoiávamos suficientemente as famílias, consolidávamos
o vínculo dos esposos e enchíamos de sentido as suas vidas compartilhadas”19. Mas não
funcionou. O casamento colapsou, no mundo católico como em todos os outros sítios. Num
mundo líquido, pós-moderno, uma ideia é apenas uma ideia; é uma narrativa; não tem poder
para transformar ou salvar. Numa sociedade cristã, sim – o facto de a Igreja dizer que o
casamento é permanente, é equivalente a uma ordem que pode ser obedecida ou rejeitada;
mas, numa sociedade líquida, o compromisso com a permanência tem de resultar de uma
convicção de coração. Não ajudamos pessoas a casar e a permanecer casadas simplesmente
opondo-nos às leis do divórcio ou defendendo o princípio da indissolubilidade, mas sim
ajudando a que as pessoas se comprometam, se amem e fiquem juntas. Uma Igreja que é
próxima e concreta reconhece que é difícil para as pessoas serem boas, levarem vidas
ordenadas, viverem em comunidade e permanecerem juntas. É por isso que a Amoris Laetitia
não ensina a verdade sobre o casamento - apesar de o reafirmar a cada página; em vez disso,
mostra como a graça de Deus nos permite viver essa verdade, por mais aparentemente
irregular ou longe da Igreja que possa parecer.

É por sermos misericordiosos – próximos e concretos -, que nos tornamos credíveis. Tal como
Francisco diz em Misericordiae Vultus, Jesus mostrou-nos que a misericórdia é o critério de
credibilidade da nossa fé20. A Igreja é credível quando é misericordiosa porque comunica
Quem e Como Deus é. E nada melhor comunica o ser de Deus do que ser misericordioso e agir
misericordiosamente – é por isso que, em Guadete et Exsultate, Francisco insiste que o
coração do Evangelho está no capítulo 25 de Mateus e nas Bem-Aventuranças. A misericórdia
é sempre expressa em acção: misericordiar. A misericórdia nunca fica de fora, a abanar as
mãos ou a dar lições; ela entra connosco. Nas palavras de James Keenan SJ, a misericórdia é a
“vontade de entrar no caos do outro” – isto é a Encarnação21.

Quando Francisco refere, na Evangelii Gaudium, a “hierarquia de verdades e doutrinas


católicas”, ele está a referir-se a uma prioridade missionária. Todas as verdades reveladas são
importantes mas algumas são expressão directa do coração do Evangelho e são exactamente
aquilo que as pessoas precisam de ouvir antes de qualquer outra coisa. “Neste centro essencial,
o que brilha em primeiro lugar é a beleza do amor salvador de Deus manifestado em Jesus
Cristo, que morreu e ressuscitou dos mortos”. É por isso que ele diz, no parágrafo seguinte,
que as “obras de amor ao próximo são a manifestação externa mais perfeita da graça interior
do Espírito”. As pessoas podem ser convencidas pela verdade, ou inspiradas pela bondade,
mas só se primeiro tiverem sido cativadas pela beleza; e a beleza de Deus é a sua misericórdia.
Sem essa beleza, como Francisco disse em 2010, “a verdade torna-se fria, impiedosa e
arrogante”. Num retiro que deu em certa ocasião, Francisco falou da verdade como sendo uma
pedra preciosa na mão de uma pessoa: se for oferecida, seduz; se for atirada, fere.


19
AL 37.
20
MV 9.
21
James Keenan, ‘The scandal of mercy excludes no one’, Thinking Faith, 4 Dezembro 2015.

54
A misericórdia cativa por ser um reflexo da gratuidade, que comunica quem e como Deus é – o
dom da vida, dada livremente, recebida livremente. Na Igreja primitiva, o amor desinteressado
por aqueles que sofriam demonstrado pelos cristãos– que fluía da sua experiência directa do
amor de Deus em Cristo – espantava e escandalizava as comunidades em seu redor, quer
fossem judias ou pagãs. É isso que Francisco22 quer que a Igreja missionária de hoje recapture
– a gratuidade da misericórdia. Por isso, a primeira tarefa de um discípulo missionário é
permitir, através da sua misericórdia, um encontro com a gratuidade de Deus (a sua
misericórdia, o seu perdão, a sua graça). A isso, segue-se a transformação ética.

Esta é uma das razões pelas quais Francisco não se lamenta constantemente por causa da
secularização: ele discerniu-a como uma oportunidade para recuperar a gratuidade23. É a isto
que Francisco se refere quando diz que este é um tempo de kairós, de misericórdia. A
secularização, o triunfo da tecnocracia, a exculturação do Cristianismo da lei e cultura
ocidentais, o falhanço institucional da Igreja – é como se tudo estivesse agora orientado para
nos levar a revisitar o próprio nascimento da Igreja, a voltar às suas fontes, ao seu vigor
missionário assente numa experiência directa do amor misericordioso de Deus. É isto que
Francisco está a convidar a Igreja chilena a ver este ano, começando pelo seu discurso na
Catedral de Santiago em Janeiro, passando pelas suas duas poderosas cartas aos bispos
chilenos e, finalmente, pela sua carta de 31 de Maio ao Povo de Deus do Chile, que eu também
partilharei convosco24.

Vale realmente a pena ler estas cartas para perceber como Francisco está a tentar ajudar a
Igreja no Ocidente, um sítio onde a Igreja era forte e é agora fraca. O seu modelo é o da
transformação de Pedro de discípulo em apóstolo em resultado do perdão que Jesus
Ressuscitado lhe dá por Pedro O ter abandonado e traído na Crucificação. O perdão permite a
Pedro passar de um registo de foco em si próprio, ruminando na sua desolação e nos seus
perseguidores, para um registo orientado para o exterior – para a missão e para a
evangelização. “Uma Igreja ferida não se faz a si própria o centro das coisas, não acredita que é
perfeita mas antes põe no centro aquele que pode curar essas feridas, cujo nome é Jesus
Cristo. Conhecer a Pedro desalentado e a Pedro transfigurado é um convite a deixar de ser
uma Igreja de infelizes e desalentados para ser uma Igreja que serve todos aqueles que andam
infelizes e desalentados no meio de nós”. É este o caminho de conversão que Francisco lhes
está a apontar a eles – e, indirectamente, a nós também25.

Na sua carta ao povo de Deus no Chile, Francisco mostra como abandonar uma cultura abusiva
significa reconectar-se com o povo de Deus e reconhecê-lo como sujeitos e objectos de
evangelização, como discípulos missionários. Como ele disse aos Jesuítas na Colômbia – e os
jesuítas aqui presentes lembrar-se-ão de ele dizer o mesmo nos anos 80 – “somos muitas

22
Rodney Stark, The Triumph of Christianity: How the Jesus Movement Became the World's Largest Religion
(HarperOne 2012).
23
Christoph Theobald SJ, Urgences Pastorales: Comprendre, Partager, Réformer (Bayard, 2017) pp 68-69.
24
Esta resposta poderá ser encontrada, em primeiro lugar, no seu discurso ao clero e religiosos na Catedral de
Santiago a 16 de Janeiro; e depois em três cartas: a primeira aos Bispos do Chile depois de ter recebido o relatório
do Arcebispo Scicluna, a 8 de Abril; a segunda, que Francisco entregou aos Bispos do Chile no primeiro dia da
cimeira de emergência realizada em Roma, a 15 de Maio, de natureza privada mas da qual saíram relatos na
imprensa; e a terceira, a sua carta ao Povo de Deus do Chile de 31 de Maio.
25
Discurso do Santo Padre, Catedral de Santiago, 16 de Janeiro de 2018. Sobre as orientações de Francisco à Igreja
Chilena, ver Austen Ivereigh, ‘Discernment in a time of tribulation: Pope Francis and the Church in Chile’, Thinking
Faith, 8 Maio 2018.

55
vezes tristemente tentados a evangelizar para o povo de Deus mas sem o povo de Deus. Tudo
para o povo mas nada com o povo”26. “O Povo de Deus não tem cristãos de primeira, segunda
ou terceira classe”, diz Francisco aos fiéis do Chile. “A sua participação não é uma questão de
boa-vontade ou de concessão, é antes constitutivo da natureza da Igreja. É impossível imaginar
um futuro sem essa unção operando em cada um de vós, o que certamente exige e requer
novas formas de participação”27. Se não sentirmos estas palavras como sendo dirigidas a nós,
não estaremos alinhados com este papado.

Por último, aquilo que está por trás deste apelo de Francisco a uma conversão missionária e
pastoral, como resposta a esta mudança de época, implica também a necessidade de pedirmos
a graça da consolação e da alegria. Quando S. Inácio falava de consolação nos Exercícios, ele
referia ‘todo o aumento de esperança, fé e caridade, toda a felicidade interior’ – a palavra
espanhola é leticia – ‘que chama e atrai todas as coisas do céu’. Reparem nos títulos das três
exortações apostólicas - Evangelii Gaudium, Amoris Laetitia e Gaudete et Exsultate – e torna-se
claro que Francisco pensa que há qualquer coisa que falta, alguma coisa que ele está a tentar
recuperar. Francisco disse aos Jesuítas em 2016 – mas isto aplica-se a todos os evangelizadores
– que o seu “verdadeiro trabalho” era “consolar os fiéis e, através do discernimento, ajudá-los
a evitar que o inimigo da natureza humana lhes roube a alegria: a alegria de evangelizar, a
alegria da família, a alegria da Igreja, a alegria da criação…”. É uma alegria que vem, claro, da
aceitação agradecida de que tudo é dom28.

III. Quatro sugestões para abraçar a missão
Usei até agora várias palavras e expressões que são particularmente significativas para
capturar o espírito desta transição:

• transformação missionária
• conversão pastoral
• próximo e concreto
• misericórdia
• graça
• hospitalidade
• gratuidade
• credibilidade
• Povo de Deus
• consolação
• alegria
Talvez uma ou duas destas palavras vos tenham surpreendido, por causa do que estão a fazer
ou pelo que poderão ser convidados a fazer. Gostaria de terminar com quatro sugestões que
podem ajudar a estimular este sentido de missão.

1. Ler o decreto AD GENTES

A minha primeira sugestão é que leiam o decreto do Concílio Vaticano II sobre a missão da
Igreja, Ad Gentes. É curto e descreve exactamente o Ocidente neste momento – ‘às vezes, as

26
Encontro privado do Papa com os jesuítas, http://www.jesuitas.org.co/docs/809.pdf.
27
Francisco, ‘Al pueblo de Dios que peregrina en Chile’, 31 Maio 2018.
28
EE 336

56
circunstâncias são tais que não permitem qualquer possibilidade de expor o Evangelho directa
e imediatamente…’ (#6) – e ajuda a pensar sobre evangelização em contextos de hostilidade,
incompreensão ou simples ignorância.

O futuro da Igreja é descrito em Ad Gentes, porque esse é o contexto de uma mudança de


época. Uma Igreja missionária não se pode dar ao luxo de ser clerical; requer um laicado
cristão maduro que possa actuar como missionário com treino apostólico adequado. Tem que
ser uma diáspora missionária – talvez com paróquias e escolas e redes complexas mas o
paradigma e a abordagem têm de ser aquele aqui descrito. Nós estamos numa Igreja que está
presa entre estes dois modelos, movendo-se de um modelo de Cristandade para um
paradigma missionário, que é aquilo que Francisco quer precipitar. O que é necessário é uma
missão que acontece numa espécie de espaço de vanguarda a ser ocupado por grupos
pequenos e adaptáveis com um eros missionário.

Será este o momento para que a CVX se veja com a liberdade e mobilidade suficientes para
ajudar a mostrar o caminho, a criar espaços onde a Igreja possa recuperar o seu dinamismo
missionário num contexto de secularismo? Será por isto que a CVX prosperou especialmente
em França e no Uruguai, capitais do laicismo?

Na comunicação que vos fez em 1979, o Padre Arrupe falou da CVX como um ‘movimento
espiritual essencialmente laico, com os seus limites, sim, mas também com as oportunidades
apostólicas que isso implica’29. Se juntarem isto ao que Francisco diz sobre o facto de o Povo
de Deus ser agora essencial à missão e à evangelização, parece-me que têm uma forma de
redescobrir e activar a identidade que Deus vos deu como discípulos missionários leigos. Leiam
o decreto Ad Gentes e talvez se revejam a vocês próprios ali.

2. Abracem a tripla dinâmica da misericórdia

A minha segunda sugestão é que leiam a exortação apostólica Amoris Laetitia porque aí verão
Francisco procurando levar a Igreja para um registo missionário na área vital do casamento e
da família. Mencionei o capítulo 2, que é essencial, mas gostaria também de vos convidar a
reflectir na tripla dinâmica do capítulo 8: acompanhamento, discernimento e integração. Estes
três passos reflectem o movimento da misericórdia, que pode ser expresso como

(a) intuir a necessidade (estar desperto para o sofrimento e para a angústia);

(b) responder de forma concreta (as obras de misericórdia, que respondem a todos os tipos
de necessidade) e;

(c) um terceiro estágio de integração, incorporação, salvação, que envolve uma atenção
cuidada ao trabalho da graça nas vidas fragilizadas das pessoas.

Nestes três passos da misericórdia, nós experimentamos, literalmente, o amor salvador de


Deus. Ser salvo por Cristo é ser salvo desta forma; e evangelizar é oferecer esta experiência.
Estaremos a oferecer esta tripla dinâmica naquilo que vamos fazendo como comunidade?
Quão bem executamos cada um desses passos?


29
P. Pedro Arrupe SJ, ‘Una comunidad al servicio de un solo mundo’, Discurso à Assembleia Mundial da CVX, 13
Setembro 1979.

57
A misericórdia é uma oferta e uma experiência sempre acompanhada de alegria, que nasce da
recordação agradecida da acção de Deus em nós – é por isso que Francisco insiste tanto em
que façamos o esforço de recordar essa acção nas nossas vidas e nas histórias das nossas
nações.

3. Adivinhos de água

Devo esta terceira sugestão ao jesuíta e teólogo francês Christoph Théobald, no seu livro
Urgências Pastorais, onde ele fala sobre ‘le charisme des sourciers’, significando o carisma
daqueles que descobrem fontes, ou ‘adivinhos de água’. Théobald está a falar daquelas
pessoas nas nossas comunidades que conquistam espontaneamente a confiança de outros;
que são conhecidos por serem ‘ouvintes empáticos’ e que dominam a arte da conversação
espiritual. Descobrir e reconhecer este ministério da escuta, este carisma, é crítico para as
comunidades missionárias em sociedades líquidas e muito móveis, onde as pessoas estão
constantemente a chegar e a partir30.

