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A Estratégia Saúde da Família como Objeto de

Educação em Saúde 1
The Family Health Strategy as object of Health Education 1

Candice Boppré Besen Resumo


Cirurgiã-dentista, Especialista em Saúde da Família pela Uni-
versidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Este estudo investigou se a proposta da Estratégia
E-mail: candice_boppre@bol.com.br Saúde da Família (ESF) é objeto de discussão com a
Mônica de Souza Netto população na prática educativa dos profissionais nela
Cirurgiã-dentista, Especialista em Saúde da Família pela Uni- inseridos e a compreensão sobre Educação em Saúde
versidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Profª. Substituta do que eles possuem. Trata-se de uma pesquisa qualita-
Departamento de Estomatologia da Universidade Federal de San-
tiva, exploratório-descritiva, realizada a partir de en-
ta Catarina (UFSC)
E-mail: netto.monica@ig.com.br trevistas semi-estruturadas. Na análise de conteúdo,
identificaram-se as categorias: Educação em Saúde;
Marco Aurélio Da Ros
A Universidade não ensina e A ESF como objeto de
Médico, Doutor em Educação, Profº. Titular do Departamento de
Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). educação em Saúde. Os resultados mostraram que a
E-mail: ros@ccs.ufsc.br ESF não é objeto de educação; alguns profissionais
Fernanda Werner da Silva
desconhecem seus fundamentos e a maioria deles tem
Assistente Social, Especialista em Saúde da Família pela Univer- práticas educativas verticais e patologizantes, distan-
sidade Federal de Santa Catarina (UFSC). ciando-se da proposta de Promoção da Saúde da ESF.
E-mail: nandawerner2000@yahoo.com.br Reflete-se acerca das concepções de Educação em Saú-
Cleci Grandi da Silva de que permeiam os discursos dos profissionais, as-
Enfermeira, Especialista em Saúde da Família pela Universidade sim como sobre sua participação na capacitação co-
Federal de Santa Catarina (UFSC). munitária para a construção da autonomia, cidada-
E-mail: aline_grandi@hotmail.com nia e controle sobre os determinantes de saúde na
Moacir Francisco Pires perspectiva da Promoção da Saúde. Aponta-se para a
Psicólogo, Especialista em Saúde da Família pela Universidade importância da Educação Permanente e a reestrutura-
Federal de Santa Catarina (UFSC), Mestre em Educação pela UFSC. ção da graduação, de modo a aproximar as práxis da
E-mail: moacirfranciscop@yahoo.com.br Educação em Saúde com a realidade social.
1 Artigo elaborado a partir do Trabalho de Conclusão do Curso
Palavras-chave: Saúde da Família; Educação em saú-
de Especialização em Saúde da Família da Universidade Federal de; Recursos humanos em saúde.
de Santa Catarina (UFSC).

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Abstract Introdução
This study investigated whether the proposal of the O Programa Saúde da Família (PSF) teve início em
Family Health Strategy (FHS) is discussed with the meados de 1993, sendo regulamentado de fato em
population in the educational practice of the profes- 1994, como uma estratégia do Ministério da Saúde
sionals inserted in this strategy, and the understan- (MS) para mudar a forma tradicional de prestação de
ding of Health Education that these professionals assistência, visando estimular a implantação de um
have. It is a qualitative, exploratory-descriptive re- novo modelo de Atenção Primária que resolvesse a
search, carried out through semi-structured inter- maior parte (cerca de 85%) dos problemas de saúde
views. The content analysis identified the following (Roncolleta, 2003; Da Ros, 2006).
categories: Health Education; O PSF visa ao trabalho na lógica da Promoção da
The University does not teach; and FHS as Object of Saúde, almejando a integralidade da assistência ao
Health Education. The results showed that FHS is not usuário como sujeito integrado à família, ao domicí-
an object of education; some professionals are lio e à comunidade. Entre outros aspectos, para o al-
unaware of its principles and the majority of them has cance deste trabalho, é necessária a vinculação dos
vertical educational practices based on diseases, profissionais e dos serviços com a comunidade, e a
which makes them distance themselves from the perspectiva de promoção de ações intersetoriais (Da
proposal of Health Promotion of the FHS. The study Ros, 2006; Brasil, 1997; Roncoletta, 2003).
provides reflections on the conceptions of Health Edu- Obter profissionais aptos a trabalharem nesse
cation that pervade the discourse of the professionals, novo modelo e repensar as práticas educativas den-
as well as on their participation in the community tro da visão de Promoção da Saúde não se constitui
qualification for the construction of autonomy, citi- uma tarefa fácil (Gil, 2005; Brasil, 2003; Brasil,
zenship and health determinants control in the Health 2005a). Conforme Cutolo (2000), essa dificuldade
Promotion perspective. The article points to the im- acontece como reflexo do modelo de formação destes
portance of Permanent Education and to the reorga- profissionais: hospitalocêntrico, biologicista, frag-
nization of undergraduate studies, so that the Health mentado. Essas características, do chamado modelo
Education practice is closer to the social reality. flexneriano, utilizam metodologia de ensino verticali-
Keywords: Family Health; Health Education; Health zada e não problematizadora, ou, como dito por Freire
Manpower. (2005), uma “educação bancária”.
Esse modo de pensar e de fazer a Educação em Saú-
de faz parte do Estilo de Pensamento (EP) hegemôni-
co, até hoje adotado nas Universidades. Cutolo (2000)
entende Estilo de Pensamento como modos de ver,
entender e conceber, que levam a um corpo de conhe-
cimentos e práticas compartilhados por um coletivo
com formação específica. Para Da Ros (2000), um co-
letivo de pensamento possui uma linguagem espe-
cífica, que utiliza certos termos técnicos e um direcio-
namento das observações, dos problemas e métodos
que passam a ter traços comuns.
Nas universidades, os EPs sobre o tema Educação
em Saúde são caracterizados por Da Ros (2000) em
dois estilos: a educação crítico-reflexiva e a educação
com foco na culpabilização da população.
Sobre a educação crítico-reflexiva, mais compatí-
vel com o modelo de Promoção da Saúde e estruturada
no modelo de Produção Social da Saúde, Da Ros (2000)

