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cM srizada desta publicagio, no todo ou em 10/98). i esate da Lingua Portuguesa, il de ee pelo Decreto Capitulo 1 Escrita da hist6ria e ensino da historia: tensoes e paradoxos MANOEL LUIZ SALGADO GUIMARAES © ensino da histéria como tema relevante das reflexdes dos historiadores vem ganhando espago nos iiltimos anos. Se percorrermos as paginas dos catélogos e anais de encontros de histéria, faremos a constatagao de que 0 tema parece ter ganhado cidadania entre os pesquisadores de nossa 4rea, com simpésios dedicados ao ensino da histéria nos encontros regionais da Associagdo Nacional de Histéria, assim como nos seus tiltimos simpésios nacionais. Igualmente, 0s encontros bianuais Perspectivas do Ensino de Historia, ja em sua sexta edigdo, realizada em 2007 na Universidade Fede- ral do Rio Grande do Norte, tornaram-se referéncia para as discussdes que m a produgio do conhecimento em histéria e sua transformagao envolve! em matéria ensinavel, em discurso pedagégico. Na pauta desses encontros, de acordo com os objetivos definidos por seus organizadores, esté 0 esti- mulo ao didlogo entr: isador ¢ professor universitério, a fi rnhos entre si. Algumas hipéteses podem ser levantadas ¢ 0 profissional do ensino fundamental ¢ médio e 0 m de que esses dois mundos nao pesqui permanegam estrai explicar tal interesse: a crise do ensino de his6ria, pouco sensivel x para P sformagdes por que passou 0 campo nos iiltimos anos em enormes tran ano. isa académica. Em direta rela¢io com esse pro- termos do avan¢go da pesquisa a | niin nail Digitalizado com CamScanner m entre 0 que se Produz p, a go dos programas de Pos. histéria nado NOs colé_ o sugere abordage”s Digitalizado com CamScanner fins politicos. Ainda que inventada como ‘ género entre os gregos no espa- 37 G0 da pélis democratica, nfo assumira ai o carter de um ensinamento, z Ho necessario & paideia do homem moderno, ’ constitui¢io do cidadio 5 nacional. Como parte importante da cultura humanista nos comegos da 3 modernidade, a historia também no assumiria uma finalidade de maté- i ria.a ser ensinada e objeto de um curriculo pedagégico. Pensar, portanto, a relacao entre ensino e histéria é jé se colocar em certo momento da historia da historia, perceber suas particularidades ¢ as demandas que estdo na base de um projeto que veio a se tornar comum para as socieda~ des moderna a necessidade de ensinar histéria e tornd-la parte obriga- téria de um curriculo. Outra abordagem possivel para a questio proposta seria privilegiar as~ pectos de natureza mais metodolégica, pensando, a partir de um viés mais pragmitico, na eficiéncia a ser obtida com 0 proceso de ensino da histéria. Por esse caminho, certamente aspectos da cultura tecnolégica contempo- ranea teriam de ser abordados, tendo em vista seu impacto na construgio de nossa relagio com o passado a partir de seus vestigios. A crescente capa- cidade de armazenamento e meméria propiciada pelas novas tecnologias nio necessariamente corresponde a igual capacidade de processé-las atra~ vés de narrativas histéricas. Dessa maneira, 0 aumento da capacidade téc- nica de produzir ¢ armazenar vestigios do passado nio assegura imediata- mente maior capacidade de transforma-los em narrativas acerca das experiéncias vividas. Segundo Christophe Prochasson (2008), falta ao his- toriador contemporaneo a “falta” que possibilitaria exatamente o trabalho de reflexio acerca dessa auséncia. Como pensar em nossa atualidade o en- sino de historia desconsiderando o arsenal de inovagdes tecnol6gicas dis- poniveis que exercem forte atrativo sobre o piblico escolar? a © caminho que escolhi, no entanto, foi privilegiar uma reflexio — e ‘uma proposta de discussio para essa questo — ane, partindo & cae inter- rogagio acerca do que esté implicito na ideia de “ensino de histéria”, procu- rasse pensilo como parte