Sourciers traz-me à memória o episódio de Jesus com a mulher samaritana na fonte, é um


ministério de atenção àquilo que oprime e liberta as pessoas. Oferece uma porta de entrada
para a hospitalidade que nós, como Igreja, podemos oferecer à sociedade contemporânea.

4. Reconciliadores

Finalmente, gostaria de vos convidar a ponderar os quatro princípios da Evangelii Gaudium


(217-237), que Francisco propõe para que as pessoas possam crescer em paz, justiça e
fraternidade. Quando li a EG pela primeira vez, não compreendi inicialmente por que razão ele
os incluiu num documento sobre evangelização mas, quanto mais aprofundo o seu
discernimento sobre a modernidade, mais entendo porque é que a construção da fraternidade
é um sinal claro do Evangelho num mundo polarizado. Apenas a título de exemplo, refiro o
discurso de Francisco na Universidade Católica de Santiago do Chile em Janeiro, no qual ele
falou sobre a perda de sentido de um povo, da família e da nação; Francisco alertou ainda para
o facto de a vida se vir a tornar cada vez mais fragmentada, conflitual e violenta. Parece-me
que estamos a ver isto mesmo neste momento – no mundo e na Igreja.

Gostaria de vos convidar a reler essas palavras à luz de um livro que foi publicado em italiano
no ano passado: uma biografia intelectual de Francisco do escritor Massimo Borghesi, que foi
escrita com a cooperação do próprio (‘Una biografia intelettuale’). Poderão confirmar quão
poderoso é o pensamento de Francisco, especialmente acerca da Igreja como uma coincidentia
oppositorum, um lugar onde elementos em tensão polar podem permanecer juntos e tornar-
se cadeias de um novo processo, como Francisco refere na Evangelii Gaudium.

A Modernidade é dominada, como sabemos pela grande tríade da Revolução Francesa:


liberdade, igualdade, fraternidade. As duas primeiras foram promovidas com grande vigor, em
particular a segunda: igualdade; mas elas avançaram à custa da fraternidade. A liberdade e a
igualdade têm valor legal e podem ser promovidas pela política e pela lei; mas a fraternidade é
um assunto moral e espiritual.


30
Theobald, Urgences Pastorales, pp 315-6.

58
Há muitas forças que tentam polarizar-nos, forçando-nos a escolher identidades, a tomar
posições numa série de falsas verdades. Neste contexto, evangelizar é também mostrar que é
possível criar uma cultura de encontro, de inclusão e de uma diversidade reconciliada.

Ser capaz de discernir a diferença entre uma verdadeira contradição, bem versus mal, sem nos
deixamos polarizar por contrastes que não estão verdadeiramente em oposição - este é o
trabalho da Encarnação, que é forte e activo no mundo sempre que lemos os sinais dos
tempos à luz do Evangelho e da nossa oração, e nos tornamos construtores activos de paz e
agentes de reconciliação nos nossos locais de trabalho e famílias, na nossa vida cívica e na
Igreja – e podemos mostrar e ensinar a outros como fazer isso, como ser sinal da presença de
Deus no nosso mundo turbulento.

Quero deixar-vos com as palavras de Francisco à Acção Católica em 2017: “a missão não é uma
tarefa entre outras, é A missão”. Francisco deu-lhes ainda este conselho: “Evitem cair na
tentação do perfeccionismo, de quem se prepara sem fim para a missão com análises
intermináveis que, quando acabadas, já estão obsoletas. Jesus, com os seus apóstolos, deu-nos
o melhor exemplo: enviou-os com o que tinham. Depois reencontrou-os e ajudou-os a discernir
sobre o que tinham experienciado. Deixem a realidade ditar os tempos e os locais e deixem que
o Espírito Santo vos guie. Ele é o mestre interior que ilumina o nosso trabalho quando estamos
livres de preconceitos e condicionamentos. Aprendemos a evangelizar evangelizando, tal como
aprendemos a rezar rezando, desde que para isso tenhamos disposição”31.

No domingo passado, estive com os jovens da paróquia do Padre Rafa32 que lideraram os
quatro dias de missão na paróquia. Tinham muitas histórias para contar sobre a fé que
encontraram, bem como histórias de vida e sofrimento e muito mais. Estavam incrivelmente
comovidos. Uma delas disse que o seu coração estava ‘quase a rebentar de tão cheio’; outro
comentou que caíu na conta de que, ‘ao missionar, fomos missionados’. Ao missionar outros,
foram eles próprios missionados. É isto que estamos convidados a experimentar hoje e na
Igreja para a qual Francisco nos chama.


31
Ao Congress of the International Forum of Catholic Action (IFCA), Synod Hall, 27 Abril 2017.
32
Nota da tradução: paróquia nas cercanias do Colégio de S. Miguel visitada pelos delegados da AM2018 no Dia de
Imersão.

59

Fotografia de grupo dos Delegados da Região do Médio Oriente

Fotografia de grupo dos Delegados da Região de África

60

Conferência
O DOM DOS 50 ANOS DA
CVX
María Magdalena Palencia
Gómez
Dia 4 – 25 de Julho 2018

À ASSEMBLEIA MUNDIAL CVX – BUENOS AIRES 2018


Inicio esta partilha com uma memória que me é especialmente cara e permanece presente
no meu coração, que me tem acompanhado de forma agradável ao longo de mais de trinta e
sete anos e que se fez muito viva quando fui convidada a estar aqui hoje:

Refiro-me à ultima ocasião em que tive a oportunidade de me encontrar com o


Padre Arrupe, durante a Semana Santa de 1981: como em outras ocasiões,
chegámos para a nossa reunião de ExCo à Villa Cavalletti, e ali coincidimos por
vários dias com um grupo de provinciais recentemente nomeados que celebravam,
juntamente com o Padre Geral e os seus assistentes, algo semelhante a uma sessão
de iniciação; neste caso, a sessão decorria em inglês e todos os provinciais vinham
da Ásia. Como em outras ocasiões, também tínhamos tido um encontro formal em
que partilhámos com os provinciais informações sobre a Comunidade Mundial e a
sua relação próxima com a Companhia, e vários encontros e conversas informais no
final das refeições ou das pausas para café. A sua reunião terminaria antes da
nossa e convidaram-nos para celebrarmos juntos a Eucaristia antes de partirem.

Coincidiu ler-se, de acordo com a liturgia do tempo, a narração do Livro do Génesis


(Gen, 17) que faz referência à passagem em que Deus estabelece aliança com
Abrão, o confirma na sua missão de pai de uma multitude de povos e lhe promete a
posse de uma terra; e Deus, prometendo fidelidade divina, pede a mesma
fidelidade de Abrão e de todas as gerações futuras. Esta aliança entre Abrão e Deus
é selada com a circuncisão e com uma mudança de nome; daquele momento em
diante o nome do patriarca será: Abraão.

Presidia à eucaristia o P. Provincial da Coreia, que por sua vez refletiu e fez alguns
comentários sobre o profundo significado que tem, ainda hoje, uma mudança de
nome no mundo oriental e sobre o que representou também durante muitos anos
para muitos religiosos e religiosas, enfatizando a forma como o nome identifica
não apenas a pessoa mas a sua missão; a força da renuncia a uma identidade
prévia que esta mudança implica e no que supõe de uma aceitação de uma missão
e de uma nova ou renovada identidade... então fomos convidados a fazer alguns
pedidos ao Senhor ...

61
Já se haviam expressado alguns pedidos quando o Padre Arrupe fez o seguinte
comentário – não posso assegurar-vos que foram exactamente estas as suas
palavras mas tenho a certeza da coincidência de, pelo menos, algumas delas e
nunca me esqueci do seu conteúdo: “Há alguns anos, as Congregações Marianas
foram chamadas por Deus a uma mudança identitária, a uma nova maneira de ser.
Como Abrão, responderam com generosidade deixando as suas seguranças e
certezas, aceitando mesmo a morte que significou um novo nome “Comunidades de
Vida Cristã”, que implica também em si mesmo o significado da Missão a que são
chamadas...” e pediu pela Comunidade Mundial, pelo seu crescimento e
consolidação, pela sua fidelidade à Missão e para que o seu serviço ao mundo e à
Igreja seja sempre o melhor serviço.

Depois do almoço, aos despedirmo-nos dos que iam embora, aproximei-me do


Padre Arrupe, e, como pudemos conversar alguns minutos enquanto tomávamos
café, agradeci-lhe pessoalmente a petição que tinha feito e por tudo o que nela
tinha expressado sobre o que é (identidade) e o que deve fazer (missão) a CVX; ele
respondeu-me: “que assim seja”.

Como já mencionei, esta terça-feira da Semana Santa foi a última oportunidade


que tive de conversar com o Padre Arrupe. Uns meses depois chegou-nos a notícia
do AVC que tinha sofrido no regresso da sua última viagem às Filipinas, sempre em
fidelidade à Missão e em serviço ao mundo e à Igreja. Conservei sempre no meu
coração esta pequena história, e pude partilhá-la em algumas ocasiões – incluindo
nalguma publicação da Progressio – e para mim, ela expressa bem a vontade do
Padre Arrupe para a CVX.


E foi a recordação deste encontro e legado, que me levou, uma vez mais, a reler a história de
Abraão para, também, a partir dela, reler, comparar e iluminar o caminhar da nossa
Comunidade de Vida Cristã...

Cada itinerário, cada discernimento em busca da vontade de Deus, começa com um sonho.
Uma utopia que, ao afastar-se do nosso alcance alguns passos, por cada um que damos, nos
desafia a prosseguir caminho, a manter a busca. O que é isto se não o Princípio e
Fundamento, com o qual desejamos o nosso sonho ou confirmamos a nossa utopia, de cada
vez que começamos os nossos Exercícios Espirituais?

O sonho de Abraão é o cumprimento da promessa, uma descendência tão grande que


ninguém conseguirá contá-la e a posse de uma terra. Os dez capítulos do Livro do Génesis
[12-22] vão desde a menção dos antepassados e do sítio em que Abrão vivia até ao sacrifício
de Isaac. Percorrê-los leva-nos a entrar novamente na história do chamamento e do “deixa a
tua terra”... a bênção de Deus que se estende a todas as nações; os perigos que enfrenta...; as
tentações...; as quedas e recomeços...; as inevitáveis separações ou aparentes divisões, as
impossibilidades de caminharem juntos... [ 16] a renovação da promessa, Agar e Ismael, ... e
vem Mambré [ 18]... o encontro com o Deus Trindade, com o estrangeiro a quem recebe,
acolhe e serve... de quem recebe novamente a promessa, agora renovada, da velhice, a
aparente esterilidade de Sara e a sua falta de fé... o nascimento de Isaac... Não passes diante

62
do teu servo sem te deteres... [ 22] o sacrifício de Isaac... tudo o que há que entregar, deixar;
a confiança e total abandono na promessa, em Deus que nos propõe caminhos que não são os
nossos, ou o nosso modo de fazer as coisas, mas que nos vai conduzindo em liberdade de
afetos, de apegos, com indiferença, até ao “Deus proverá...” ao ‘só Deus como centro e como
tudo’...


As Congregações Marianas iniciam o seu processo comunitário de busca da vontade de Deus
como Abraão inicia o seu, sem saber para onde vão... vivem um tempo como o estrangeiro,
habitando em tendas, meio desnorteadas,... no que é temporário e não no definitivo... de
maneira itinerante... esperam uma cidade com fundações fortes... e mais que uma cidade se
lhes dará um caminho... serão peregrinas, como os sucessores de Abraão, Isaac, Jacob e a sua
descendência... em movimento, em escuta, atentas às promessas....

O chamamento começa a ser escutado em 1948 quando, a 27 de Setembro, o papa Pio XII
promulga a Constituição Apostólica Bis Saeculari, na qual faz grandes elogios às Congregações
e as convida a olharem-se a si mesmas...; é a partir desta autocontemplação que o Senhor
faz nascer A MOÇÃO: rever-se, regressar às suas fontes, dispor-se a atualizar em muitos
lugares o seu serviço, quase tetracentenário, à Igreja... os primeiros passos levaram aos
primeiros encontros internacionais, a uma nova maneira de se articular e à constituição de
uma Federação Mundial que é aprovada oficialmente pela Santa Sé em julho de 1953.

Estes primeiros passos, ao início titubeantes e posteriormente firmes, falam-nos desta


resposta a esta PRIMEIRA MOÇÃO. O primeiro ExCo eleito em Roma’54 responderá com
rapidez ao mandato recebido como: “o Congresso de Roma deve ser ponto de partida para
uma renovação universal” e em Newark’59 irá decidir-se começar imediatamente a
elaboração das novas regras, dando-se assim um primeiro passo na direção dos Princípios
Gerais; pela primeira vez fala-se de apostolado internacional e insiste-se na promoção dos
Exercícios feitos “de forma integral, ou pelo menos durante o maior tempo possível”.

No final dos seus primeiros dez anos, a Federação Mundial acredita ter clara a confirmação
do chamamento, mas os ‘como’ tardavam em concretizar-se. Ainda tínhamos que discernir,
esperar pelos tempos do Senhor que nem sempre são os nossos; a celebração do Concílio
que renovará a vida da Igreja pede-nos, em fidelidade a esta, para não definirmos os nossos
passos sem ter as suas orientações mais precisas. Na assembleia de Bombay’64 já se falava
em mudar o nome das Congregações Marianas, mas ainda houve uma pequena maioria que o
rejeitava... ainda tínhamos que discernir.

O P. Paulusen descreveu uma vez a Assembleia de Roma’67 como: “quase uma nova
fundação”. E é preciso ter presente que não foram apenas as Congregações Marianas a
renunciarem às suas seguranças ou privilégios; antes disso, o P. Janssens tinha renunciado,
em favor dos leigos, ao direito de autoridade, restrito ao Geral da Companhia, de ‘dar ou
mudar as regras das Congregações Marianas’; e impulsionou e animou uma larga consulta
que (com os meios disponíveis dos correios da época poderia demorar semanas ou meses) se
realizou antes desta assembleia, e na qual, pela primeira vez na nossa história, uma
"assembleia constituinte" mundial formulou os seus próprios documentos. Os escritos
relatam: “uma reunião plena de dinamismo, de testemunhos comovedores de uma crescente

63
unidade na diversidade e, sobretudo, de grande caridade. Dias repletos de espírito e de
ação”.