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coloca que a base histórica para esse EP se encontra acompanhado de um movimento de fortalecimento,
na Teoria da Medicina Social, que surgiu na Europa empowerment (empoderamento), econômico, político,
em meados de 1800, e segundo a qual o conceito de social e cultural dos indivíduos e grupos socialmente
saúde tem suas bases na Determinação Social do pro- subordinados (Lefèvre, Lefèvre, 2004).
cesso saúde-doença. Nesse estilo, a educação é uma É cada vez mais necessário “oferecer oportunida-
prática libertadora, de relação bilateral entre educa- des para que as pessoas conquistem a autonomia ne-
dor e educando, em que a postura verticalizadora é cessária para a tomada de decisão sobre aspectos que
criticada. Para Buss (2003), esse modelo apresenta- afetam suas vidas” e “capacitar as pessoas a conquis-
se como uma estratégia de mediação entre as pesso- tarem o controle sobre sua saúde e condições de vida”
as e seu ambiente, combinando escolhas individuais (Pereira e col. apud Lefèvre, Lefèvre, 2004, p. 152).
com responsabilidade social pela saúde, as chamadas A autonomia, dessa forma, significa a possibilida-
políticas públicas saudáveis. de de o indivíduo escolher entre as alternativas e as
A educação culpabilizadora, a qual Da Ros (2000) informações que lhe são apresentadas de forma escla-
denomina de Educação Sanitária, enfatiza um EP recida e livre. Na perspectiva da Promoção da Saúde,
hegemônico na formação, em que educar em saúde é os profissionais devem estabelecer vínculos e criar
praticar higiene como forma de mudar comportamen- laços de co-responsabilidade com os usuários que irão
tos pessoais, para que não haja o adoecimento. A hi- decidir o que é bom para si, de acordo com suas pró-
giene individual deve ser de responsabilidade do in- prias crenças, valores, expectativas e necessidades
divíduo, para evitar a presença do agente causal, em (Brasil, 1997; Pedrosa, 2003). A pessoa autônoma ne-
uma visão claramente biologicista. Há uma negação cessita de liberdade para manifestar sua própria von-
explícita na determinação social do processo saúde- tade, além de capacidade de decidir de forma racional,
doença (Da Ros, 2000). Nesse caso, o lócus de respon- optando entre as alternativas que lhe são apresenta-
sabilidade e a unidade de análise são o indivíduo, que das, bem como compreender as conseqüências de suas
é visto como o último responsável (senão o único) por escolhas (Pedrosa, 2003).
seu estado de saúde. Esse foco sobre o indivíduo e seu Partindo-se da importância de os profissionais da
comportamento tem sua origem na tradição, na inter- saúde estarem aptos a trabalhar sob a lógica da Pro-
venção clínica e no paradigma biomédico (Buss, 2003). moção da Saúde, este estudo investigou a compreen-
Esse EP gera um modelo de trabalho na saúde que são sobre Educação em Saúde de cirurgiões-dentistas,
contempla atividades predominantemente curativas enfermeiros e médicos inseridos na Estratégia Saúde
e reabilitadoras. Não há espaço para a integralidade da Família (ESF). Considerando-se a necessidade do
da atenção, com a incorporação das ações de Promo- fortalecimento da capacitação da comunidade no con-
ção da Saúde, entendidas como o processo de capaci- trole sobre os determinantes de sua saúde, procurou-
tação da comunidade para atuar na melhoria da sua se identificar se esses profissionais trocam informa-
qualidade de vida e saúde, incluindo sua maior parti- ções ou promovem discussão com a população sobre
cipação no controle desse processo (Brasil, 2003). a proposta da ESF.
Segundo Lefèvre e Lefèvre (2004), quando há ações
de Educação em Saúde no modelo culpabilizante de
Percurso Metodológico
educação, geralmente o profissional acredita estar
socialmente investido de autoridade sanitária. Ele Este estudo baseia-se em uma pesquisa de campo qua-
pensa possuir, sob monopólio, o conhecimento verda- litativa, do tipo exploratório-descritiva. Para sua execu-
deiro e absoluto dos temas que envolvem saúde e do- ção, procurou-se compreender a essência dos fenômenos
ença; dessa forma, impõe, em nome de interesses que envolvem o tema proposto, contemplando as relações
maiores da coletividade, o tipo de comportamento que sociais, entendendo os determinantes e os modos pelos
os indivíduos devem assumir. quais se organizam na sociedade e a explicam.
O diálogo educativo entre as autoridades sanitá- Os dados foram coletados nos meses de setembro
rias investidas de funções educativas e informativas e outubro de 2005, a partir de entrevistas semi-estru-
e as populações torna-se um mero discurso, se não vier turadas e diário de campo, cujo questionário foi sub-