de um uso que se procura dar, entre tantos outros possiveis € historicamente articulados, a tarefa de escrever historia. Portan- Digitalizado com CamScanner w o AESCRITA DA HISTORIA ESCOLAR to, deixo de imediato claro meu ponto de partida: discussao nao pod levada a bom termo se a desvinculamos de uma reflexéo mais geral acerca dos pro le. mas de uma escrita da historia; portanto, de uma reflexdio em torno da historiogji € da teoria da histéria, Nesse sentido, pensar o ensino de histéria implica no- cessariamente, segundo meu juizo, articular escrita e ensino como parte da produgio do conhecimento histérico, £ bem verdade que nao estou supon- do que esses procedimentos so os mesmos, submetidos a regras ¢ procedi- mentos da mesma natureza, com objetivos ¢ finalidades semelhantes. Afir- mar suas diferencas igualmente no traz como pressuposto hierarquizi-los Segundo critérios de maior ou menor importéncia. Mas pensé-los como De ee tacos eeenoeres ete Mizoe parala historia como campo disciplinar e de conhecimento, cujos impasses me Parecem hoje cl Jaros, sin- ‘omatizados por uma percepeao da faléncia do ensino de historia, , do des- cademia, e ‘star na base do semindrio que deu razio a este texto. Dai sua importincia e televancia como parte dos problemas que afetam diret tamente 0 exercicio de nosso oficio. Mas, que significa exatamente esse press Posto que fundamenta as consi- deragdes que serio aqui expostas? Significa, antes de tudo, que pensar o ensino de histéria como um dos usos possiveis ue foram formulados para aqueles que se ocuparam de escrever sobre o passado articula-se a um tempo © 8s formas proprias desse tempo de conceber a es, crita da histéria. Imp também, pensar o ensino da historia em sua dime lica, nsic © particular e especifi- ca de uso do passado, o que implica igualmente Pensar a dimensio pol subjacente a essa forma de uso social itica do pasado. Finalmente, Pensar o ensi- no de historia por essa chave de leitura impde-nos reletir aceres fealender noria edos mecanismos de sua reprodugio, muitas das vezesa cargo dag estrat égias tos de pedagogicas do ensino de historia, Entender como certos procedime, Titualizagio memorialistica estio embutidos num corpo de ensinary lentos reificados a partir de contetdossolidamente estabelecidos, mas pouco inter. rogados em sua historicidade, aproxima-nos dos procedimentos de uma hiy_ toriografia como campo de investigacio e interrogacio acerca dos fianda. Digitalizado com CamScanner mentos do nosso oficio. Podem e devem contribuir para diminuir os espagos de silencio ¢ desconfianga miitua entre a escola e a universidade. w © Por essa chave de leitura que propomos, pensar uma teoria da historia € parte indissociavel da propria pesquisa e da reflexio em torno do ensino da hist6ria.' Cabe, no entanto, um esclarecimento quanto ao que estamos entendendo por uma teoria da historia, que de imediato nao se deve con- fundir nem com uma filosofia geral da hist6ria, nem com a preocupacao de formular uma teoria geral da histéria. Nao estamos considerando a ESCRITA DA HISTORIA E ENSINO DA HISTORIA teoria como um movimento desvinculado da pesquisa historica, cuja fungio seria fornecer a pesquisa o arsenal conceitual e metodolégico de- finidor de procedimentos a serem operacionalizados pela pesquisa. Nao serve, neste sentido, as finalidades priticas da pesquisa histrica. A teoria da historia coloca em questi, propondo interrogages, a propria praxis do historiador, tornando-a objeto do proprio conhecimento. Dessa ma- neira, no apenas preocupa-se com os procedimentos adotados para a realizagio de uma investigagio de natureza historica, como também leva em consideragao as demandas que sio formuladas para essa producio es- pecifica de conhecimento que é tarefa dos historiadores de oficio, tomem clas as mais diferentes formas que as demandas por orienta¢io no presen- te sejam capazes