À semelhança do que aconteceu com Abraão na aparição em que o Senhor estabelece aliança
com ele, para a CVX a Assembleia de Roma’67, que deu origem ao jubileu que agora
celebramos, foi também um momento de Aliança e um novo ponto de partida: Novos
Princípios de base, novos estatutos, nova estrutura jurídica, um novo nome e uma nova
missão comum: “lutar contra a pobreza e a injustiça”.

Não é minha intenção fazer um comentário pormenorizado de cada uma das Assembleias
Gerais, sobre as quais já existe suficiente documentação; vou fixar-me, sim, em algumas
MOÇÕES, as que considero mais recorrentes, com as quais o Senhor nos tem demonstrado a
sua fidelidade, renovando o seu chamamento e iluminando o nosso caminhar. Por isso, só
relembro e enumero as Assembleias até esta data, com um breve apontamento.

Do entusiasmo ‘fundacional’ de Roma’67 passamos à prova de fogo. A nossa assembleia em


Santo Domingo’70 fez-nos compreender a necessidade de nos prepararmos para que, como
já dizíamos nos nossos documentos, o discernimento comunitário fosse realmente o nosso
método específico para encontrar a vontade de Deus. Ali fomos confrontados com os
enganos do mau espírito (“moção do mau espírito”); o tema proposto “A crise na Igreja”
repercutiu-se também na nossa própria crise, que vivemos profunda e dolorosamente
quando a Assembleia esteve a ponto de se dissolver por diferenças pessoais, com o
abandono de algumas delegações, as tensões e hesitações na busca de soluções e a alteração
radical do programa previsto.

No entanto, foi uma crise saudável, que nos tornou conscientes da nossa vulnerabilidade e
que levou o ExCo, finalmente eleito, a enfrentar as suas consequências e a especificar as
reações de Santo Domingo nos seguintes pontos: “Os Exercícios Espirituais como elemento
fundacional comum e a aplicação fiel dos Princípios Gerais, nossa Missão Comum” .

Aceitar a necessidade de nos prepararmos melhor para a nova realidade a que nos
reconhecíamos chamados levou a diferentes ensaios e encontros e moveu os responsáveis a
propor um novo tipo de ‘encontro mundial’. As experiências primeiro em Roma-
Augsburgo’73, e depois em Manila’76, foram a resposta àquilo que se viveu em Santo
Domingo; as ‘Assembleias’ ficaram marcadas pela experiência dos Exercícios Espirituais e de
Cursos de Formação. Estas experiências prolongaram-se também originando a multiplicação
de jornadas semelhantes, em espírito e método, a diferentes níveis: nacional, regional e
continental. Alterou-se a dinâmica das nossas Assembleias, procurando sempre ter o tempo
suficiente para a oração e reflexão pessoal e para a deliberação comum em pequenos grupos,
ao mesmo tempo que se reduziu o tempo para os ‘assuntos’.

Em Augsburgo definimos o nosso serviço como “libertar todo o homem e a todos os


homens”. Rapidamente nos sentimos movidos a comprometermo-nos com o apostolado
internacional e até mesmo pela participação que nos seria pedida mais tarde com a nossa
presença em algumas instâncias das Nações Unidas. E em Manila, ao reafirmar o nosso estilo
de vida de “pobres com Cristo”, enfatizávamos novamente esta nossa opção “para o melhor
serviço; a vocação CVX na missão da Igreja”.

64
Em Roma’79 tomámos consciência do dom da comunidade reconhecendo que também
somos “Uma Comunidade Mundial ao serviço de um único Mundo”; o que viemos a
confirmar em Providence’82 ao assumirmo-nos como “Uma Comunidade em Missão para
promover a Justiça”, que renovou a nossa preferência pelos pobres e marginalizados e que
assumiu a importância do estudo das análises sociais.

Loyola’86 foi uma assembleia totalmente focada na Missão, contemplando “Maria como Mãe
e Modelo da nossa Missão”. Guadalajara’90 enfatizou modos de responder a “Um melhor
serviço ao Reino”, aprovou os novos Princípios Gerais e enviou-nos a dar fruto como corpo
apostólico.

Em Hong Kong’94 propusemos que a nossa resposta deve ser “a melhor resposta ao
chamamento de Cristo a partir do mundo em que vivemos”, desejosos de levar já a todos
esse fogo que arde, do nosso contexto pessoal àquele a que somos enviados. Em Itaici’98, no
contexto de um mundo em vigília por uma alteração de milénio, descobrimos três áreas de
Missão Comum e um conjunto de meios necessários para a realizar.

Pela primeira vez em África, em Nairobi’03, partilhámos os nossos sentimentos e moções


desejosos de amadurecer como Comunidade Apostólica, “enviados por Cristo e membros de
um só corpo”. E com esse desejo de “avançar como um corpo apostólico”, em Fátima’08, na
presença de Maria, e reunidos ao redor de Jesus para lhe contar o que tínhamos feito,
ensinado e aprendido, recebemos o desafio a “viver como uma comunidade profética”.

Finalmente, há apenas cinco anos, a Assembleia realizou-se no Líbano, não apenas para
alargar a nossa peregrinação ao redor do mundo fazendo-nos presentes no Médio Oriente,
mas também para mostrar a nossa solidariedade com os que sofrem nessa terra bíblica,
traçando-se quatro “fronteiras a que temos de chegar a partir das nossas raízes”.

Em cada Assembleia, cada reunião do ExCo, cada encontro continental ou nacional, o Senhor,
fiel no Seu amor, confirmou-nos ao seu chamamento, à missão e à identidade... as MOÇÕES
com que carinhosamente toca os nossos corações continuam a alimentar o sonho e a guiar os
nossos passos; mas o caminho do Reino sofre sempre a violência dos enganos do mau
espírito e do seu desejo de dividir, de fazer duvidar, de atemorizar... e em mais de uma
ocasião também nós hesitámos e adiámos a nossa resposta.

Desde o texto da Constituição Apostólica de Pio XII, e em cada uma das nossas assembleias,
que nos sentimos chamados – MOVIDOS – a beber das nossas fontes; a reconhecer a
Espiritualidade Inaciana laical como o carisma com que fomos presenteados e a considerar os
Exercícios Espirituais como o instrumento especifico da nossa espiritualidade. Não faltaram os
enganos do mau espírito que, nos primeiros anos, tornou evidentes algumas objeções: havia
quem considerasse que os Exercícios eram ‘exigências inoportunas’, ou quem mostrasse
resistências usando o argumento de que, agora que tínhamos sido pública e oficialmente
reconhecidos como associação laical, ‘parecia discordante’ a exigência de algo que, de
alguma maneira, tinha sido, e continuaria a ser, reservado aos que optam por uma vida
religiosa ou aos presbíteros; nem faltava também quem, de entre ‘os guias e diretores de
Exercícios’, considerasse que a maioria dos leigos não eram ‘sujeitos’ se não para as
experiências mais suaves que Inácio sugere para os ‘simples e rudes’. Hoje, graças a Deus, o
reconhecimento da importância e do fruto dos EEs, nas nossas vidas pessoais e em toda a

65
Comunidade CVX, está presente e é amplamente sentido. Daqui resulta que, em muitos
lugares e nas circunstâncias mais singulares, os membros da Comunidade os procurem e
promovam, e se preparem cada vez mais leigas e leigos para guiar outros quer na experiência
dos Exercícios Espirituais, quer na vivência das pequenas comunidades e em Comunidade
alargada, fruto da convicção que aprender a discernir e a manter a liberdade de orientar o
nosso ser e querer para o serviço do Reino é fundamental.

A Assembleia de Manila, pelas condições de carência em que se celebrou, fez-nos


experimentar de uma forma muito especial a simplicidade que deve caracterizar o nosso
estilo de vida. A situação que ali vivemos, e que pudemos partilhar com irmãos e irmãs dos
bairros de Manila, tal como quando vários anos depois em Nairobi foi possível visitar a área
de Kibera, levaram-nos a expressar em voz alta a MOÇÃO de querer imitar a Cristo pobre;
vivendo num estilo de vida simples que nos faça parecer com Ele na maneira como Ele viveu.
Temos testemunhos muito vivos e edificantes de opções de entrega total e de ações
comprometidas com os doentes, os migrantes, com alguns camponeses e outros grupos
excluídos; ou com um compromisso radical e decidido pela defesa do meio ambiente.
Acredito, no entanto, que os enganos do mau espírito ainda se fazem presentes; tanto nas
muitas vezes em que a nossa ação se inscreve num ‘por ou para’ os pobres sem conseguir
chegar a ‘com e junto dos pobres, unidos a estes nas suas lutas e esperanças’; como também
por um certo elitismo no interior da nossa comunidade, que, em muitas ocasiões, nos impede
de dar o passo final para que esse desejo de imitar e seguir Jesus, e a nossa manifestação de
verdadeira solidariedade para com os mais débeis, se expresse não apenas no nosso atuar em
seu favor, mas sobretudo na partilha das suas circunstâncias o mais próximo possível
recebendo-os entre nós, acolhendo-os, e considerando um dom e uma bênção especial de
Deus para nós que o Senhor chame irmãos e irmãs mais pobres a ser parte da nossa
Comunidade.

Pessoalmente, identifico como a MOÇÃO MAIS RECORRENTE, expressa de diversas maneiras


e talvez reflexo de várias formas de escutar o chamamento, a MOÇÃO do serviço. Uma
MOÇÃO que nos foi confirmada inclusive pela autoridade da Igreja. Na sua intervenção
durante a Assembleia de Roma’79, o Padre Arrupe fez uma anotação, que quero citar na
totalidade porque, mais uma vez, faz uma referência ao aniversário que estamos a celebrar:
“Quando em 1967 se pediu à Santa Sé a transformação das Congregações Marianas em
Comunidades de Vida Cristã, e a aprovação dos Princípios Gerais que haveriam de substituir
as Regras Comuns de 1910, o motivo que justificava a petição não era outro que não este: ’o
melhor serviço‘ à Igreja e a renovação conforme o espírito e normas do Concílio Vaticano II.
Alegava-se que a transformação que era solicitada permitiria aos membros das novas
Comunidades ’consagrar-se, com maior simplicidade e eficácia ao serviço de Deus e dos
homens no mundo de hoje‘ [Carta de Aprovação do Cardeal Cicognani, 23.03.68]. E -
salientava o P. Arrupe – “porque a Igreja entendeu que essa promessa era sincera e realizável,
deu a sua aprovação”.

Com distintos nomes, o serviço – como concretização da Missão -, tem sido identificado
sempre como uma MOÇÃO nas nossas Assembleias. Não repito a enumeração dos lemas,
textos e conclusões de cada uma delas, já mencionadas anteriormente e sobre os quais há
muita documentação. Para o executarmos temo-nos esforçado por criar comissões,

66
estabelecer grupos de trabalho e desenvolver diversas metodologias, como o DEAA que até
hoje nos ajuda de maneira privilegiada a discernir as nossas atividades apostólicas. Temos
vindo a reconhecer que, sendo uma Comunidade Mundial, é nossa responsabilidade atender
aos grandes conflitos e problemas internacionais mais significativos, mas enquanto leigos não
podemos descuidar as tarefas que, por meio da nossa atividade económica, política e
ideológica, conduzem à transformação das estruturas sociais, e propiciam a dignidade e
igualdade de todos os filhos e filhas de Deus.

Como critério nascido do nosso carisma inaciano temos que responder sempre às
necessidades mais urgentes e preferir os serviços mais universais e definitivos; sem perder
a consciência da importância e da finalidade do quotidiano.

Não quero alargar-me mais descrevendo outras qualidades ou expressões do nosso serviço;
prefiro apontar como o mau espírito, em certas ocasiões, nos distrai do cumprimento deste
mesmo serviço, ou daquilo que seja verdadeiramente ‘o melhor serviço’, o não reler ou
discernir de novo à luz dos resultados, realizações ou dificuldades e o não deliberar juntos
como continuar, o que retomar ou o que deixar... há serviços que ficam na fase de
planificação ou de aprovação de uma assembleia e não se realizam, ou interrompem-se sem
avaliar ou rever o vivenciado; e isso é a ação do mau espírito, porque não retomamos o
caminho percorrido e a presença de Deus neste caminhar: ‘Recorda Israel’.

E quando perdemos de vista que o nosso serviço é consequência da Missão, e não da nossa
própria iniciativa, perdemos também uma imensa dádiva trinitária: a dádiva de o Pai nos
associar à sua obra criadora no progresso e conservação do mundo e da nossa Casa Comum,
a dádiva de nos colocar com o Filho, que nos convida a ir com Ele como companheiros e
companheiras; e que só podemos concretizar adequadamente se nos deixarmos, abertos,
conduzir pelo Espírito através de uma “encarnação” para fazer redenção; que se concretiza,
se discerne e se relê, com a liberdade do terceiro binário... e com o desejo profundo de viver
o esforço quotidiano do terceiro caminho de amor – a humildade.

O novo nome que o Senhor nos deu, há cinquenta anos, implica uma vocação, uma missão e
uma identidade: Comunidade de Vida Cristã.

Comunidade porque o que nos reúne como corpo não é um impulso pessoal ou um desejo de
nos agruparmos de maneira arbitrária; o que compõe a comunidade inaciana é a partilha de
vocações pessoais que nos levaram a cada um a ser amigo ou amiga de Jesus e esta relação
pessoal com Ele é o que nos congrega – tal como aos companheiros de Paris – como amigas e
amigos no Senhor.

Comunidade de Vida porque o que partilhamos é a vida verdadeira, aquela que Deus nos
comunica pelo seu Espírito.

Comunidade de Vida Cristã porque partilhamos a nossa vida cristã, aquela que Jesus nos
comunica e que nos leva, alegres, à comunhão com a Igreja com a qual queremos sentir
verdadeiramente. Porque Cristãos foi o nome dado aos primeiros discípulos comprometidos
com um estilo de vida que anuncia a boa notícia a todos – judeus ou não – e este anúncio
tem impacto social (Atos 11, 26).

67
Ao tomarmos consciência e ao darmo-nos conta dos laços que entre nós eram, e são, muito
mais profundos do que os de uma Federação, experimentamos fortemente a MOÇÃO de
reconhecer a nossa essência comunitária não apenas nas nossas pequenas células, mas
também ao nível mundial. Descobrimos, com alegria e gratidão, que o Senhor nos chamava a
formar uma única comunidade laical, exercitada nos exercícios que Deus deu de presente à
Igreja por meio de Inácio de Loyola; numa comunidade na qual – como Jesus – reconhecemos
Maria como nossa mãe, na qual cuidamos carinhosamente uns dos outros respeitando a
singularidade de cada um, partilhamos a vida verdadeira procurando respostas novas a novas
situações e somos enviados a continuar a missão universal de Cristo, enviado pelo Pai como
seu servo ao serviço de todos: dar a boa nova aos pobres e libertar os oprimidos e entregar a
nossa vida até à morte pela Sua causa.