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metido a um pré-teste com três profissionais. As en- ria dos entrevistados, no total de seis, apontam para
trevistas foram gravadas e guiadas por duas ques- essa lógica do processo educativo, em que os discur-
tões centrais: “O que você entende por educação em sos são permeados por orientações preventivistas.
saúde?”, “Você explica o que é PSF para os usuários?”. Aqui a idéia é educar para prevenir.
Foram entrevistados onze profissionais que atuam, no Vaitsman (1992) afirma tratar-se de uma herança
mínimo, há um ano em unidades de saúde de Floria- do modelo cartesiano que ainda domina as práticas
nópolis, inseridos nas equipes da ESF. Para definir o educativas e de saúde. Se, por um lado, apresenta
número de entrevistados, utilizou-se o recurso do es- melhorias das condições de saúde da população, au-
gotamento do discurso. mento da perspectiva de vida, por outro, desenvolve
Inspirada por Minayo (1994) e Bardin (1977), a aná- uma sociedade medicalizada, estruturada em uma
lise das entrevistas foi realizada conforme processo tecnologia médica de alto custo, com enfoque reducio-
de ordenação dos dados, processo de categorização nista, que sempre parece correr atrás de respostas
inicial, processo de reordenação dos dados empíricos para as doenças produzidas pelo modo de organiza-
e processo de análise final. ção da vida social (Stotz, 1993; Illich, 1990; Gazzinelli
Como se trata de pesquisa envolvendo seres huma- e col., 2005).
nos, o projeto desta pesquisa foi submetido à aprova- Assim, o conhecimento científico e a tecnologia de
ção do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade alto custo têm posição de destaque passando a ser di-
Federal de Santa Catarina (UFSC) – projeto 281/05 – vulgados como verdade. Passaram a opor e, até mes-
de acordo com a resolução do Conselho Nacional de mo, a desprezar o senso comum; ou seja, negam e tra-
Saúde (CNS), no 196/96. Cada entrevistado assinou um tam como “erro” o modo como as classes populares,
termo de consentimento, declarando sua livre parti- teoricamente não detentoras deste conhecimento “ofi-
cipação na pesquisa, após ter recebido os devidos es- cial”, entendem e explicam o mundo (Valla, 2000; Fon-
clarecimentos sobre objetivos e método do estudo. seca, 2000).
Assim, para a preservação de sua identidade, utiliza- Para Pedrosa (2003), essa concepção científica,
ram-se codinomes (E1, E2, E3 etc.). que poderíamos chamar de clássica, impregna as
Nesta pesquisa, originalmente, emergiram oito ações ditas pedagógicas nos serviços de saúde, com o
categorias de temas distintos. Para a temática de Pro- agravante de serem pontuais e focalizadas nas especi-
moção e Educação em Saúde, à qual se destina este ficidades de cada programa, intervenção ou situação.
artigo, destacam-se três destas categorias: Educação Dessa forma, são desenvolvidas ações educativas, por
em Saúde (com as subcategorias educação patologi- exemplo, para diabéticos, hipertensos, cardíacos, ges-
zante e vertical, educação promotora de saúde e edu- tantes, nutrizes, adolescentes e outros, tipificando
cação horizontal centrada na doença); Aprendi no Ser- cada ser humano com o grau de risco que determinado
viço/A Universidade não Ensina; e A Estratégia Saú- modo de viver o enquadra.
de da Família como Objeto de Educação em Saúde, O Estilo de Pensamento nas ações educativas des-
desdobradas conforme se segue. ta subcategoria preconiza, verticalmente, a adoção de
1. Educação em Saúde novos comportamentos, como por exemplo, “parar de
fumar, vacinar-se, ter melhor higiene, entre outros, e
Esta categoria reúne elementos que identificam as de estratégias geralmente ditas coletivas, como a co-
concepções de Educação em Saúde que permeiam os municação de massa” (Stotz, 1993).
discursos dos profissionais da Estratégia Saúde da Seguindo essa concepção, percebe-se que a fala
Família. Assim, achamos necessário decompor essa está voltada para a prevenção de doenças:
categoria em três subcategorias. Educação em Saúde são os procedimentos que você
1.1. Educação Patologizante e Vertical faz, que você agrega à comunidade que você trabalha
Esta subcategoria baseou-se nos profissionais que para prevenir as doenças [...] Então, são todas as ações
possuem um Estilo de Pensamento (EP) curativista básicas simples que você possa formar a cabeça da-
na Educação em Saúde, com foco nas patologias, e quelas pessoas com as quais a gente trabalha. São
impositivo na relação profissional-paciente. A maio- noções básicas de higiene. (E1)