de formular (como demanda) para 0 conhecimento his- térico: em nossa contemporaneidade, certamente o papel das midias é central para a abordagem dessa questio, realizando, talvez de forma pri- vilegiada, aquilo que Aleida Asmann (1994) denomina mise en scene do passado, No conjunto dessas demands est também o problema do ensi- no da historia. Em suma, uma teoria da historia é uma reflexo que interrog2 * formas pelas quais o pensamento histérico pode se constituir em uma especifici- dade cientifica. Assim estamos cons! Be yanareni vista oiprojeto deveonstituirso de uma ciéncia da his- jderando a propria historicidade dessa Go papel da teoria da historia e suas relagSes com a eserita * Para uma discussio acerca da historia, ver as importantes sugestoes de Riisen (2007a, 2007). Digitalizado com CamScanner = oO AESCRITA DAHISTORIA ESCOLAR téria como esforco particular da cultura histérica oitocentista. E como Parte dessas preocupagdes é que podemos entender o papel central que vai assumir o ensino da histéria. Uma segunda consideracio, que se articula intrinsecamente aquela ante- Hiormente formulada, impde que se deixe claro que uma reflexio tedrico- historiografica nao estabelece uma distingao, em termos de importancia e significado, entre as formas de produgio e as formas de apresentacio dos resultados da pesquisa hist6rica. Isso porque a apresentacao desses resultados ndo € mera decorréncia da pesquisa realizada, mas obrigatoriamente deve considerar © piblico-alvo para o qual os resultados da pesquisa se direcio- ram. Esse ator deve ser parte ativa nas consideragSes acerca do uso especi- fico do passado através de uma pedagogia escolar, Nesse sentido, 0 puiblico- ndo esta constituido apenas pelos pares da academia, mas também pelos diferentes piblicos que demandam narrati alvo, parece claro, ivas do passado, entre eles os alunos que devem aprender histéria nas escolas. E preciso, pois considerar como parte dos problemas da interrogacio te6ri ico-historiogr4- fica a reflexio em torno do ensino e da didatica da historia, ay andonando 6 sentido pragmitico e domesticador de certas concepgdes e apreensdes de tuma reflexio em torno de uma diditica da historia, Prog ed: limento que tendeu a encarar a diditica como uma reflex3o em tomo da aplicagao peda- ext i ® Seabees pena, zido, desvinculando-o das condigSes efetivas de sug Pe Or especia- ‘gbgica da histéria, um uso, por isso mesmo, Producao M acabada tizar n; tamental entre as duas esferas no ambito de nossos a4, listas e profissionais do oficio. Sua expressio mais be i i é © formu, em termos de politica académica velo ase coneretizay ny formulada **Paracdo depar. é ACOs Universitsny . aa com as consequéncias que hoje vemos. bem verdae a algumas experiéncias departamenta ‘We, recentemente verter esse quads 0, © especifico 4 is €m Procurado re trazendo para os espacos da producio do conheciment xdo em torno de seu ensino. Em outras palavras, pa TeCe-NOS impop, ressaltar a importincia de uma reflexio racional e critica acereg das fy, de exposicio/apresentagio dos resultados da pesquisa histories = Mas ritica académica a partir de certos Protocolos formas, g, como p 2 Bes. Digitalizado com CamScanner = quisa documental, por exemplo. E isso conjugando-a com a demanda espe- cifica propria ao uso da historia como pedagogia escolar. Na verdade, a considera¢io do pablico-alvo como parte dos esforgos para refletirmos acerca da historia e de sua escrita em diferentes contextos é tradigao antiga, que aproximou a historia da retorica. Como parte de uma das formas dos procedimentos retéricos — aquele que investe na construgio légico-formal de argumentos —, a hist6ria constituia-se em fonte de exemplos, em referéncias que ajudariam nas tarefas da persuasio. ESCAITA DA HISTORIA E ENSINO DA HISTORIA pela palavra. Integrava assim um conjunto de esforcos necessarios as tare fas de convencimento