Os enganos com que o mau espírito, por vezes, nos tenta consistem em considerarmos a
comunidade como uma meta e não como um meio privilegiado que nos é oferecido pelo
Senhor; e acredito que, sem descurar os processos comunitários, temos de ter especial
cuidado no acompanhamento e ajuda dos processos pessoais daqueles que chegam às nossas
pequenas comunidades e que precisam de apoio para crescer na sua vocação pessoal, de
modo que, a seu tempo, possam comprometer-se pessoalmente diante de Deus como
membros da Comunidade Mundial de Vida Cristã e com o estilo de vida que esta pressupõe.

Porque somos conscientes de que participamos não apenas na vida de Deus, mas também do
pecado do mundo, aceitamos esta realidade com liberdade interior; queremos converter-nos
e, nesse caminho de conversão, ir reafirmando os nossos ideais confiados em Deus, em Cristo
e em Maria que, em formas distintas mas todas reais, venceram o mundo; e, por isso
também, conservamos o nosso nome, que é um dom, um desafio e um lema: “Comunidade
de Vida Cristã”.

Um elemento característico da nossa espiritualidade, que enriquece particularmente a nossa


Comunidade, é o companheirismo: na CVX reconhecemo-nos como ‘companheiros e
companheiras de Jesus’.

Hoje, ao reler e contemplar a nossa vida, evoco também agradecida a inseparável história de
companheirismo apostólico com a Companhia de Jesus, para um maior serviço e glória de
Deus.

Como dizemos no documento sobre o Carisma CVX: partilhamos com os nossos irmãos
jesuítas a herança comum dos Exercícios Espirituais, a riqueza de uma longa tradição e o
desejo de entregar a vida, em missão, ao serviço dos outros. Depois de ouvir o P. Kolvenbach
dizer que foi a Companhia quem decidiu servir a CVX, a Assembleia de Nairobi expressou,
num anexo ao documento conclusivo, um agradecimento por todo o serviço de liderança e
acompanhamento prestado durante os anos fundacionais e de desenvolvimento e a nossa
esperança de continuar a caminhar em companhia fraterna, partilhando da mesma
espiritualidade e potencialmente da mesma missão, que ambas as instituições entendem
como brotando das profundezas e querem discernir das raízes para em tudo Amar e Servir.

No dia da sua eleição, o Papa Francisco comentou que os cardeais tinham ido buscá-lo ao ‘fim
do mundo’. E também ouviu o seu chamamento: ‘deixa a tua pátria, deixa a tua maneira de
viver, deixa as tuas seguranças’, e também recebeu ‘um novo nome’ que confirma a sua

68
vocação, identidade e missão. O nome ‘Francisco’ diz da sua opção pelos pobres e por uma
maneira austera de viver, diz do amor profundo à Igreja e escuta o envio: “restaura a minha
igreja”; diz do cuidado com a natureza e com a Casa Comum, diz da alegria e misericórdia, as
grandes duas linhas que atravessam e permeiam todas as suas mensagens e documentos
[‘alegria do evangelho’, ‘alegria do amor’, ‘alegrai-vos e exultai’, ‘O rosto da misericórdia’,...].

Hoje nós, que ouvimos as suas mensagens e as suas orientações que nos enchem de
felicidade, nos iluminam e nos desafiam, ao mesmo tempo que nos enchem de esperança no
anunciar desta nova era de kairós eclesial, chegámos à sua pátria – ‘até ao fim do mundo’ -
procurando perceber como ser ‘UM DOM PARA A IGREJA E PARA O MUNDO’.

Temos presente que este dom de Deus para nós nasceu de uma mulher: Maria, Nossa
Senhora, que associada a nosso Senhor é nossa mediadora, mãe e modelo do nosso serviço,
da nossa liberdade e da nossa comunidade; de quem aprendemos a fragilidade dos nossos
planos e a abertura ao Espírito, a fidelidade ao Pai, a dedicação a Cristo e à sua causa; e os
valores que, como ela, também nós queremos anunciar ao mundo: a vida familiar, a
dignidade do trabalho, a sobriedade e simplicidade no estilo de vida, o amor e cuidado pela
nossa Casa Comum e o amor e dedicação à Igreja.

Sob a sua proteção, reunimo-nos em Buenos Aires para celebrar um novo encontro
comunitário de discernimento, em atitude de busca. ‘Buscadores’ itinerantes, continuamos
em peregrinação, confiando na promessa, como até agora, de que somos levados a perseguir
aquele sonho nascido do chamamento que mudou o nosso nome e nosso estilo de vida.

O Bom Espírito tem guiado o nosso processo de preparação. Hoje, como Abraão ao subir ao
monte, estamos dispostos e dispostas a entregar-lhe tudo, com total confiança, abandonados
na sua promessa, com liberdade de afetos, de apegos, indiferentes, “Deus proverá”,
procuramos e desejamos apenas o que mais nos conduz a Deus como centro e como tudo:
“Dá-nos Senhor o teu amor e graça, que isso nos basta”.

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Fotografia de grupo dos Delegados da Região da América do Norte

Fotografia de grupo dos Delegados da Região da Europa

70
Conferência

UMA COMUNIDADE
LAICAL DE
DISCERNIMENTO AO
SERVIÇO DA
RECONCILIAÇÃO
P. Arturo Sosa sj.
Dia 5 – 26 de Julho 2018


Estou muito feliz por poder partilhar convosco o dia de hoje. É a primeira vez que participo
numa Assembleia Mundial da CVX como Assistente Eclesiástico Mundial. Um obrigado muito
grande pelo vosso acolhimento caloroso e fraterno.

Como alguns sabem, a minha história pessoal, desde a minha juventude, está ligada à
Congregação Mariana do Colégio S. Inácio, em Caracas (Venezuela). Participei na Congregação
dos Kostskas, como era chamada a dos mais pequenos, e depois na congregação de S. Luís
Gonzaga, nos últimos anos dos meus estudos secundários. Através da Congregação Mariana
aprendi a incluir na minha agenda diária a oração pessoal, a participação na Eucaristia e o
compromisso apostólico, além da responsabilidade nos estudos e na vida familiar. Ter feito
parte da Congregação Mariana teve, sem dúvida, grande importância no amadurecimento da
minha vocação à Companhia de Jesus.

Estou, por isso, profundamente grato àqueles que animaram a Congregação Mariana e aos
meus companheiros de congregação durante a minha juventude. Com eles partilhei a iniciação
na vida espiritual e apostólica, a vida comunitária e o encontro com a realidade social do meu
país. Nesse ambiente vivi com paixão, em tempo real, o Concílio Ecuménico Vaticano II, e a
lufada de ar fresco que produziu na Igreja.


Consolidar e aprofundar
Celebrar os primeiros cinquenta anos da CVX é um convite para olhar e reconhecer tanto bem
recebido. É um momento para agradecer e renovar a escolha de seguir o Senhor ao serviço da
Igreja e do mundo. Agradecer a Deus por tantos dons na vida de tantas pessoas que, neste
meio século, encontraram na CVX um caminho de crescimento pessoal e de acompanhamento
mais próximo de Jesus. Agradecer todo o trabalho apostólico promovido, direta e
indiretamente, por membros e comunidades de todo o mundo...

O Concílio Vaticano II coloca em primeiro plano o caráter laical da Igreja, definida como Povo
de Deus. A profunda renovação das Congregações Marianas, inspirada no Vaticano II, deu
origem às Comunidades de Vida Cristã (CVX), procurando animar uma parte do Povo de Deus a
partir da Espiritualidade Inaciana. A experiência renovada dos Exercícios Espirituais leva-nos a

71
escolher o seguimento de Jesus Cristo numa vida laical, alimentada pela experiência
comunitária e pelo compromisso apostólico.

Reunidos aqui em San Miguel (Buenos Aires) na Assembleia Mundial, no 50º aniversário do
nascimento da CVX, também sentimos esse ar fresco do Espírito que nos convida a consolidar
uma experiência e a aprofundá-la para responder aos novos desafios da vida humana e cristã,
no alvorecer de uma nova era histórica da humanidade. Experimentamos como o Senhor
continua a agir na História para reconciliar todas as coisas n’Ele. Ele continua a chamar homens
e mulheres para seguir este caminho espiritual, comunitário e apostólico que a CVX tem vindo
a descobrir, de forma a contribuir para o fortalecimento da Igreja laical.

Ao celebrar cinquenta anos, escutamos a voz do Papa Francisco, neste lugar bem conhecido
por ele, que se dirige a toda a Igreja e todos os homens e mulheres de boa vontade numa
linguagem que nos é tão familiar. O seu sonho é ver encarnado no corpo da Igreja o espírito do
Concílio Vaticano II. O seu sonho é uma Igreja - Povo de Deus - que surge da experiência do
Crucificado Ressuscitado, que reúne os seus seguidores numa comunidade ao serviço da
reconciliação das pessoas entre si, com a natureza e com Deus. Uma comunidade atenta aos
sinais dos tempos, comprometida com a luta pela justiça social e pela libertação dos povos.


Comunidade de discernimento
O Papa Francisco insiste, em todos os momentos, em como a vida cristã é uma fonte de alegria.
Dessa alegria profunda e interior que a linguagem inaciana chama de consolação. Uma alegria
que resulta de se ter recuperado a liberdade para nos colocarmos ao serviço dos outros. O
discernimento é a chave para manter contato com a fonte da alegria de viver como discípulos
de Jesus. Por esta razão, o Papa Francisco convida-nos a fazer do discernimento algo normal
nas nossas vidas pessoais como cristãos, na vida da comunidade e na vida da Igreja. Na sua
recente Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate, ele regressa ao assunto:

Hoje em dia, tornou-se particularmente necessária a capacidade de discernimento, porque a


vida atual oferece enormes possibilidades de ação e distração, sendo-nos apresentadas pelo
mundo como se fossem todas válidas e boas. Todos, mas especialmente os jovens, estão
sujeitos a um zapping constante. É possível navegar simultaneamente em dois ou três visores e
interagir ao mesmo tempo em diferentes cenários virtuais. Sem a sapiência do discernimento,
podemos facilmente transformar-nos em marionetas à mercê das tendências da ocasião1.

Entre os poucos pães e peixes2 que a CVX tem para partilhar com a Igreja e com o mundo está
a experiência do discernimento espiritual pessoal e comunitário. A espiritualidade inaciana
abre-nos ao discernimento e leva-nos a adquiri-lo como um hábito na nossa vida cristã. O Papa
Francisco pediu à Companhia de Jesus uma ajuda específica para expandir a prática do
discernimento na vida da Igreja. Este chamamento estende-se a todos os que partilham a
espiritualidade inaciana. A CVX como movimento laical de inspiração inaciana encontra-se nas
melhores condições para responder a esse chamamento, contribuindo para uma Igreja laical
capaz de discernir pessoalmente e em comum.

1
G.E. nº. 167
2
Disse-lhe um dos seus discípulos, André, irmão de Simão Pedro: «Há aqui um rapazito que tem cinco pães de
cevada e dois peixes. Mas que é isso para tanta gente?»

72
O discernimento não é necessário apenas em momentos extraordinários, quando temos de
resolver problemas graves ou quando se deve tomar uma decisão crucial; é um instrumento de
luta, para seguir melhor o Senhor. É-nos sempre útil, para sermos capazes de reconhecer os
tempos de Deus e a sua graça, para não desperdiçarmos as inspirações do Senhor, para não
ignorarmos o seu convite a crescer. Frequentemente isto decide-se nas coisas pequenas, no que
parece irrelevante, porque a magnanimidade mostra-se nas coisas simples e diárias3.

O discernimento é complexo e exigente. Pressupõe adquirir e manter a indiferença inaciana


que deriva da liberdade interior pela qual superamos qualquer apego aos nossos próprios
interesses, posses ou uso de instrumentos. Pressupõe também desenvolver uma sensibilidade
aos sinais dos tempos, aprender a perceber onde e como o Espírito age no mundo de hoje, no
contexto social em que se desenrola a vida de cada um de nós, da nossa sociedade e do
mundo. O discernimento exige aquele silêncio capaz de eliminar os ruídos que impedem a
escuta do Espírito.

Os Princípios Gerais da CVX apontam para a prática regular dos Exercícios Espirituais, escola de
discernimento, como fonte específica e instrumento característico da nossa espiritualidade
(PG5). É assim que a experiência vivida do discernimento pessoal e comunitário pode tornar-se
um verdadeiro dom partilhado na Igreja e um instrumento de sabedoria para toda atividade
no mundo, ao serviço da alegria do Evangelho, núcleo principal do estilo de vida cristão (PG 2)
que é a CVX.

A consolação é um dom do Espírito que precisamos de pedir insistentemente. A prática e o


ensino desta oração de súplica da consolação é um serviço que ajuda a partilhar com os outros
a alegria do Evangelho. Esta profunda experiência nasce da profunda união com Jesus em
constante oração e serviço generoso. Cuidar destes aspetos fundamentais é uma prioridade,
tanto na formação de novos membros CVX, como no crescimento espiritual daqueles que já
estão comprometidos. São esses poucos pães e peixes que, ao serem partilhados com os
outros, o Senhor multiplica para que cheguem a todos, mesmo àqueles que andam afastados.

Deste modo, se realiza o carisma da CVX: ajudar que muitos, dentro da Comunidade ou através
dela, possam experimentar a alegria do encontro com o Espírito e possam comprometer-se em
contribuir para a libertação dos seres humanos e para a transformação social.

O discernimento é sempre um exercício de olhar o mundo, em toda a sua verdade, com


disponibilidade para deixar-se mover internamente e entregar-se ao maior serviço. O
discernimento leva à ação, como um prolongamento daquilo que Jesus iniciou pelo resgate da
vida humana. Isto, entendemo-lo bem a partir da Contemplação da Encarnação nos Exercícios
Espirituais, na qual se baseia o Princípio Geral 1 da CVX.

Para criar e fortalecer o hábito de discernimento apostólico pessoal e comum, a 36ª


Congregação Geral da Companhia de Jesus recomenda o uso frequente de uma ferramenta
muito útil, a conversação espiritual, que consiste em dedicar tempo para partilhar com
simplicidade com os outros o que foi experimentado em oração ou reflexão pessoal, com uma
disposição profunda para escutar o outro e com uma atenção especial às moções e novas
percepções geradas durante essa escuta.