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Esse modo de pensar a Educação em Saúde tem dos profissionais em direção ao usuário, no sentido
sempre um agente externo causador da doença que de ajudar o usuário no seu entendimento sobre as
deve ser combatido como o “inimigo”. É o caso do ci- questões de saúde, das questões dos cuidados que ele
garro, que causa câncer e doenças coronarianas; do possa ter com o corpo etc. (E3)
açúcar e do sal, que causam a diabetes e a hiperten- Nas atividades ditas educativas, como as palestras
são arterial; das gorduras, que causam o aumento do e as aulas, sejam em grupos ou em consultas indivi-
colesterol e o infarto, a obesidade e assim por diante duais, passa-se a idéia de que a doença se deve, prin-
(Laplantine, 1991). cipalmente, à falta de cuidado e ao desleixo da popu-
Reforça-se nesse depoimento, o modelo biológico lação com a sua saúde, deixando a “vítima” com sen-
ou “exógeno” do adoecimento, segundo Laplantine timento de “culpa” pelo problema que apresenta. Como
(1991). resultado dessa prática, dentre outros problemas, fo-
Oriento que não se deve comer fora de hora, falo bas- ram identificados por Chiesa e Veríssimo (2001), os
tante sobre doces, perguntando: Tu adoças muito o seguintes: baixa vinculação da população aos servi-
café ou suco? Não tem problema fazer isso, não é que ços de saúde, baixa adesão aos programas e aos trata-
não se possa comer bala ou adoçar muito o suco para mentos e frustração dos profissionais de saúde.
quem gosta de doce, mas tem que saber que após, tem Esses problemas ficaram evidentes nas entrevis-
que escovar os dentes e não após muitas horas. Eu tas a seguir:
sempre falo isso. (E2) A gente não remarca, peço para que anote na caderne-
Para Buss (2003), a prevenção difere-se da promo- ta e bote na geladeira. Os pais que têm interesse
ção, porque direciona mais às ações de detecção, o retornam, quando a gente marcava era um desastre
controle e o enfraquecimento dos fatores de risco ou total, a inadimplência era grande. (E1)
fatores causais de grupo de enfermidades ou de uma Já tentamos fazer grupos algumas vezes, mas as pes-
enfermidade específica; seu foco é a doença e os me- soas não vêm (...) (E4)
canismos para atacá-la, mediante o impacto sobre os Autores como Briceño-León (1996) e Cáceres (1995)
fatores mais íntimos que a geram ou a precipitam. deixam explícito o fato de que os programas de Educa-
Nota-se que além de centrar-se na doença, a edu- ção e Saúde não devem se limitar a iniciativas que vi-
cação, nessa subcategoria, segue um modelo tradici- sem a informar a população sobre um ou outro proble-
onal de imposição de conhecimentos ao paciente. ma. O trabalho educativo a ser feito deve extrapolar o
Quando a relação linear entre o saber instituído e o campo da informação, integrar a consideração de valo-
comportamento acontece, via de regra, a educação se res, de costumes, de modelos e de símbolos sociais, que
torna normativa (Gazzinelli e col., 2005). É muito co- levam a formas específicas de condutas e práticas.
mum encontrar atividades educativas que fazem uma Ensinar é algo profundo e dinâmico; portanto, tor-
transposição para o grupo da prática clínica indivi- na-se imprescindível a “solidariedade social e políti-
dual e prescritiva, tratando a população usuária de ca”, para evitar um ensino elitista e autoritário, como
forma passiva, transmitindo conhecimentos técnicos quem tem o domínio exclusivo do “saber articulado”
sobre as patologias e como cuidar da saúde, descon- (Freire, 1997). Segundo esse autor, educar não é a mera
siderando o saber popular e as condições de vida des- transferência de conhecimentos, mas sim a conscien-
sas populações. Muitas vezes, a culpabilização do pró- tização e o testemunho de vida, do contrário não terá
prio paciente por sua doença predomina na fala do eficácia. A autonomia, a dignidade e a identidade do
profissional de saúde, mesmo que ele saiba dos educando, no caso, a comunidade e seus sujeitos, têm
determinantes sociais da doença e da saúde (Vascon- de ser respeitadas, caso contrário, o ensino se torna-
celos, 2000 apud Valla, 2000; Briceño León, 1996). rá “inautêntico, palavreado vazio e inoperante”.
O princípio que está por trás da norma de compor- Neste sentido, qualquer iniciativa de educação só
tamento é a de que alguém, além do sujeito, conhece toma dimensão humana quando se realiza a “expul-
melhor o que é apropriado para ele e para todos, in- são do opressor de dentro do oprimido”, como liberta-
distintamente: ção da culpa (imposta) pelo “seu fracasso no mundo”
Educação em Saúde são ações que partem do serviço, (Freire, 2005).