para a agio e indispensdveis para a vida de uma comunidade politica fundada em principios abstratos, como a pélis ate- niense. Por esse caminho veio a se constituir naquilo que Cicero transfor- maria em sua célebre afirmagio: a histéria como mestra da vida. E, portanto, a partir de um contexto eminentemente ret6rico que passamos a acreditar nessa capacidade do passado para ensinar os homens do presente, definin- do assim uma fungio para o conhecimento da histéria. Se as demandas contemporineas pelo ensino da histéria fundam-se a partir de outros con- textos, importa, contudo, considerar a tradi¢do retérica e sua reatualiza- co, de importincia central para constituir um sentido “pedagégico” para a historia. Cultura da memoria, presentismo e ensino da historia O retorno do passado nem sempre é um momento libertador da lembranga, mas um advento, uma captura do presente. (Sarlo, 2007) Vivemos um tempo de intenso investimento em relagao ao passado, supon- do que esse investimento pode se revestir de diferentes atitudes: 0 trabalho da meméria com a sucessiva produgao dos seus “lugares de meméria”; 0 Digitalizado com CamScanner 42 AESCRITA DA HISTORIA ESCOLAR crescimento da produgao académica em hist6ria, com significativa procura pelos cursos de histéria nos vestibulares das universidades puiblicas; a mi- diatizagio do passado através dos meios de comunica¢ao de massa e, evi- dentemente, a patrimonializacio a que as sociedades contemporaneas, marcadas pela experiéncia de uma globalizagao acelerada, tém-se submeti- do. Este ano, especialmente, estamos assistindo a uma avassaladora produ Sao de lembrangas dos 200 anos da chegada da Corte portuguesa as terras americanas. Por que ¢ para que lembrar? Seria possivel trag¢armos uma his- tOria da propria lembranca, supondo que ela se articula a vida de uma co- munidade social num tempo determinado? Lembranga que implica neces- sarlamente 0 seu contraponto: o esquecimento. Até que ponto lembrar nio Poderia também significar uma forma de esquecer? Escrever como forma de fixar uma meméria implica a igual capacidade de esquecer: se estiver escrito, no tenho mais necessidade de Jembrar. Estranho Paradoxo este que constitui a relagio entre meméria e esquecimento, largamente temati ado 20 longo da cultura ocidental, num movimento em que o esquecer ora deve ser enfrentado pela narrativa dos feitos Brandiosos a se rem memo- Hzados, ora é condicio positiva para a ago no mundo, atitude sal . le salutar para 5 que pretendem investirna vida, Kant, 49 comen ‘ar a assertiva de que a arte de escrever liquidou com a meméniy platénica h algo de verdade”.? » Bcrescenta: “nessa frase Assistimos a uma febre de preservaria dag pany materia sagrado pela meméria e pelas Iembrangas, nung oa ne 2 um respeito © fempo que parece ter adquirido Una aesteraca. nao Sorrida contig Uiltima instancia, das proprias condigdes de ¢ ™PtOmetedora, em ontinuarmo, Bu S nos lemb; na amnésia, contra-ataca ; rando, Sob risco de um "805 com una inn condic uma supermeméria, talvez aquela do personage I io tia. Tudo pode e deve ser arquivado como so de) mem6_ $80 para a prod lucao g, x " "™ do conto de 8, 5 Funes, 0 Memorioso, que com a sofisticagao da capaci, or, ‘ ade de regis, . dads passados ¢ vividos tornou-se invilido para a vida g tra Set Vivida yy 125 56 i 2 Ver, a esse respeito, o importante trabalho de Weinrich (2001), Digitalizado com CamScanner tudo pode e deve ser arquivado, levando-nos 3 compulsio pelos arquivos, 43 tendemos a reificé-los como suportes da memoria, garantidores do nio 5 esquecimento, deixando de vé-los como uma escrita, por isso mesmo sub- : metida também ao jogo da lembranga e do esquecimento. Nesse mesmo movimento tendemos a confundir essa inflago de meméria e de narrativas 4 acerca do passado com a propria histéria, esquecendo-nos de que a memé- : ria nos fala de certezas (do sagrado ¢ imutavel), e a historia, de possibilida~ a des construfdas a partir de hipdteses racionais ¢ controlaveis que podem a 2 qualquer tempo sofrer a critica, A unidade da meméria, lugar do reencon- 5 tro consigo mesmo, contrapée-se a pluralidade necessaria da hist6ria, lugar do estranhamento e da divida, mas igualmente lugar de abertura de hori- zontes. Parece que assistimos a uma mutacio nas formas pelas quais expe- rimentamos ¢ elaboramos a passagem do tempo em nossa contemporanei- dade, mudanga que por estar em pleno curso ainda nio nos permite perceber seus resultados efetivos, ainda que sintomas expressivos possam ser apontados. Igualmente, esse processo de mutago em nossas formas de elaborar a passagem do tempo — analisadas por Francois Hartog (2003) em seu livro acerca dos regimes de historicidade — nao implica supor que nao possamos conviver com outras formas de significagao dessa passagem do tempo. O presentismo que marca esse regime contemporineo nio fez desaparecer a possibilidade de convivéncia com um regime marcadamente moderno de perceber o tempo a partir de seu sentido que se realizaria num faturo, No entanto, coloca-nos diante de novas formas de experimentar 0 transcurso do tempo, em que a aceleracao, com suas consequéncias, parece por em risco nossa capacidade de fixar pela lembranga e pela meméria 0 que acabou de ser vivido e experienciado, tornando o futuro algo incerto e cada vez mais desprovido de significado. Sio intameros os exemplos dessa mutagio indicados por Hartog em seu livro, eno cabe aqui enumeré-los, mas apenas dizer que tm consequén- 5 eto de escrita da histéria em nossa cias para a formulagio de qualquer projeto 4 contemporaneidade, Nao por acaso, uma importante querela historiogra- fica nos anos 1980, aquela que entio envolveu parte significativa dos his- Digitalizado com CamScanner em fungio de um diagnéstico acerca de um 44 toriadores alemies, deu-se passado que parecia nio querer passar para a sociedade alema. Um passado ainda presente, Exatamente 0 passado da If Guerra Mundial e do regime nazista, com seu desdobramento mais evidente ¢ traumatico da experién- z cia do holocausto. f ainda do campo historiografico alemAo € em torno da histor surge a questao acerca dos funda~ 1 contemporinea daquele pafs que téria do periodo recente, mais } mentos que embasaram uma escrita da his uma hist6ria que para ser escrita especificamente do nacional-socialismo mente ao testemunho como fundamento de sua verda- recorreu prioritari quando esse testemunho se inviabiliza, em virtude do desapareci- de. mento das gerages daqueles que viveram as experiéncias narradas, per- gunta-se o historiador Norbert Frei, professor da Universidade de Jena especialista no periodo em questio, como continuar a escrever essa histo- ria, sem os mesmos fundamentos de sua verdade?? As transformagdes experimentadas em nossa relagio com o tempo subs- tituem a confianga no futuro pela necessidade de preservagio no presente como forma de salvaguardar-nos das incertezas desse tempo a nossa frente. A explosio recente das narrativas memorialisticas, dos discursos testemu- nhais ¢ da febre patrimonial articula-se a esse processo de mudangas com relagdo A nossa percepgao da passagem do tempo e de seus efeitos. E preci- so, contudo, ter claro que a esse crescimento vertiginoso do trabalho da lembranga nao corresponde necessariamente uma relagio mais critica em rela¢do ao passado. Christophe Prochasson (2008) diagnostica esse tempo como sendo o de uma certa confusio entre historia e memoria, quando 0 fae et apelos da emogao parecem mais adequados ao enfrentamento do passado do que as armas da critica histérica. Segundo ele, o historiador contemp0- Fineo deve, sobretudo, emocionar, mais do que convidar A reflexio critica, cla mesma menos confortadora e apaziguadora, Para o historiador france’ 05 historiadores contemporaneos estari i e ‘ariam submetidos a um novo reg! cial » Ver espec mente o instigante estudo d ram suas lembrangas de 1945, © Frei (2005) sobre como os alemies constr Digitalizado com CamScanner = & emocional. © retorno do drama faustiano que marcou a experiéncia da modernidade parece novamente presente, apontando-nos os paradoxos do ser moderno: a necessidade de preencher com certezas — e com lembran- gas — aquilo que é incerto por sua propria condigio: 0 passado que, como existéncia efetiva, para nds nao é mais presente a nio ser por uma condi¢io de vicariato. Parece-me que a questio fundamental a ser formulada é justamente acerca do papel do ensino de hist6ria em meio a essa cultura da meméria ESCRITA DA HISTORIA E ENSINO DA HISTORIA que, se por um lado é particularmente importante para o trabalho do historiador, por outro no deve ser confundida com o proprio exercicio da critica histérica, tarefa essencial da operagio historiografica. As dife- rengas so assim indispenséveis para o futuro da disciplina como ativida- de critica e forma diferenciada de conhecimento das experiéncias passa das, a qual, dialogando com as construgdes da meméria, as torna parte da propria experiéncia historica dos homens vivendo no mundo entre ou- tros homens. Histéria, ensino de historia e formagao A historia distingue-se das demais ciéncias por ser, simultancamente, arte. Ela € ciéncia ao coletar, achar, investigar. Ela & arte ao dar forma ao colhido, go conhecido e ao representé-los. Outras citncias satisfazem- se em mostrar 0 achado meramente como achado. Na histbria, opera a faculdade da reconstituisao, Como ciéncia, ela 6 aparentada a filosofia; como arte, 4 poesia. (L. von Ranke, Die Idee der Universalhistori, 1835) Somente o cima estimular-me-ia a prefer 0 lado de ci ao lado de 1a das montanha: siio grilhdes poderosos. Ew ndo gostaria de nao tenha uma ocupacao; no que fazer. A arquitetura 5; afinal, a terra natal e 0 hébito morar aqui, bem como em lugar algum onde eu momento 0 novo dé-me muito 0 Digitalizado com CamScanner 46 AESCRITA DA HISTORIA ESCOLAR ergue-se da tumba feito um espirito do Passe 4 estudar seus ensinamentos como os de u ‘ndo para aplicé-los ou para del mas para reverenciar em sil Digitalizado com CamScanner da experiéncia moderna, cuidando, no entanto, que essa formagio redefi- 47 nisse, a partir desse novo contexto, a tradi¢3o humanista e seus valores. E assim que a Antiguidade classica, especialmente os gregos, tornam-se uma referéncia central para a cultura letrada alema — caminho aberto pela ino- vadora reflexio de Winckelmman na segunda metade do século XVIIL* A histéria como disciplina nos quadros da Bildung, de uma paideia humanista moderna, nio pode ser vista de forma diferenciada do trabalho de transmis- sio, educacio e ensino, entendidos menos em sua dimensio pratica ¢ ins- trumentalizada e mais em sua dimensio formativa. [gualmente, seu ensino e estudo nao poderiam estar dissociados de outras 4reas de conhecimento Falamos acima de um contexto politico de formulacao da Bildung, que pode por isso mesmo ser entendida também como parte de um projeto de Estado, mais especificamente do Estado prussiano em sua tarefa de cons- truir-se por oposi¢ao ao Estado francés, Aquela altura uma presenga militar efetiva em territérios alemies em virtude da politica napole6nica. Segundo ‘Aleida Assmann (1994) em seu estudo acerca da Bildung alema, a percep¢ao de um certo atraso alemio em relagio a outras sociedades europeias agudi- za-se a partir da Revolugao Francesa e, sobretudo, a partir da politica napo- leénica. E nesse contexto que se insinua um projeto nao apenas intelectual de uma Bildung, mas também um projeto politico acerca das especificidades ressaltar que ¢ no campo da cultura que essa tema- nacionais alemies. Vale tica nacional ganhard forga no espaco alemao, secundarizando os aspectos mais propriamente politicos da questo. Sio