3
G.E. nº. 169

73
A CVX tem uma larga experiência de conversação espiritual, especialmente nas reuniões
regulares das pequenas comunidades. A experiência da dimensão comunitária do
discernimento é uma riqueza que pode ser partilhada com outros na família inaciana. Os
esforços de integração constante, em todas as dimensões da vida, dos três pilares do carisma
da CVX - espiritualidade, comunidade e missão - e a ferramenta dos quatro verbos - discernir,
enviar, apoiar e avaliar (DEAA)- já deram muitos frutos na vida da comunidade. Eles fazem
parte do dom recebido nestes cinquenta anos.

Para enriquecer o serviço da CVX à Igreja e ao mundo, é prioritário sustentar e desenvolver


este dom na vida pessoal de cada membro e na vida comunitária de cada comunidade local,
das comunidades nacionais e da Comunidade de Vida Cristã.


Companheiros numa missão...
Com a CVX, a Companhia de Jesus tem um vínculo espiritual e formal muito especial. A nossa
proximidade espiritual e histórica compromete-nos com uma responsabilidade comum na
missão de anunciar a Boa Nova do Evangelho a partir da identidade inaciana como carisma
recebido e vivido por cada um de acordo com a sua vocação religiosa ou laical.

Esta responsabilidade numa missão que não nos pertence exclusivamente, porque é a missão
de Jesus Cristo para a qual somos convidados, desafia-nos a buscar novas formas de
colaboração mais profunda entre a CVX e a Companhia de Jesus. Uma colaboração para o
melhor serviço à missão de Cristo segundo a vocação de cada um, sem procurar os interesses
próprios ou corporativos.

A 36ª Congregação Geral da Companhia de Jesus reconheceu que a magnitude e a interligação


dos problemas que afetam a humanidade e que apresentam grandes e diversos desafios à
missão da Igreja são de tal ordem que somente trabalhando em colaboração com os outros,
cooperando juntos - de mãos dadas - podemos efetivamente contribuir para a sua solução.
Isto tanto se aplica à CVX como a toda a Igreja.

A Companhia de Jesus tem aprendido nos últimos cinquenta anos a ser um colaborador com
outros na missão. Aqui também há uma rica experiência no relacionamento com a CVX. O
ponto de partida para uma colaboração fecunda no serviço à missão de Cristo, maior e mais
complexa que as atividades apostólicas da Companhia de Jesus e da CVX, é o reconhecimento
da vocação particular de cada um e do carisma de cada instituição. Reconhecimento significa
respeito pelas próprias características institucionais e pela autonomia legítima e necessária de
cada grupo. Ao reconhecer o outro, reconhecemos a riqueza dos dons do Senhor para os seus
seguidores na construção da humanidade reconciliada em Cristo.

Conhecemos muitos exemplos de trabalho conjunto entre jesuítas e membros da CVX com as
suas luzes e as suas sombras. Já houve muitos frutos mas também mal-entendidos e até
mesmo conflitos. A colaboração entre a Companhia de Jesus e a CVX para contribuir juntos
para o serviço da missão de Cristo tem ainda muito para crescer. Eu diria que é um desafio
cheio de esperança que abre novos horizontes apostólicos para uns e para outros.

74
Missão de reconciliação e justiça
A 36ª Congregação Geral da Companhia de Jesus voltou a fazer o exercício de contemplar o
mundo com esse olhar da Trindade e, ao mesmo tempo, inspirada pela Contemplação para
Alcançar Amor, procurou os sinais da obra de Deus que opera continuamente no mundo.
Escutou-se o clamor dos milhões de migrantes forçados, das vítimas da violência e da
crescente desigualdade económica e social. Compreendeu-se o desafio de anunciar a Boa
Nova no novo ecossistema digital, nas sociedades secularizadas e dominadas por
fundamentalismos religiosos ou ideológicos. Confirmou-se a necessidade de construir pontes,
promover o compromisso dos cidadãos em regimes políticos democráticos que têm o Bem
Comum como base para a sua ação. Reconheceu-se a negligência dos acordos que consigam
parar a deterioração do meio ambiente e assumir responsavelmente a Casa Comum.

Como resultado, reafirmou-se a maneira pela qual a 35ª Congregação Geral (2008) tinha
formulado a missão da Companhia de Jesus: companheiros numa missão de reconciliação e
justiça. Sentimos o chamamento a participar no trabalho de reconciliação que Deus vai
realizando no nosso mundo ferido, uma obra, pelo menos, em três dimensões intimamente
relacionadas: a reconciliação com Deus, a reconciliação uns com os outros e a reconciliação dos
seres humanos com a criação4.

O Princípio Geral 1 da CVX também inclui esta contemplação: As Três Pessoas Divinas,
contemplando toda a Humanidade, em tantas divisões pecaminosas, decidem dar-se
completamente a todos os homens e mulheres e libertá-los de todas as suas cadeias.
Reconhece também um chamamento, Jesus convida-nos a todos a entregarmo-nos
continuamente a Deus e a instaurar a unidade no seio da nossa família humana... em todas as
nossas circunstâncias particulares. A CVX, no documento que formula o seu carisma, propõe
trabalhar pela unidade contra todas as divisões que afetam a humanidade.

Estas divisões afetam simultaneamente as relações sociais, económicas e políticas, as relações


interpessoais e o meio ambiente, um todo que o Papa Francisco na sua encíclica Laudato Sí
definiu como uma única e complexa crise socioambiental. É toda a pessoa humana, em todas
as suas dimensões, que experimenta a divisão, a desintegração, com Deus, com os outros e
com a criação. Assim, as três dimensões da reconciliação têm que estar sempre juntas. A
reconciliação com Deus não é possível se, ao mesmo tempo, a reconciliação com os outros
seres humanos e com o ambiente natural não for realizada. É necessário trabalhar plenamente
contra essas divisões, por essa reconciliação múltipla que inclui, naturalmente, a luta pela
justiça e pela transformação social que leva à criação de condições para uma vida digna para
todos os povos e para cada um dos seres humanos.

A experiência espiritual da CVX tem como ponto de partida a reconciliação de cada pessoa
consigo mesma, uma experiência de integração que é a resposta ao desejo das pessoas que
sentem uma necessidade mais urgente de unificar a sua vida humana em todas as suas
dimensões com a plenitude da sua fé cristã de acordo com o nosso carisma5. A unificação da
própria vida é um desafio particular na vida laical que se desenvolve em contextos culturais
que favorecem a dispersão e a desintegração das pessoas. A espiritualidade inaciana sempre

4
CG36, D1, 21.
5
PG 4

75
propôs buscar e encontrar Deus no coração do mundo, sem fugir dele, pelo contrário,
aprendendo a encontrar Deus em todas as coisas para em tudo amar e servir.

Trabalhar pela reconciliação, ou união da família humana, é uma necessidade e uma tarefa
para a qual nos sentimos chamados, jesuítas e CVX. Das nossas experiências particulares,
sentimos o chamamento para contribuir para essa missão. A partilha da mesma
espiritualidade e o facto de termos percorrido um longo caminho juntos é encorajador... não
hesitemos em explorar novas formas de colaboração e aprofundar o serviço conjunto à missão
de Cristo no meio deste mundo ferido.

Quero terminar esta minha intervenção com uma sincera palavra de agradecimento como
Superior Geral da Companhia de Jesus. Obrigado à CVX por todo o companheirismo, por tanta
colaboração apostólica e riqueza espiritual partilhada com tantos jesuítas ao longo de todos
estes anos.

Que Nossa Senhora do Caminho, particular devoção de Inácio de Loyola, continue a


acompanhar o nosso caminho e nos ajude a orientarmo-nos para Jesus, seu Filho, a
encontrarmo-nos com Ele, e a fundar n’Ele a nossa Esperança e a dar vida para que outros a
tenham em abundância.

Muito obrigado.

76
DIA A DIA DE UMA ASSEMBLEIA
MUNDIAL

DIA 1 | 22 JULHO

#PedaçosDoDia
“Everyday I am learning new things; everyday I can see that God is leading me somewhere.
God’s time is always the best.” Mercy Njobvu, Zâmbia

#PassoAPasso
Dia 1 – Becoming the Assembly / Recognizing the World Community and its Giftedness
Abertura com as boas vindas do ExCo, da equipa ARUPA e com uma mensagem especial do
Papa Francisco. Seguiu-se a Eucaristia e uma tarde cheia de encontros e partilha
reconhecendo as graças recebidas, a partir de três pistas partilhadas em três rondas: Como
é a minha experiência de pertença à CVX? Como é a minha Comunidade Nacional? Que
trago e quais são as minhas expectativas para esta
Assembleia?
Rui Brás

#UnCertainRegard
Neste dia pleno de consolações e dons, queremos dar graças por uma comunidade repleta
de diversidade que humilde e generosamente se entrega de coração aberto...uma
comunidade mundial que caminha unida em Cristo. Colocamos sobre o altar os muitos
rostos, sorrisos e olhares cúmplices que aqueceram o nosso dia. Rezemos todos para que o
Espírito Santo fortifique ainda mais esta
Comunidade Mundial.
Sara Magalhães

77
#Curiosidades
AM2018:
197 delegados
74 países
UMA Comunidade Mundial

DIA 2 | 23 JULHO

#PedaçosDoDia
“En CVX encontré la forma de mis zapatos. Ahora ya puedo caminar con facilidad.” (Partilha
no plenário da tarde)

Con la CVX "doy testigo de mi humanidad y de la humanidad de Dios”. Alex SJ, Venezuela

#PassoAPasso
Dia 2 – Becoming the Assembly / Recognizing the World Community and its Giftedness

No segundo dia foi-nos dada a possibilidade de fazer presente o tempo de graça em


Comunidade que se viveu desde a Assembleia Mundial do Líbano 2013, percorrendo as
fronteiras da Família, Juventude, Ecologia e Globalização e Pobreza, bem como as ações
levadas a cabo nas Nações Unidas (onde a CVX tem estatuto de ONG). Depois de
contemplarmos esta jornada, foi possível partilhar em pequenos grupos as moções que este
'rever o o caminho' nos suscitou. Um plenário fez súmula do sentir comum da comunidade.
Da parte da tarde foi-nos pedida a adesão a um processo de discernimento comunitário
coordenado pela equipa ESDAC, iniciado com um tempo de oração individual sobre os “pães
e peixes” (Mc 6, 38) que nos foram sendo concedidos através da CVX. Oração posta em
comum em pequenos grupos de partilha cuja síntese foi colocada em pães maiores
apresentados num cesto comum de UMA comunidade apostólica com muito (muitos pães)
para poder partilhar.
A celebração da Eucaristia pela comunidade francófona permitiu integrar todas estas
experiências num coração já aquecido pelas mãos de Cristo que nos ampara. Este longo e
preenchido dia terminou com uma sessão de clarificação do relatório financeiro dos últimos
cinco anos e com a discussão dos detalhes da proposta de orçamento para o próximo
mandato do ExCo.
Sara
Magalhães

78
#UnCertainRegard
Hoje já estava toda a assembleia. Que bom ver o trabalho
feito pelo mundo. A diversidade de modos de presença da CVX
no mundo. Tão diferentes rostos e origens mas o mesmo
espírito e modo de ser. Iniciámos caminho que nos conduzirá
às esperanças do futuro tão desejado. Respira-se colocação e
ânimo a tal ponto que o frio não consegue abater-nos. A cena
do Pentecostes aqui torna-se sensível de tantas que são as
partes do mundo com que conseguimos falar... mais,
conseguimos partilhar vida e fé. É bom sentir a Comunidade.
Pe Zeca Lima SJ

DIA 3 | 24 JULHO

#PedaçosDoDia

"A Christian is someone that has learned to welcome others". Austen Ivereigh

#PassoAPasso
Dia 3: Dia de Imersão: sermos testemunhas do momento Kairós da Igreja
Hoje começamos o dia a escutar o Austen Ivereigh, biógrafo do Papa Francisco, que nos
ajudou a refletir sobre o Kairós que a Igreja atravessa actualmente, impulsionado por este
papado. Uma igreja que se quer evangelizadora pela misericórdia, pela proximidade e pela
fraternidade. Este foi o mote para a experiência seguinte: CVX em Saída. Fomos ao encontro
da Comunidade Paroquial de S. José: famílias, centros sociais, jovens e grupos bíblicos.
Partilhámos o almoço, as casas , as igrejas mas acima de tudo partilhámos a vida: quem
somos , o que cremos, o que lutamos, o que sofremos, o que sonhamos. Terminámos a
tarde com uma Eucaristia de acção de graças pelo bem recebido desta comunidade que nos
acolheu e inspirou. O exame da Assembleia antes do jantar mostrou que os delegados foram
tocados por este encontro: pela generosidade, pela partilha e sobretudo pela fé vivida em
comunidade. No final do dia, ainda houve tempo para a região Europa se encontrar e
partilhar alguns sonhos e desejos para a CVX.
Rui Brás

79

#UnCertainRegard
Dia 3: Gostava de vos falar da Norma. É uma mulher nos seus 50, com um filho de 32 anos.
Trabalha com pessoas de 3ª idade. Cruzou-se com os Jesuítas e com os Exercícios Espirituais
na paróquia Patriarca de S. José, que Jorge Bergoglio fundou nos bairros pobres e
problemáticos aqui à volta do Colégio, quando era reitor. A Norma é uma mulher simples
mas a força das suas palavras é arrebatadora. Quando nos fala dos trabalhos em que ajuda
na Paróquia, as palavras saem-lhe das entranhas – é uma pedra viva. Recordo o seu rosto e
percebo melhor o sonho de Francisco de uma Igreja missionária, em saída, viva, alegre –
uma igreja que mantém o Evangelho vivo porque não foge a responder aos anseios mais
profundos deste mundo.