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Freire (1997) insiste também na “especificidade Aqui, são estabelecidas condições favoráveis à su-
humana” da educação, como competência profissio- peração do caráter meramente instrumental da Edu-
nal e generosidade pessoal, sem autoritarismos e ar- cação em Saúde cujos princípios se apóiam exclusi-
rogância. Só assim nascerá um clima de respeito mú- vamente no saber científico. À medida que se observa
tuo e de disciplina saudável entre “a autoridade do- a progressiva importância conferida às representa-
cente e as liberdades dos alunos, [...] reinventando o ções e aos saberes do senso comum na relação dos
ser humano na aprendizagem de sua autonomia”. sujeitos com a doença, mais apurada se torna a críti-
1.2. Educação Promotora de Saúde ca ao absolutismo e à autonomia do saber científico.
Nesta subcategoria, são reunidas as percepções dos O saber científico desconsidera a dimensão socioeco-
profissionais que têm outro Estilo de Pensamento nômico-cultural do sujeito, tornando o processo edu-
(EP), que está voltado para a Promoção da Saúde no cativo não eficaz, uma vez que suas intenções diver-
seu processo de trabalho educativo. Embora não se gem da realidade social e não proporcionam uma
tratando de uma pesquisa quantitativa, chama a aten- interação efetiva. Se a educação não se voltar à reali-
ção o dado de que somente três profissionais foram dade concreta do indivíduo ela não se realiza, pois
identificados dentro deste EP. extrapola o universo do qual ele faz parte (Vascon-
Neste EP, a Educação em Saúde é abordada como cellos, 2004; Valla, 2000).
estratégia fundamental, entendida de forma ampliada Pedrosa (2003) defende que as práticas educativas
e não somente como um momento cronológico anteri- devem considerar a construção compartilhada de sa-
or à doença. Isso só ocorre quando a Promoção da Saú- beres que fundamentam as visões de mundo das pes-
de é vista como um jeito de pensar e de fazer a saúde, soas e respeitar esses saberes forjados no mundo da
no qual as pessoas são vistas em sua autonomia e em vida, potencializando, dessa forma, o protagonismo
seu contexto político e cultural como sujeitos capazes das pessoas e dos coletivos sociais.
de superar o instituído e serem os seus próprios Nessa perspectiva, as ações educativas assumem
instituintes de um modo de vida saudável (Buss, 2003). um novo caráter, mais aderente aos princípios propos-
Nesse sentido, os entrevistados comentam: tos pela ESF, destacando-se o direito à saúde, como
A Educação em Saúde é uma educação diferente de eixo norteador, e a capacidade de escolha do usuário,
consultório. É uma educação que leva em considera- uma condição indispensável.
ção as pessoas da comunidade, a questão cultural Assim, é fundamental que o setor saúde embase a
dela [...] (E5) educação não apenas na transmissão de conhecimen-
Então, em Educação em Saúde, tu quer que as pessoas tos historicamente acumulados, mas que, principal-
saibam as coisas que tu sabe, mas aí vai muito a for- mente, trabalhe na perspectiva da construção de co-
ma que tu faz isso, né? Por exemplo, a gente parte do nhecimentos e de qualidade de vida por todos aqueles
pressuposto que quer promover a saúde e fazer preven- que a integram.
ção de algumas doenças. Então, a gente vai pegar e dar A fala a seguir expõe esse pensamento promotor
uma palestra para as pessoas, aí não dá, né? [sorriu]. de saúde e de qualidade de vida:
Não dá, tu não está utilizando o conhecimento das pes- A gente está abrindo também espaço aqui na unidade
soas, não está sendo estratégico, não tá respeitando o para a comunidade realizar atividades que não envol-
conhecimento dessas pessoas, não está discutindo com va doença, como yoga, ginástica, resgate cultural, por
elas, não está levando em consideração o que elas sa- exemplo. Nós temos a dona Lurdes, que é nossa anciã,
bem, o contexto de vida que elas vivem, a história de ela faz renda de bilro e pensamos dela fazer aula de
vida deles para aquilo que tu queres buscar: a melhor renda de bilro. Tem também o motorista da ambulân-
qualidade de vida, daqueles tanto saudáveis como cia que toda vida dele ele fez rede de pesca. E isso está
com os doentes. Você deve utilizar a sabedoria delas se perdendo, a importância cultural, está se perden-
para tu discutires, fazer com que estas pessoas sejam do. A dona Lurdes fala igual manezinha2 e não tem
agentes da melhora da qualidade de vida deles. (E6) vergonha. Já os filhos mais velhos dela falam mais