exemplos desses investimentos no campo da cultura em sua articulagao com a questao da jdentidade nacio- universidade de Berlim, ¢ Goethe, em 1808, de elaborar um livro nacional nal o projeto da fandada pelos irmios Humboldt, ea ideia de Nethammer ea base da formagio 8 deveria, entre outras c: a efetiva de um monum eral da nacio. Segundo seus idealizado- gue contivess -aracteristicas, set monumental res, 0 projeto editorial : 9 em tamanho € © cugerindo com isso. a dei ent SEE 4 Sobre o papel de Winckelmann ¢ as see a cultura letrada alema, ver especialmente Décu chand (2003). questées referentes 20 significado da Grécia para (2000); Pommier (2003); Mar- Digitalizado com CamScanner = oa AESCRITA DA HISTORIA ESCOLAR volume — e nfo estar condicionado e submetido as exigéncias do mercado Seus equivalentes mais préximos seriam a Biblia e a obra de Homero, mos ‘rando assim as referéncias universais que estariam na base desse projeto, Ainda como parte desses investimentos no campo da cultura, especialmen- te da meméria, 0 projeto de um templo da patria aos herdis alemies que combateram e foram derrotados em Tena e Auerstedt em 1807, 0 grande monumento nacional — 9 Walhalla — veio a ser inaugurado em 1842 2. A formacio — Bildung — como atticulacao entre conhecimento, inada forma A historia formulada como Bildung ee Rete dital mince a uma EES VeOS ain cg co, em seu sentido de criagio, como fo, perspectiva de tecnicizagio do pasado, Mo artisti- Ta SeEazeH rence dois riscos importantes: primeiro, a cientificizagio da historia, €ntendida apenas Por uma vertente metodol6gica, 8 qual inclusive se busca Associar a figura de Ranke, como se 08 problemas histéricos estivesser Tesumidos a equacig de problemas de ordem metodol6gica; segundo, a fuga do sujeito do cama Bo He preocujagbes da refi intGrica: COMMMEUM ys! Pers pectiva significa nao desvinculé-la dos processos diditicos vottaie, Para g presentacio tendo em vista o puiblico, necessariamente o ator Centra] sua aj Digital izado com CamScanner desse processo de conhecimento do passado, para quem essa tarefa de in- vestigacio deve ter algum sentido. 5 6 Por esse caminho, uma didatica da histéria nio pode mais ser encarada como algo alheio a historia como ciéncia e campo disciplinar e, portanto, distante das questées e interrogagdes formuladas no campo, sob pena de continuarmos a vé-la como mera fornecedora, a um aluno ou a um pabli- co receptor de exposigées museolégicas, dos resultados produzidos pela pesquisa submetida as regras disciplinares do campo. A continuar nessa ESCRITA DA HISTORIA € ENSINO DA HISTORIA chave de compreensio, arriscamo-nos a anular do campo de preocupagdes € interrogagdes tedricas que devem orientar a pesquisa académica as de- mandas sociais de um publico, abrindo mio daquela perspectiva que con- fere sentido A investigagio do pasado, 4 operagio histérica em si, em ou- tras palavras, ao proprio exercicio de um oficio como o de historiador. Ainda nessa perspectiva, teoria da histéria e didética da hist6ria articu- Jam-se a partir de sua relagio com a consciéncia hist6rica, entendida como forma peculiar de elaborar uma relacio temporal com o passado, ainda que persigam evidentemente finalidades e objetivos diversos. A hist6ria, desse ponto de vista, nao deve e nao pode confundir-se com o simples aprendi zado de contetidos, mas deve perseguir a possibilidade de adquirir compe- téncias especificas capazes de fundamentar uma reelaboragdo incessante da a temporal com relagio as experiéncias passadas. Mais do que experiénci: fe uma boa didética, esta teria que dar condi- transmitir contetidos através di criar as bases para o estabelecimento de relagdes com o passado que goes de sdo necessariamente distintas segundo os presentes vividos. Conclusao Por que integrar a discussao acerca do ensino da historia 20

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