PS1: Quando nos despedimos, a Norma e eu, agradeci-lhe que ela tivesse partilhado
connosco as ‘carícias de Diós’ que vai recebendo. Ela disse-me que as carícias são assim
como a chuva, inundam-a. Dei por mim a pedir que, numa próxima vez em que a chuva caia
forte sobre a minha vida, eu a saiba ler como ‘carícias de Diós’…
PS2: Hoje foi o dia em que conhecemos o ‘Bergoglio histórico, que existia antes do Francisco
da fé’ (Austen Ivereigh). Dizem-nos que era sisudo, conservador, autoritário; dizem-nos que
era impossível arrancar-lhe um sorriso; dizem-nos que ‘este’ Francisco é um milagre de
Deus. Eis a prova de que o Espírito continua a pairar sobre as águas e a irromper na história
– pessoal e da Igreja – sempre que é mesmo preciso…
Carla Rebelo

80
DIA 4 | 25 JULHO

#PedaçosDoDia
A história sagrada da CVX contada pela Madalena (México, nascida em 1936, membro do
ExCo entre 1967 e 1981): os paralelos entre a nossa história e a de Abraão, chamado por
Deus a mudar de nome para assumir uma nova vocação/missão/identidade.

História sagrada da CVX Take II: e se juntássemos à linha temporal da nossa história ‘oficial’
o nosso próprio olhar sobre o que foi mais fundante e porquê, sobre o que doeu e o que
pudemos crescer com isso? A partir de 30 olhares diferentes (tantos quantos os nosso
grupos de trabalho), percebemos o que significa ‘unidade na diversidade’.

#PassoAPasso
Dia 4: O dom dos nossos 50 anos de história
Depois do assim chamado ‘dia de imersão’, voltámos ao processo de discernimento
comunitário que tem sido liderado pelo ESDAC (Exercices Spirituels pour un Discernement
Apostolique en Commun - www.esdac.net). O processo é familiar: oração individual, seguida
de reunião de partilha em três rondas para responder a uma pergunta concreta - escolher
dois eventos marcantes na história da CVX. Hoje, o pano de fundo para essa reflexão foi-nos
dado pela Madalena Gómez, 82 anos, quase 60 de CVX. Entre outras coisas, recordou-nos
como, numa homilia algures em 1981, o Pe Arrupe estabeleceu um paralelo entre a CVX e o
chamamento de Abraão: ‘tal como Deus fez com Abraão, o Senhor deu a estas comunidades
um novo nome, que subentende, em si mesmo, a Missão a que estas comunidades são
chamadas’.
O fruto destes nossos trabalhos ficou vertido numa longa linha de acontecimentos a que
ninguém - sobretudo gente habituada a ler moções como nós - ficou indiferente. Alegria
imensa pelos frutos da eleição do Papa Francisco, consolação pela centralidade dos
Exercícios como fonte do nosso carisma, alguma dor pelo facto de, nalguns sítios do mundo,
a relação SJ-CVX ser ainda tão imperfeita - tudo isto e muito mais entregue em acção de
graças na Eucaristia do fim da tarde.
Depois do jantar, houve tempo para os 60 jesuítas presentes reunirem com o Padre Geral
Artur Sosa - mas dessa reunião não poderia rezar esta nossa história.

Carla Rebelo

81
#UnCertainRegard
Ao contemplar a fita do tempo da CVX, que hoje foi altar na Eucaristia, senti-me como um
herdeiro afortunado. Dei-me conta que para poder disfrutar desta riqueza, várias pessoas
tiveram de se envolver, de trabalhar, de refletir, de lutar, de sonhar e de rezar para buscar a
vontade de Deus para a CVX. Já é um caminho longo com muitas alegrias e graças mas
também com desafios e dificuldades. Porém, ser herdeiro significa sobretudo continuar a ser
testemunha desta Comunidade para que outros possam também conhecer este dom e
viverem a vida em Deus. Que o Senhor continue a desafiar a Comunidade a ser dom para a
igreja e para o mundo.
Rui Brás

DIA 5 | 26 JULHO | DIA ABERTO

#PedaçosDoDia

Novas comunidades afiliadas na Eucaristia de hoje: Letónia, Ilhas Maurícias, Vietname.


Passamos a ser 72 países. A CVX no Mundo, o Mundo na CVX.


Alguns excertos da conversa com o Padre Geral Arturo Sosa:
1. O Papa pediu à Companhia de Jesus que ajude a Igreja a perceber melhor o que é o
discernimento - mas esse pedido estende-se a todos os movimentos de espiritualidade
inaciana.
2. (A propósito da colaboração SJ-CVX) Devemos preocupar-nos mais com a qualidade
humana e espiritual do que com os números. O anúncio do Evangelho começou com
doze pessoas. Quando os colaboradores são bons, a qualidade da colaboração será boa.
3. Diante do desafio da Secularização, a primeira coisa a fazer, em vez de nos

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lamentarmos, é perceber como é que o Espírito nos fala através da Secularização. A
Secularização está a criar condições para voltar a fazer primeiro anúncio - com muita
alegria.
4. (Diante do desafio dos refugiados e migrante) É preciso trabalhar a aceitação do diverso
- porque o diverso não nos tira nada, antes nos enriquece.

#PassoAPasso

83
#UnCertainRegard
O dia de hoje foi repleto de momentos fortes...a
presença do Geral da Companhia de Jesus, P. Arturo
Sosa SJ, e o abrir de portas à Comunidade alargada...
A chuva que caiu trouxe efetivamente uma proximidade
que, mais do que palavras, nos fez dar e receber afetos.
Ao examinar o coração, tal taça que transborda, apenas
ressoam sentimentos de agradecimento e prontidão;
agradecimento por tanto bem recebido e prontidão
para continuarmos jornada guardando no coração, ao
estilo de Maria, as múltiplas graças que
vamos recebendo da simplicidade de quem partilha, em
comunidade, a vida.
Sara Magalhães

DIA 6 | 27 JULHO

#PedaçosDoDia
On cherche le visage du Seigneur au fond de vos coeurs. (Cântico)

#PassoAPasso
Dia 6: Dias de discernimento.
Continuamos a pedir a Deus que nos acompanhe neste momento de reunião da
Comunidade.
De manhã fomos convidados a rezar com os sentidos de forma a tirar proveito daquilo que
recebemos até agora. Foi proposto que o modo de proceder seja efetivamente o discernir
e evitar a tentação de ter respostas prontas como se houvesse uma agenda pré definida. É o
Senhor que nos guia e anima e por isso o tempo é de escuta ativa dos sentimentos e das
moções experimentadas na partilha fraterna. A Tenda transformou-se: as filas de cadeiras
deram lugar a 3 círculos concêntricos em torno de Deus e do Mundo...
De tarde contemplámos o(s) rosto (s) de Deus que cada um elegeu e partilhou em
comunidade: o nome da Graça . Um exercício de busca da identidade do Senhor que
simultaneamente nos faz descobrir a nossa própria identidade.
Pedimos as vossas orações nestes dias especiais de discernimento! Bem hajam.
Rui Brás

84
#UnCertainRegard
Dia 6: Discernement Days
Hoje começou a transformação do grupo. É
uma experiência gratificante ver como de
um grupo de pessoas tão diferentes pode
surgir um corpo. Este exercício de
discernimento fundado na escuta comum
realmente funciona. É realmente uma
experiencia espiritual onde quase podemos
"palpar" a presença de Deus. A grandeza
do Pentecostes aqui é palpável. Com tantas
dificuldades em falar num idioma
estrangeiro a nossa oração (a maioria de
nós não costuma ter conversas espirituais
em inglês, francês ou espanhol) contudo ...
os grupos de partilha realmente funcionam
e chega-se a um grau de intimidade só possível entre amigos. Amigos no Senhor. Jesuítas e
leigos partilhamos juntos e, juntos, construímos corpo. CVX e jesuítas caminhamos em
conjunto. É realmente um caminho de graça o que aqui, juntos, estamos a construir.
Pe Zeca Lima SJ

DIA 7 | 28 JULHO

#PedaçosDoDia
"Jesús borra el pecado y busca el pecador" José de Pablo, sj; ESDAC

"Hay que salir de tu zona de conforto; pero hay dificultades en colocarlo todo en comum..."
Lucia, Argentina

#PassoAPasso
Dia 7: Discernment Day (Naming the Grace)
Dia de Silêncio. Dia de escutar a Voz que nos aquece os corações.
E foram as propostas de orações e discernimento que guiaram os nossos passos.
Seguimos dois momentos de trabalho segundo a metodologia que temos vindo a
experimentar. Dois tempos bem distintos para fazer oração pessoal, partilhar em pequeno
grupo e levar os frutos à comunidade.
De manhã a proposta pedia-nos para aprofundarmos o nome da comunidade. O que
queremos dizer, o que exprimimos, com COMUNIDADE DE VIDA CRISTÃ? Como
reconhecemos e nos fazemos reconhecer? Um exercício que originou pequenas sínteses que
colocamos junto da luz do Senhor.

85
E depois de agradecermos os presentes, os dons que recebemos... a tarde.
Fomos chamados à reconciliação, connosco e com os outros. Olhámos com o olhar amoroso
do Senhor, e com a sua ajuda, as imperfeições da comunidade. Demos corpo a estas
desolações com esculturas humanas sendo depois convidados a rasgar as imperfeições e
olhá-las como desafios com soluções concretas. E tudo isso entregámos... e de tudo
recebemos LUZ... e pão para partilhar.
Esta(s) luz(es) foram, por fim, nosso farol, em procissão de velas, até à Eucaristia de
Reconciliação; e até ao Sacramento para quem quis hoje reconciliar-se.
Sara Magalhães

#UnCertainRegard
Dia 7: Discernment Days (Naming the Grace)
Hoje passei o dia a lembrar-me daquela explicação geométrica sobre os Exercícios
Espirituais, em que a linha do gráfico começa alta no pico do Princípio & Fundamento
apenas para se afundar logo de seguida no fosso da Primeira Semana. Hoje, foi assim: no
meio de um silêncio verdadeiramente palpável, partimos em busca do nosso ‘Nome de
graça’ e acabámos despenhados no Museu da Desolação dos nossos pecados
comunitários, tornados estátuas qual mulher de Lot (Gen, 19: 26). Que seria de mim para
sempre petrificada sem a Tua mão para me salvar, Senhor? Que forma mais crua de
perceber que, sozinhos, não somos nada, somos sal sem sabor, somos velas gastas, somos
pedras frias. Só Tu tens palavras de vida eterna. Só Tu nos salvas. Só Tu és a nossa Paz. Que
o meu coração não esqueça nunca que morreste numa cruz para me salvar.
Carla Rebelo

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DIA 8 | 29 JULHO

#PedaçosDoDia
"It is our light, not our darkness that most frightens us" Marianne Williamson

"Habla Señor,
Habla Señor que tu siervo escucha"
(Cântico de louvor)

Mensagem da CVX Síria, impedida de participar na Assembleia por questões de concessão
de visto













“Al primero tenemos de salir de nosotros para poder salir en comunidad” Mirna, Paraguay

#PassoAPasso
Dia 8: Discernment Days (Paths Foward for CLC)
No dia de hoje fomos chamados a refletir o percurso de discernimento comunitário.
Começamos o dia inspirados por parte do discurso de Nelson Mandela (citando Marianne
Williamson), pelas nossas primeiras intuições para o nome da graça CVX mas também as
coisas que nos paralisam em CVX... e daí partimos para aprofundar o nosso nome comum de
graça como CVX. Fomos desafiados a fazer síntese e a apresentar estas graças para construir
uma espiral que saía em dinâmica de crescimento da luz de Cristo.
Da parte da tarde, confrontados com o dominó das nossas propostas fomos levados a um
passeio entre as nossas comunalidade, para daí sair em reflexão orante sobre os frutos,
graças e dons, que vimos recebendo nestes dias de reflexão comunitária, qual paralítico
curado por Pedro que bendiz ao Senhor pelas graças recebidas (At 3, 1-10).
Ao final do dia, guiados pela luz e conscientes de tantas graças entregámos os nossos frutos
a Maria para que continue a velar por esta sua Comunidade (PG9).
Sara Magalhães

87

#UnCertainRegard
Dia 8: Dias de discernimento (caminhos para CVX)
Os dias de discernimento comunitário chegaram ao fim, pelo menos nesta assembleia.
Pessoalmente foi uma experiência muito rica: a oração pessoal, a partilha e escuta no
pequeno grupo, as 3 rondas, o ressoar da assembleia, o silêncio de ontem, as preces e o
apoio de quem ficou longe...
O Espírito Santo manifestou-se e guiou a Comunidade na busca do nome da Graça. Senti
que fomos confirmados na nossa identidade como CVX : uma comunidade laical inaciana de
vida cristã.
Reconheci especialmente o dom da Unidade e Gratidão pelos frutos destes dias.
Peço a Deus que esta confirmação ajude a CVX a realizar melhor o seu carisma (vocação e
missão) no dia a dia.
Rui Brás




DIA 9 | 30 JULHO

#PedaçosDoDia

“This reminds me of the direction Jesus points out... we must go out.” EA India

88
#PassoAPasso
Dia 9: Caminhos para CVX (Dias de Governança)
Aqui estamos nós a terminar o nono dia. Hoje mudámos o “escritório” para “hall do 1º
andar” que mais parece um centro de imprensa: uns agarrados ao computador, outros ao
telemóvel, vários delegados... todos à procura do melhor sinal. Também há boa disposição,
chocolates e vinho para partilhar.
Foi um dia de assembleia... pura assembleia. Propostas de alterações às normas, aos
princípios gerais, vários esclarecimentos, palmas, silêncios, votações, green cards e
contagem de votos.
Houve tempo ainda para aprovarmos as contas por unanimidade (UAU... conseguem
acreditar?) e também para indicarmos para o novo ExCo (que será eleito amanhã) alguns
princípios a ter em conta no orçamento dos próximos anos. Aí a diversidade foi maior,
prevendo-se um aumento das quotas de cada Equipa Nacional (sobretudo das numerosas
como a CVXP) considerando a co-responsabilidade financeira.
Bem... mas o dia ficou marcado pela apresentação do draft do Documento Final da
Assembleia. A writing team fez um trabalho tão bom que mereceu os maiores elogios de
grande parte dos delegados. Naturalmente que há sempre alterações e sugestões, e
também os comentários habitués. Mas como irão ver o documento reflete bem o que
experienciámos nestes dias e conseguiu apontar caminhos para a nossa comunidade
mundial. Havia a expectativa do que poderia “sair” desta assembleia, e este documento
parece satisfazer essa expectativa.
Até amanhã.
Ps. E para os curiosos o vinho era um San Felipe (Mendonza, Argentina).
Rui Brás


















89
#UnCertainRegard
Dia 9: Paths Foward for CLC (Governance Days)
Depois dos dias de discernimento começámos a parte dura. Discussão de orçamento
modificações as PG. É bom sentir que o ritmo de oração a modo de EE se manteve.
Conversação espiritual em orçamento? É bom sentir que o ES passa realmente por aqui.
Mesmo a recolha do sentir de modo a elaborar o documento final foi vivido com
confiança. Queira Deus ajudar a que aqui começou.