2 Denominação popular para a pessoa nascida em Florianópolis.

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ou menos, e o mais novo faz questão de dizer que não nhor ou a senhora sabe sobre sua doença? O que ou-
é mané, então, isso está se perdendo. Outra idéia tam- viu falar? O senhor/senhora conhece alguém com este
bém seria a projeção de filme por semana, algo mais problema? Como essa pessoa vive? (E7)
cultural. (E5) Os profissionais de saúde acreditam que o modo
A Promoção da Saúde, na prática das ações de edu- de vida dos indivíduos pode ser a causa de doenças e
cação, pressupõe que os indivíduos aumentem o con- que, quando necessário, sem autoritarismos, ele deve
trole sobre suas vidas através da participação em gru- ser mudado com base no que é considerado compor-
pos, visando transformar a realidade social e políti- tamento correto, conforme o ponto de vista biomédico.
ca. Assim, há uma profunda distinção da abordagem Este pressuposto, segundo Illich (1990), pode levar o
tradicional centrada na mudança de comportamento comportamento humano à dependência de uma defi-
individual. Assim, a prevenção dos agravos à saúde nição médica de “correção”, ou ao que tem sido cha-
não é tratada isoladamente, mas como uma das me- mado de “medicalização da vida”. Isso pode ser consi-
tas a serem atingidas para a melhoria da qualidade derado um problema, porque pressupõe a aceitação
de vida e para a justiça social (Valla, 2000; Stotz, 1993) social da medicina como fonte legítima de verdade,
Nesta subcategoria, as condições de vida e a es- apesar da postura aberta de alguns profissionais aos
trutura social são colocadas como as causas básicas valores e cultura dos indivíduos, constituindo-a em
dos problemas de saúde. Neste enfoque, a Educação uma instituição de controle social.
em Saúde é entendida “como uma atividade cujo in- A ideologia do individualismo tem conduzido à
tuito é o de facilitar a luta política pela saúde” (Valla, escolha do convencimento como principal estratégia
2000). educativa do modelo tradicional de educação em saú-
1.3. Educação Horizontal Centrada na Doença de (Mendes, 1985). Modos de vida não saudáveis, que
Nesta subcategoria, parece surgir um terceiro EP em fogem às regras, são relacionados à ignorância dos
Educação em Saúde. As diferenças de EP, distancia- indivíduos quanto ao “correto” estilo de vida, segun-
mentos (ou proximidades), ou diferenças na precisão do a visão biomédica. Ao instruir os indivíduos quan-
dos limites entre alguns Estilos de Pensamento são to à relação entre o comportamento “incorreto” e as
chamados por Fleck (1986) de matizes de Estilo de patologias, os educadores em saúde esperam persua-
Pensamento (Fleck, 1986; Cutolo, 2000). di-los a assumir diferentes condutas.
A relação profissional–paciente aparece de modo Mesmo aquele profissional que busca acolher e ver
horizontal, sem imposição ou autoritarismos; entre- os sujeitos enquanto integrantes de um meio socio-
tanto, não consegue se despir do rigor do conhecimen- cultural diverso acaba por “deslizar” no rigor do seu
to científico voltado para a prevenção, para o biológi- conhecimento científico profissional a medida em
co, como verdade absoluta e única a ser inserida no que impõe regras comportamentais, como se percebe
conhecimento dos indivíduos. Percebe-se que o pro- a seguir:
fissional, teoricamente, tem a consciência da neces- Não é só aquela consulta de você chegar e dar remé-
sidade de considerar o conhecimento do paciente, res- dio. As pessoas me procuram muito mais pra conver-
peita sua cultura e troca experiências com ele, porém sar, pra ter alguém que ouça. [...] Quando eu atendo
seu discurso não se descola do “tema” doença. Esse primeiro o paciente eu digo que a pressão dele está
estilo de pensar, para Mendes (1985), tem sua funda- alta, porque ele está comendo muito salgado ou não
mentação advinda do aparelho formador ainda está caminhando e não está tomando muito líquido.
Flexneriano. Aí ele [o usuário] vai sair daqui com uma informação
No processo educativo, o profissional parte do co- maior. Vai pensar melhor nisso aí, no que fazer. Por-
nhecimento do paciente, mas não promove saúde no que não é uma vez que você consegue mudar o hábito
seu conceito amplo, seu foco educativo está direcio- de vida de uma pessoa. E ele [o usuário] vindo e tu fa-
nado às doenças: lando sempre a mesma coisa para ele, a gente cobran-
A educação não é feita toda de uma vez, é aos poucos, do não consegue assim uns 100%, mas aos pou-
partindo do que ele já sabe, perguntando: o que o se- quinhos, de grãozinho em grãozinho (...) (E8)

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2. Aprendi no Serviço/ A Universidade não Ensina Da mesma forma, é essencial que o investimento
A capacitação dos profissionais nos cursos da área da na formação profissional não se limite à qualificação
puramente técnica. A universidade precisa responder
saúde tem demonstrado limitações quanto à forma-
às necessidades da sociedade. O processo de forma-
ção básica, no caso desta pesquisa, na ESF. Essas li-
ção que pretende ser eficiente jamais pode perder de
mitações podem ser percebidas, conforme alguns de-
vista a importância da comunidade na definição de
poimentos dos profissionais quando questionados
suas necessidades, pois a prestação de atendimento
onde aprenderam a fazer Educação em Saúde:
somente tem sentido quando responde às demandas
Na universidade eu sei que não foi. Foi com os pacien-
dos usuários (Severino, 2002).
tes mesmo, né? Nós trabalhamos muito próximos das
Sisson (2002) afirma que a ESF possui limitações
comunidades em Florianópolis, isto é muito real. [...]
em sua operacionalização relacionada aos recursos
E aprende. É uma troca. Na realidade sai uma troca.
humanos, gestores e recursos financeiros. Entre es-
Eu já aprendi muito com meus pacientes. (E9)
ses limites, aparece com destaque a formação inade-
A atual formação das Universidades gera um mo-
quada dos profissionais. Segundo a mesma autora, o
delo de trabalho na saúde que contempla atividades
modelo assistencial hegemônico mantém-se inaltera-
predominantemente curativas e reabilitadoras, não
do ao privilegiar a atenção individual e hospitalar.
permitindo a integralidade da atenção, em que as
Conseqüentemente, na rede básica, as atividades cen-
ações de saúde devem também incorporar as práticas
trais continuam sendo a consulta médica, realizada
educativas promotoras de saúde (Brasil, 2003). A mai-
como pronto-atendimento, em prejuízo ao cuidado
oria dos profissionais que atuam no Sistema Único integral de atenção e ao controle sobre os determinan-
de Saúde (SUS) ainda segue esse modelo, curativista, tes principais das condições de saúde.
que não abre espaço para as práticas de educação e A necessidade de mudança no processo de traba-
saúde efetivas (Pedrosa, 2003). lho, na gestão e na formação de recursos humanos é
Além disso, percebe-se, nos depoimentos, que a amplamente reconhecida e acompanhada de críticas
Universidade tem sido uma instituição de ensino que à inércia do aparelho formador, às universidades, em
usa do método de transmissão de conhecimento, ba- que existe grande resistência e dificuldades de mu-
sicamente de maneira verticalizada, negligenciando danças, e nas quais continuam sendo formados pro-
o processo de ensino-aprendizagem e a interação do fissionais que realimentam modelos assistenciais que
educador-educando, conforme expressa a fala: algumas reformas buscam superar. As críticas con-
[Aprendi] No dia-a-dia, porque na Universidade até centram-se na educação médica, embora estejam re-
quando eu tava na graduação, é aquele grupo de sem- lacionadas à formação dos demais profissionais
pre. A gente vai com a palestra pronta, e passa, igual (Sisson, 2002).
na Universidade quando a gente assiste uma aula. Vai
e fala o que é, e o que não é [...] e deu. E Educação em 3. A Estratégia Saúde da Família como objeto de
Saúde não é isso. (E10) Educação em Saúde
É preciso que a universidade lance mão de uma Essa categoria se propõe a trazer reflexões sobre a
“pedagogia não-normativa, problematizadora e ESF como um possível objeto de Educação em Saúde
dialogal” do tipo proposto por Freire (2002) na forma- para o acesso da população às informações sobre sua
ção dos profissionais, para que eles possam, segundo saúde, construção da cidadania e busca de autonomia.
Lefèvre e Lefèvre (2004), propiciar oportunidades de Pretende-se fomentar a socialização dos saberes acer-
encontro e de troca entre o campo sanitário e o cam- ca do ESF/SUS, com o intuito de incentivar a partici-
po de senso comum e o fortalecimento deste último pação social nos determinantes de sua saúde.
(associações de bairro, conselhos comunitários de A ESF, vista como objeto de Educação em Saúde, tem
saúde, clubes de mães etc.). Caso contrário, os profis- como papel central uma prática educativa voltada para
sionais acabarão sendo meros reprodutores daquela a Promoção da Saúde, como um conjunto de atividades
Educação em Saúde autoritária e prescritiva que os orientadas a propiciar o melhoramento de condições
formou na universidade. de bem-estar e acesso a bens e a serviços sociais.

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Dessa forma, os autores entendem que dedicar um para explicar especificamente o PSF para o paciente.
espaço da Educação em Saúde para trabalhar ques- Até porque, deveria ter tempo, mas ele [o usuário] vem
tões que vão além do biológico com a população pro- aqui com outras coisas, e a gente acaba conversando
pulsionará o desenvolvimento de conhecimentos, ati- e não fala do programa. É uma lacuna mesmo. (E10)
tudes e comportamentos favoráveis ao cuidado da saú- A partir da análise das considerações feitas pelos
de mediante o processo de empowerment e luta pelo sujeitos de pesquisa, verificamos que, dos onze pro-
alcance de estratégias que permitam um maior con- fissionais entrevistados, somente dois responderam
trole sobre suas condições de vida, individual e cole- que discutem com usuários a proposta da ESF:
tivamente. [...] No grupo, quando se fala do Programa Saúde da
A Educação em Saúde pode ser feita dentro da fa- Família, eles ficam bem interessados, eles perguntam,
mília, na escola, no trabalho ou em qualquer espaço mas você tem de estimular. É difícil alguém chegar do
comunitário. Este é um componente que está presen- nada e perguntar o que é PSF, a não ser quando uma
te na Carta de Ottawa, resultante da I Conferência In- semana depois que a gente publicou um jornalzinho
ternacional sobre Promoção da Saúde, em 1986, no local falando sobre o PSF. É outra forma que comple-
Canadá, que resgata a dimensão da Educação em Saú- menta. Tivemos uma tiragem de 8 mil exemplares, é
de, além de avançar com a idéia de empowerment, ou pouco, mas são oito mil que lêem. (E5)
seja, o processo de capacitação (aquisição de conhe- Para todos os entrevistados, se não fosse pela
cimentos) e consciência política comunitária (Buss, indução da pergunta, a ESF não iria surgir como pro-
2003). A percepção de que a mudança na Educação em posta que faça parte da educação em saúde dos pro-
Saúde deve acompanhar a formação dos profissionais fissionais. Ela é considerada pelos autores como uma
de saúde também está presente na declaração resul- categoria por ausência.
tante desta conferência (Buss, 2003). Sugere-se, neste estudo, que os profissionais da
Segundo Pedrosa (2003), faz-se necessário repen- ESF sejam capacitados a trabalharem neste novo mo-
sar a Educação em Saúde sob a perspectiva da parti- delo de saúde, pois, mediante as análises de conteú-
cipação social; compreender que as verdadeiras prá- do, constatou-se que muitos deles ainda não têm bem
ticas educativas só têm lugar entre sujeitos sociais e claro o que realmente seja a ESF e que, portanto, pou-
considerar a Educação em Saúde uma estratégia para co têm a contribuir como multiplicadores de informa-
a constituição de sujeitos ativos, que se movimentam ções a esse respeito. Ocorre que o EP hegemônico ain-
em direção a um projeto de vida libertador. da se pauta em um processo de ensino, para a forma-
Diante dessas e de outras considerações que são ção universitária, que valoriza a prática intervencio-
apresentadas neste estudo, a partir da análise de tre- nista, com uma relação sujeito-objeto, e no modelo
chos das entrevistas realizadas, discute-se se os pro- biologicista, que não trata de emponderar a popula-
fissionais entendem a proposta da ESF e se trocam ção (Da Ros, 2004).
informações com a população sobre a ela. Por outro lado, podemos identificar que aqueles
Os trechos abaixo nos conduzem à reflexão sobre profissionais que tentam promover uma discussão
a relação imediatista e curativista à qual estão acostu- com a população acerca dessa proposta não conse-
mados os profissionais da ESF, quando questionados guem fazê-lo de modo mais aprofundado e contínuo,
se promovem discussão sobre a ESF com a população: em função, entre outros, da demanda de usuários in-
Não. O pessoal quer saber, ao bater na porta ali, ó, que compatível com a capacidade de atendimento. Além
ele tá preocupado em resolver a necessidade dele, não disso, os gestores (também malpreparados) não pos-
quer saber se é PSF. (E1) sibilitam a esses profissionais a possibilidade de Edu-
As colocações abaixo evidenciam, com transparên- cação Permanente. Premidos pela formação flexine-
cia, a falta de esclarecimento à população sobre a que riana e pela realidade de um serviço que não valoriza
se propõe à ESF a formação de saúde, o modelo não avança. (Brasil,
Sabe que eu nunca parei para falar sobre isso. Na ver- 2003). Esse fato tende a fazer com que os processos
dade, eles [os usuários] não têm uma noção boa ain- de educação e comunicação na perspectiva da Promo-
da sobre o PSF. Acho que nem mesmo a gente tem. A ção da Saúde sejam relegados a uma questão de segun-
gente fala que trabalha no PSF, mas eu nunca parei da ordem.