Pe. Zeca Lima, SJ.



DIA 10 | 31 JULHO

#PedaçosDoDia
O novo ExCo acabou de ser eleito: Dennis, Ann Marie, Catherine, Fernando, Daphne, Diego,
Najat. Damos graças pela sua eleição e rezamos para que o Senhor os ajude na missão a que
a Comunidade os chamou.








“CLC- CVX is my way to humility” Dennis Doblestein, New ExCo President

#PassoAPasso
Dia 10: Paths Foward for CLC (Governance Days)
Este dia de Santo Inácio foi também profundamente
importante para a nossa Comunidade.
Começamos o dia com a eleição do novo ExCo e, portanto,
com muitas expectativas e alegrias. A tarde foi momento
para fotografias e aclamação do texto final da assembleia.
A eucarística foi momento alto com o envio da nova equipa
e com votos de mais 50 anos de CVX em todo mundo. Hoje
foi dia de perceber que havia apenas cinco pães e dois

90
peixes mas que recolhemos muitas cestas... repletas de frutos, dons.. prontas a serem
partilhadas.
Sara Magalhães

#UnCertainRegard
Dia 10: Paths Foward for CLC (Governance Days)
Como se prepara um último dia de uma grande festa?! Dispondo o coração com um olhar
agradecido e amoroso, desejoso de gravar todos os momentos, os rostos, o que nos
transforma por dentro.
Por entre uma eleição, o texto final e as últimas fotografias a sensação era de estar a
compor um álbum de família daqueles que se mostram muitos anos depois e que continuam
a ter entranhados os mesmos olhares, cheiros e abraços sinceros.
Agora que a noite caiu resta-nos inscrever no coração as últimas palavras: aprofundar,
partilhar e sair. E sublinhar como nos filmes to be continued... afinal este é o nosso modo de
vida, todos os dias.
Sara Magalhães

2 AGOSTO

Delegação CVXP a recuperar forças depois da viagem Buenos Aires - Madrid. Com a AM2018
definitivamente encerrada, os corações vêm desejosos de partilhar com toda a comunidade
CVXP tanto bem recebido, tantas pérolas preciosas de luz para iluminar o nosso caminho
enquanto comunidade. Obrigada pelas orações de todos, que foram especialmente sentidas
durante o processo de discernimento comunitário que trilhamos. Obrigada também pelo
generoso apoio financeiro que permitiu à CVXP ser representada por 4 delegados.
Bem-hajam & AMDG
Carla Rebelo

91

92
TESTEMUNHOS DA ASSEMBLEIA

Tanto bem recebido da Assembleia


Rui Brás
Delegado CVX Portugal à AM2018

Gostaria de começar a minha partilha como delegado CVX.P à XVII Assembleia Mundial CVX-
CLC, que se realizou em Buenos Aires de 21 a 31 Julho, com um sentimento de profundo
agradecimento. Agradecimento à Comunidade Nacional que confiou e me enviou a estar
presente, aos amigos companheiros da Assembleia que me ajudaram a viver esta experiência
pela sua generosidade e partilha, e sobretudo dar graças ao Senhor pela Sua presença que tem
animado, guiado e fortalecido a Comunidade de Vida Cristã.
É verdade que a leitura dos diversos documentos relativos às anteriores assembleias,
bem como dos documentos constitutivos da CVX, permite concluir que a Comunidade de Vida
Cristã é um caminho que se vai construindo na busca de um Magis inaciano. Mas a
participação nesta Assembleia em concreto, que coincidiu com o jubileu dos 50 anos da CVX-
CLC e na qual houve oportunidade de atualizar a nossa história de Graça, percorrida através
das palavras sábias da Magdalena Palencia (México) (desde a transição das Congregações
Marianas até à assembleia do Libano’2013), e pela contemplação da nossa fita do tempo,
permitiu-me aprofundar e vivenciar que realmente a CVX é um dom de Deus e Deus tem
cuidado da CVX. É uma grande graça poder sentir e reconhecer a CVX como um dom, como
uma oferta gratuita de Deus que nos desafia, que nos interpela, que nos move a aceitar este
dom e a cuidar dele. O tema da Assembleia era precisamente esse “CVX, um dom para a Igreja
e para o mundo”.
E por isso senti que aqueles dias em Buenos Aires ajudaram-me muito (e penso que a
todos os presentes) a tomar consciência e a renovar a identidade profunda da CVX nos
tempos atuais: que dom é este? que nome de Graça o Senhor dá à CVX ?
Com ajuda da dinâmica de discernimento comunitário a que fomos todos convidados a
participar, as orações partilhadas mostraram que, apesar das diferentes realidades e
percepções entre as 71 comunidades nacionais presentes, houve uma grande unidade em
torno desta identidade profunda da CVX, que eu resumiria nos seguintes traços: comunidade,

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cristãos, leigos, inacianos e contemplativos na acção. Assinalo isto como um dos dons
maiores da Assembleia: quando nos deixamos guiar pelo Senhor, quando deixamos que seja
Ele a conduzir as nossas comunidades, é possível fazermos caminho assente sobretudo naquilo
que nos une e aproxima, com respeito e integração das diferenças. O processo de
discernimento e o clima de oração vivido na Assembleia foi decisivo para que se passasse de
um ambiente formal de assembleia para uma verdadeira Comunidade una, fraterna e amiga
no Senhor. Até as mesas da tenda, onde nos reuníamos, foram a dada altura retiradas!
Este aprofundamento e confirmação da nossa identidade, com reconhecimento das
nossas infidelidades, desordens e paralesias (que são de forma geral muito coincidentes em
todas as comunidades) conduziu a oração e o desejo da Comunidade para viver com maior
profundidade e integração o nosso carisma no mundo de hoje. Fruto desse tempo de oração e
partilha fui particularmente sensível à urgência de cuidarmos dos membros das nossas
comunidades (CVX ou não), na atenção e na proximidade ao longo do processo de
crescimento pessoal e comunitário. O nosso modo de proceder inaciano pode ser uma grande
ajuda nesse encontro com os outros: como acolher, cuidar, consolar e promover o outro ?
Faço por isso referência à experiência que os delegados da Assembleia foram
convidados a fazer na comunidade paroquial São José no Barrio San Miguel, construída pelo
então P. Jorge Bergoglio. O Barrio, próximo do local onde decorria a Assembleia, é um bairro
pobre da grande Buenos Aires com vários problemas ao nível de infraestuturas básicas, de
segurança e de exclusão social. Mas apesar das dificuldades reais do dia a dia de quem lá vive,
ao sermos recebidos nas suas próprias casas, ficou claro que a experiência do encontro, do
acolhimento e da partilha é capaz de fazer crescer a vida onde parece impossível ela continuar.
E não foi um cenário combinado! Aquela comunidade vive dessa maneira, vive assim
habitualmente, partilhando, recebendo, confiando e caminhando juntos. Foi por isso que a
experiencia me tocou pois fez-me refletir como vivo e construo as comunidades a que
pertenço: qual a abertura ao outro? O que partilhamos ? Como acompanhamos e nos fazemos
próximos?

A Assembleia chegou ao fim, pelo menos a 1ª parte. O que foi partilhado, rezado e
celebrado, e que está refletido no documento final, deve agora ser rezado e vivido pelas
nossas comunidades a nível nacional, regional e local. Só assim é que o novo ExCo eleito pode
dar cumprimento às orientações da Assembleia. E por isso todos nós (todos os membros CVX)
estamos implicados nestes próximos 5 anos no discernimento e na construção deste caminho
em Igreja.

Que o Senhor Deus nos ilumine a todos para que possamos em Comunidade CVX
sentirmo-nos chamados e animados: “a aprofundar a nossa identidade (...), a partilhar
humildemente o dom da espiritualidade inaciana (...) e a sair para servir os mais necessitados
(...), a fim de seguir a Jesus mais de perto e trabalhar com ele na construção do reino” (in
Documento Final AM2018).

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A CVX como um mate nas mãos de Deus...


Sara Magalhães
Delegada CVX Portugal à AM2018

Para a XVII Assembleia Mundial CVX-CLC em Buenos Aires fomos até ao outro lado do mundo
para poder continuar a fazer caminho... para dentro da Comunidade e para fora de nós.

E foi assim que me senti durante esta experiência – como peregrina confiante da boa jornada e
do bom destino. Destino esse, sei eu bem, que não se esgota nem naquele lugar nem naqueles
dias...

Foram dias de caminho, acompanhada e acarinhada, entre amigos que não conhecia e que se
tornam rapidamente família numa vivência de unidade e unificação que só uma comunidade
madura pode expressar.

Partilhamos UMA só ESPIRITUALIDADE, somos UMA só COMUNIDADE, somos UM só CORPO


APOSTÓLICO EM MISSÃO. Muito além de diferenças, da diversidade, de culturas ou de modos
de ser e estar... ficam para sempre os rostos de paz, os sorrisos rasgados e os abraços que
aquecem o coração.

E foi nesse frio, que se fez particularmente sentir nestes dias, que pudemos viver a experiência
de ser Comunidade de Vida Cristã amparada nas mãos de Deus como um mate quente.

95
Um mate afetuoso... abraçado por Deus.

Deus – com o seu olhar trinitário – que quer ser ouvido intima e internamente, com o coração,
para Se poder oferecer... para nos poder oferecer, em dom, a todas as pessoas de boa
vontade... ao mundo e à Igreja...... Deus que nos quer alimentar e aquecer por dentro,
fortalecer para a viagem a que nos envia, de novo e repetidamente, rumo às fronteiras de nós
mesmos e da sociedade, para que assim O possamos partilhar com os que estão mais
afastados.

Mas também um Deus que nos dá, no saborear de um mate, tempo para fazer silêncio, para
ouvir a Sua mensagem... somos um mate quente para quem está mais longe e sente frio...
somos um mate – com 50 anos de história e estórias – que se reconhece, agradecidamente,
como privilegiado por estar entre as mãos de Deus e que com Ele renova, a cada dia, este
compromisso de chegar a outros levando o Seu calor.

E foi essa a grande mensagem que recebi(emos) na Assembleia... que somos imperfeitos
trabalhadores da messe mas repletos de dons de Deus, os quais devemos zelar e aprofundar,
mas sobretudo partilhar e levar, confiadamente, aos outros em mote de saída pelos caminhos
a que o Senhor nos chama.

E tal como no início, continuo peregrina desta jornada da VIDA em COMUNIDADE INACIANA
LAICAL. Grata por tanto bem recebido... por esta demanda a que Comunidade me chamou e
enviou... grata por sentir a Comunidade sempre atenta e “por perto” – sobretudo com a sua
oração no dia de silêncio – ... grata e orgulhosa de ser delegada pela CVX Portugal.


Obrigada minha Comunidade...
... continuamos nesta jornada AMGD.

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Buenos Aires 2018 – A Assembleia do Nós
Carla Rebelo
Presidente CVX Portugal

Passou pouco mais de um mês sobre a Assembleia Mundial e a minha ‘memória dos olhos’
continua a guardar muitas imagens, muitos momentos, rostos, sorrisos, tantas expressões
faciais daquelas que fazem de nós seres únicos – únicos como serão para mim, e para sempre,
a Marielle, o Nhana, o Bosco, o Chris, o Robert – porque foram os meus companheiros
exclusivos durante os cinco dias que durou o pioneiro processo de discernimento comunitário
lançado pelo ExCo. Únicos aos olhos de Deus, únicos aos meus olhos porque com eles partilhei
momentos únicos. Únicos por cada um deles por si mas únicos também no conjunto que, uns
com os outros, formámos nesta Assembleia. A ironia é que não estávamos sós e tenho a
certeza que os outros 29 grupos dirão o mesmo. Porque não fomos só seis, fomos cerca de 200
pessoas repartidas por 30 grupos a atravessar unidas muitos momentos únicos.

Guardo com especial comoção o primeiro tempo de oração do processo: fomos convidados a
meia hora de oração em silêncio dentro da tenda – 200 pessoas dos sítios mais variados do
mundo partilhando um silêncio profundo, porque profundamente habitado por Deus. Por um
instante cósmico, senti-me parte deste todo silencioso desde sempre. Percebi que só quando
me cruzei com o silêncio dos Exercícios Espirituais consegui verdadeiramente dar nome a algo
que sempre me habitou: Deus. Senti Deus ali, pleno e inteiro, no meio de nós. Emocionei-me
até às entranhas.

E senti quase o mesmo quando, diante de uma enorme tela com os momentos mais
importantes da história da CVX, 30 grupos diferentes conseguiram encontrar narrativas e
sentidos diferentes mas sempre convergentes - foi muito enriquecedor e consolador ao
mesmo tempo. Nem sempre é fácil entender o que significa a unidade na diversidade;
percebemos ali como o modo de estar da CVX propicia essa riqueza e assim nos rasga
horizontes.


Foi por momentos como este que a minha ‘memória do coração’ desta Assembleia me faz
baptizar Buenos Aires como a ‘Assembleia do NÓS’: nós (e nós éramos tantos ‘nós’) fizemos
caminho, nós fomos vencendo obstáculos, nós fomos conquistando territórios novos à medida
que íamos encontrando respostas para os desafios propostos, nós conseguimos chegar tão
longe – sempre em conjunto, sempre a partir dos poucos pães e peixes que cada um trazia.

CVX: Uma cidade sobre o monte…

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A verdade é que este nós, que é o elemento mais visível da nossa existência enquanto CVX
pela nossa vivência no pequeno grupo e em comunidade alargada, é um enorme dom e uma
enorme graça. Contudo, como nos lembrava o Austen Ivereigh a propósito do Papa Francisco,
o nós que para nós é tão óbvio é cada vez mais um bem em extinção num mundo marcado
pela dispersão. Sinto que talvez não tenhamos ponderado ainda suficientemente o valor do
nosso Pilar Comunidade enquanto testemunho contra-cultural num mundo cada vez mais em
fluxo, cada vez mais individualista. Porque não apenas damos testemunho quando escolhemos
viver em comunidade como, ironicamente, podemos oferecer ao mundo aquilo pelo qual o
mundo anseia: acolhimento, encontro, porto de abrigo. Cada vez que reunimos em
comunidade, cada vez que não temos medo de dizer a outros que pertencemos à Comunidade
de Vida Cristã, estamos a ser como faróis no meio da escuridão, estamos a ser ‘cidades sobre o
monte’.