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Considerações Finais cas, incrementando processos de transformação, o
PRÓ-SAÚDE tem como eixos básicos: a realização do
Constatou-se que a formação dos profissionais de saú- ensino nos ambientes reais onde se dá a assistência à
de é uma das problemáticas centrais. Eles demons- saúde pelo SUS, o uso de metodologias e estratégias
tram não estar preparados para o trabalho na lógica educacionais, nas quais os estudantes assumam pa-
da Promoção da Saúde requerida pela ESF. Ao contrá- péis mais ativos, e a própria expansão do objeto do
rio, a maioria dos discursos é permeada por uma edu- ensino, que não deve ser apenas a doença já instala-
cação voltada para as doenças e para a tentativa de da, mas a Produção Social da Saúde como síntese de
mudança de comportamento dos indivíduos, com re- qualidade de vida. Essa iniciativa visa à aproximação
lação vertical e impositiva. Por essa razão, reitera-se entre a formação de graduação no país e as necessi-
a relevância da Educação Permanente e da reestru- dades da Atenção Primária, que se traduzem no Bra-
turação da graduação, de modo a aproximar as práxis sil pela ESF. A desarticulação entre os mundos acadê-
da Educação em Saúde da realidade social. micos (saber científico) e o saber popular vem sendo
Assim, afirma-se que a Educação Permanente é apontada, em todo mundo, como um dos responsáveis
aprendizagem no trabalho, em que o aprender e o en- pela crise do setor da saúde, no momento em que a
sinar se incorporam ao cotidiano das organizações comunidade global inicia a tomada de consciência
deste trabalho. Propõe-se que os processos de capaci- acerca da importância da formação dos trabalhado-
tação dos trabalhadores da saúde tomem como refe- res de saúde, valorizando-os cada vez mais (Brasil,
rência as necessidades de saúde das pessoas e das 2005b; Brasil, 2003; Brasil, 2000).
populações e tenham como objetivos a transformação
das práticas profissionais e da própria organização Referências
do trabalho, estruturadas a partir do processo de
problematização (Brasil, 2003; Brasil, 2005a). BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Martins
Além disso, propõe-se que o processo de trabalho Fontes, 1977.
dos profissionais da ESF possa ser um veículo de BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº
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ser estruturados conforme a legislação. em: 20 ago. 2006.
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BRASIL. Ministério da Educação. Minuta do
grantes das equipes da ESF devem ser capacitados
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para uma Educação em Saúde adequada. Tendo em para os cursos de graduação em medicina. Brasília,
vista a importância de todo o processo de formação DF, 2000. Disponível em: <http:// www.mec.org.br>.
do profissional, eles precisam, desde a graduação, se Acesso em: 30 dez. 2005.
formar na lógica do modelo da Determinação Social
da Saúde, capacitando-se para trabalhar na ESF/SUS. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão
Assim, é essencial a articulação do Ministério da do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento
Saúde (MS)/Ministério da Educação e Cultura (MEC) de Gestão da Educação na Saúde. Política de
a fim de efetivar a reforma curricular. O MS, por in- educação e desenvolvimento para o SUS. Brasília,
DF, 2003. Disponível em: <http:// www.saude.gov.br>.
termédio da Secretaria de Gestão do Trabalho e da
Acesso em: 27 set. 2004.
Educação na Saúde (SGTES), em conjunto com a Se-
cretaria de Educação Superior do Ministério da Edu- BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão
cação (SESU/MEC), vem conduzindo o processo de do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento
implantação do Programa Nacional de Reorientação de Gestão da Educação na Saúde. A educação
da Formação Profissional em Saúde – PRÓ-SAÚDE. permanente entra na roda: pólos de educação
Inspirado no que foi o PROMED, dirigido às escolas permanente em saúde: conceitos e caminhos a
médicas, que incentivou e manteve 19 escolas médi- percorrer. Brasília, DF, 2005a.

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Recebido em: 05/09/06


Aprovado em: 19/12/06

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