CVX: um baú cheio de pérolas
Como a tela ficou na tenda mais uns dias, não resisti a voltar lá nos intervalos. Contemplá-la foi
como abrir um baú e ir descobrindo pérolas atrás de pérolas. Foi-me muito consolador
imaginar o trabalho das mãos que teceram os Princípios Gerais, o Carisma CVX, o Processo de
Crescimento, tanta coisa que foi marcando a nossa identidade, e perceber nisso o sopro
invisível do Espírito. Senti-nos verdadeiramente como Povo de Deus que caminha, peregrino,
até à Terra Prometida. Senti-nos como gente que caminha com confiança porque se sabe
entregue e conduzida pelas mãos do Espírito – gente fiel ao nosso ‘Pai na Fé’ que é Inácio de
Loyola, quando se chama a si próprio o Peregrino.

E quando pensamos que já sabemos muita coisa e as pérolas continuam a saltar do baú? Eu
sabia que que a refundação desta ‘nova’ CVX herdeira das Congregações Marianas tinha em
1953 um momento muito importante. Também sabia que o prelúdio desse processo tinha
começado, pelos anos 20 do século passado, com a crescente reaproximação à Companhia de
Jesus. Daí à consciência de que era mesmo preciso mudar alguma coisa e de que o segredo
para isso estava no regresso à raiz entroncada e frondosa que são os Exercícios Espirituais foi
um passo – estava lançado o repto de regressar aos primórdios, à Prima Primaria dos idos de
Quinhentos. O que eu não sabia e descobri foi o quanto esse ‘regresso’ não deixou de ser
precursor do desafio do ‘regresso às fontes’ lançado pelo Concílio Vaticano II, dez anos depois.
Há aqui algo de profético no caminho da CVX. E, por isso, não consegui (nem eu nem ninguém
na Assembleia) deixar de notar a enorme coincidência entre as fronteiras identificadas na
Assembleia do Líbano, realizada escassos seis meses depois da eleição do Papa Francisco em
Março de 2013, e os grandes desafios que este Pontificado tem vindo a sinalizar: a ‘Família’ en
pendant com a Exortação Apostólica Amoris Laetitia; a ‘Globalização e a Pobreza’, alinhada
com a pungente visita a Lampedusa logo no início do Pontificado; a ‘Ecologia’ alinhada com a
Encíclica Laudato Si e a ‘Juventude’ - com o Sínodo previsto para Outubro deste ano. Houve
novamente algo de profético na nossa Assembleia do Líbano…

Por isso, nesta contemplação da história sagrada da CVX, dei por mim a sentir que cada
Assembleia parece ter sempre um fruto concreto e ‘pioneiro’, quase revolucionário – uma
espécie de aparição fugaz mas indelével do Espírito; mas, depois, somos nós como
comunidade que precisamos de tempo para aterrar, para reconhecer nesse fruto os seus

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contornos e as suas ramificações, a sua aplicação à realidade concreta. Mais do que um sítio
operativo para tomar decisões muito concretas – a enorme dispersão das nossas actividades
apostólicas por esse mundo fora isso impede -, cada Assembleia CVX é muito mais um espaço
onde reconstruimos identidade – e onde recebemos luzes, que por vezes nos encandeiam de
tão fortes, sobre que caminhos aprofundar para que o nosso carisma se torne realmente
fecundo para a construção do Reino.


CVX: chamada a ser comunidade profética?
Por isso, com o coração consolado pelo que vivi em Buenos Aires, não deixo de regressar a
Fátima 2008 – dez anos passados, sinto que só agora se começa a fazer claridade sobre a força
desse lema ‘Chamados a ser uma comunidade profética’; e, dez anos passados, parece-me que
Buenos Aires 2018 pode vir a provar ser um contributo incontornável na compreensão do
repto que Fátima nos deixou.

De facto, face a Assembleias passadas, o aspecto mais distintivo de Buenos Aires consistiu no
desafio lançado aos delegados pelo ExCo de aprofundarem a graça da Assembleia (‘maior
profundidade e integração na forma como vivemos o nosso carisma CVX’) através de um
processo de discernimento comunitário em chave de Exercícios Espirituais, que durou 5 dias,
incluindo um de silêncio integral.

Ao olhar para trás, reconheço que um olhar mais mordaz porque menos envolvido poderá
argumentar que se tratou apenas de uma espécie de experiência laboratorial em larga escala,
pouco replicável no mundo cá fora. A verdade, contudo, é que os frutos foram tão
profusamente sentidos por todos aqueles que se arriscaram a entrar no processo que seria um
desperdício ignorá-los, a saber: que a dinâmica da conversação espiritual, vivida em rondas
iterativas em ambiente orante, pode ser motor de uma tal convergência de corações que nos
torna muito mais capazes de contemplar a realidade em conjunto e assim encontrar (e decidir)
soluções para passar à acção concreta; e que esses frutos são sólidos o suficiente para
confirmar o discernimento comunitário como o modo natural de respirar de uma comunidade
apostólica inaciana laical como é a CVX.

Sim, Santo Inácio avisa-nos de que qualquer eleição requer sinais de confirmação – o que, às
vezes, pode obrigar a um certo agitar das águas antes da decisão final. Estranhamente, apesar
de um longo histórico de ‘explosões’ aqui e ali nos plenários das Assembleias, desta vez, o tom
foi de uma serena consolação em crescendo. Plenário a plenário, a explosão que alguns de nós
tanto esperávamos nunca se chegava a materializar; pelo contrário, íamos sendo lenta mas
inexoravelmente vencidos pela paz – por aquela Paz sem vencedor e sem vencidos. Rendi-me.
Talvez que a atmosfera de silêncio dos Exercícios primeiro se estranhe e depois se entranhe
mesmo quando o processo é vivido em termos grupais? Talvez que o sentido de comunhão
que cada um de nós experimenta quando faz EEs possa mesmo ser replicado numa dinâmica
de grupo? Talvez seja esta a pérola que nos falta tirar deste baú?…

Porque a verdade é que a minha ‘memória do coração’ apenas se consegue recordar de uma
única explosão: a alegria que o meu grupo sentiu pela rapidez com que, a partir das nossas
primeiras formulações individuais, conseguimos chegar a uma resposta consensual para a
pergunta: ‘Como comunidade CVX, somos hoje chamados a…?’. Com três rondas de partilha

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em menos de uma hora, saiu-nos isto: ‘Desvendar Deus na diversidade do mundo para
crescermos em unidade’. ´É mesmo isto a CVX’, achámos nós. E que bom ter regressado à
tenda só para descobrir que, afinal, havia outras 29 respostas e todos os outros grupos – todos
os outros nós - tinham experimentado a mesma alegria ao encontrá-las. E sabem que mais? No
final, todas as formulações faziam sentido e todos nos identificámos com todas. Se isto não é
sinal do Espírito a trabalhar a unidade na diversidade em prol do Reino, o que será?

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Caí de paraquedas na Assembleia Mundial:
Graças a Deus
P. José Eduardo Lima sj.
Assistente Nacional

Como foi e como vivi estes 10 dias de assembleia? Antes de mais foi o grande embate de me
encontrar com esta nova missão de ser assistente nacional da CVX. Mal tinha tido tempo de
me adaptar a esta missão e já estava a caminho de São Miguel para um encontro da
Comunidade Mundial. A expectativa era alguma. Vínhamos de muitos países, diversidade de
línguas, modos de ser e de estar. O que se passaria? Vamos em busca de quê?


Chegar e começo
O frio do tempo, a maravilha para mim, contrastava com o ânimo de todos. Com a descoberta
que nos olham com alguma “saudável inveja”: afinal o que é que se passa em Portugal que
justifique o crescimento e crescimento jovem? Foi aí que me dei conta que algo de importante
se está a construir na CVX-P. De facto, sair do nosso mundo ajuda a compreender o que
vivemos. Por outro lado, o encontro com tanta diversidade de pessoas, culturas e línguas ajuda
a ter noção real de que somos Comunidade Mundial.

Quando nos apresentam o programa do encontro, reconheço que foi inicialmente desilusão.
‘Deixem-se guiar’. Afinal fazer uma tão longa viagem, com custos tão elevados, para chegar lá
e não saber de que constam os dias, qual o plano de trabalho… afinal isto está ou não
preparado? Confesso que me incomodou ficar sem chão. Mas enfim, já que estamos deixemo-
nos guiar. Esta primeira atitude fez-me ver o quão bem e eficiente foi o nosso trabalho de
preparação da AM-Fátima.

Passada esta primeira impressão, que durou algum tempo, fui percebendo o que nos era
proposto: colocar toda a Assembleia em clima de discernimento comunitário. Aqui surgiu
outra complicação: Discernir o quê? Quais são as alternativas que estão em jogo?

Mais uma barreira que se teve que quebrar e ir ao fundo do que é discernir. Não é tanto
decidir entre alternativas (o uso mais comum e próprio de discernir) mas ir ao fundo do que
nós somos. Discernir quem somos, o que somos, o que percebemos que é o sonho de Deus
para a CVX. Tarefa impossível em tão pouco tempo e com uma assembleia tão diferente. 2/3
leigos (CVX) e 1/3 de assistentes (quase todos Jesuítas e, como tal não CVX). Foi uma
experiência profundamente enriquecedora entrar neste processo. Entrámos todos em modo
Exercícios de discernimento: oração, partilha de pequenos grupos, e plenário. E curiosamente a
acção de Deus acontece. Começámos todos o caminho, alguns com mais desconfianças que
outros, mas aos poucos fomos aprendendo a confiar. A buscar o que nos é pedido. A deixar o
que cada um acha ser o melhor para atingir o grau de indiferença que nos ajuda a ver o que
nas tão diferentes partilhas é ponto comum. Até que o processo acompanhado pelos três
elementos do ESDAC (Exercices Spirituels pour un Discernement Apostolique en Commun) é

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dado como terminado e é passado aos redatores do documento que saiu desta assembleia e
que reafirma o já avançado em Fátima e sobretudo no Líbano.


Assembleias paralelas
Paralelamente foram acontecendo as sessões alternativas. Almoços e jantares de trabalho
onde várias das delegações presentes pretendiam saber como é que trabalhamos, qual é o
nosso plano de formação, de que modo conseguimos a adesão dos mais jovens. Foi bom
descobrir aqui que o trabalho de colaboração entre CVX e Companhia de Jesus, para nós tão
natural, mesmo com tantas críticas que nos dirigimos uns aos outros, está num muito
diferente nível de boa parte dos países lá representados.

O Encontro que tivemos a nível europeu, que de algum modo pretendia buscar temas da
agenda para a reunião e eleição do Eurolink no próximo ano, também nos entusiasmou. Os
dois últimos dias dedicados às votações das propostas apresentadas e da nova equipa do ExCo
também foram emocionantes.


Interrogações
Claro está que todo este ambiente estava bastante envolvido com o facto do colégio onde
residíamos ter sido a casa onde o P. Bergoglio começou a sua acção pastoral. Neste momento
na Argentina sente-se o palpitar da alegria de terem um Papa que de lá saiu, e aproveitam ao
máximo esta alegria. A experiência mais difícil de enquadrar nesta Assembleia deveu-se em
parte pelo aproveitamento deste clima que, em falta de melhor, chamo francisco-bergogliano,
explico. A meio do tempo de discernimento comunitário fomos convidados a conhecer a
paróquia fundado pelo P. Jorge Bergoglio sj: aquilo a que chamaram experiência de imersão.
Esta visita incluía conhecer algumas das comunidades que constituíam a paróquia. Em termos
práticos para além de visitarmos a igreja paroquial e seus animadores, a maioria de nós foi
distribuída por pequenos grupos para conhecer e partilhar vida com várias famílias da
paróquia. A primeira parte do plano era interessante pois, desta forma, pudemos conhecer
algo mais de quem é o Papa. Saber que a igreja paroquial começou num galinheiro permite
perceber melhor que a metáfora do pastor que cheira a ovelhas não é só continuação da
parábola evangélica. Este nosso Pastor começou por cheirar a galinheiro, e lá percebe-se não
só que é uma imagem mas que é uma imagem de vida vivida.

Já a segunda parte foi a que me confundiu mais e que, ainda agora, creio ter sido
desnecessária no processo de discernimento, ainda que tenha sido muito bom ter conhecido e
partilhado a vida daquelas duas pessoas que me acolheram: autênticas lições de vida e fé. O
desnecessário é que a dimensão afectiva e emotiva que estas conversas tiveram poderiam ter
afectado o processo pois emoção e moção podem por vezes confundir-se. Felizmente não foi o
caso.


Coração agradecido
Vim de lá agradecido à CVX-P, ao meu Provincial por me ter confiado esta missão e, sobretudo,
agradecido por ver uma Comunidade Mundial, com tão diferentes modos de ser e estar, tão

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comprometido com a construção do Reino. Desejando uma Igreja onde o Cristo que bate à
porta está do lado de dentro e nos convida a sair, e não fora convidando-nos a fechar-nos
sobre nós mesmo. É tão bom perceber os desafios que nos são lançados por tantos que nos
batem à porta serem reconhecidos por uma Assembleia Mundial e confirmados no caminho
que estamos a fazer juntos.


Desafios
O processo de discernimento proposto ajudou-me a perceber que não preciso/precisamos de
ter as guias claras sobre a mesa. Precisamos de nos despir de preconceitos, desejos, agendas
escondidos, para poder aceitar ser guiados pelo Senhor. Tarefa difícil mas na Argentina percebi
ser possível. Se lá, com tanta diversidade, conseguimos chegar ao final da Assembleia quanto
mais conseguiremos encontrar e construir caminho na nossa igreja Portuguesa. CVX dom para
a Igreja e para o mundo, nunca um lema aparentemente tão arrogante nos colocou numa
atitude de humildade e desejo de conhecer, amar e Seguir Jesus comprometendo-nos, como
Igreja, com o mundo Ele ama. Creio que esta foi a conclusão obtida destes 10 dias. Conclusão
frustrante pois nada concreta, mas conclusão que nos abre as portas ao futuro de nos
descobrir-nos a nós mesmos como Comunidade de Vida Cristã; Que nos envia a sair do nosso
conforto convidando-nos a irmos a raízes mais íntimas da nossa identidade; e que nos faz ver
que, em nós, Cristo quer ir às fronteiras do mundo, porque nada onde habita o homem Lhe é
alheio. Saibamos nós ser fiéis a tanto bem recebido.

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DELEGAÇÃO CVX PORTUGAL
Carla Dias Rebelo
P. José Eduardo Lima, Sj.
Rui Brás
Sara Magalhães

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